1. No apagar das luzes de 2024, a SG/Cade - Superintendência-Geral do Cade instaurou o processo administrativo1 para investigar se algoritmos de precificação haviam sido usados no setor de combustíveis para viabilizar um cartel entre postos de gasolina. Essa é a primeira investigação do Cade voltada especificamente para a precificação algorítmica e acende alerta quanto ao tema.
2. Algumas perguntas se sobrepõem: Será que o Cade se valerá deste caso para definir seu posicionamento sobre o assunto? Estabelecerá o Cade diretrizes claras para as empresas que adotam ferramentas de IA - inteligência artificial? Serão impostas medidas preventivas pelo Cade nesse contexto?
3. Essas e outras questões poderão ser enfrentadas pelo Cade em breve, mas alguns cuidados já podem ser tomados pela indústria.
Contextualização: A dinâmica dos algoritmos de precificação e seus efeitos concorrenciais
4. Os algoritmos de precificação operam por meio de softwares que recomendam preços a serem praticados por empresas na venda de produtos ou serviços. Esses softwares são alimentados por uma base de dados que organiza diferentes elementos de mercado, como a demanda, o comportamento do cliente, a dinâmica de preços, os níveis de estoque, entre outros2. Utilizando estratégias de aprendizagem de reforço, um tipo de IA de machine learning3, tais sistemas processam a sequência ordenada de dados para orientar a tomada de decisões por agentes autônomos, com o objetivo de haver maximização de lucros.
5. Muito embora o uso de algoritmos de precificação não seja ilícito per se, há uma percepção das autoridades de defesa de concorrência de poder ser utilizado como instrumento de colusão4. Tal colusão pode ser operacionalizada de diferentes formas, podendo ser intencional ou não intencional, explícita ou não explícita, com ou sem comunicação direta. Independentemente do formato, fato é que a colusão, quando consumada, tem por efeito econômico a eliminação ou, pelo menos, a diminuição da competição nos mercados em que a ferramenta é empregada.
6. Não por outra razão, em 2024, houve maior escrutínio das autoridades concorrenciais quanto à utilização de ferramentas de IA na precificação, estando o tema entre os hot topics vislumbrados para 20255. Aposta-se em mais vigilância sobre os atos de concentração envolvendo ativos de IA e sobre o uso de tecnologias de análise de mercado que facilitam ou automatizam a troca de informações entre concorrentes.6
7. De forma a sistematizar e consolidar as experiências tidas até aqui, tem-se visto novos guias e legislações específicos voltados à regulamentação da precificação de algoritmos. É o caso, por exemplo, das discussões reintroduzidas em 2025 em nível Federal nos Estados Unidos a respeito da “Preventing Algorithmic Collusion Act”7, que tem por objetivo evitar que empresas utilizem algoritmos para combinar preços ou se coordenarem de alguma forma no mercado. Além disso, leis locais foram aprovadas em 2024, em São Francisco e na Filadélfia, para restringir o uso de softwares na precificação de carros alugados.8
8. Ainda há um caminho a ser percorrido pelas autoridades de defesa da concorrência e também pelas empresas que adotam tais ferramentas. O desafio imediato, no Brasil e no mundo, parece ser compreender se as ferramentas tradicionais do antitruste são adequadas ou suficientes para identificar quando os efeitos do uso de algoritmos de precificação são pró-competitivos ou anticompetitivos.
Estudo feito na Alemanha e sua importância para análise da precificação algorítmica
9. No processo administrativo recém-instaurado pelo Cade, foi citado estudo acadêmico9, elaborado por três professores do Departamento de Economia da Queen’s University, acerca do impacto competitivo da adoção de precificação algorítmica no mercado de combustíveis na Alemanha. A pesquisa empírica envolveu os dados de preços de todos os tipos de combustíveis comercializados por varejistas de gasolina do início de 2014 até o final de 2019 de 16.027 postos na Alemanha.10
10. A investigação avaliou o uso de ferramentas, por postos de gasolina, que, com base em dados públicos, capturavam alterações nos preços de alta frequência praticados pela concorrência e, com isso, instituíam uma precificação automática feita pelo algoritmo visando à maximização de lucros.11
11. Segundo o estudo, a adoção de algoritmos de precificação foi feita em ampla escala pelos players do mercado e levou a um aumento significativo nas margens de lucro dos postos de gasolina. Ou seja, constatou-se que a maximização de lucro sucedeu na medida em que os algoritmos pudessem ajustar os preços de maneira mais eficiente do ponto de vista econômico e coordenado, muitas vezes resultando em preços mais elevados para os consumidores.12
12. Mais especificamente, o estudo concluiu que o uso dessas ferramentas levou a um aumento médio de margens em 9%, em comparação aos níveis anteriores ao uso dos algoritmos, e que, na Alemanha, em que há um duopólio, segundo o estudo, verificou-se aumento de 38% da margem dessas redes.
