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CriptoJud e a consolidação da penhora de criptoativos

CriptoJud centraliza busca e bloqueio de criptoativos, amparado por lei e STJ. Aumenta a efetividade, mas tem limites (só exchanges nacionais, volatilidade, LGPD) e demanda ajustes legais.

22/9/2025

1. Introdução

A popularização das criptomoedas no Brasil trouxe consigo novos desafios ao Poder Judiciário, em especial quanto à localização e penhora de criptoativos em processos de execução. Até recentemente, a busca por tais ativos era feita por meio de ofícios individualizados a cada corretora (exchange), sem garantia de resposta, resultando em procedimentos morosos e com baixa efetividade.

Com o intuito de enfrentar essas dificuldades, o CNJ lançou, em agosto de 2025, o CriptoJud - uma plataforma eletrônica que permite a consulta centralizada, o bloqueio, a custódia e, futuramente, a liquidação de criptoativos em execuções judiciais.

Trata-se de um marco na modernização da tutela executiva e na adaptação do Judiciário às novas tecnologias financeiras.

2. Fundamentação jurídica: Reconhecimento dos criptoativos como bens penhoráveis e evolução jurisprudencial

Embora o CPC não trate expressamente dos criptoativos, a possibilidade de sua penhora decorre do art. 789, segundo o qual o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros pelo cumprimento de suas obrigações.

Nesse contexto, o STJ, no REsp 2.127.038/SP (3ª turma, relator ministro Humberto Martins, julgado em 18/2/25), firmou orientação relevante ao reconhecer que, em sede de cumprimento de sentença, é possível a expedição de ofícios às corretoras de criptomoedas (exchanges) com o intuito de localizar e penhorar ativos digitais do devedor.

A decisão destacou que, ainda que as criptomoedas não sejam moeda de curso forçado, elas constituem bens de valor econômico, passíveis de tributação e de constrição judicial, devendo prevalecer o interesse do credor na satisfação do crédito sobre a menor onerosidade ao devedor.

O acórdão enfatizou que, por força da IN RFB 1.888/19, as exchanges nacionais devem informar à Receita Federal as operações realizadas com criptoativos, o que demonstra que tais ativos integram o patrimônio do contribuinte e são suscetíveis de penhora.

Nessa mesma linha, decisões de tribunais estaduais já vinham admitindo a prática, como no AI 2255880-90.2022.8.26.0000 (TJ/SP), em que se concluiu ser cabível a expedição de ofício às empresas de custódia de criptomoedas, por se tratar de providência voltada à efetividade do processo de execução, e no AI 2315465-05.2024.8.26.0000 (TJ/SP), que ressaltou a ausência de abrangência do SisbaJud sobre empresas exclusivamente de ativos digitais e mencionou o desenvolvimento do CriptoJud pelo CNJ como solução para essa lacuna.

Além do reconhecimento jurisprudencial, há também um movimento normativo no mesmo sentido. O PL 1.600/22 pretende alterar o CPC para incluir expressamente os criptoativos no rol de bens penhoráveis, reforçando a tendência de positivação da matéria. Ademais, a lei 14.478/22 e o decreto Federal 11.563/23 atribuíram ao Banco Central do Brasil a competência para autorizar e supervisionar as atividades das exchanges, sinalizando a institucionalização do mercado de criptoativos no país - ainda que o Comunicado Bacen 31.379/17 tenha advertido para a ausência de lastro ou garantia desses ativos, cujo valor decorre exclusivamente da confiança dos usuários e que, portanto, envolvem risco integral do detentor.

Por fim, essa compreensão jurisprudencial encontra respaldo na doutrina processual, segundo a qual cabe ao juiz cooperar ativamente para a efetividade da execução. O art. 6º do CPC/15 consagra o princípio da cooperação, que impõe ao magistrado deveres de auxílio, diálogo e prevenção, e o art. 772, III, autoriza-o a exigir de qualquer pessoa natural ou jurídica a prestação de informações relevantes à localização de bens penhoráveis.

