O dano moral em casos fatais: Uma análise crítica da valoração socioeconômica e a urgência de uma nova abordagem no Direito Pátrio
A reparação do dano moral no ordenamento jurídico brasileiro percorreu um longo e complexo caminho, desde a resistência inicial em aceitar a pecuniariedade do sofrimento até a sua consagração constitucional, superando a barreira da admissibilidade.
Contudo, superada essa etapa, o cenário atual impõe um desafio ainda mais premente: a problemática da quantificação, que, em casos fatais, se revela uma verdadeira banalização do valor da vida humana através de indenizações irrisórias, as quais, em sua essência, não cumprem as funções essenciais da responsabilidade civil e representam uma afronta direta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da isonomia.
Esta análise propõe-se a dissecar essa tensão, confrontando as perspectivas doutrinárias predominantes com a realidade da aplicação judicial e a acentuada ineficácia punitiva do sistema penal, que demandam uma reorientação na abordagem da reparação cível.
I. A perspectiva majoritária: O dano moral como "consolo" e a punição delegada
A doutrina civilista brasileira, ao abordar a indenização por danos morais, geralmente converge para uma natureza dual: compensatória para a vítima e pedagógica ou dissuasória para o ofensor. Flávio Tartuce, um dos expoentes dessa vertente, adere a essa corrente mista, pontuando que a função pedagógica, embora acessória, visa a coibir novas condutas, complementando a principal função reparatória. Ao delinear os critérios para a fixação do quantum indenizatório,
Tartuce, em harmonia com o entendimento prevalente, sublinha a necessidade de o magistrado agir com equidade, ponderando a extensão do dano, as condições socioeconômicas e culturais dos envolvidos, as condições psicológicas das partes e, notadamente, o grau de culpa do agente.
É precisamente na aplicação desses critérios que reside a face mais sutil e perversa do paradoxo. O legislador, na busca por uma modulação da responsabilidade, inseriu no CC o art. 944, dispositivo que permite ao juiz reduzir equitativamente a indenização "se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano". Esta norma confere ao ofensor uma salvaguarda, uma via para a atenuação de sua responsabilidade pecuniária quando sua conduta, embora lesiva, não se reveste de grave dolo ou culpa.
No entanto, enquanto a lei permite essa flexibilidade em favor do causador do dano, o debate sobre a valoração do sofrimento da vítima, especialmente quando sua condição socioeconômica é precária, parece seguir uma lógica drasticamente oposta, manifestada na própria jurisprudência.
Anderson Schreiber, outro renomado autor no campo do direito civil, ilustra com clareza essa dissonância. Embora reconheça a universalidade da dor, afirmando que ela "não pode ser medida pela condição social ou econômica da vítima", ele simultaneamente qualifica que a indenização deve ser um "lenitivo, um consolo, que seja adequado à sua condição social e econômica, sem, contudo, permitir o enriquecimento sem causa". A contradição aqui é inegável: se a dor é universal, não se concebe que o "consolo" que a repara precisa ser "adequado" à condição econômica.
Tal "adequação", na prática, frequentemente se traduz em uma limitação do valor indenizatório para aqueles em situação de vulnerabilidade, sob o pretexto de evitar um suposto "enriquecimento sem causa". Esta fundamentação revela uma inversão perversa de valores: protege-se o patrimônio do causador do dano em detrimento da dignidade das vítimas, ignorando que a verdadeira injustiça reside em permitir que o responsável pela morte mantenha seu patrimônio praticamente intacto enquanto a família da vítima enfrenta não apenas a dor irreparável, mas frequentemente também o desamparo econômico.
Essa lógica tem se refletido nos números. O Brasil, que anualmente registra aproximadamente 66 mil mortes no trânsito, cada uma representando uma vida ceifada e uma família destruída, vê seus tribunais precificarem essas vidas com valores que, conforme análise da jurisprudência recente, variam entre R$ 50.000,00 e R$ 200.000,00.
A jurisprudência do STJ, embora formalmente adote princípios como a razoabilidade e a proporcionalidade na fixação do quantum indenizatório, tem sido criticada por, na prática, perpetuar uma precificação velada da dor.
Em diversos julgados, como o REsp 1.705.908/PB e o REsp 1.838.291/SP, o Tribunal reitera que a revisão do valor arbitrado a título de danos morais pelas instâncias ordinárias somente é possível nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade e proporcionalidade. Essa abordagem, frequentemente acompanhada da invocação da súmula 7 do STJ - que veda o reexame de provas em sede de recurso especial - embora busque conferir segurança jurídica, paradoxalmente, tem gerado resultados díspares.
A aplicação desse critério, quando transposta para a valoração da vida em casos fatais, reforça a percepção de que a dor e a própria existência podem ter valores diferentes a depender do status social da vítima, o que se choca com os valores constitucionais de dignidade humana e igualdade. Os valores médios de indenização variam entre R$ 50-200 mil.