13. No caso em questão, não há registros públicos de que a autoridade de concorrência local ou mesmo a Comissão Europeia tenham examinado o caso. No entanto, do ponto de vista teórico, poderia haver uma construção de que a precificação por algoritmos se equipararia a uma forma de colusão tácita13. Isto é, uma espécie de acordo de fixação de preços intermediado pelos algoritmos, sem qualquer comunicação entre concorrentes, e até mesmo sem intenção da empresa que promove o seu uso.
14. Ainda que seja um único estudo, com amostragem limitada, e que esteja voltado para o mercado de combustíveis na Alemanha, é possível que autoridades concorrenciais de outros países, incluindo o Cade14, utilizem tais parâmetros como referência para determinar os efeitos anticompetitivos do uso de precificação algorítmica.
O cenário nacional e a experiência do Cade
15. No Brasil, tramita na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados o PL 1635/24, que dispõe sobre a proteção do consumidor contra práticas de colusão artificial implementadas por meio de algoritmos de precificação15. No âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, há uma única menção a algoritmos no guia de análise de atos de concentração Não Horizontais do Cade (2024), ao destacar a necessidade de avaliar o eventual acesso a informações concorrencialmente sensíveis, incluindo “estratégias de preços e algoritmos”.16
16. Embora não exista, até o momento, regulamentação específica, o Cade tem mostrado uma postura ativa e consciente da existência do uso dessas ferramentas e seu potencial risco anticompetitivo. A autoridade tem avançado em investigações para aprofundar a análise sobre os efeitos concorrenciais dos algoritmos, especialmente quanto ao seu uso para precificação, e embasar futuras decisões regulatórias.
17. O Cade já analisou casos relevantes de ação coordenada entre concorrentes viabilizada pelo compartilhamento de preços em plataformas. No antigo caso ATPCO17, por exemplo, investigou-se a troca de dados tarifários entre companhias aéreas em um sistema interno, tendo sido celebrado um termo de compromisso de cessação para impedir o uso de ferramentas que facilitassem a troca de informações entre concorrentes. No caso Adesbo18, por sua vez, o Cade condenou o uso de software de desenvolvimento de sistema interno operado por autoescolas para compartilhamento de informações sensíveis e tabelamento de preços. Por fim, com relação ao caso Ipiranga19, em sede de consulta formulada pela Ipiranga, o Cade presumiu que a implementação de sistema de precificação inteligente para negociação com revendedores de combustíveis da rede Ipiranga era lícita por ser unilateral e exclusivo da rede, além de ser aplicado como uma sugestão de preços máximos, não mínimos de revenda.
18. O Tribunal do Cade parece reconhecer a complexidade de eventual responsabilização das empresas por colusão algorítmica20. Outro ponto que poderia despertar a atenção do Tribunal do Cade é a possibilidade de fechamento de mercado por meio da aquisição de empresas que detenham bases de dados estratégicas. Setores verticalizados, com poucos players, que detenham bases de dados robustas, poderão receber atenção do Cade.
Nova investigação aberta pelo Cade no setor de combustíveis
19. Em procedimento preparatório, convertido em processo administrativo em novembro de 202421, o Cade investiga se o sistema de precificação para combustíveis líquidos desenvolvido pela Intelprice Soluções de Precificação Ltda. (Aprix) influencia e promove a adoção de conduta comercial uniforme por meio do uso de algoritmo de precificação no mercado de combustíveis. O Cade também investiga em que medida o Sindicato Minaspetro — ao recomendar a Aprix aos seus associados sob o pretexto de ajudar a precificar “corretamente” — teria incorrido no mesmo ilícito.
20. Aprix é uma startup que desenvolve software de IA. O objetivo do software, declarado em seu próprio material de divulgação, é maximizar a rentabilidade de postos de gasolina com base no cálculo de preços dinâmicos. Esses preços dinâmicos levam em consideração os preços de concorrentes, que são coletados de forma automatizada com base em fontes abertas. A própria ferramenta identifica os reais competidores.
21. No caso concreto, o Cade identificou que as redes de postos que contrataram o software desenvolvido pela Aprix simplesmente replicaram os preços sugeridos pelo sistema, de forma reativa, sem que outros aspectos, além de software, fossem considerados na precificação. Tal constatação foi feita com o apoio do DEE - Departamento de Estudos Econômicos do Cade.
