Da regulamentação do Sistema de Registro de Preços e a previsão quanto ao reajuste e revisão dos preços registrados
O SRP - Sistema de Registro de Preços constitui importante ferramenta de contratação para a Administração Pública, de modo que sua utilização é amplamente difundida no âmbito federal, estadual e municipal. No entanto, apesar da relevância do SRP, o legislador ordinário até então não tinha se debruçado com profundidade sobre seu regramento, permitindo que a lacuna fosse colmatada por decretos do Poder Executivo de cada ente federado.
Com o advento da lei 14.133, de 1º de abril de 2021, o Sistema de Registro de Preços recebeu maior atenção do legislador ordinário, que dedicou uma seção inteira às disposições sobre esse instrumento auxiliar de contratação.
Ainda, no âmbito federal, o decreto 11.462, de 31 de março de 2023, que revogou o decreto federal 7.892/13 (então regulamentador do Sistema de Registro de Preços), estabeleceu a possibilidade de alteração, atualização e negociação dos preços registrados nos arts. 25 a 27 e seus parágrafos.
Com base nesse substrato normativo, em alguns editais de licitação para registro de preços constam a previsão da possibilidade de reajuste e revisão dos preços registrados, de acordo com as hipóteses preestabelecidas no decreto acima, podendo gerar para o particular detentor da ARP - Ata de Registro de Preços a expectativa de ao menos requerer o reequilíbrio econômico-financeiro dos preços registrados se entender que houve algum evento autorizador da revisão.
Quanto ao ponto, acerca dessa eventual possibilidade de revisão de preços registrados em ARP, é possível extrair cenários diversos que se aplicariam a depender do regramento posto pela Administração, principalmente se denominado órgão partir apenas das previsões remanescentes da antiga lei 8.666/93 e do decreto federal 7.892/13, as quais não admitiam a revisão de preços registrados em ARP, em consonância com o entendimento à época corroborado pelo parecer 00211/2020/CONJUR-CGU/AGU da Consultoria Jurídica junto a CGU - Controladoria Geral da União, que citava expressamente o agora revogado decreto 7.982/13 para fundamentar a impossibilidade de revisão dos preços registrados em ata.
Assim, a análise da referida questão se faz necessária considerando as previsões próprias trazidas pela lei 14.133/21 e pelo decreto 11.462/23.
O processo licitatório adotado pela Administração tem entre seus objetivos assegurar a seleção da proposta que gere mais vantagem à Administração Pública e garantir tratamento isonômico entre os licitantes (art. 11 da lei 14.133/21). É decorrência lógica que os instrumentos da avença firmados ao término da licitação, sendo o contrato a forma mais recorrente, observem as condições fixadas durante o certame, especialmente sobre os valores, por força do princípio da vinculação ao instrumento convocatório e do princípio pacta sunt servanda.
Sem embargo, em razão do mesmo princípio, a Constituição da República Federativa do Brasil instituiu a manutenção das condições efetivas da proposta conjuntamente à norma que definiu a licitação como regra nas contratações públicas, nos termos do art. 37, inciso XXI da CRFB. Cabe destacar que o texto constitucional é uma garantia tanto para o particular quanto para a Administração.
A supracitada norma de eficácia limitada atualmente é regulamentada pela já citada lei 14.133/21, que deu o endereçamento ao tema em seu capítulo VII do Título III, ao prever, em seu art. 124, II, alínea “d”, a possibilidade de “restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato.”
A possibilidade de alteração das condições contratuais, fenômeno que Maria Sylvia Zanella di Pietro denomina de mutabilidade, decorre da própria natureza dos contratos administrativos, que devem manter hígida a equação econômico-financeira inicialmente firmada. A autora, porém, adota a teoria das áleas para elencar fatores que podem alterar o equilíbrio do contrato administrativo, dentre a (i) ordinária ou empresarial, (ii) administrativa e (iii) econômica (DI PIETRO, 2025, p. 286).
Quanto ao ponto, em breve adendo, além do caráter imprevisível e/ou de consequências incalculáveis de eventos que têm o condão de afetar o adequado cumprimento das obrigações pelo contratado, é preciso apontar à teoria geral dos contratos de direito privado.
