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Alienação fiduciária: Inovações legais e alterações no STF - Final

Na parte final aborda-se a constitucionalidade das medidas expropriatórias extrajudiciais e as condições impostas pelo STF na julgamento das ADIns 7.600-7.601-7.608.

13/9/2025

Alienação fiduciária: Inovações legislativas e alterações jurisprudenciais - Parte final - A constitucionalidade da expropriação extrajudicial

A celeridade e a eficiência na recuperação de créditos são pilares para a saúde do sistema financeiro. Nesse contexto, a expropriação extrajudicial, que permite ao credor fiduciário reaver o bem dado em garantia sem a necessidade de uma prolongada intervenção judicial, tem sido um mecanismo amplamente adotado e, recentemente, reafirmado em sua constitucionalidade pelo STF, mesmo com a introdução de novas modalidades pela lei 14.711/23, conhecida como "Marco Legal das Garantias".

1. A tendência da desjudicialização e o posicionamento histórico do STF

O movimento de desjudicialização de procedimentos executivos visa a reduzir a sobrecarga do Poder Judiciário, transferindo certas etapas para a esfera administrativa ou cartorária, sempre com a premissa de que o acesso à justiça e a garantia do devido processo legal sejam preservados.

O STF já havia consolidado a constitucionalidade de procedimentos extrajudiciais anteriores à lei 14.711/23. O ministro Dias Toffoli, em seu voto nas ADIns 7.600, 7.601 e 7.608 - Ementa do RE 627.106 (Tema 249) relembra essa jurisprudência, citando:

"É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial previsto no Decreto-lei nº 70/66"

E também o RE 860.631 (Tema 982), que validou a execução extrajudicial da alienação fiduciária de bens imóveis prevista na lei 9.514/1997, destacando que:

"A execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel, prevista na Lei 9.514/1997, é compatível com as garantias constitucionais, destacando-se inexistir afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição e do acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88) e do juiz natural (art. 5º, LIII, CF/88), posto que se assegura às partes, a qualquer momento, a possibilidade de controle de legalidade do procedimento executório na via judicial."

Essa linha de raciocínio é a base para a análise das novas previsões da lei 14.711/23.

2. O marco legal das garantias (lei 14.711/23) e o debate constitucional no STF

A lei 14.711/23 trouxe importantes inovações que ampliaram as possibilidades de execução extrajudicial, alcançando:

As ADIns - Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7.600, 7.601 e 7.608 questionaram esses novos institutos, alegando violação a princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a inafastabilidade da jurisdição, a reserva de jurisdição, e o direito de propriedade.

2.1. O voto do relator, ministro Dias Toffoli: A constitucionalidade com salvaguardas

O ministro Dias Toffoli, relator das ADIns, defendeu a constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais instituídos pela lei 14.711/23. Seu argumento central é que essas inovações se inserem na tendência de desjudicialização já validada pelo STF, e que o acesso ao Poder Judiciário para dirimir controvérsias ou reprimir ilegalidades permanece garantido ao devedor.

Para o ministro Toffoli, os procedimentos administrativos desenvolvidos pelos oficiais de registro, como a notificação e a averbação da consolidação da propriedade, são atos que dispensam a intervenção judicial, salvo em caso de ameaça de violação de direitos.

Ele afirmou que os atos atribuídos ao oficial registrador têm natureza meramente administrativa e que "Nada há nesses atos, em princípio, que sugira a necessidade de atuação do Poder Judiciário".

ADI7600-ADI7601-ADI7608-Voto-Dias-Toffoli:

"Os atos atribuídos ao oficial registrador têm natureza meramente administrativa. Ele realiza comunicações, faz um juízo administrativo sobre o não cabimento da dívida e averba a consolidação da propriedade, conforme o caso. Nada há nesses atos, em princípio, que sugira a necessidade de atuação do Poder Judiciário. A averbação da consolidação da propriedade dispensa a intermediação judicial, correspondendo ao atesto da circunstância objetiva de ausência de quitação da dívida pelo devedor, o que pode ser realizado por agente imparcial dotado de fé pública, dispensando-se a intermediação judicial, em prol da celeridade e da eficiência na recuperação de bens móveis dados em garantia, em benefício dos credores e dos bons devedores, que são aqueles que não se furtam de cumprir suas obrigações."