22. Chamou a atenção do Cade os materiais de divulgação da Aprix e que foram anexados nos autos do caso. De acordo com a Aprix, a sua ferramenta “resolve problemas de pricing em empresas líderes de diversos setores em todo o país”, “aumenta o lucro”, “diminui o risco do mercado”, “evita guerras de preços”.
23. Em sua análise, o Cade mostra sua preocupação com a possibilidade de esse mecanismo de precificação levar à colusão, seja ela tácita, seja algorítmica, ou à deturpação do processo competitivo, levando a sucessivos aumentos de preços ao consumidor. Mais especificamente, segundo a nota técnica de instauração do processo administrativo (nota técnica), as principais preocupações concorrenciais levantadas são (i) de que o estímulo ao uso desse software potencialize a facilitação, viabilização e/ou aceleração do alinhamento de preços via algoritmo de precificação, de forma a influir no processo de decisão dos agentes econômicos, coordenando e uniformizando as condutas; e (ii) de que o algoritmo cujo objetivo é a maximização de lucros priorize produtos de maior rentabilidade, e, logo, force um deslocamento da demanda por meio de aumento dos preços dos seus substitutos.
24. Para compreender o impacto dos algoritmos nas discussões sobre colusão, o Cade faz menção a três possíveis cenários de conluio envolvendo algoritmos que foram desenhados em estudo feito pela União Europeia à OCDE22: (i) algoritmos de precificação otimizam um cartel já formado; (ii) concorrentes utilizam um mesmo algoritmo de precificação, sem contato entre eles, que resulta no alinhamento de condições competitivas; e (iii) concorrentes utilizam algoritmos distintos, com técnicas de self-learning ou deep-learning e, por meio de interação automática e recíproca entre algoritmos, promove o alinhamento de comportamento, sem interação entre concorrentes.
25. Nesse cenário, o Cade sinaliza que a prática com maior potencial anticompetitivo seria a utilização de um mesmo algoritmo de precificação por várias empresas concorrentes.
26. A decisão da SG/Cade acerca da existência de indícios de infração à ordem econômica deverá ser tomada pelo órgão, após exaurimento da instrução processual.
Cuidados na utilização de algoritmos de precificação
27. A sinalização do Cade indica que o uso de algoritmos de precificação pressupõe cuidados para evitar a colusão tácita, de forma que a indústria também deve assumir o papel de um agente diligente. Controles internos, governança e atenção quanto ao tipo de IA utilizado passarão a fazer parte da rotina das empresas.
28. Apesar dos riscos e das preocupações das autoridades, a busca por mecanismos de precificação mais eficientes, por meio da utilização de softwares, com base em informações públicas ou já detidas pela empresa, parece ser defensável no Cade. Mas cuidados devem ser tomados.
29. A investigação recente do Cade contra Aprix, apesar de estar em estágio inicial, indica alguns desses cuidados: (i) evitar a precificação automática, feita exclusivamente por algoritmos, sem levar em conta outros elementos; (ii) evitar o uso de ferramentas de IA que prometem lucros elevados e riscos baixos, contra a lógica econômica do mercado; (iii) evitar o uso de ferramentas que fazem com que a empresa se beneficie em detrimento de terceiros; (iv) evitar ferramentas que utilizem informações de concorrentes que não estejam prontamente disponíveis; (v) atentar para ferramentas de precificação não exclusivas; (vi) necessário entender o uso da ferramenta, como ela se retroalimenta, e garantir controles periódicos; (vii) observar os efeitos concorrenciais do uso da ferramenta no curto, médio e longo prazo, medindo-os com o fim de identificar efeitos anticompetitivos indesejáveis. A discussão no direito concorrencial sobre precificação por algoritmos é incipiente, mas definitivamente veio para ficar.
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1 Processo Administrativo n° 08700.006280/2024-60.
2 Segundo a OCDE (2023), algoritmo pode ser entendido como “uma sequência de regras que devem ser executadas, com a finalidade de se realizar uma determinada tarefa”. Os algoritmos de precificação definem ou recomendam preços para agentes de mercado, com base na coleta de dados sobre características do cliente ou das próprias condições do mercado e/ou dos preços praticados pelos concorrentes. Entre os dados coletados por esses algoritmos, são destacados os custos, a demanda, os preços dos concorrentes e as previsões. (OCDE, Algorithmic Competition, OECD Competition Policy Roundtable Background, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1787/cb3b2075-en.)
