O concurso público é uma das mais puras expressões da justiça social: o espaço em que o mérito se sobrepõe à origem, e a disciplina vence o privilégio. Cada candidato que se prepara para um teste de aptidão física carrega meses de sacrifício, treino e dedicação. No entanto, o que deveria ser uma disputa de igualdade tem se tornado, em muitos casos, um campo de desigualdade ambiental - especialmente nas provas de corrida, quando uns correm às 7h da manhã e outros, sob sol intenso, ao meio-dia.
À primeira vista, essa diferença de horários pode parecer inofensiva. Contudo, sob o prisma científico, técnico e jurídico, trata-se de uma violação direta ao princípio da isonomia. As condições térmicas, a intensidade solar, o nível de umidade e até o vento alteram significativamente o desempenho físico. O candidato que corre ao meio-dia, sob temperaturas elevadas e forte radiação, enfrenta um desgaste muito superior ao daquele que corre nas primeiras horas do dia, quando o clima é ameno. O resultado? Um mesmo teste, mas com condições desiguais.
A isonomia, prevista no art. 5º da Constituição Federal, exige que todos os candidatos sejam avaliados sob as mesmas condições objetivas. No contexto do teste físico, isso significa que a Administração Pública deve assegurar igualdade de ambiente, de horário e de supervisão técnica. Quando essa paridade é rompida, o certame deixa de aferir preparo físico e passa a medir resistência térmica - o que extrapola completamente o objetivo do exame.
A Justiça brasileira já reconheceu, em situações pontuais, que a diferença de horário e de condições ambientais pode ensejar reavaliação ou reaplicação da prova, especialmente quando comprovado que houve prejuízo mensurável ao desempenho do candidato. O que se busca não é privilégio, mas equidade: o reconhecimento de que o Estado, ao exigir esforço extremo, deve também oferecer condições equivalentes para todos.
É importante destacar que o princípio da vinculação ao edital não autoriza a Administração a agir de forma desumana. O edital vincula, mas não legitima o abuso. Quando as regras do certame resultam em desigualdade material, cabe ao Poder Judiciário restaurar a harmonia entre a legalidade formal e a justiça substancial, fundamento maior do Estado Democrático de Direito.
Quando dois candidatos correm sob climas diferentes, o concurso já deixou de ser justo. A igualdade formal não basta - o que a Constituição exige é igualdade real. O Estado precisa entender que não se avalia mérito sob 40 graus. O papel da advocacia é fazer a Justiça enxergar o que o sol encobre: que o esforço humano merece respeito e paridade.
Essa reflexão expõe o verdadeiro papel do Direito Administrativo contemporâneo: não o de proteger a letra fria dos editais, mas o de preservar a essência da justiça. O teste físico deve aferir preparo, não resistência ao calor. Deve premiar o mérito, não o acaso meteorológico. Quando a Administração falha em garantir igualdade de ambiente, viola a própria razão de ser do concurso público.
A defesa do candidato prejudicado nessas circunstâncias não é apenas uma tese jurídica; é um compromisso ético com o ideal de justiça.