Estes valores, quando confrontados com a magnitude da perda, demonstram um descompasso gritante entre a gravidade do dano e sua reparação, consolidando uma verdadeira "banalização institucionalizada" da vida humana. A doutrina majoritária, ao delegar a função punitiva primariamente ao Direito Penal e ao endossar essa "adequação" na esfera cível, inadvertidamente contribui para uma falha sistêmica na promoção da justiça e da equidade.
II. A contracorrente doutrinária: Dor universal e a inadmissibilidade da discriminação no contexto da equidade
Felizmente, nem toda a doutrina se conforma com essa aparente contradição. Vozes importantes elevam-se para defender uma compreensão mais profunda da dignidade humana e da função da indenização.
Maria Celina Bodin de Moraes, com sua visão civil-constitucional, posiciona-se veementemente contra a precificação da dor com base em critérios sociais ou econômicos. Para ela, a dignidade da pessoa humana é o epicentro do ordenamento jurídico e, como tal, não pode ser tarifada ou mitigada de forma discriminatória. A dor e o sofrimento são vivências intrínsecas e não podem ter seu valor diminuído em função da fortuna da vítima. Sua argumentação é um contraponto direto à lógica da "adequação", que, sob o manto da prudência, acaba por perpetuar desigualdades.
Fábio Ulhoa Coelho, por sua vez, reforça essa corrente ao afirmar de forma categórica que "A dor do pobre não pode valer menos que a do rico, nem vice-versa". Ele não apenas rejeita a valoração discriminatória, mas também aborda o ponto crucial do "enriquecimento" da vítima. Ulhoa compreende que a indenização moral, por sua própria natureza, resultará em um "enriquecimento patrimonial", uma vez que a dor não pode ser "apagada" pelo dinheiro. Contudo, ele defende que este não é um enriquecimento "sem causa" a ser combatido, mas sim uma consequência legítima da reparação de um dano à dignidade.
No que tange ao art. 944 do CC, Ulhoa o reconhece como um instrumento de modulação da responsabilidade do ofensor, um critério de "distribuição equitativa do dano" que se justifica pela menor gravidade da culpa. No entanto, essa prerrogativa concedida ao ofensor não pode, sob nenhuma hipótese, justificar uma precarização da indenização da vítima em razão de sua condição econômica. A equidade invocada para proteger o causador do dano (com culpa leve) não pode ser a mesma que, disfarçadamente, penaliza o lesionado por sua vulnerabilidade.
O equilíbrio da justiça exige que a indenização seja plena, independentemente da capacidade econômica do ofensor ou da condição socioeconômica do ofendido, sob pena de violar o princípio da igualdade. Este ponto é crucial para compreender a quão contraditória é a aplicação do art. 944: enquanto se permite amenizar a pena do ofensor por sua culpa leve, valores ínfimos para a vítima pobre são justificados por uma suposta "adequação", desconsiderando a profunda assimetria de poder e as graves consequências da tragédia.
III. A realidade penal e a imprescindibilidade da função punitiva/restauradora da indenização civil
Aprofundando a discussão para além do que a doutrina majoritária tem confortavelmente delegado, impõe-se analisar o papel de facto da indenização civil em um cenário onde o sistema penal brasileiro muitas vezes se distancia de uma efetiva punição e reinserção dos ofensores.
As medidas punitivas, por vezes brandas, e os graves problemas do sistema carcerário, que falha em recuperar o delinquente e, em muitos casos, o aprofunda na criminalidade, criam uma lacuna na resposta estatal à conduta lesiva. Nesse contexto, o ofensor frequentemente não encontra no campo criminal o desestímulo e a sanção necessários para a sociedade, deixando a vítima desamparada em sua busca por justiça.
A punição efetiva requer um impacto econômico real sobre o causador do dano; um motorista que mata por imprudência e paga R$ 100.000,00 (muitas vezes através de seguro) não experimenta uma consequência proporcional ao mal causado, perpetuando a sensação de impunidade e falhando na função preventiva do direito. O REsp 1.738.344/RJ, ao reconhecer expressamente o caráter punitivo-pedagógico, mas fixar um valor incompatível com tal reconhecimento, ilustra a contradição entre o fundamento e a conclusão que permeia nossa jurisprudência.
É diante dessa ineficácia punitiva do sistema penal que a indenização civil ascende, na prática, a uma função que transcende o mero consolo: ela se torna um dos principais, senão o único, instrumento de sanção efetiva e de restauração da dignidade. Para o ofensor, um valor substancial fixado na esfera cível é o que, em muitos casos, gera o verdadeiro desestímulo e o reconhecimento do impacto de sua conduta.
