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A possibilidade de devolução de medidas provisórias pelo presidente do Congresso Nacional e seus efeitos

Afinal, até que ponto pode um particular avaliar os limites da liberdade de expressão de outro particular? O tema não apenas implica proteger a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, mas saber quem pode efetuar o referido controle.

10/9/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A edição da Medida Provisória 1.068, de 6 de setembro de 2021, limitando o poder de provedores de redes sociais de moderar conteúdos postados pelos usuários traz novamente à tona a discussão sobre a possibilidade de devolução de medidas provisórias pelo Presidente do Congresso Nacional e seus efeitos.

O tema já tinha vindo à tona quando o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, devolveu no dia 12 de junho de 2020 a Medida Provisória 979, que dispunha sobre a designação temporária de dirigentes para as instituições federais de ensino durante o período da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19, de que trata a lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

Tal fato levantou a discussão sobre a constitucionalidade da devolução de uma medida provisória.

O fundamento utilizado pelo Presidente do Senado Federal para devolução da MP 979/2020 foi o inciso XI do artigo 48 do Regimento Interno do Senado Federal, que diz:

Art. 48. Ao Presidente compete:

(...

XI - impugnar as proposições que lhe pareçam contrárias à Constituição, às leis, ou a este Regimento, ressalvado ao autor recurso para o Plenário, que decidirá após audiência da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania; (grifamos)

(...)

Em primeiro lugar, é necessário entender o que é uma proposição e se a medida provisória apresenta essa natureza. Proposição é toda matéria proposta encaminhada por parlamentar ou detentor de iniciativa legislativa, que visa deflagrar processo legislativo, processo de fiscalização, ou manifestação de órgãos ou poderes. No caso do Senado Federal, as proposições se encontram previstas no artigo 212 de seu Regimento Interno, entre as quais interessam os projetos de lei.

Pela redação do artigo 62 da Constituição Federal, a medida provisória torna-se, simultaneamente, norma e proposição. É norma primária, com força de lei (pleonasmo constitucional, pois todas as espécies normativas previstas no artigo 59 são leis em sentido estrito, porquanto normas gerais, abstratas que inovam no plano jurídico), que vincula a todos seus destinatários a partir de sua publicação. É proposição, na medida em que passa a tramitar perante as Casas do Poder Legislativo federal.

A Constituição Federal não é expressa no modo como a medida provisória deve ser transformada em proposição, apenas se limitando a determinar que o presidente “submeta a medida provisória ao Congresso Nacional imediatamente”.

Coube à Resolução 1, de 2002, do Congresso Nacional, disciplinar a questão e, ao fazê-lo, deu contornos mais pragmáticos.

Em seu artigo 2º, a referida norma prevê que no dia da publicação da medida provisória no Diário Oficial da União, o seu texto será enviado ao Congresso Nacional, acompanhado da respectiva mensagem e de documento expondo a motivação do ato.

Ou seja, a Constituição e a Resolução 1, de 2002, criou forma automática de iniciativa de proposição. No dia da publicação da medida provisória, ela se torna proposição tramitando pelo Congresso Nacional.

O Congresso Nacional tem um regimento próprio, chamado Regimento Comum, editado pela Resolução 1, de 1970. As resoluções legislativas são tratadas pelo artigo 59 da Constituição Federal, como normas primárias, ou seja, são leis em sentido amplo. Segundo a mesma Resolução, a Mesa Diretora do Congresso Nacional é a Mesa do Senado Federal.

Segundo o artigo 62 da CF-88, após a edição da medida provisória, deve o Presidente da República submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Aqui, a expressão Congresso Nacional não é clara se referente a uma de suas Casas originárias, Senado ou Câmara dos Deputados, ou se à Casa derivada, o Congresso Nacional. Uma interpretação sistemática do artigo 62, especialmente a partir de seu §9º, parece apontar para a segunda hipótese, na medida em que esse dispositivo prevê que caberá a uma comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional. Ou seja, se o parecer dessa comissão mista é anterior ao pronunciamento de cada uma das Casas do Congresso Nacional, há que se concluir estar o caput do artigo 62 se referindo ao Congresso Nacional como terceira Casa deliberativa. Essa é a interpretação contemplada pelo Congresso Nacional, o que se depreende de sua Resolução 1/2002. Eis a primeira conclusão: a medida provisória vira proposição legislativa com tramitação iniciada no Congresso Nacional.

