Meio de campo

O Sonho de Tite (ou o salvamento do futebol) - Parte 2

O Sonho de Tite (ou o salvamento do futebol) - Parte 2.

11/7/2018

Em setembro de 2016, escrevi sobre o sonho de Tite (ou o salvamento do futebol)1.

Ele acabara de aceitar o convite para treinar a seleção brasileira, no pior momento da historia da CBF: além dos episódios de corrupção, prisão de um ex-presidente e ordem de prisão contra outro, o Brasil corria o risco de não se classificar para a Copa do mundo.

Tite, que pouco antes assinara um manifesto contra o seu novo empregador – a CBF –, preferiu seguir seu sonho, ao invés de renovar sua aparente insatisfação com o estado do futebol brasileiro. Lembre-se: ele era tratado como um salvador da pátria e a sua recusa talvez representasse o golpe de misericórdia em um modelo obsoleto, desgastado e insustentável, que não tinha – e não tem – motivo para continuar existindo.

Ou não. Um substituto competente poderia, eventualmente, formar um bom time, classificá-lo e, quem sabe, até mesmo ganhar a Copa. Assim, o sistema se preservaria, a imagem de salvador se perderia e o sonho se esvairia.

Exigir de Tite que, naquele momento, absorvesse as mazelas nacionais era um exagero. Por isso, ele seguiu seu instinto, seu sonho e assumiu o desafio de recuperar a confiança dos bons jogadores que teria à disposição e montar uma equipe. Aliás, mais do que isso: de recuperar, também, a confiança e a estima do torcedor.

No processo de construção do discurso, surgiu uma entidade quase infalível, que passou a representar o novo, o moderno, o trabalho, a tecnologia, a ética, a Justiça.

O problema é que isso tudo convivia – e convive – com um modelo de futebol incompatível com o discurso; um modelo que destruiu os times nacionais, que não se preocupa com os jogadores e que se mostra incapaz de manter ou resgatar a áurea da seleção.

Conviveram, portanto, durante esses meses, a CBF de Tite e a CBF do Coronel, uma isolada da outra, como se fossem estruturas distintas.

Mas não são.

Tite é um empregado da CBF, que é una; faz parte dela, como todos os demais. Exerce, é verdade, uma função especial dentro da organização. Por isso, caso não concorde com algo essencial, deve partir ou exigir mudanças. E não há outra pessoa que tenha, apesar da derrota na Rússia, poder para exigi-las, como ele.

O futebol brasileiro precisa se reinventar, pois chegou a um nível de mediocridade sem precedentes. Neymar, apesar das críticas, é um jogador espetacular. Mas é pouco para o Brasil. O time – ou a seleção – que depende de uma pessoa, raramente triunfa.

A pressão e as expectativas que se colocaram sobre aquele jogador ilustra a falta de perspectivas atual e futura. Sim, pois quando se olha para frente, não há um único nome que possa sucedê-lo.

Não há, então, futuro, seja pela aposta em um gênio, seja pela construção de um grupo. Aliás, com raríssimas – realmente raríssimas – exceções, futebol é jogo coletivo. O Brasil de 70 tinha vários grandes jogadores além de Pelé; o de 82 não era apenas Sócrates; e o de 94, mais do que todos, foi uma falange – apesar das intervenções decisivas de Romário e Bebeto.

Tite pode exigir a reinvenção; pode mostrar que tem preocupações maiores do que o seu sonho particular. O movimento parte do fortalecimento da base, da valorização dos jogadores e dos times e da arquitetura de uma estrutura apta a financiar o futebol no Brasil. A seleção será a consequência, e não o propósito.

Não se pode mais, por outro lado, ignorar a função do futebol para o desenvolvimento social do país. Não existe outra atividade com essa característica. Ignorá-la é um atentado imperdoável. O técnico da seleção também não pode, pois, fazer de conta que vive no país das maravilhas, no lado do bem do futebol.

Aliás, o ex-presidente Lula escreveu, no Blog do Juca, que, após a eliminação, devemos "voltar a pensar no Brasil, nos grandes problemas que temos, e procurar as soluções para diminuir o sofrimento do povo"2.

Concordo parcialmente. O futebol é um grande tema e um grande problema. Se manejado adequadamente, irá inserir milhares – sem exagero – de pessoas, sobretudo crianças, na sociedade. Trata-se de um tema maior, de um tema essencial.

Tite, enfim, pode revelar-se um ser humano realmente diferenciado, com preocupações que extrapolam seu sonho, sua realização pessoal, sua exposição.

Acredito que sua função, como líder da seleção, não se resuma à construção de um discurso politicamente correto que, agora, após o resultado na Rússia, se mostra comprometido.

Se esse for o caminho, a história o reduzirá a um bom técnico que obteve alguns êxitos – e, talvez, grandes derrotas; nada além disso.

Ele, porém, tem, como poucas pessoas tiveram, a oportunidade de escrever a história, pela transformação da sociedade pelo futebol. Basta condicionar a continuidade do seu trabalho à implementação de um novo modelo, que ele próprio pode, aliás, direcionar.

Tite, e apenas Tite, indicará se ainda vive um sonho de um homem comum ou se será um transformador, um homem elevado, que deixará uma obra potencialmente grandiosa, capaz de contribuir para o desenvolvimento da sociedade brasileira.

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1 O sonho de Tite (ou o salvamento do futebol).

2 Perder é do jogo. Vamos pensar no país.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.