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Decretação da prisão preventiva no âmbito da violência doméstica

Considerações acerca da decretação da prisão preventiva de ofício nos termos do artigo 20 da lei Maria da Penha. Prevalece o pacote anticrime ou a lei especial?

20/10/2022
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A inspiração para escrever o presente artigo decorre de uma situação que acontece comumente nas varas de violência doméstica. Realizada a audiência de instrução e julgamento, numa sexta-feira, o réu é condenado nas penas dos crimes de ameaça e descumprimento de medida protetiva; a prisão preventiva é revogada e ele é colocado em liberdade mediante cautelares diversas da prisão. Até aí, tudo dentro da normalidade.

Adendo importante, muitas audiências têm sido realizadas por meio de videoconferências, de forma que muitos juízos rotineiramente entram em contato com advogados, testemunhas, vítimas e réus, por meio de aplicativos de mensagens para encaminhar o link da sala de audiência.

Porém, completamente fora do esperado, hipoteticamente, no sábado, pela manhã, a vítima da audiência de sexta-feira, encaminha mensagens à assessoria do juízo, informando que durante toda madrugada o réu, recém colocado em liberdade, teria lhe enviado mensagens com ameaças de morte, descumprindo não só as medidas cautelares diversas da prisão, como também a medida protetiva que se encontrava em vigor e ainda, in tese, cometendo outros crimes.

E agora, qual a medida correta a ser tomada pelo juízo? Encaminhar os autos ao Ministério Público, para que ele se manifeste e solicite o que entender pertinente ou, poderia, dada a gravidade da situação, decretar a prisão preventiva do réu?

O pacote anticrime entrou em vigor por meio da lei 13.964/19 e, com ele, relevantes alterações legislativas se operaram no rito processual penal, em especial a alteração do art. 311 que passou a ter a seguinte redação:

“Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.”.

Para muitos, tal inovação legislativa encerrou a possibilidade do juiz de ofício, decretar a prisão preventiva, sendo estritamente necessário que haja a devida provocação por algum interessado.

O princípio acusatório possui matriz constitucional e sua importância é fundamental em um estado democrático de direito, afinal, por óbvio é impossível que uma única pessoa acuse, defenda e julgue o réu. O real respeito aos direitos e garantias fundamentais exige que pessoas distintas realizem tais funções, sob pena de garantias fundamentais existirem apenas formalmente, sem que sua dimensão material produza os efeitos esperados.

Simultaneamente, merece ser destacado que em 1994, a Convenção de Belém do Pará afirmou que a violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos, sendo ainda devido rememorar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu o relatório 54/014 sobre o caso Maria da Penha Maia Fernandes, que culminou a elaboração da Lei Maria da Penha que entrou em vigor apenas em 2006.

Inegável o avanço da referida legislação, pois a partir dela o tema passou a ter a sua devida importância, longe de se dizer que o problema foi sanado, mas pode-se dizer que a grave situação passou a ser discutida e enfrentada e desde então a legislação tem sido aprimorada.

Dentro da referida, o art. 20 dispõe que:

Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. (grifo nosso).

Surge então a controvérsia. Aplica-se o pacote anticrime, lei atual que reforça o sistema acusatório ou a lei Maria da Penha, em razão da sua especialidade?

Uma questão de hermenêutica.

A hermenêutica é a ciência que estuda o significado e o alcance das expressões do direito, tendo por objeto as normas existentes1 , ou seja, há toda uma técnica a fim de que o intérprete conclua qual o adequado efeito da lei.

Adequado dizer que mesmo antes do pacote anticrime já existia crítica na doutrina acerca da possibilidade da decretação da prisão de ofício pelo juízo. Tal conduta mostraria a existência de uma cultura inquisitorial que dominaria o sistema jurídico, sendo que tal atuação corresponderia a grave violação do sistema acusatório a manchar a devida imparcialidade judicial2.

A jurisprudência do STF também já se manifestou sobre tal ponto dizendo que:

A lei nº 13.964/19, ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, §§ 2 e 4, e do art. 311, todos do Código de Processo Penal, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio “requerimento das partes”. (grifo nosso

Por outro lado, existem manifestações em sentido , afirmando ser possível a prisão preventiva de ofício dos acusados de agressão contra a mulher, a ponto do Centro de Inteligência da Justiça do Distrito Federal lançar em 2021 a nota técnica de número 5, a qual afirma, em resumo, que em resumo, que em razão do princípio da especialidade, ainda tem cabimento o referido art. 203.

Note que, para além de um julgado, foi elaborada uma orientação para que os magistrados do referido tribunal tenham em mente a possibilidade jurídica da decretação da prisão preventiva de ofício.