De acordo com o artigo 6º da Resolução 1, de 2002, do Congresso Nacional, a Comissão Mista de que trata o §9º do artigo 62 da Constituição Federal terá 14 dias para emissão de parecer. Se rejeitado, a medida provisória será arquivada, podendo ter início a tramitação do projeto de decreto legislativo de que trata o §3º do artigo 62. Se aprovada em sua totalidade, ou com alterações, pelo referido parecer, a proposição é enviada à Câmara dos Deputados, que terá mais 14 dias para se manifestar sobre a medida provisória ou projeto de lei de conversão (quando há proposta de alteração do texto da medida provisória). Apenas se aprovada ao menos parcialmente pela Câmara dos Deputados, a medida provisória será examinada pelo Senado Federal que terá mais 14 dias para sua deliberação.

Nota-se, portanto, que a medida provisória tramita por três Casas diferentes, cada qual em 14 dias. Aqui já se vislumbraria o primeiro vício na devolução da MP 979, de 2020, qual seja, a falta de amparo legal ou constitucional para devolução de proposição pelo Presidente do Congresso Nacional, invocando dispositivo regimental do Senado Federal, pois, como visto, se a proposição medida provisória tramita inicialmente pelo Congresso Nacional, o fundamento para sua devolução deveria ser norma expressa do Regimento Comum, não do Senado Federal.

De fato, na qualidade de Presidente do Congresso Nacional, o Presidente só poderia utilizar o Regimento do Senado Federal nos casos omissos, a teor do artigo 151 do Regimento Comum. A questão é saber se há omissão do tema, ou se a Constituição não contemplaria a hipótese de devolução. Embora controvertida a questão, tendemos a dizer que, para questões meramente formais, poderia ter lugar o uso subsidiário do Regimento Interno do Senado Federal, mas não para a hipótese da análise de medida provisória, pois a própria Constituição disciplina sua tramitação, delegando à Comissão Mista a competência para análise tanto de seu mérito quanto para a existência de pressupostos constitucionais (§5º do artigo 62).

Admitindo-se, contudo, a aplicação subsidiária do Regimento Interno do Senado Federal, caberia discutir qual o limite do controle de constitucionalidade e legalidade admitido pelo Presidente da Casa Legislativa.

Com efeito, embora também pouco estudado, compete aos presidentes das Casas Legislativas o primeiro controle de constitucionalidade no nosso sistema normativo. Trata-se de controle prévio e político. Dentro do processo de controle de constitucionalidade, que finda com o controle posterior jurídico exercido pelo Supremo Tribunal Federal, há que se reconhecer filtros parciais, não podendo o Presidente da Casa Legislativa exercer um juízo mais rigoroso, em substituição aos demais filtros, em especial os exercidos pela Comissão de Constituição e Justiça, pelo Presidente da República e pelo Poder Judiciário.

Assim, somente em caso de flagrante inconstitucionalidade ou legalidade, poderia uma proposição ser devolvida pelo Presidente de qualquer Casa Legislativa. E essa é a regra em âmbito nacional, sendo muito poucos os exemplos de devolução. Por flagrante inconstitucionalidade, pode-se entender a violação expressa à literalidade das normas constitucionais, legais, regimentais ou de decisões do Poder Judiciário.

É bem verdade que a literalidade indireta, construída mediante um raciocínio lógico em mais de uma etapa de verificação, poderia ser empregada para satisfazer tal requisito. Mas se recomenda, nessas hipóteses, que o juízo jurídico-valorativo seja confiado à Comissão pertinente para sua análise, conferindo maior legitimidade à avaliação.

No caso da MP 979/2020, contudo, a literalidade é expressa e a inconstitucionalidade formal evidente. O § 10 do artigo 62 determina ser vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. Tal prazo deve ter início após a oportunidade de apreciação, ou seja, no fim do prazo máximo de até 120 dias previsto no mesmo artigo.

Ocorre que em 1º de junho de 2020 a MP 914/2019, que também versava sobre o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, teve sua vigência encerrada pela sua não conversão em lei no prazo de sessenta dias, prorrogáveis por igual período. Ou seja, a apresentação de nova medida provisória versando sobre o tema afronta expressamente o artigo 62, §10, da CF.

