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A reestruturação da Azul nos Estados Unidos: Impactos jurídicos e operacionais no Brasil

A reestruturação da Azul via Chapter 11 revela limites da recuperação judicial brasileira e destaca desafios jurídicos e operacionais transnacionais.

29/5/2025

1. Por que a Azul recorreu ao Chapter 11 e não à recuperação judicial brasileira?

A utilização do Chapter 11 tem se tornado uma alternativa recorrente entre grandes grupos empresariais com atuação global. O procedimento é amplamente reconhecido por oferecer:

No caso da Azul, as justificativas são ainda mais contundentes. A maioria dos seus contratos de leasing aeronáutico está sujeita à jurisdição estrangeira (geralmente Nova York ou Dublin), sendo seus credores majoritariamente internacionais. O foro americano, portanto, oferece ambiente mais adequado à reestruturação desses passivos - inclusive pela previsibilidade e reconhecimento global do Chapter 11.

2. A recuperação judicial transnacional e a possibilidade de extensão dos efeitos do Chapter 11 ao Brasil

Com a promulgação da lei 14.112/20, a lei de recuperação judicial e falências brasileira passou a contemplar, de maneira expressa e inédita, a cooperação jurídica internacional em matéria de insolvência transnacional - incorporando, em grande parte, os parâmetros da Lei Modelo da UNCITRAL.

Os arts. 167-A a 167-Y da LRFE passaram a disciplinar, dentre outras medidas:

Assim, o caminho mais técnico e aderente à legislação atual não é mais a simples homologacão de sentença estrangeira no STJ, mas sim o ajuizamento de um pedido de reconhecimento de processo estrangeiro com fundamento no Capítulo VI-A da lei 11.101/05, perante o juízo brasileiro competente para eventual recuperação judicial local.

A depender do êxito desse pedido, o juízo poderá:

No caso da Azul, isso significaria buscar o reconhecimento do Chapter 11 como “processo estrangeiro principal”, permitindo que seus efeitos - notadamente a blindagem patrimonial e a reorganização de passivos - sejam estendidos ao território brasileiro, ainda que sem um pedido formal de recuperação judicial no Brasil.

Esse dispositivo é inovador e coloca o Brasil mais próximo das melhores práticas internacionais em matéria de reestruturação empresarial. Seu uso ainda é incipiente, mas o caso Azul poderá servir como leading case para consolidar a aplicação prática da recuperação judicial transnacional no país.

3. Os reflexos no Brasil: credores, mercado e jurisprudência

Do ponto de vista jurídico, a escolha pelo Chapter 11 pode gerar os seguintes desdobramentos no Brasil:

Do ponto de vista institucional, a situação da Azul desafia os limites da recuperação judicial brasileira em lidar com grupos empresariais transnacionais. O caso evidencia a necessidade de evolução normativa e, sobretudo, de amadurecimento da aplicação da LRFE pelos operadores do Direito.

4. Riscos e impactos operacionais: a malha aérea nacional em xeque

A Azul opera em mais de 150 cidades, muitas das quais não são atendidas por nenhuma outra companhia aérea. Essa capilaridade - fruto de uma estratégia de nicho e frota diversificada - torna a empresa fundamental para a integração territorial brasileira, sobretudo em estados das regiões Norte, Centro-Oeste e interior do Nordeste.

Apesar de a empresa ter comunicado que suas operações seguirão normalmente durante o processo de reestruturação, os riscos são palpáveis:

Por isso, o caso exige monitoramento proativo por parte da ANAC, do Ministério de Portos e Aeroportos e do CADE, não apenas sob o ponto de vista da segurança jurídica e concorrencial, mas também sob o aspecto estratégico de garantia da conectividade nacional, bem público que ultrapassa os limites de uma relação meramente privada entre empresa e credores.

Conclusão

A decisão da Azul de submeter-se à jurisdição do Chapter 11 é juridicamente legítima, estrategicamente coerente e operacionalmente delicada. Ela revela tanto as limitações da recuperação judicial brasileira em lidar com grupos empresariais transnacionais, quanto a necessidade urgente de melhor aplicação da legislação para permitir maior cooperação internacional.

A análise jurídica do caso não pode se dissociar de seu impacto econômico e social: está em jogo não apenas a saúde financeira de uma companhia aérea, mas a manutenção de um sistema de transporte essencial à coesão territorial do país.

Cabe ao Judiciário brasileiro, à advocacia especializada e às autoridades públicas acompanhar de perto a aplicação da LRFE, os desdobramentos concorrenciais e os reflexos práticos dessa reestruturação. O desafio é garantir que, mesmo iniciada fora, a recuperação da Azul contribua para preservar, dentro, os interesses nacionais.

Ricardo Viscardi Pires
Advogado especialista em reestruturação de empresas, autor e coautor de diversos artigos jurídicos, sócio do escritório Bismarchi Pires Sociedade de Advogados.

Gustavo Bismarchi Motta
Advogado especialista em reestruturação de empresas e falências. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Magistratura e MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Comendador da Ordem de Saint Yves de Tréguier e Comendador Grã-Cruz da Ordem do Mérito Nacional do Empreendedorismo - Visconde de Mauá.

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