Relevante mencionar que o princípio da especialidade orienta que caso uma norma contida em lei especial divirja de norma geral, deverá ser aplicada a lei especifica, ademais o próprio Código de Processo Penal deixa tal orientação expressa no parágrafo único do art. 1°:

“Aplicar-se-á, entretanto, este Código aos processos referidos nos nºs. IV e V, quando as leis especiais que os regulam não dispuserem de modo diverso.” (grifo nosso).Aliás, a própria lei Maria da Penha deixa expresso que ela se sobrepõe ao CPP e ao CPC em caso de conflito:

Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta lei 

Convém, ainda, lembrar que a lei Maria da Penha foi fruto de um coletivo de mulheres que tinham como preocupação a violência doméstica, de forma que ela foi pensada para atender todas as necessidades das mulheres vítimas de violência doméstica, situações graves em que o tempo pode ser perigoso inimigo.

Não são poucos os casos conhecidos em que o réu, após deixar a prisão, procura a vítima para cometer outro ato de violência4 . Ora, com o devido respeito aos que entendem pela aplicabilidade do CPP, em detrimento da lei Maria da Penha, mas tal entendimento desconsidera que, horas e dias podem fazer diferença na vida de uma vítima.

Aguardar que a vítima chame a polícia militar para relatar o fato, ou procure a autoridade policial, para realizar o boletim de ocorrência, para que esta represente pela prisão preventiva do agressor, ou ainda, que tal relato seja encaminhado ao Ministério Público para este solicite a prisão preventiva é desconsiderar que tais atos jurídicos demandam tempo e as estatísticas indicam que o tempo5 não é aliado das vítimas de violência doméstica.

Acresce-se, ainda, o fato de que cada vez mais magistrados utilizam ferramentas de comunicação instantânea em sua rotina de trabalho6, a tal ponto que o CNJ desde 2017, antes mesmo da pandemia de Covid, regulamentou a utilização do aplicativo Whatsapp, como ferramenta de comunicação dos atos processuais7

Também, não pode ser esquecido, que no caso Maria da Penha8 , a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em sua decisão, recomendou ao Brasil que simplifique os procedimentos judiciais penais, a fim de se reduzir o prazo processual, e é justamente por tal razão que a atual legislação permite a decretação de ofício da prisão preventiva.

Por fim, merece ser dito que quando uma juíza, ou um juiz decreta uma prisão preventiva, após manifestação da vítima de que foi ameaçada, tal prisão não foi de fato de ofício, o juízo foi na verdade provocado pela vítima. Vítima essa que, ainda, não é tratada no processo penal como parte formal, porém não podemos nos esquecer que é a pessoa mais importante, foi ela quem sofreu a violência, e ela quem precisa ser protegida e é ela quem pode morrer se o estado agir de forma ineficiente.

Enfim, que em breve tal ponto seja adequadamente resolvido pela jurisprudência superior, afinal uma das funções primárias do Poder Judiciário é gerar segurança jurídica, e sobre tal ponto tão importante para a vida de tantas mulheres em situação hipervulnerabilidade9 , neste momento, inexiste tal segurança e isso inevitavelmente coloca em risco vidas que poderiam ser protegidas de forma mais eficiente.

______________________

1 - MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense, 2011.

2 - JR., Aury Lopes. Direito processual penal 2018. 15. ed. [S.l.]: Saraiva Educação, 2018.

3 - TJDFT. Nota Técnica 5/2021 - Possibilidade de decretação da prisão cautelar ex officio nos casos de violência doméstica. Disponível em: https://bityli.com/Zoagbafy Acesso em: 12 out. 2022.

4 - MÉTROPOLES. Homem mata ex-namorada horas após sair da prisão por agredi-la. Disponível em: https://bityli.com/xEwqqSaz Acesso em: 13 out. 2022

5 - G1 . Brasil teve um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas em 2021. Disponível em: https://bityli.com/YNcIe Acesso em: 13 out. 2022

6 - GOOGLE. Juízes whatsapp audiência. Disponível em: https://bityli.com/FpRYZLxL Acesso em: 13 out. 2022.

7 - CNJ. WhatsApp pode ser usado para intimações judiciais. Disponível em: https://bityli.com/lhJnAsCW Acesso em: 13 out. 2022.

8 - OEA. CASO 12.051 - MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em: 13 out. 2022.

9 – BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus RHC 100.446-MG. Julgamento: 27/11/2018. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze.  

Autor

Marcelo Sousa Melo Bento de Resende Mestrando em Direito pela UERJ, com MBA pela FGV/RJ; Juiz de Direito do TJ/MT.

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