Demais disso, não poderia o presidente do Senado devolver a medida com base em eventual violação do artigo 207 da Constituição Federal, que prevê a autonomia administrativa das Universidades. Diferentemente do flagrante vício formal, o princípio da autonomia universitária requer densificação de seu conteúdo, não se podendo afirmar que o atual critério de escolha dos dirigentes universitários constitua um núcleo essencial do principio da autonomia. Fosse isso verdade, nenhuma outra instituição dotada de autonomia administrativa, como o Ministério Público, as agências reguladoras e outras autarquias, como são as universidades federais, apenas deveriam seguir o critério de eleição de seus membros, funcionários e destinatários de seus serviços.

O tema parece envolver mais uma análise de mérito da medida e, ainda que se admita serem razoáveis os argumentos que defendam sua inconstitucionalidade, não se poderia alegar categoricamente tratar-se de medida flagrantemente inconstitucional.

No que se refere à eficácia do ato de devolução da medida provisória, em se admitindo sua legalidade ou constitucionalidade, ela por si só não suspende os efeitos da norma, pois, como visto, uma coisa é a proposição medida provisória que tramita independentemente da norma primária também chamada de medida provisória. Sua vigência só pode ser desconstituída pela reprovação da medida pelo Congresso Nacional. Embora a Constituição Federal não o estabeleça expressamente, é imperativo lógico e razoável que uma medida rejeitada pelo Congresso Nacional não possa conservar efeitos. Diversa é a hipótese de inércia do Poder Legislativo, cuja ocorrência pode se dever não a uma reprovação de mérito, mas a outras circunstâncias políticas, não se podendo, nesse caso, presumir um juízo tácito de reprovação da proposta.

Embora a MP 979/2020 tenha sido revogada no dia 12 de junho, certamente por gesto político de não enfrentamento ao Poder Legislativo, é importante considerar que, não fosse a revogação, a medida certamente conservaria sua eficácia, podendo ensejar a nomeação de dirigentes das Universidades pelo Ministro da Educação, e a prática de atos por estes em alguns casos irreversíveis no plano fático.

No caso da MP 1068/2021, pode-se identificar de plano a inexistência do requisito urgência para a matéria, uma vez que a norma alterada é de 2014, ou seja, podendo se aguardar a deliberação das duas Casas do Congresso Nacional, a partir de um pedido de urgência para análise de um projeto de lei como o mesmo conteúdo de iniciativa do Poder Executivo.

No que toca à constitucionalidade material, o tema de moderação de conteúdo feito por particulares certamente enseja discussões sobre seus limites. Afinal, até que ponto pode um particular avaliar os limites da liberdade de expressão de outro particular? O tema não apenas implica proteger a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, mas saber quem pode efetuar o referido controle, e quais os limites e procedimentos deve observar para fazê-lo.

Todos têm ciência do contexto político que ensejou a edição da referida medida provisória, a qual notoriamente confere proteção a conteúdos removidos por provedores pelo caráter desinformativo e agressivo. Não se trata, contudo, de julgar o mérito de uma proposição pelo destinatário que oportunamente beneficia, mas por sua razoabilidade e proporcionalidade diante do conflito entre direitos fundamentais em que se insere, ponderado e sopesado independentemente do destinatário ocasional da norma.

O Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre a constitucionalidade da devolução da medida provisória, tampouco o Poder Judiciário acerca de sua legalidade do ato de devolução, em face da interpretação do Regimento Comum do Congresso Nacional. Embora reconheçamos a controvérsia, entendemos que não há omissão constitucional a justificar a aplicação do artigo 151 do Regimento Comum ao caso da medida provisória, não sendo cabível a invocação do artigo 48, XI, do Senado Federal nos primeiros 28 dias de tramitação, ou até que a proposição chegue ao Senado Federal. Nessa hipótese, a devolução apenas deve se amparar em violações flagrantes de inconstitucionalidade, especialmente a análise dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência, ou de vedações expressas de emprego desse instrumento normativo, não sendo prudente, por se tratar de um primeiro controle de constitucionalidade, a análise de inconstitucionalidades materiais, especialmente quando exigirem a densificação de princípios constitucionais, como é o caso do artigo 207 da Constituição Federal e, no caso da recente Medida Provisória 1068/2021, a superação do conflito entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, que deve ser debatida pela comissão mista do Congresso Nacional e pelas comissões de ambas as casas.

Leonardo David Quintiliano
Doutor pela Universidade de São Paulo. Mestre pela Universidade de Lisboa. Advogado. Professor de Direito.

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