Introdução
No âmago da governança corporativa e do Direito Societário brasileiro, a delimitação da responsabilidade civil dos administradores representa um pilar de segurança jurídica e de fomento ao desenvolvimento econômico. A tese, já pacificada, de que seus deveres configuram uma obrigação de meio, e não de resultado, é mais do que um mero preciosismo acadêmico: é a linha mestra que equilibra a proteção do patrimônio da companhia e a necessidade de permitir que gestores tomem decisões estratégicas em um ambiente de risco inerente.
Este artigo visa trazer luz a essa premissa, esmiuçando seus fundamentos doutrinários, a aplicação da Business Judgment Rule (para ler mais sobre a Business Judgment Rule, leia o artigo) e sua consolidação na jurisprudência pátria, com especial enfoque nos Tribunais Superiores e no TJ/SP.
No entanto, em razão de sua extensão, optei por dividi-lo em duas partes, a primeira com uma abordagem mais teórica sobre a questão e a segunda com um viés mais prático, analisando alguns precedentes importantes e casos práticos de comparação entre Negligência vs. Risco Empresarial.
1. Da responsabilidade civil do administrador
O legislador, por opção, ao invés de restringir a atuação e o poder de decisão dos administradores, especialmente por meio de preceitos específicos e rígidos, escolheu preservar a liberdade de atuação dos administradores, conferindo-lhes atribuições e poderes privativos, mas, ao mesmo tempo, estabeleceu padrões de condutas gerais e abstratos que pautam os comportamentos deles, de modo a contrastarem com suas atuações nas diferentes situações concretas.
Nas palavras de Marcelo Vieira Von Adamek, “a responsabilidade civil constitui importante elemento de regulação da conduta dos administradores, pois torna efetivos os seus vários deveres nos planos societários, interno e externo (ADAMEK, 2009).
Como um dos componentes dessa responsabilização civil de administradores está as obrigações que esses possuem perante a sociedade na consecução de seus atos de gestão (interna) e perante terceiros ao atuar em nome da empresa (externa).
O grande alicerce que norteia a atuação dos administradores é que estes não são pessoalmente responsáveis pelas obrigações que contraírem em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão (art. 158 da LSA). Por outro lado, respondem civilmente pelos prejuízos que causarem quando procederem com dolo ou culpa, - ainda que dentro de suas atribuições e poderes -, ou por violação da lei ou do estatuto (ou contrato social).
No entanto, sem o intuito de esgotar o assunto, extremamente extenso e complexo, não adentraremos aos aspectos relacionados às três “regras” de responsabilização consideradas pela doutrina pátria previstas nos incisos I e II do art. 158 da LSA, a saber: (i) irresponsabilidade por atos regulares de gestão; (ii) o comportamento antijurídico, quando, dentro de suas atribuições ou poderes, os administradores procederem com dolo ou culpa, de modo a concorrerem com o resultado negativo (efetivo prejuízo à empresa e/ou aos sócios; ou (iii) quando os administradores agirem violando a lei ou estatuto da empresa (ou contrato social).
Para o presente artigo, cumpre destacar quais são as formas de obrigação que ensejam a eventual responsabilização dos administradores relacionadas ao seu dever de diligência: obrigação de meio ou obrigação de resultado.
2. A dicotomia clássica: Obrigação de meio vs. Obrigação de resultado
A teoria geral das obrigações, alicerce do nosso Direito Civil, nos fornece a distinção fundamental para o tema. Conforme leciona Caio Mário da Silva Pereira, na obrigação de meio o devedor se compromete a empregar a diligência e os meios adequados para alcançar um fim, sem, contudo, se vincular à obtenção do resultado em si. O foco da análise de sua conduta recai sobre o processo, sobre a prudência e a técnica empregadas.
Em contrapartida, na obrigação de resultado, o devedor se obriga a entregar um fim específico e determinado. A não consecução deste resultado, por si só, presume a culpa e gera o dever de indenizar, salvo prova de caso fortuito ou força maior.
