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Parte 2: A responsabilidade do administrador societário: Continuação da parte 1

Uma análise crítica à luz da jurisprudência do STJ e da doutrina moderna sobre os limites da responsabilidade dos administradores nas sociedades empresárias.

19/9/2025

1. Introdução

A responsabilidade do administrador societário tem ganhado cada vez mais destaque em tempos de intensa judicialização das relações empresariais, fiscalizações mais rigorosas por órgãos reguladores e amadurecimento do ambiente de governança corporativa no Brasil.

Ao lado da figura clássica do “bom administrador”, ergue-se a necessidade de se delimitar com clareza os contornos jurídicos de sua responsabilidade - especialmente diante da dúvida que ainda persiste na doutrina e na jurisprudência: trata-se de uma obrigação de meio ou de resultado?

A distinção, como vimos na parte 1, não é meramente teórica. Ela tem impacto direto na forma como o Poder Judiciário julga ações de responsabilização contra administradores por atos de gestão que resultam em prejuízos às sociedades ou a terceiros. Em tempos em que o risco empresarial é inerente à atividade, é imperativo separar o erro de gestão do abuso de poder, a má sorte da má-fé, o insucesso do ilícito.

Este artigo propõe uma análise doutrinária, jurisprudencial e prática dessa temática, com foco especial na aplicação da business judgment rule no Brasil e nas recentes decisões do STJ que têm influenciado esse debate.

2. Obrigação de meio vs. obrigação de resultado: Conceito e aplicação no Direito Empresarial

A distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado é um clássico do direito obrigacional. Vamos relembrar o que falamos na parte I do artigo. Enquanto na obrigação de meio o devedor se compromete a empregar diligência e esforço, sem garantir um desfecho específico (ex: advogados, médicos), na obrigação de resultado há o dever de atingir um resultado específico (ex: construtor, transportador).

Quando transposta para o universo da administração societária, essa distinção adquire contornos práticos relevantes: o administrador deve assegurar o êxito da sociedade, ou apenas agir com diligência, lealdade e boa-fé?

A doutrina majoritária, apoiada na tradição do direito societário brasileiro, entende que a responsabilidade do administrador é, via de regra, de meio, e não de resultado. O art. 153 da lei das sociedades por ações (lei 6.404/1976) e o art. 1.011, §1º do CC impõem o dever de diligência, mas não exigem sucesso empresarial:

3. A Business Judgment Rule: O escudo do administrador diligente e um paradigma em construção

Corolário direto da obrigação de meio, a Business Judgment Rule é uma construção do direito norte-americano absorvida por nossa doutrina e jurisprudência. Segundo essa regra, o Poder Judiciário não deve substituir a discricionariedade do administrador e reavaliar o mérito de uma decisão de negócios, desde que esta tenha sido tomada:

  1. De boa-fé;
  2. Com base em informações razoáveis;
  3. Sem interesse pessoal (ausência de conflito de interesses).

Nas palavras de Nelson Eizirik, a regra cria uma "presunção de que os administradores agiram de forma diligente e leal". Cabe a quem alega o prejuízo o pesado ônus de desconstituir essa presunção, provando que um dos requisitos acima foi violado. A Business Judgment Rule não protege o administrador fraudulento, desleal ou patentemente negligente, mas sim aquele que, mesmo agindo corretamente, viu sua decisão levar a um resultado negativo.

business judgment rule, consolidada no direito norte-americano (precedente paradigma da Corte Estadual de Delaware), funciona como uma presunção de boa-fé e de correção das decisões dos administradores, blindando-os de responsabilização judicial quando atuam com base em critérios racionais, informados e leais aos interesses da empresa - mesmo que o resultado seja negativo.

No Brasil, esse conceito vem ganhando força, ainda que de forma embrionária, como ferramenta para frear a banalização da responsabilização dos administradores por simples insucessos. O STJ vem, aos poucos, firmando entendimento importante:

Vale ressaltar que essa posição tem sido acolhida também por tribunais estaduais, como o TJ/SP, que em julgados recentes vem reconhecendo a impossibilidade de responsabilização automática do administrador por prejuízos societários, exigindo prova concreta de violação aos deveres legais ou estatutários.

4. Deveres fiduciários e a responsabilidade subjetiva do administrador

Como delineado acima, o arcabouço normativo brasileiro exige que o administrador observe três pilares essenciais:

A responsabilidade do administrador decorre, portanto, da violação a esses deveres, e não da mera ocorrência de prejuízo à sociedade. Em regra, a responsabilização demanda a comprovação de culpa grave ou dolo, como previsto no art. 158 da LSA.

Importante ressaltar que, tanto o CC quanto o CPC de 2015, ao tratar da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC e arts. 133 a 137 do CPC), também reforçam essa lógica subjetiva ao exigir abuso da personalidade, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, como fundamentos para a responsabilização de sócios ou administradores:

5. Exemplos práticos: Onde está a linha da responsabilidade?

Caso 1 - Estratégia malsucedida:

Um administrador aprova a aquisição de uma startup promissora, com base em due diligence e pareceres técnicos. A operação fracassa meses depois. Neste cenário, ausente dolo, fraude ou violação de deveres, a business judgment rule protege o gestor. A responsabilidade é afastada por se tratar de risco natural da atividade empresarial.

Caso 2 - Omissão deliberada:

Administrador deixa de comunicar conflito de interesses em contrato firmado com empresa da qual também é sócio oculto. Há violação clara do dever de lealdade (art. 154, LSA). Neste caso, sua responsabilização é não apenas possível, mas recomendável.

Caso 3 - Falta de diligência formal:

Administrador deixa de convocar assembleia obrigatória para aprovação de contas, impedindo deliberação sobre matéria essencial. Mesmo sem má-fé, o descumprimento de formalidades legais pode ensejar responsabilização civil, pois há violação objetiva do dever legal.

5. Conclusão: Entre o Direito e a gestão, a responsabilidade deve ser equilibrada

O amadurecimento do ambiente empresarial exige uma visão equilibrada da responsabilidade dos administradores. A ideia de que qualquer prejuízo deve ser imputado ao gestor é perigosa, inibe a tomada de riscos e compromete a inovação. Por outro lado, não se pode permitir que a blindagem seja pretexto para arbitrariedades, fraudes ou omissões.

O reconhecimento da business judgment rule no Brasil é um avanço, mas ainda carece de consolidação jurisprudencial e maturação prática. Ela não é carta branca ao gestor, mas uma proteção legítima contra o que se convencionou chamar de “culpa empresarial presumida”.

Assim, é fundamental que administradores estejam atentos à documentação dos processos decisórios, consultem regularmente assessorias jurídicas e mantenham registro das deliberações com base em critérios técnicos, não apenas por cautela, mas como mecanismo de governança.

Para advogados, empresários e estudantes, fica a lição: o administrador não responde por não acertar - responde, sim, por não agir com zelo, lealdade e diligência. E é nesse ponto que o Direito encontra a gestão.

Marcus Vinícius Marcondes Buzanelli
Sócio da área de Corporate & Litigation, em DB Advogados. É certificado pelo ESOL/FLDOE e FCAT/FLDOE, nos EUA. Possui LL.M em D. Empresarial pela Escola de Direito do RJ e especializado em D. Público.

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