A crise empresarial, quando se instala, raramente é um episódio restrito à esfera privada do devedor, irradiando os reflexos de sua instabilidade por toda a rede que a sustenta: trabalhadores, fornecedores, instituições financeiras, comunidades locais e até mesmo entes públicos que dependem dos tributos que ela recolhe. Assim, preservar a atividade econômica de uma empresa viável em meio à adversidade não é apenas um gesto de proteção ao empreendedor, mas uma necessidade de ordem pública. Por isso que a recuperação judicial não deve ser compreendida como um simples mecanismo de postergação de obrigações, e sim como um instrumento de reequilíbrio econômico-social, estando em sua essência o compromisso com a função social da empresa.
A CF/88, ao consagrar a função social da propriedade (e, consequente, da empresa), constrói uma moldura normativa em que a livre iniciativa está submetida ao interesse coletivo, significando que a atuação empresarial só é plenamente legítima quando gera efeitos positivos para a sociedade e, nesse contexto, quando uma empresa emprega, produz, paga tributos e mantém relações contratuais estáveis, ela cumpre um papel que extrapola os interesses dos sócios. Essa função social é, portanto, o critério que sustenta a ideia de que preservar a empresa é preservar também um pedaço do tecido social em que ela está inserida.
Nesse cenário, a reorganização societária se apresenta como uma das ferramentas mais eficazes dentro do processo de recuperação judicial, e diga-se que reorganizar não é maquiar balanços ou transferir ativos aleatoriamente, mas é repensar a estrutura organizacional da empresa. É adequar sua forma jurídica à nova realidade econômica e operacional, abrindo espaço para novos investidores ou realocar funções estratégicas, seja por meio de cisões, fusões, incorporações ou transformação da sociedade, permitindo que a empresa reencontre seu eixo de equilíbrio, preservando o que ainda é viável e abandonando, com responsabilidade, o que já não se sustenta.
Prevista no art. 50, incisos II e III, da lei 11.101/05 como meios de recuperação judicial, a reorganização societária se conecta diretamente à ideia de reconstrução institucional, logo, uma empresa em recuperação muitas vezes precisa mais do que capital: ela precisa de novo fôlego, de um novo modelo de governança, de relações mais transparentes entre sócios e de uma estrutura compatível com sua capacidade real de operar, e nesse horizonte, reorganizar é também um ato de humildade jurídica e administrativa, ao reconhecer que o modelo anterior não funcionou, e que algo precisa mudar para que a função social da empresa continue a ser exercida de forma plena.
Por sua vez, a função social atua como critério de legitimação dessas mudanças, resultando, assim, na manutenção de empregos, no pagamento de credores, na continuidade de contratos e no recolhimento de tributos, cumprindo em si mesma a finalidade social, e é isso o que diferencia uma reestruturação legítima de uma operação meramente formalista ou fraudulenta, pois quando há transparência, legalidade, boa-fé e efetividade social, a reorganização se transforma em ponte entre a crise e o soerguimento.
O legislador, como se viu, compreendeu que o restabelecimento da empresa depende, muitas vezes, da coragem de rever seus próprios alicerces jurídicos, e isso exige liberdade, mas também vigilância: o Judiciário, o Ministério Público e o administrador judicial têm o papel de garantir que tais reorganizações estejam de fato alinhadas ao interesse coletivo e não sirvam de escudo para fraudes ou abusos.
Sobre o tema, leciona ANDRÉ SANTA CRUZ (2023, p. 970) que:
A crise da empresa muitas vezes é resultado de má administração decorrente, por exemplo, da dificuldade de adaptação a novas tecnologias de produção, da incompetência na utilização dos recursos humanos e técnicos disponíveis ou da incapacidade de diversificação da atuação da empresa para absorver novas oportunidades de negócios. Assim, a simples mudança no controle societário (inciso III) pode significar uma verdadeira revolução na condução do empreendimento.
No entanto, o doutrinador alerta que não basta que o plano de recuperação judicial proponha, “de forma genérica, a realização de certas operações societárias”, pois, segundo FÁBIO ULHOA COELHO (2005, p. 386) “É necessário contextualizá-las num plano econômico que mostre como sua efetivação poderá acarretar as condições para o reerguimento da atividade.”.