Mas é para a vítima, sobretudo aquela em situação de vulnerabilidade econômica, que essa indenização adquire um significado ainda mais profundo. Para ela, a reparação não se limita a um lenitivo abstrato para a dor; ela é um meio crucial para mitigar a "dor da carência material" que se associa indissociavelmente ao sofrimento moral.
A privação de recursos básicos - para moradia, alimentação, saúde, educação - não apenas agrava o sofrimento moral, mas o perpetua, impedindo a reconstrução de uma vida digna após a lesão. O conceito de "enriquecimento sem causa", nestes casos, é um sofisma que serve para justificar valores ínfimos que não cumprem nenhuma das funções da responsabilidade civil: não reparam adequadamente, não punem efetivamente e não previnem novas condutas danosas.
Assim, a "adequação à condição social e econômica" da vítima, defendida por alguns, revela-se não como um critério de equidade, mas como uma justificativa para a fixação de valores irrisórios. Tais valores não cumprem nem a função compensatória de forma adequada - pois desconsideram a interconexão entre a dor moral e o sofrimento gerado pela carência material -, nem a função punitiva/pedagógica necessária, e, pior, perpetuam uma discriminação inaceitável.
O paradoxo se acentua: ao mesmo tempo em que a lei oferece ao ofensor a possibilidade de moderação da pena por sua culpa leve (Art. 944 CC), o sistema tolera uma redução da reparação da vítima baseada em sua condição econômica, convertendo o sofrimento em um bem de consumo com valor de mercado variável.
Conclusão: Por uma indenização digna, efetiva e não discriminatória
A valoração do dano moral no Brasil enfrenta o desafio de transcender a dicotomia entre um "consolo" simbólico e um "enriquecimento sem causa" que, na prática, tem justificado a diferenciação pecuniária do sofrimento. A doutrina majoritária, ao não confrontar as implicações de seus próprios critérios, perpetua uma lógica que, embora sutil, viola o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade, consagrados na Constituição Federal.
O Poder Judiciário brasileiro, ao chancelar valores ínfimos como os observados na casuística de perda de vidas (como no REsp 1.381.683/RJ, que ilustra como a condição socioeconômica da vítima tem influenciado negativamente os valores), torna-se corresponsável pela banalização da vida, assemelhando-se, em certas dimensões, ao "estado de coisas inconstitucional" reconhecido para o sistema prisional na ADPF 347.
A perspectiva de Maria Celina Bodin de Moraes e Fábio Ulhoa Coelho, que rechaçam a precificação da dor com base na condição socioeconômica da vítima, oferece um caminho mais alinhado com os valores constitucionais. Para eles, a dor é intrinsecamente universal, e sua compensação não pode ser atrelada à fortuna do lesado, sob pena de grave discriminação. O enriquecimento patrimonial advindo da indenização, nesses casos, é uma consequência legítima da busca por justiça e não um mal a ser combatido.
O direito comparado, como o modelo norte-americano que não utiliza a renda do ofensor como limitador, e onde o conceito de "enriquecimento sem causa" não é invocado para reduzir indenizações por morte, compreende que a perda de uma vida justifica uma compensação substancial, valorizando socialmente a vida e criando incentivos econômicos reais para a prevenção.
A realidade da ineficácia do sistema penal impõe à indenização civil uma responsabilidade ainda maior: a de atuar como o principal mecanismo de sanção e desestímulo, e, crucialmente, como um instrumento de restauração integral da dignidade das vítimas, especialmente as mais vulneráveis.
A indenização do dano moral, portanto, deve ser substancial não apenas como "consolo", mas como um meio real de mitigar a "dor da carência material" e como a efetiva resposta à conduta lesiva que o sistema penal, muitas vezes, não consegue entregar.
Urge, pois, que os critérios de quantificação sejam reavaliados, priorizando a dignidade da vítima em sua plenitude e a efetividade da sanção civil, superando a precificação velada da dor e garantindo que o benefício concedido ao ofensor pela moderação de sua culpa (art. 944 CC) não encontre seu contraponto em uma pena disfarçada imposta à própria vítima.
A sociedade brasileira já possui um Poder Judiciário capaz de valorizar vidas acima de patrimônios, que compreenda a morte como o dano supremo merecedor de reparação digna, que use o direito como instrumento de justiça e não de perpetuação de injustiças. A transformação começa com o reconhecimento de que o atual estado de coisas é inaceitável. Continua com a coragem de decidir diferente. E se consolida quando valores justos se tornarem a regra, não a exceção.
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STJ: https://scon.stj.jus.br/SCON/ REsp 1.705.908/PB e o REsp 1.838.291/SP
STF: ADPF 347.
Referências Doutrinárias Citadas (ABNT):
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: obrigações - responsabilidade civil. Volume 2. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
SCHREIBER, Anderson et al. Código Civil Comentado. Rio de Janeiro: Forense,2021.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Único. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.