Direitos Humanos em pauta

O marco temporal e a proteção dos direitos indígenas: Diálogos multiníveis e responsabilidades internacionais

O tema do marco temporal tem gerado intensos debates no âmbito do constitucionalismo brasileiro, e a ausência de uma definição clara tanto no STF quanto em relação aos projetos de lei em trâmite tem contribuído para a controvérsia.

13/6/2023

O tema do marco temporal tem gerado intensos debates no âmbito do constitucionalismo brasileiro, e a ausência de uma definição clara tanto no Supremo Tribunal Federal (STF) quanto em relação aos projetos de lei em trâmite tem contribuído para a controvérsia. Um desses projetos em discussão é o PL 2903 que tramita no Congresso Nacional e busca regulamentar o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas. O projeto tem suscitado opiniões divergentes e gerado perplexidades, com alguns defendendo sua aprovação como uma forma de condicionar os processos de demarcação, enquanto outros, a nosso ver corretamente, o criticam como uma ameaça aos direitos dos povos indígenas e uma negação de seu direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Nesse contexto, é importante analisar o tema à luz do constitucionalismo multinível, que rompe com a ideia tradicional de soberania e enfatiza a proteção dos direitos humanos. Destaca-se a importância do diálogo entre diferentes níveis de proteção dos direitos, incluindo o constitucionalismo local e o direito internacional dos direitos humanos para tratar das responsabilidades internacionais relacionadas à demarcação das terras indígenas no brasil. Isto porque o regime constitucional das terras indígenas no Brasil é influenciado por múltiplos níveis de proteção, exigindo o diálogo entre as esferas de proteção local, regional e global, sobretudo, no que toca à efetivação do direito à consulta prévia e consentimento livre e informado dos povos indígenas.

No âmbito global, há marcos legais que garantem o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras e à consulta prévia sobre assuntos que os afetem. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelece que os indígenas não podem ser removidos à força de suas terras sem consentimento livre e informado. A Convenção 169 da OIT também estabelece diretrizes para a consulta e participação dos povos indígenas, incluindo o direito de escolher as terras que ocupam.

No âmbito regional, o sistema interamericano de direitos humanos reconhece a proteção dos direitos territoriais indígenas. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos interpretaram a Convenção Americana de Direitos Humanos de forma ampla, incluindo a propriedade coletiva, a territorialidade, a ancestralidade e a sacralidade dos povos indígenas. Destaque para a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas que, ilumina a interpretação da Convenção, e reconhece a relação espiritual, cultural e material com as suas terras e o direito dos povos indígenas aos territórios que tenham tradicionalmente ocupado. À luz destes marcos normativos, precedentes importantes foram estabelecidos em casos como o da comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingui contra a Nicarágua e os casos paraguaios Yakye Axa, Xákmok Kásek e Sawhoyamaxa.

Caso emblemático que evidencia a complexidade do tema é Xucuru contra o Brasil, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 2018. Nesse caso, a comunidade indígena Xucuru, localizada no estado de Pernambuco, questionou a ausência de reconhecimento e proteção de seus direitos como pessoa jurídica coletiva, em conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos. A Corte IDH concluiu que o Estado brasileiro violou os direitos da comunidade Xucuru ao não garantir a proteção jurídica e a participação efetiva dessas comunidades como entidades coletivas na tomada de decisões que afetam seus territórios e recursos naturais. Embora a Corte IDH não tenha determinado reparações específicas relacionadas ao marco temporal no caso Xucuru, a decisão da Corte tem sido considerada uma importante referência para o debate sobre o tema, contribuindo para a discussão em curso sobre os direitos dos povos indígenas no Brasil e a necessidade de garantir sua proteção e participação efetiva na tomada de decisões que afetam seus territórios e modos de vida.

No âmbito local, a Constituição brasileira protege explicitamente os direitos das populações indígenas, reconhecendo sua livre autodeterminação. No entanto, o processo de demarcação das terras indígenas enfrenta desafios e violações, como evidenciado pelo caso da Comunidade Xucuru, que levou o Estado brasileiro à responsabilidade internacional por atrasos na demarcação e titulação de suas terras.

Em suma, a proteção dos direitos indígenas exige um diálogo efetivo entre os diferentes níveis de proteção, incluindo o constitucionalismo local, o direito internacional dos direitos humanos e as responsabilidades internacionais do Estado brasileiro. É fundamental garantir a participação e o consentimento livre e informado dos povos indígenas nas decisões que afetam suas terras, preservando seus direitos originários e autodeterminação.

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Colunista

Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC. Mestranda em Direito pela UnB.