A jurisprudência, neste contexto, tem reconhecido a invalidade de cláusula genérica de reorganização societária no plano de recuperação judicial, a seu crivo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO. CONTROLE JUDICIAL DE LEGALIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DOS DIREITOS DOS CREDORES EM RELAÇÃO AOS DEVEDORES COOBRIGADOS. IMPOSSIBILIDADE DE DISPOSIÇÃO GENÉRICA QUE AUTORIZE A REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA AO CRIVO DA RECUPERANDA E SEM NECESSIDADE DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO. ART. 53, I, DA LEI Nº 11.101/05. (...).. TRATANDO-SE DA INSURGÊNCIA RECURSAL RELATIVA À CLÁUSULA QUE AUTORIZARIA AO CRITÉRIO DA RECUPERANDA E INDEPENDENTEMENTE DE QUALQUER NOVA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL A REALIZAÇÃO DE REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA, NÃO ASSISTE, DE IGUAL MANEIRA, RAZÃO À AGRAVANTE, UMA VEZ QUE ALUDIDA PREVISÃO AFRONTA O ART. 53, I, DA LEI Nº 11.101/05. 7. HÁ AFRONTA AO DISPOSTO NO DISPOSITIVO LEGAL, UMA VEZ QUE A CLÁUSULA DISPÕE SOBRE IMPORTANTE MEIO RECUPERACIONAL DE MODO GENÉRICO E SEM DETALHAR AS FORMAS AS QUAIS DEVERIAM SER OBSERVADAS PARA FINS DE PERFECTIBILIZAÇÃO DO CONTEÚDO DA CLÁUSULA. A REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA COMO MEIO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL É PREVISTO NO ART. 50, III, DA LEI Nº 11.101/05. CONTUDO, NÃO HÁ POSSIBILITAR QUE A DEVEDORA RECUPERANDA POSSA AO SEU PRÓPRIO CRIVO E SEM ESTAR CONDICIONADO A QUALQUER AUTORIZAÇÃO, SEJA JUDICIAL, SEJA DA ADMINISTRAÇÃO JUDICIAL, DISPOR DA POSSIBILIDADE DE REORGANIZAR O CONTROLE SOCIETÁRIO. ASSIM, DEVE SER MANTIDA A DECISÃO RECORRIDA, NÃO HAVENDO FALAR EM EFICÁCIA DA CLÁUSULA QUE IMPLICA EM SUSPENSÃO DOS DIREITOS DOS CREDORES EM RELAÇÃO AOS DEVEDORES COOBRIGADOS, BEM COMO NÃO HAVENDO FALAR EM LEGALIDADE DA CLÁUSULA GENÉRICA QUE ESTIPULA A POSSIBILIDADE DE A DEVEDORA RECUPERANDA REALIZAR A REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA A SEU PRÓPRIO CRIVO E SEM QUALQUER NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.
(TJ-RS - AI: 51104057620218217000 RS, Relator.: Lusmary Fatima Turelly da Silva, Data de Julgamento: 25/08/2021, Quinta Câmara Cível, Data de Publicação: 26/08/2021)
Reorganizar, assim, é muito mais do que resistir à falência — é afirmar a vontade de reconstruir, reconhecer que a crise, embora real, não é definitiva, havendo caminhos legais, éticos e socialmente legítimos para retomar o desenvolvimento sem sacrificar a coletividade que gira em torno da atividade empresarial.
Em um país como o Brasil, onde a atividade empresarial estrutura boa parte da vida econômica e social, a falência de uma empresa representa mais do que a dissolução de um ente jurídico, mas o rompimento de vínculos e a interrupção de fluxos que mantêm vivas muitas comunidades, e reorganização societária, quando conduzida com seriedade, responsabilidade e de forma técnica, poderá evitar esse colapso, e aquilo que poderia vir a ser o fim, se torna em um recomeço.
Por isso, compreender a reorganização societária sob a ótica da função social não é apenas um exercício teórico, mas uma exigência prática de quem enxerga o direito empresarial como ferramenta de justiça econômica, afirmando que preservar empresas viáveis, por meio de instrumentos transparentes e eficazes, é cumprir o pacto constitucional de uma economia a serviço da dignidade da pessoa humana.
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1 CRUZ, Santa André. Manual de Direito Empresarial. Volume Único. 13. ed, rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023.
2 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentário à lei de falências e recuperação de empresas. ed. São Paulo: Saraiva, 2005