Refletia sobre a personificação da deusa Têmis, divindade grega “por meio da qual a justiça é definida, no sentido moral, como o sentimento da verdade, da equidade e da humanidade, colocado acima das paixões humanas (...) representada de olhos vendados e com uma balança na mão. Ela é a deusa da justiça, da lei e da ordem, protetora dos oprimidos.”1
A balança com os pratos iguais indica o equilíbrio e ponderação nos julgamentos. A Espada, símbolo de força e poder, representa que suas decisões serão executadas, mesmo que desagradem. Os olhos vendados significam imparcialidade. Assim, a tríade do ideal de justiça se consolida quando há imparcialidade, equilíbrio/ponderação e força para execução das sentenças.
Com o passar dos anos e o ingresso no período de “modernidade” jurídica (ou retrocesso, dependendo da ótica) que vivemos, aparentemente os significados mudaram, ou foram encontradas outras justificativas para os adereços simbólicos que ornamentam a deusa.
As vendas, hoje em dia, muito mais significam que as razões e fundamentos de uma peça processual não serão lidas por quem detém o poder de julgar, notadamente nas cortes superiores.
Naturalizamos o fato de robôs participarem do julgamento de pessoas. Programas são desenvolvidos para vasculharem petições em busca de expressões pré-estabelecidas. Mais do que com o Direito, o advogado “moderno” deve se preocupar com o uso de expressões que, fora de contexto, podem ser o motivo de inadmissibilidade, improcedência ou desprovimento. O profissional do Direito deve buscar especializar-se em malabarismos linguísticos para driblar a máquina de julgamento. Assim, na simbologia moderna, Têmis tem vendas nos olhos porque não lê o processo, não lê as petições, e naturaliza isso. Os exemplos estão aí, aos montes, de decisões ou manifestações que mencionam jurisprudências inexistentes, geradas por inteligência artificial.
Mas a Têmis moderna, além da venda, possui os outros adereços cujos significados também evoluiram. Têmis também não fala.
Com o advento das sessões virtuais assíncronas dos tribunais, o julgador não mais apresenta seus votos em sessão, não mais existe qualquer tipo de debate sobre a matéria em discussão, e consequentemente, não existe evolução dos entendimentos. O colegiado não é mais colegiado.
Finalmente, Têmis versão 2025 também não ouve, e não quer ouvir. Em uma representação mais fiel aos dias atuais, estaria com protetores auriculares.
Isso foi o que a resolução 591/24 do CNJ fez com os julgamentos. Também chamada de “Resolução da mordaça”, que passou a existir sem qualquer debate público, notadamente com a advocacia. No melhor estilo de promulgação de um ato institucional, ela veio suprimir uma prerrogativa da advocacia, e um direito do cidadão: O direito de ser ouvido.
A resolução sob a justificativa de estabelecer “regramentos mínimos para julgamentos assíncronos pelo poder judiciário”, os estabelece como regra, prevendo a exceção de julgamentos presenciais ou telepresenciais apenas em situações nas quais há feitos com pedido de destaque. A expressão da maldade é inserida no final do art. 8º Inc. II, quando prevê que o pedido de destaque deve ser “deferido pelo relator”. Você só fala se ele deixar.
Assim, resumidamente: Seu processo, caro cidadão, aquele que você já não acreditava que era lido, submetido a toda espécie de inteligência não-humana, correrá em um ambiente no qual seu advogado não participará. No máximo poderá encaminhar um vídeo, que convenhamos, ninguém assistirá. Afinal, quem não quer ler, ouvir, nem te ver, vai querer te assistir? Consegue imaginar o julgador assistindo horas e horas de sustentação oral na tela do computador? Isso não existe. É simplesmente a abolição da sustentação oral.
