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Teste físico em concurso público: É proporcional eliminar um candidato por apenas um segundo de diferença?

A exclusão baseada em diferença mínima de tempo afronta princípios constitucionais, ignora fatores externos e transforma a seleção pública em mero formalismo punitivo.

18/11/2025

Entre as etapas de um concurso público, poucas são tão decisivas quanto o teste de aptidão física. Após meses - ou anos - de dedicação, o candidato chega à pista de corrida carregando não apenas preparo físico, mas também esperança e responsabilidade. Em muitos casos, ele já foi aprovado em todas as fases anteriores: prova objetiva, discursiva, avaliação médica e psicológica. Ainda assim, é eliminado por um segundo de diferença. E surge a pergunta inevitável: é proporcional que o Estado desclassifique alguém por um lapso tão pequeno?

A resposta, à luz dos princípios constitucionais, é não.

A proporcionalidade e a razoabilidade, previstas no art. 37 da Constituição Federal, limitam o poder da Administração e impõem que seus atos sejam compatíveis com a finalidade pública. Eliminar um candidato que cumpriu todo o percurso, completou o tempo exigido com diferença ínfima e demonstrou plena aptidão funcional é um excesso administrativo, desprovido de racionalidade e sensibilidade. O concurso público deve servir para selecionar os mais aptos, não para punir os quase perfeitos.

A corrida de resistência - normalmente de 2.400 metros - é um dos testes mais suscetíveis a variações externas. Temperatura, umidade, vento, marcação incorreta do tempo, cronômetros manuais ou até a própria contagem da distância podem alterar o resultado final em segundos. O que se mede ali não é apenas preparo, mas também o erro humano e o acaso ambiental. Diante disso, é irrazoável considerar que a diferença de um segundo define a aptidão ou a inaptidão de alguém para o serviço público.

O princípio da finalidade ensina que o ato administrativo deve alcançar o objetivo para o qual foi criado. No caso do teste físico, o objetivo é verificar se o candidato possui condições de desempenho adequadas à função pretendida. A eliminação automática por milésimos de tempo fere essa lógica, pois quem cumpre 99,9% da meta demonstra aptidão funcional. A exclusão, portanto, deixa de ser técnica e passa a ser meramente formal.

Um segundo não define o mérito de ninguém. O Estado não pode transformar a corrida em uma armadilha matemática. Quando o candidato demonstra preparo, disciplina e resistência, a exclusão por um detalhe cronológico deixa de ser avaliação e passa a ser crueldade. O papel da advocacia é fazer o juiz enxergar que a diferença de um segundo não é de tempo - é de justiça.

A Administração Pública, ao avaliar seus futuros servidores, deve agir com zelo, técnica e humanidade. A lei existe para proteger o mérito, não para desprezá-lo. O formalismo, quando desprovido de finalidade pública, se converte em arbitrariedade. É dever da banca examinadora observar que o concurso não é uma competição de elite esportiva, mas um processo de seleção de servidores para o Estado - onde o preparo integral deve prevalecer sobre milésimos de diferença.

A advocacia, nesses casos, cumpre um papel essencial: restaurar a lógica da justiça.

Porque, no fim, o concurso público deve medir capacidade, e não castigar esforço. O candidato que chega até o fim, que supera todas as fases e entrega tudo o que tem, não pode ser derrotado por um segundo. O tempo, quando usado para eliminar, deve dar lugar ao princípio que o transcende - o da justiça humana.

Ricardo Fernandes
Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial Miltiar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo

Ana Paula Gouveia Leite Fernandes
Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.

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