Migalhas de Peso

Concurso público e posse: O direito do candidato impedido por motivo de saúde

Candidatos aprovados em concurso têm direito à posse mesmo ausentes por saúde, garantindo dignidade e respeito aos direitos fundamentais.

29/8/2025

O concurso público, no Brasil, é reconhecido como a forma mais legítima e democrática de ingresso em carreiras públicas. Ele representa, para milhares de candidatos, o resultado de anos de preparação, dedicação e investimento pessoal. A aprovação, no entanto, não encerra a jornada: é preciso ainda cumprir etapas formais, como a posse, que consagra a entrada no serviço público. É nesse ponto que podem surgir situações delicadas, sobretudo quando o candidato, por motivo de saúde, não consegue comparecer ao ato.

A regra geral é clara: o edital estabelece prazos rígidos para a posse, e a ausência do candidato costuma ser interpretada como desistência. Essa previsão se fundamenta no interesse público de continuidade do serviço e na necessidade de convocar outros aprovados. Todavia, nem sempre a ausência decorre de mera vontade. Em muitos casos, o motivo é uma situação de saúde grave, como depressão, crises de ansiedade ou enfermidades incapacitantes que impedem o comparecimento.

Nesses cenários, a questão jurídica que se impõe é: pode o candidato perder automaticamente o direito conquistado após árdua aprovação? A resposta exige considerar princípios constitucionais e a finalidade do concurso público.

A posse é um ato administrativo que consagra o vínculo entre o candidato aprovado e a Administração Pública. O não comparecimento injustificado realmente acarreta a perda do direito. Contudo, quando há causa justificada - especialmente de saúde -, não se pode tratar a ausência como desistência voluntária. Trata-se de situação de força maior, que deve ser analisada com base na razoabilidade.

A Constituição da República assegura a todos o direito à saúde e reconhece a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado. Punir o candidato que não pôde assumir por estar doente equivale a negar proteção a quem mais necessita dela. A Administração Pública deve agir de forma proporcional, equilibrando a necessidade de preencher cargos com o respeito aos direitos fundamentais.

A jurisprudência tem caminhado nessa direção. Os tribunais têm reconhecido que, comprovada a impossibilidade de comparecimento por motivo de saúde, o candidato não pode ser considerado desistente. O entendimento majoritário é o de que a posse deve ser reagendada, permitindo-se que o candidato assuma o cargo quando estiver em condições de trabalho. Assim, evita-se que a doença se transforme em motivo de exclusão injusta de um direito legitimamente conquistado.

Para que isso ocorra, é essencial que o candidato apresente documentação médica idônea, demonstrando o quadro clínico e a impossibilidade de comparecimento no período estabelecido. Laudos, atestados e relatórios médicos detalhados são instrumentos indispensáveis para comprovar a boa-fé e justificar a ausência.

É certo que muitas vezes a Administração resiste em aceitar tais justificativas, alegando a necessidade de estrita observância ao edital. Nesses casos, o caminho é recorrer ao Judiciário, por meio de mandado de segurança ou ação ordinária, buscando a reabertura do prazo de posse ou a garantia de nomeação futura. A experiência demonstra que, quando bem instruídos, esses pedidos encontram acolhida nos tribunais, justamente porque representam a aplicação prática dos princípios constitucionais.

A questão também revela um problema maior: a necessidade de humanização dos concursos públicos. Não se trata de relativizar regras nem de abrir espaço para insegurança jurídica, mas de reconhecer que situações de saúde fogem ao controle do candidato e exigem tratamento diferenciado. O concurso existe para selecionar os mais capacitados, e não para punir aqueles que, por circunstâncias alheias à sua vontade, não puderam comparecer em determinado dia.

Portanto, o candidato aprovado que não tomou posse por estar em tratamento médico tem, sim, o direito de pleitear a reabertura do prazo ou o reagendamento do ato. Esse direito não decorre de privilégio, mas da própria essência do Estado Democrático de Direito, que deve harmonizar eficiência administrativa e proteção dos direitos fundamentais.

Em conclusão, o concurso público não pode se tornar instrumento de exclusão insensível às fragilidades humanas. Reconhecer que a saúde justifica a ausência à posse é reafirmar a dignidade da pessoa humana e garantir que o mérito conquistado seja respeitado. Nesses casos, é fundamental que o candidato busque orientação jurídica especializada, para que sua luta e sua aprovação não sejam perdidas diante da burocracia.

Ricardo Fernandes
Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial Miltiar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo

Ana Paula Gouveia Leite Fernandes
Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.

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