Em adição, Sílvio de Salvo Venosa enumera os requisitos para aplicação da teoria da imprevisão que devem se somar à imprevisibilidade dos eventos causadores do desequilíbrio e que, de maneira objetiva, pode-se sintetizar pela: (i) ocorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis mas de consequências incalculáveis; (ii) onerosidade excessiva de uma das partes ou de ambas; (iii) o instrumento deve ser a prazo, ou seja, não instantâneo e; (iv) a parte que almeja o reequilíbrio não deve estar em mora nem ser a causadora do evento que gerou o desequilíbrio financeiro. (VENOSA, 2025, p. 99)
É indene de dúvidas que a natureza jurídica da ARP e de contratos administrativos não se confunde, conforme se extrai da própria definição dos instrumentos. O art. 6º, XLVI, da lei 14.133/21 define ARP como “documento vinculativo e obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, no qual são registrados o objeto, os preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no edital da licitação, no aviso ou instrumento de contratação direta e nas propostas apresentadas”.
Por sua vez, embora o contrato administrativo não tenha sido objeto de conceituação pelo legislador ordinário, vale-se da contribuição doutrinária para tanto com a concepção de José dos Santos Carvalho Filho, que define o instrumento como o “ajuste firmado entre a Administração Pública e um particular, ou entre dois entes públicos, regulado basicamente pelo direito público e supletivamente pelo direito privado, e tendo por objeto atividade que, de alguma forma, traduza interesse público.” (FILHO, 2025, p. 149)
Não é necessário maior digressão para concluir que uma das principais diferenças ontológicas entre ARP e o contrato administrativo diz respeito ao efeito vinculativo das avenças, que na ARP inexiste para a Administração Pública, nos termos da parte final do art. 83 da lei 14.133/21 - efeito este que não existe apenas para a Administração, visto que o particular se encontra obrigado a fornecer o objeto nas condições estabelecidas na vigência da ARP.
É dizer, ao se recorrer mais uma vez ao direito civil, é forçoso reconhecer que tais características aproximam a ARP do instituto do contrato preliminar, embora não se confundam. Mais especificamente, no conceito de Sílvio de Salvo Venosa, a ata de registro de preços constitui negócio jurídico análogo ao da opção (VENOSA, 2025, p.61).
Dessa maneira, independentemente de a ARP ter natureza jurídica distinta de um contrato administrativo comum, pode se considerar que constitui negócio jurídico apto a sofrer os efeitos da revisão de preços, se os demais requisitos expostos acima estiverem presentes.
Das alterações na legislação e o entendimento da Advocacia-Geral da União
Sob a égide da lei 8.666/93, o SRP foi previsto no art. 15 da referida lei, o que, naturalmente, sequer se aproximava do patamar mínimo normativo que a complexidade do Sistema exigia. No âmbito federal, a regulamentação ficou por conta do decreto 7.892/13, que foi replicado, ainda que com mínimas adequações, pelos demais entes federados que regulamentaram a matéria.
Ainda assim, nem mesmo o decreto 7.892/13 esgotou o tema, silenciando sobre pontos relevantes, considerando que deixou de tratar expressamente sobre a eventual possibilidade de realização de reequilíbrio econômico-financeiro dos preços fixados em Ata de Registro de Preço.
Havia, contudo, a previsão do art. 19 acerca de possíveis providências que o órgão gerenciador poderia adotar caso o preço de mercado se tornasse superior ao registrado em ata. A obscuridade do legislador ordinário e do decreto regulamentador provocaram divergências interpretativas na doutrina e na jurisprudência, com posições conflitantes acerca da possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro em ARP, principalmente entre Tribunais de Contas do país.
Nada obstante, com o advento da lei 14.133/23, houve sinalização positiva do legislador para a possibilidade de revisão de preços registrados, nos termos da previsão constante em seu art. 82, inciso VI. Nessa linha, o decreto federal 11.462/23, arrematou a questão na esfera federal ao estabelecer a possibilidade de alteração, atualização e negociação dos preços registrados.
Quanto a sistemática, com base na legislação atualmente vigente e a jurisprudência dos Tribunais de Contas sobre a temática, a Advocacia-Geral da União baixou a orientação normativa 100, de 13 de agosto de 2025, com o intuito de pacificar o tema nos órgãos submetidos à vinculatividade do entendimento no sentido de ser possível o reequilíbrio econômico-financeiro de ata de registro de preço, senão vejamos:
Enunciado:
I - No regime jurídico da lei 8.666/1993 e da lei 10.520/02, o reajuste em sentido estrito, a repactuação e a revisão por álea extraordinária são fenômenos próprios dos contratos administrativos, não sendo aplicáveis às atas de registro de preços.