Conforme ensina Luiz Guilherme Marinoni, o juiz pode, inclusive com base nos poderes do art. 773 e mediante aplicação das sanções do art. 774, parágrafo único, compelir terceiros a fornecer dados sobre patrimônio do executado, justamente para evitar que o credor fique “entregue à própria sorte” na busca por bens, em prejuízo da efetividade da tutela executiva.

Essa base normativa, jurisprudencial e doutrinária reforça que os criptoativos, ainda que sejam bens intangíveis de natureza peculiar, integram o patrimônio do devedor e estão sujeitos à jurisdição executiva, legitimando a criação de ferramentas como o CriptoJud para facilitar sua localização e constrição.

3. O CriptoJud: Funcionamento e inserção institucional

O CriptoJud integra o Programa Justiça 4.0 do CNJ, voltado à transformação digital do Judiciário. Por meio do Portal Jus.br, os magistrados podem consultar simultaneamente todas as exchanges cadastradas, bloqueando ativos localizados e, em seguida, transferindo-os para contas judiciais vinculadas ao processo.

O modelo segue a lógica de outros sistemas já consolidados, como o BacenJud/SisbaJud (para ativos financeiros), o Renajud (para veículos) e o Infojud (para dados fiscais), mas agora direcionado aos bens digitais. Em fase futura, está prevista a possibilidade de conversão dos ativos bloqueados em reais para satisfação do crédito exequendo.

4. Limitações, riscos e desafios do mecanismo

Apesar de representar um grande avanço, o CriptoJud apresenta restrições que merecem atenção crítica. Seu alcance é territorialmente limitado: ele só atinge exchanges nacionais, não alcançando criptoativos armazenados em carteiras privadas (cold wallets) ou em exchanges estrangeiras.

Outro ponto é que a adesão das corretoras ao sistema é voluntária, o que pode gerar lacunas na sua eficácia. Também é indispensável que cada ordem seja precedida de decisão judicial fundamentada, o que preserva o contraditório e a proteção de dados prevista na LGPD, mas impede buscas preventivas ou genéricas.

Além disso, a volatilidade dos criptoativos pode causar oscilações bruscas de preço entre o bloqueio e a liquidação, criando debates sobre atualização monetária. Por fim, não há bloqueio retroativo: valores transferidos antes da ordem não podem ser revertidos, o que mantém o risco de esvaziamento patrimonial.

Esses limites evidenciam que o CriptoJud não elimina a necessidade de diligências paralelas, como pedidos de arresto cautelar, cooperação internacional e análise pericial de carteiras digitais. Apesar do avanço institucional, o CriptoJud não está isento de riscos. Entre os principais:

Esses fatores mostram que o CriptoJud, embora inovador, não é solução definitiva e deve ser manejado com responsabilidade, cautela e fundamentação robusta.

5. Impactos esperados na execução civil

A expectativa é que o CriptoJud produza efeitos significativos na prática forense. A ferramenta tende a aumentar a efetividade das execuções e a taxa de sucesso na localização de bens, reduzir o tempo e os custos de tramitação, e ampliar o poder coercitivo das decisões judiciais, desestimulando estratégias de inadimplemento.

Além disso, contribui para o fortalecimento da imagem institucional do Judiciário como órgão apto a lidar com tecnologias financeiras complexas, promovendo maior previsibilidade e segurança jurídica para credores e investidores. Em conjunto, esses fatores fortalecem o ambiente de negócios e a confiança na tutela jurisdicional.

6. Perspectivas de aperfeiçoamento e impactos futuros

Para consolidar o uso do CriptoJud e torná-lo mais eficaz, algumas medidas legislativas e regulatórias seriam recomendáveis. A aprovação do PL 1.600/22 é essencial para incluir expressamente a penhora de criptoativos no CPC. Também seria importante regulamentar a liquidação célere dos ativos penhorados, a fim de minimizar os efeitos da volatilidade, e criar um módulo de cooperação internacional que permita comunicação direta com exchanges estrangeiras.