3 Segundo IBM, machine learing é um subcampo da inteligência artificial. Uma de suas categorias, a aprendizagem de reforço, consiste no uso de um algoritmo que aprende à medida que avança usando tentativa e erro. Ou seja, uma sequência de resultados bem-sucedidos será reforçada para desenvolver a melhor recomendação ou política para um determinado problema.
4 “Embora seja possível que a utilização de algoritmos de precificação leve a efeitos pró-competitivos, a fronteira da ilicitude se encontra na utilização desta tecnologia com intuito de viabilizar ações coordenadas entre concorrentes nos mercados, consequentemente aumentando os preços de forma artificial.” (Processo Administrativo n° 08700.006280/2024-60. Nota Técnica 16. p. 13).
5 AI and Algorithmic Pricing: 2025 Antitrust Outlook and Compliance Considerations (Morgan Lewis. 2025); Antitrust Enforcement – 2025 Forecast, Algorithms and AI (Baker McKenzie. 2025); Algorithmic Pricing, Market Outcomes, and Antitrust Concerns (Faghani, Hassan. 2025).
6 RENZETTI, Bruno Polonio. Atos de Concentração Conglomerados e Ecossistemas Digitais: nova teoria para o controle de estruturas no Brasil. 2023. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023. Disponível em: https://bit.ly/4a42WEd. LOWE, Luther (2023). The age of AI is a time for antitrust. Disponível em: https://www.fastcompany.com/90960038/ai-antitrust-google-doj.
7 S.232 - Preventing Algorithmic Collusion Act of 2025.
8 Ordinance No. 224-24 aprovada pelo San Francisco Board of Supervisors, e Bill No. 240823 aprovada pelo Philadelphia City Council.
9 ASSAD, Stephanie; et al. Algorithmic pricing and competition: Empirical evidence from the German retail gasoline market, 2021.
10 Vide Processo Administrativo n° 08700.006280/2024-60, Anexo Nota Técnica 16, parágrafo 41.
11 “We investigate potential links between algorithmic pricing and competition by looking at the widespread introduction of AI-pricing software in the German retail gas market. First, we identify which stations have adopted this pricing software through structural break tests in various measures of behaviour during a sample period of 2016-2018. We then analyze the impact of algorithmic-pricing adoption by comparing competition measures for adopting stations vs. non-adopting stations.“ (ASSAD, 2021. p. 38).
12 “The results show that market-wide algorithmic-pricing adoption raises margins, suggesting that algorithms soften competition. The magnitudes of margin increases are consistent with previous estimates of the effects of coordination in the retail gasoline market”. (ASSAD, 2021. p. 5).
13 Colusão tácita é um tipo de cartel que ocorre quando agentes econômicos concorrentes coordenam suas decisões estratégicas de forma não cooperativa e sem o auxílio de uma comunicação direta. (Vocabulário Controlado de Defesa Econômica – VCDE do Cade). Disponível em https://vcde.cade.gov.br/.
14 No Processo Administrativo n° 08700.006280/2024-60, a SG/Cade cita o estudo do mercado de combustíveis da Alemanha para exemplificar que a adoção de precificação algorítmica teve um impacto significativo na concorrência daquele setor.
15 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2431834.
16 “Algumas das teorias do dano em concentrações não horizontais são as seguintes: (...) Acesso a informações concorrencialmente sensíveis de rivais pelo papel das empresas como fornecedor ou cliente (dependendo do contexto do mercado, pode incluir dados sobre vendas específicas, propostas, estratégias de preços e algoritmos, especificações técnicas dos produtos e planos de inovação)” (p. 21).
17 Processo Administrativo nº 08012.000677/1999-70.
18 Processo Administrativo nº 08012.011791/2010-56.
19 Consulta nº 08700.002055/2021-10.
20 Em evento público realizado em 2024 pelo IBRADEMP, por exemplo, o conselheiro Diogo Thomson de Andrade comentou que os desafios vão além da punição, referindo-se às estratégias de prevenção e medidas de compliance a serem adotadas pelas próprias empresas. O conselheiro também indicou que a autoridade se mostra atenta ao uso de plataformas de compartilhamento de dados entre concorrentes e atos de concentração que possibilitam fechamento de mercado pela compra de empresas motivada pela aquisição da base de dados. (Evento IBRADEMP – Painel sobre Inteligência Artificial e Desafios para o Direito da Concorrência. 8.5.2024).
21 Processo Administrativo n° 08700.006280/2024-60.
22 European Union, Algorithmic competition - Note by the European Union, 2023, p. 6-11. Documento apresentado na 140ª reunião do OECD Competition Committee, realizada em junho de 2023 Disponível em: https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/WD(2023)17/en/pdf.