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PEC das Drogas: Proibição ou liberação?

O Senado avança com a PEC das drogas (PEC 45/23), criminalizando posse e porte de entorpecentes, sem considerar quantidades, em desacordo com a legislação. A proposta viola a estrutura do art. 5º da Constituição e carece de embasamento científico, refletindo decisão política sem fundamentação.

16/4/2024

O Senado leva adiante a chamada PEC das drogas (PEC 45/23), cujo texto é simples: “a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.”

Com absoluto desprezo à organização tópica do consagrado art. 5º da CF/88, que deveria ser destinado aos direitos e garantias fundamentais, a proposta é a de que referido texto figure como inciso LXXX, o último do artigo.

Mas a má técnica legislativa não é o mais grave da situação. O maior problema é que essa é uma decisão política do Senado, carente de base em dados científicos.

O tema das drogas é complicadíssimo, não só no Brasil, mas no mundo de uma forma geral, porque é um dos mais obsoletos no que diz respeito aos requisitos mínimos para o estabelecimento de qualquer política pública.

O ser humano foi para a lua na década de sessenta, há mais de 50 anos, e até hoje nossos governantes recusam-se a usar da ciência para estabelecer algumas políticas públicas, como a das drogas. É mais ou menos como negar que houve uma pandemia em 2019, ou sustentar que a terra é plana, sem base em nenhum dado científico, mas por fé ou convicção.

Parece exagero, mas, infelizmente, é exatamente isso. Cada um tem o direito de acreditar ou ter fé no que quiser. O que não se pode é estabelecer normas legais com base em credos, desprezando completamente os dados, e submeter toda a população, mesmo que tais crenças sejam de milhões de pessoas, ou até de bilhões.

É da mesma gravidade que misturar política com religião e as duas com times de futebol. Não vai dar certo.

Uma vez que o mundo adotou a decisão política de proibicionismo total em relação às drogas consideradas ilícitas, poucas pesquisas foram feitas ao longo dos anos e por isso a política de drogas de uma forma geral carece de dados, o que faz com seja uma das mais atrasadas, obsoletas, do mundo.

Algumas pessoas, felizmente, enfrentam essa dura resistência e seguem pesquisando o assunto. Uma delas é Carl Hart, neurocientista norte-americano, que se dedica ao estudo das drogas e a relação delas com a sociedade, segundo quem “os efeitos das drogas nos comportamentos humanos e fisiologia são determinados por uma complexa interação entre o indivíduo que faz uso de entorpecentes e seu ambiente” (do livro High Price, em tradução livre).

O tema não é simples e tanto propostas para liberação como proibição total das drogas carecem de dados. As substâncias não são as mesmas e não causam os mesmos efeitos nas pessoas. No entanto, a guerra às drogas, derivada de decisão política como essa tomada pelo Senado, tem causado danos sociais por décadas, mostrando-se absolutamente inidônea e ineficaz aos objetivos que prega.

Antes da instalação do modelo de guerra às drogas no mundo, não havia tantos entorpecentes disponíveis para a população, não existia Cracolândia, não havia tanta violência (tanto do tráfico como do combate a ele), o que sugere que a guerra às drogas seja a causa do aumento da violência e do aumento do número de drogas nas ruas.

Com isso, não estamos dizendo que todas as drogas deveriam ser liberadas, mas que devem ser estudadas, afinal, até alimentos são objeto de regulamentação. O que estamos dizendo é que políticas públicas não podem ser feitas com base em crenças pessoais ou coletivas, desprezando-se a ciência e as relações de causa e efeito. 

Não é por que uma decisão foi tomada por um vasto colegiado com legitimidade para tal, como o Senado, que essa decisão política será necessariamente eficaz; precisamos atentar para isso. Por estarmos em uma república, cujo imperativo lógico é a racionalidade das ações públicas, deve-se observar a eficiência, princípio esse que está previsto no art. 37 da nossa Constituição Federal e deve nortear toda a administração pública, mesmo quando se tratar de matéria criminal – ou melhor, especialmente quando se tratar de matéria criminal.

Não é idôneo insistir, e submeter toda a população, a uma política pública absolutamente ineficaz, especialmente quando essa política pública causa tantos danos não almejados, como o incremento da violência e o aumento do número de drogas nas ruas, justamente o que se pretende evitar. 

A chamada PEC das drogas, a PEC 45/23, carece de idoneidade ao insistir em um modelo comprovadamente fracassado e isso não significa que as drogas devam ser necessariamente liberadas, como se houvesse somente dois caminhos diametralmente opostos: o da criminalização e o da liberação total.

José Carlos Abissamra Filho
Advogado criminalista, Doutor e Mestre pela PUCSP, foi diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) por quase uma década e é autor de, entre outros, Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais, livro lançado em agosto pela Juruá Editora.

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