Além disso, recomenda-se estabelecer auditorias periódicas e protocolos de segurança cibernética, bem como investir na capacitação digital de magistrados e servidores, garantindo o uso adequado da ferramenta e a prevenção de erros técnicos.

Ou seja, a médio e longo prazo, o CriptoJud tende a gerar repercussões relevantes. Deve aumentar a previsibilidade jurídica para investidores e credores, elevando a confiança na execução de contratos e contribuindo para a redução do custo do crédito.

Também pode estimular a formalização e a conformidade regulatória das exchanges nacionais, que buscarão integrar-se ao sistema para manter competitividade. Por fim, reforça o protagonismo institucional do CNJ como coordenador da transformação digital do Judiciário brasileiro, consolidando uma política pública de modernização da atividade jurisdicional.

7. Conclusão

O CriptoJud representa mais que um avanço tecnológico: trata-se de um novo paradigma para a execução civil no Brasil, alinhando o Judiciário às transformações econômicas e tecnológicas.

Embora apresente limitações e dependa de aprimoramentos legislativos, o sistema eleva a capacidade do Estado de combater a ocultação patrimonial, garante maior efetividade ao processo e reforça a confiança na tutela jurisdicional.

Para advogados e magistrados, o desafio será utilizar o CriptoJud de forma estratégica e responsável, combinando-o a outras ferramentas de investigação patrimonial e garantindo o equilíbrio entre a efetividade da execução e o respeito aos direitos fundamentais do devedor.

___________________

[1] "RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. POSSIBILIDADE DE EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO ÀS CORRETORAS DE CRIPTOATIVOS COM A FINALIDADE DE LOCALIZAR E PENHORAR ATIVOS FINANCEIROS DO DEVEDOR. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A controvérsia consiste em saber se, em cumprimento de sentença, é possível a expedição de ofício às corretoras de criptoativos com o intuito de localizar e penhorar eventuais ativos financeiros da parte executada. 2. Com efeito, esta Corte Superior adota o entendimento de que, embora "deva a execução ser processada do modo menos gravoso ao devedor, ela há de realizar-se no interesse do credor, que busca, pela penhora, a satisfação da dívida inadimplida" (AgInt no AREsp 956.931/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª turma, julgado em 21/3/17, DJe de 10/4/17). 3. Registre-se que a IN RFB - Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil 1.888/19 institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à secretaria especial da Receita Federal do Brasil. 4. Trata-se de um ativo financeiro passível de tributação, cujas operações devem ser declaradas à Receita Federal, sendo, portanto, um bem de valor econômico, suscetível de eventual constrição. Apesar de não serem moeda de curso legal, os criptoativos podem ser usados como forma de pagamento e como reserva de valor. 5. Em observância aos princípios que norteiam o processo de execução e o interesse das partes credora e devedora, é plenamente possível a expedição de ofício às corretoras de criptomoedas (exchanges) ou a utilização de medidas investigativas para acessar as carteiras digitais do devedor, tal qual pleiteado pela parte credora para eventual penhora. 6. Em virtude do exame do mérito, por meio do qual foi acolhida a tese sustentada pelo recorrente, fica prejudicada a análise da divergência jurisprudencial. Recurso especial provido"

(2) Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

[2] Art. 772. O juiz pode, em qualquer momento do processo: III - determinar que sujeitos indicados pelo exequente forneçam informações em geral relacionadas ao objeto da execução, tais como documentos e dados que tenham em seu poder, assinando-lhes prazo razoável.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2015.

Vitória Brathwaite
Vitória Lopes Brathwaite Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestranda em Direito Civil (Arbitragem) na Pontifícia Universidade Católica de São

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