A exceção então é para o caso em que o julgador queira deferir o destaque para que seu caso seja, de fato, submetido a uma sessão de julgamento de verdade. Se não quiserem te ouvir, você não será ouvido, e o processo será julgado. Aqui, mais um problema gravíssimo: O da seletividade de quem será ouvido. Alguns já dizem que é a verdadeira regulamentação do lobby na advocacia, assunto para outro artigo, mas intrinsecamente ligado a esse, afinal, alguém conhece os critérios de seleção para destaque? Trata-se de algo que o Judiciário como um todo deveria se preocupar, para preservação da própria imagem de lisura, ainda mais nesses tempos, afinal, mais do que ser imparcial, o juiz deve também parecer imparcial, notadamente no trato com as partes e advogados.
Entre os robôs, a mordaça e os protetores auriculares, está o processo, aquela causa importante para a vida de alguém. A balança já foi perdida, afinal, quem não ouve e não vê (lê) não consegue emprestar equilíbrio e ponderação a nenhum julgamento.
Será essa a efetivação de um ideal mínimo de Justiça?
A verdade é que nós advogados vivemos em uma eterna batalha pelo direito de falarmos em nome do cidadão e a obrigação de sermos ouvidos pelos julgadores.
A lei 8906/94, em seu texto original previa no inc. IX do art. 7º, como um direito do advogado, sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se prazo maior fosse concedido (sustentação oral). Também prevê a possibilidade de usar da palavra em qualquer tribunal para esclarecer questão de fato (inciso X) e reclamar perante qualquer juízo contra inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento (inciso XI – questão de ordem), portanto, garantias elencadas ao cidadão na forma de prerrogativas profissionais da advocacia.
Logo após o início de sua vigência, foram ajuizadas as ADIn 1.105-7 e ADIn 1.127-8 respectivamente pelo então procurador geral da República Aristides Junqueira e pela AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros. Em 3/8/1994 na ADIn proposta pelo então PGR, por maioria, vencidos os ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence, foi concedida liminar para suspender a eficácia do inciso IX até a decisão final. Como a lei 8906/94 foi publicada em 5/7/1994, o dispositivo nunca se efetivou. Em 17/5/06, foi julgado o mérito das ADIns, e este dispositivo foi declarado inconstitucional pelo STF.
Ocorre que naquele momento, a discussão no julgamento da ADIn 1.105-7 se deu acerca da expressão “após o voto do relator”, constante no dispositivo legal. Discutia-se se esta previsão afrontava o contraditório, pois previa atuação da parte, sustentando oralmente, em meio a um julgamento já iniciado. Embora constasse na inicial da PGR a argumentação de que tal matéria seria inerente aos regimentos dos tribunais, se referia ao momento da sustentação (antes ou após o voto do relator) e não à sua realização em si. Aliás vários votos na ocasião, e menciono aqui os ministros Sepulveda Pertence e Eros Grau, apontaram que esse dispositivo não deveria constar no estatuto da OAB (previsão de sustentação oral) mas em lei processual. Assim restou a ementa:
"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 7º, IX, DA LEI 8.906, DE 4 DE JULHO DE 1994. ESTATUTO DA ADVOCACIA E A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. SUSTENTAÇÃO ORAL PELO ADVOGADO APÓS O VOTO DO RELATOR. IMPOSSIBILIDADE. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. I – A sustentação oral pelo advogado, após o voto do Relator, afronta o devido processo legal, além de poder causar tumulto processual, uma vez que o contraditório se estabelece entre as partes. II – Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 7º, IX, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994."2
Com o tempo, vai surgindo o fenômeno da monocratização. Em 2016 o STF regulamenta através da resolução 587/16 o ambiente virtual para julgamento de agravos internos e embargos de declaração. Eis o ovo da serpente. Prevê o art. 4º da referida resolução o seguinte:
Art. 4º Não serão julgados em ambiente virtual a lista ou o processo com pedido de:
I – destaque ou vista por um ou mais Ministros;
II – destaque por qualquer das partes, desde que requerido em até 24 (vinte e quatro) horas antes do início da sessão e deferido o pedido pelo relator.
Parágrafo único. Também não serão julgados por meio virtual os agravos em que houver pedido de sustentação oral, quando cabível.