No entanto, o relator impôs uma interpretação conforme a CF aos §§ 4º, 5º e 7º do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969 (que tratam da busca e apreensão extrajudicial de bens móveis). Essa interpretação visa a assegurar que, nas diligências para localização e apreensão do bem, sejam respeitados os direitos fundamentais do devedor, como:

A tese proposta pelo ministro Dias Toffoli, que veio a prevalecer no julgamento, sintetiza esse entendimento:

ADI7600-ADI7601-ADI7608-Voto-Dias-Toffoli.Proposta de Tese

"1. São constitucionais os procedimentos extrajudiciais instituídos pela Lei nº 14.711/23 de consolidação da propriedade em contratos de alienação fiduciária de bens móveis, de execução dos créditos garantidos por hipoteca e de execução da garantia imobiliária em concurso de credores.

2. Nas diligências para a localização do bem móvel dado em garantia em alienação fiduciária e em sua apreensão, previstas nos §§ 4º, 5º e 7ºdo art. 8º-C do Decreto-Lei nº 911/69 (redação da Lei nº 14.711/23), devem ser assegurados os direitos à vida privada, à honra e à imagem do devedor; a inviolabilidade do sigilo de dados; a vedação ao uso privado da violência; a inviolabilidade do domicílio; a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade."

2.2. O voto da ministra Cármen Lúcia: A divergência em prol da reserva de jurisdição

A ministra Cármen Lúcia, por sua vez, divergiu do relator e votou pela inconstitucionalidade dos arts. 6º, 9º e 10 da lei 14.711/23. Seu argumento principal baseou-se na cláusula constitucional de reserva de jurisdição, defendendo que atos de busca e apreensão e de indisponibilidade de bens, por implicarem forte intervenção na esfera de direitos do indivíduo, exigem, em regra, autorização judicial.

A ministra Cármen Lúcia ressaltou que as normas impugnadas, ao permitirem a busca, apreensão e alienação de bens por procedimento que tramita em serventia extrajudicial, sem submeter-se ao controle prévio do Poder Judiciário, contrariam a CF. Ela citou precedentes do STF que já haviam reconhecido a reserva de jurisdição para medidas coercitivas, como a ADIn 1.668 (que declarou inconstitucional a atribuição à ANATEL de realizar busca e apreensão sem ordem judicial).

ADI7600-ADI7601-ADI7608-Voto-Carmen-Lucia.

"Na espécie vertente, as normas impugnadas, ao permitirem a busca, apreensão e alienação de bens de propriedade ou sob posse direta do devedor, por procedimento que tramita em serventia extrajudicial, sem submeter-se ao controle do Poder Judiciário, contrariaram a Constituição da República e, por isso, devem ser declaradas inconstitucionais."

2.3. Síntese da decisão plenária do STF

A decisão plenária do STF, ao julgar as ADIns 7.600, 7.601 e 7.608, consolidou o entendimento pela constitucionalidade dos institutos previstos na lei 14.711/23, que regulamentam procedimentos extrajudiciais para a execução de créditos.

Em resumo, a Corte decidiu que:

"São constitucionais os institutos previstos nos arts. 8º-B ao 8º-E do Decreto nº 911/1969, incluídos pela Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias), e no procedimento de busca e apreensão extrajudicial previsto nos parágrafos do art. 8º-C devem ser adotadas, obrigatoriamente, as devidas cautelas para evitar graves violações aos direitos fundamentais do devedor."

A Suprema Corte alinhou-se à tendência global de desjudicialização da execução, visando a aliviar a sobrecarga do Poder Judiciário. Assim, afastou as alegações de violação aos princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, uma vez que o pleno acesso ao Poder Judiciário permanece assegurado ao devedor.

Além disso, a possibilidade de defesa prévia na esfera administrativa, incluindo a purgação da mora antes da consolidação da propriedade ou da adoção de medidas como a busca e apreensão, é garantida.

"Conforme jurisprudência desta Corte (1), são constitucionais as medidas de execução extrajudicial de créditos — como as previstas no Marco Legal das Garantias —, de modo que devem ser afastadas as alegações de violação aos princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, pois o pleno acesso ao Poder Judiciário permanece assegurado ao devedor.

Ademais, é garantida a possibilidade de defesa prévia na esfera administrativa, inclusive com a purgação da mora antes da consolidação da propriedade ou da adoção de medidas como a busca e apreensão do bem dado em garantia."

A decisão, proferida por maioria, resultou na interpretação conforme a CF dos §§ 4º, 5º e 7º (expressão “apreendido o bem pelo oficial da serventia extrajudicial”) do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969, com a redação conferida pela lei 14.711/23. Isso significa que, nas diligências para a localização e apreensão do bem móvel dado em garantia em alienação fiduciária, devem ser assegurados os direitos e garantias constitucionais do devedor, já elencados na tese firmada.

"Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, em apreciação conjunta e por maioria, julgou parcialmente procedentes as ações para conferir interpretação conforme a Constituição aos §§ 4º, 5º e 7º (expressão “apreendido o bem pelo oficial da serventia extrajudicial”) do art. 8º-C do Decreto-Lei nº 911/1969, com a redação conferida pela Lei nº 14.711/2023, de modo que, nas diligências para a localização do bem móvel dado em garantia em alienação fiduciária e em sua apreensão, devem ser assegurados os direitos e garantias constitucionais elencados na tese anteriormente citada, fixada também por maioria."

Os precedentes que sustentam essa posição incluem julgados anteriores da Corte, como o RE 223.075, AI 509.379 AgR, AI 600.876 AgR, RE 513.546 AgR, RE 627.106 (Tema 249 RG) e RE 860.631 (Tema 982 RG).

3. As condições para a validade da expropriação extrajudicial: A necessidade de estrita observância formal

Apesar da reafirmação da constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais pelo STF (seguindo o voto do relator), é crucial entender que essa validade está condicionada à rigorosa observância de todas as formalidades e requisitos legais. Qualquer vício procedimental pode levar à anulação da expropriação pela via judicial, evidenciando que o controle do Poder Judiciário, mesmo que a posteriori, permanece como uma salvaguarda essencial.

A sentença da Justiça Federal da 1ª Região, na ação de procedimento comum cível 1002560-45.2024.4.01.3506, ilustra precisamente essa condição. Nesse caso, a autora buscou a anulação da consolidação da propriedade fiduciária e do procedimento de execução extrajudicial de um imóvel. O juiz Federal reconheceu a procedência dos pedidos, declarando a nulidade do procedimento em decorrência de "vício insanável": a falta de comprovação da intimação pessoal da parte autora para purgar a mora.

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"A controvérsia cinge-se à verificação da regularidade da intimação da parte autora para purgação da mora. A CEF alega, em contestação, que houve a devida notificação. Contudo, não apresentou qualquer documento que comprove o cumprimento da formalidade essencial prevista no art. 26 da Lei nº 9.514/1997."

"A inércia da CEF, nesse ponto, atrai a incidência do art. 373, II, do CPC, impondo-lhe o ônus da prova quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da parte autora. Assim, reputam-se verdadeiros os fatos narrados na exordial. A ausência de prova inequívoca da intimação pessoal invalida o procedimento de consolidação da propriedade fiduciária e, por conseguinte, todos os atos posteriores, inclusive os leilões eventualmente realizados."

Essa decisão reitera a necessidade de que os credores e os agentes extrajudiciais sigam estritamente os ditames legais, especialmente no que tange às notificações, que garantem ao devedor o direito de purgar a mora e de acompanhar todas as etapas do processo. A constitucionalidade do procedimento extrajudicial não o torna imune à revisão judicial quando comprovadas falhas que violem o devido processo legal em sua esfera administrativa.

Conclusão

A decisão do STF, ao validar a constitucionalidade da expropriação extrajudicial nos termos da lei 14.711/23, reforça a tendência de desjudicialização e a busca por maior eficiência na recuperação de créditos no Brasil. Contudo, essa validação não é irrestrita.

O voto do ministro Dias Toffoli, ao impor salvaguardas e uma "interpretação conforme a Constituição", especialmente para a busca e apreensão de bens móveis, sinaliza a importância de proteger os direitos fundamentais em um ambiente extrajudicial. A divergência da ministra Cármen Lúcia, embora minoritária, serve como um alerta contínuo sobre a necessidade de se preservar a reserva de jurisdição para atos que impliquem profunda restrição de direitos.

Em última análise, a expropriação extrajudicial, embora reconhecida como mecanismo válido e constitucional, exige uma vigilância constante por parte do Poder Judiciário e uma observância meticulosa das formalidades legais por parte dos agentes envolvidos. Somente assim será possível conciliar a desejada celeridade na recuperação do crédito com a inafastável proteção dos direitos e garantias individuais do devedor.

_____________

ADI 7601 - Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6846515

ADI 7608 - Disponivel em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6865956

ADI 7600 - Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6845229

Anderson Torquato Scorsafava
Advogado e Bacharel em Ciências Contábeis, sócio fundador da SCORSAFAVA Sociedade Individual de Advocacia. Especialista em Direito Tributário e Processual Civil, possui

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