Antes de aplicar os conceitos ao administrador no âmbito societário, de forma bem didática: obrigações de meio (o devedor se compromete a empregar os melhores esforços e a técnica disponível, sem garantir o fim almejado - ex: advogado, médico) e de resultado (o devedor se compromete a atingir um fim específico - ex: construtor entregar a obra). Isso prepara o terreno teórico no âmbito do direito empresarial.
Transportar essa dicotomia para o ambiente societário é essencial. Como adverte Fábio Ulhoa Coelho, imputar ao administrador uma obrigação de resultado seria paralisar a atividade empresarial. O sucesso de um negócio jamais é garantido; ele é fruto de uma complexa interação entre a competência da gestão e as incontroláveis variáveis do mercado.
No contexto da administração societária, isso significa que o gestor deve atuar com o cuidado e a diligência que se espera de um homem probo na condução de seus próprios negócios (Art. 153 da lei das S.A.), tomando decisões informadas e agindo no melhor interesse da companhia. Sua responsabilidade reside na forma como ele conduz a gestão, na observância dos deveres de diligência e lealdade, e não necessariamente nos resultados financeiros ou operacionais que dela advêm.
3. Os deveres fiduciários como baliza da "obrigação de meio"
A lei 6.404/1976 (LSA - lei das sociedades por ações) não utiliza a terminologia "obrigação de meio", mas a constrói materialmente ao detalhar os deveres do administrador. Conforme mencionado acima, a análise de sua responsabilidade passa, invariavelmente, pela verificação do cumprimento de dois deveres fiduciários principais:
- Dever de diligência (Art. 153 da LSA): Este é o cerne da obrigação de meio. O administrador deve empregar, no exercício de suas funções, "o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios". Isso implica tomar decisões informadas, buscar aconselhamento técnico quando necessário, fiscalizar as operações da companhia e agir com a prudência esperada de um gestor profissional. A violação deste dever se configura pela culpa (negligência, imprudência ou imperícia).
- Dever de lealdade (Art. 155 da LSA): O administrador deve servir à companhia com lealdade, colocando os interesses desta acima dos seus próprios ou de terceiros. Ele não pode se valer de oportunidades de negócio da empresa para si, usar informações privilegiadas (insider trading) ou ter interesses conflitantes. A violação deste dever, em geral, se aproxima do dolo ou da culpa grave (negligência, imprudência ou imperícia).
Portanto, a responsabilidade do administrador só emerge quando se comprova que o prejuízo decorreu da violação de um desses deveres, e não do mero insucesso empresarial. Contudo, a distinção entre um erro de julgamento escusável e uma negligência culposa é, frequentemente, a linha tênue que desafia magistrados e advogados."
4. O fator risco
Exigir do administrador uma obrigação de resultado seria paralisar a inovação e a tomada de decisões estratégicas, pois ninguém assumiria um cargo de gestão se fosse responsabilizado por todo e qualquer prejuízo decorrente de um plano de negócios que não obteve o sucesso esperado. A lei não pune o erro, mas sim a negligência, a imprudência ou a violação do dever.
Conclusão
A correta qualificação da natureza da responsabilidade do administrador é um dos pilares para a justa avaliação de sua conduta e de eventuais prejuízos causados à sociedade. Em síntese, a responsabilidade do administrador societário no direito brasileiro é, inequivocamente, uma obrigação de meio, e não de resultado. Sua responsabilização não decorre do insucesso empresarial - um risco inerente à atividade -, mas da comprovação de que agiu com violação aos seus deveres de diligência e lealdade.
Esta distinção, embora clara na teoria, ganha contornos complexos na prática forense e na gestão corporativa. É justamente essa aplicação concreta que exploraremos na parte 2 deste estudo, onde analisaremos precedentes judiciais e o crescente diálogo da jurisprudência brasileira com a doutrina da Business Judgment Rule. Demonstraremos exemplos práticos de situações que caracterizam a violação, ou não, como os tribunais buscam, no caso a caso, diferenciar o mau gestor do gestor sem sorte, estabelecendo os limites práticos da discricionariedade administrativa.