O STJ então, passa a reproduzir o modelo. Com o aumento das decisões monocráticas, os feitos deixam de ser julgados pelo colegiado, e estou falando também de habeas corpus, e recursos em matéria criminal. Então, podendo o relator decidir e denegar monocraticamente o habeas corpus, o feito só será apreciado pelo colegiado através de agravo regimental, o qual, adivinhem, não comporta sustentação oral. Resumindo: Acaba a sustentação oral em habeas corpus! Isso em pleno ambiente democrático e vigência da constituição de 1988. Aposto que ninguém imaginava isso em 1988.
Ocorre que em 2016 passa a vigorar o novo CPC, e nele o art. 937 do prevê a possibilidade de realização de sustentação oral em vários recursos.
Em uma sociedade minimamente organizada de forma a respeitar a legislação processual, o caminho natural seria a adequação dos regimentos dos tribunais à nova realidade processual estabelecida pela lei. No Brasil ocorre o contrário. Passam os tribunais a afirmarem que seus regimentos internos não autorizam, por exemplo, sustentação oral em agravo regimental. É o claro descumprimento da lei, justamente por quem deveria zelar por ela.
Então, em 2022 é novamente alterado o art. 7º do Estatuto da OAB (aquele que trata dos direitos e prerrogativas da advocacia) para prever o seguinte:
§ 2º-B. Poderá o advogado realizar a sustentação oral no recurso interposto contra a decisão monocrática de relator que julgar o mérito ou não conhecer dos seguintes recursos ou ações: (Incluído pela lei 14.365, de 2022)
I - recurso de apelação; (Incluído pela lei 14.365, de 2022)
II - recurso ordinário; (Incluído pela lei 14.365, de 2022)
III - recurso especial; (Incluído pela lei 14.365, de 2022)
IV - recurso extraordinário; (Incluído pela lei 14.365, de 2022)
V - embargos de divergência; (Incluído pela lei 14.365, de 2022)
VI - ação rescisória, mandado de segurança, reclamação, habeas corpus e outras ações de competência originária. (Incluído pela lei 14.365, de 2022)
A alteração legislativa, incluindo essa previsão como prerrogativa da advocacia buscava resolver essa situação absurda, garantindo-se a sustentação mesmo nos feitos que, decididos monocratimente, são objeto de agravo regimental. O colegiado então, passaria a ouvir as razões nas sustentações orais. O que passa a ocorrer novamente? Indeferimento de pedidos de sustentação oral com “fundamento” em “ausência de previsão do regimento interno do tribunal”, invocando-se o princípio da especialidade.
A situação é insustentável, com o perdão do trocadilho. Acredito que a advocacia já passou do momento de provocação do Congresso para edição de normas, o que já aconteceu três vezes, no mínimo, em 1994, em 2016 e em 2022. O problema é a resistência do Poder Judiciário, notadamente, das cortes superiores, que não querem ouvir. Uma PEC vai resolver? Penso que não. São mais de trinta anos de luta pelo direito do cidadão ser ouvido através de seu advogado nos julgamentos. E retrocedemos. Hoje a situação é pior do que a de 1994, quando o Estatuto da Advocacia foi publicado. Antes a discussão era se a sustentação ocorreria antes ou depois do voto do relator. Agora, não se pode sustentar. E quem “legislou” sobre isso? O CNJ, não foi o parlamento.
Quem milita na advocacia sabe a importância da realização de sustentação oral na sessão de julgamento, e como já disse em artigo anterior aqui publicado3 “é através das palavras do advogado, transmitidas por sua fala na tribuna durante a sessão de julgamento, que se alcança, sem intermediários, os ouvidos dos julgadores. Nesses tempos tecnológicos é esta, muitas vezes, a única possibilidade de contato humano, e a única forma que dispõe o advogado – e consequentemente o cidadão – de ser ouvido.”