II - No regime jurídico da lei 14.133/21, o reajuste em sentido estrito, a repactuação e a revisão por álea extraordinária são aplicáveis às atas de registro de preços, conforme o inciso VI do art. 82 da lei 14.133/21 e o art. 25 do decreto 11.462/23.
III - Os preços registrados poderão ser alterados, no que se refere ao reajuste em sentido estrito e à repactuação, desde que haja previsão expressa no edital.
IV - O instituto da preclusão não se aplica ao reajuste em sentido estrito, desde que previsto no edital, uma vez que a medida consiste na aplicação automática (de ofício) de índice de correção por parte da Administração Pública.
V - O instituto da preclusão aplica-se à repactuação na ata de registro de preços quando o fornecedor não solicitar a atualização dos valores antes da data de prorrogação da ata de registro de preços.
VI - A revisão por álea extraordinária da ata de registro de preços não necessita estar prevista em edital e pode ser aplicada a qualquer momento, sempre que necessária ao reequilíbrio econômico-financeiro, nos termos dos incisos I e II do art. 25 do decreto 11.462/23.
VII - Prevista a possibilidade de prorrogação no edital e na ata de registro de preços, mas não havendo cláusula de reajustamento ou repactuação sobre os preços registrados, a prorrogação poderá ser realizada sem a atualização dos valores. Nesses casos, deve-se colher formalmente a anuência do fornecedor quanto à manutenção dos preços, a fim de evitar discussões futuras.
Além da substancial evolução legislativa, a doutrina especializada vem se consolidando para admitir a alteração de preços registrados por meio do instituto da revisão. Veja-se a interpretação de Rafael Carvalho Rezende Oliveira sobre o tema (OLIVEIRA, 2025, p.56):
De nossa parte, sustentamos a possibilidade de alteração dos valores registrados na ata, com o intuito de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro, por meio do reajuste, revisão e repactuação, uma vez que o princípio da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, previsto no art. 37, XXI, da CRFB exige que as condições efetivas das propostas sejam mantidas, o que deveria ser observado, inclusive, em certames que acarretam a elaboração de ata de registro de preços. A viabilidade da alteração dos preços registrados para fins de reequilíbrio seria confirmada pela previsão constante do art. 82, VI, da lei 14.133/21. Assim, por exemplo, decorridos 12 meses entre o orçamento estimado e a elaboração da ata ou a efetiva contratação com fundamento na ata, poderia ser cogitado o reajuste dos valores dos itens registrados. Evidentemente, a Administração Pública, que não possui a obrigação de celebrar contratos com as empresas com preços registrados na ata, na forma do art. 83 da lei 14.133/21, poderia optar pela extinção antecipada da ata ao invés da sua manutenção com valores reequilibrados.
Na mesma linha, o enunciado 33 da jornada 2024 do IBDA - Instituto Brasileiro de Direito Administrativo estabeleceu que “Em conformidade com o art. 82 da lei 14.133/21, a alteração ou a atualização de preços da ata de registro de preços pode ser regulamentada com a utilização de instrumentos próprios de atualização, além do reajuste, da repactuação e da revisão.”
Assim, nos termos do que se restou contemplado pela supracitada orientação normativa da AGU, é possível a aplicação do instituto do reequilíbrio econômico-financeiro às atas de registro de preço oriundas de licitações sob a égide da lei 14.133/21, desde que haja previsão no regulamento do ente público e no Edital da respectiva licitação e desde que atendidos, ainda, os requisitos para aplicação do reequilíbrio econômico-financeiro.
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Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Brasília.
BRASIL. Lei nº 14.133, de 01 de abril de 2021. Brasília.
BRASIL. Decreto Federal nº 11.462, de 31 de março de 2023. Brasília.
BRASIL. Decreto Federal nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013. Brasília.
FILHO, José dos Santos C. Manual de Direito Administrativo - 39ª Edição 2025. 39. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2025. E-book.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e Contratos Administrativos - Teoria e Prática - 14ª Edição 2025. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book.
Orientação Normativa nº 100/2025, oriunda do PARECER n. 00022/2025/DECOR/CGU/AGU. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/orientacao-normativa-n-100-de-13-de-agosto-de-2025-648313085.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella D. Direito Administrativo - 38ª Edição 2025. 38. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book.
Parecer nº 00211/2020/CONJUR-CGU/AGU, disponível em:
https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/46299/8/Parecer_00211_2020_CONJUR_CGU_CGU_AGU.pdf
VENOSA, Sílvio de S. Direito Civil - Contratos - Vol.3 - 25ª Edição 2025. 25. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2025. E-book.