Voltemos ao início deste singelo artigo: Em um país em que robôs participam do julgamento de pessoas, não é tão espantoso que a cada dia o Judiciário busque “não ouvir” as razões das partes. Têmis, com seus olhos vendados, não quer nem nos ver. Quer realizar os julgamentos sem a nossa presença. É o fim do constrangimento epistêmico. Já alertou Lênio Streck:
A democracia vai morrer? Não sei. Espero que não. Mas, uma vez que os antigos tinham razão, é possível especular o que é preciso para que ela morra.
O que é preciso para que a democracia morra? Shakespeare já deu uma possível resposta (ainda não sei que resposta ele não adiantou): “A primeira coisa a fazer”, diz Dick the Butcher (açougueiro), em Henry VI, “é matar todos os advogados” (Kill all the lawyers)!
Marty McFly, ao chegar na companhia de Emmett Brown à 21/10/15 (vejam como contemporizaram essa tragédia), e se deparar com a condenação de seu filho, estampada no jornal do dia, se espanta com a velocidade do julgamento. O diálogo se desenvolve da seguinte forma:
- Marty: “Em duas horas preso, Marty Mcfly Junior foi julgado, condenado e sentenciado a 15 anos na Penitenciária Estadual. Em duas horas?
- Emmett Brown: A justiça age rápido no futuro, agora que aboliram os advogados...
- Marty: Ah. Essa é pesada.”
A primeira consideração contida na resolução 591/24 é justamente a seguinte:
“Considerando que a celeridade e a eficiência no trâmite processual são fundamentais para a efetividade da Justiça;”
Celeridade, do dicionário Oxford, significa característica do que é célere; agilidade, rapidez, velocidade. Será que alguém em sã consciência acredita que os 15 minutos que o advogado ocupa na tribuna em um julgamento são a causa de morosidade no Judiciário? Tenho uma pilha de processos para exemplificar, que esperam anos por despachos, sentenças, manifestações do MP. Inquéritos que perduram por anos a fio, 5, 6, 7 anos. Exemplos não faltam na própria jurisprudência das cortes superiores. O julgamento da ADIn 1.105-7 mencionado, começou em 1994 e terminou em 2006. Os advogados ficaram 12 anos sustentando oralmente na Tribuna do Pretório Excelso?
Agora o que dizer da justificativa da eficiência. Do mesmo dicionário Oxford, significa poder, capacidade de ser efetivo; efetividade, eficácia. Virtude ou característica de (alguém ou algo) ser competente, produtivo, de conseguir o melhor rendimento com o mínimo de erros e/ou dispêndios.
Será que os erros aumentam ou diminuem quando julgamentos são realizados em linha de produção? Parece óbvio que aumentam, e muito. Cada erro pode custar a aposentadoria, a indenização, a saúde, a liberdade, e a vida das pessoas. Máquinas se importam com isso? Não.
O silêncio na Tribuna é campo fértil para a propagação de toda espécie de injustiça, e, é a morte da advocacia, já que o advogado escreve para ninguém ler, não é visto por ninguém, e agora, não será sequer ouvido por ninguém.
É a institucionalização da violação das prerrogativas profissionais, que são garantias dos cidadãos.
A insurgência, a militância, é essencial para que o mínimo direito seja garantido a todos os cidadãos: O de ser ouvido. Falar em um julgamento é opção da parte. O julgador ouvir, é obrigação!
A nova Têmis, moderna em não ouvir, não falar e não ver, perdeu a balança, e só lhe restou a espada. Não há mais equilíbrio, ponderação, tampouco imparcialidade. Sobrou somente a força, que por si só, é uma forma de exercer a jurisdição que não se adequa a uma democracia.
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1 https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=temis#:~:text=%C3%89%20uma%20divindade%20grega%20por,com%20uma%20balan%C3%A7a%20na%20m%C3%A3o.
2STF, ADI 1105, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Rel. p/ Acórdão Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julg. 17/05/2006, publ. DJe-100 04-06-2010 (Grifo Nosso)
3 https://www.migalhas.com.br/depeso/397948/defesa-muda-nao-e-ampla-e-inconstitucional