O debate sobre a possibilidade de penhora de parte do salário do devedor, especialmente no âmbito dos juizados especiais cíveis, é dos mais relevantes para a prática forense contemporânea. Nele, dois princípios constitucionais entram em tensão permanente: de um lado, a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial; de outro, a efetividade da tutela executiva e o direito do credor à satisfação do crédito.
Tradicionalmente, prevaleceu a leitura de que verbas salariais seriam absolutamente impenhoráveis. Entretanto, com o CPC/15, a regra passou a ser compreendida como relativa, e não mais absoluta. O art. 833, IV, ao retirar o qualificativo “absolutamente impenhoráveis”, abriu espaço para construção jurisprudencial autorizando a flexibilização, desde que a constrição não comprometa a subsistência do devedor e de sua família. Esse entendimento foi posteriormente consolidado pela Corte Especial do STJ, no EREsp 1.874.222/DF, que reconheceu a possibilidade de penhora salarial em caráter excepcional, mediante análise concreta da capacidade financeira do executado.
Entretanto, quando se trata da aplicação dessa mitigação no rito dos juizados especiais, surge uma questão adicional e decisiva: qual é o recurso cabível contra a decisão que determina a penhora?
A resposta é menos intuitiva do que parece. Em recente julgamento da 1ª turma recursal permanente da Capital/PB, no processo 0864960-80.2022.8.15.2001, decidiu-se que a determinação de penhora de parte do salário do executado constitui decisão interlocutória, e não sentença. Sendo assim, não cabe Recurso Inominado, pois este só é admitido contra decisão que extinga a fase cognitiva ou a execução.
Em termos práticos:
- No processo comum, essa decisão seria atacada por agravo de instrumento.
- Mas nos juizados especiais, não existe agravo de instrumento.
- E, portanto, a decisão é irrecorrível de imediato.
Essa constatação impacta diretamente a atuação do advogado. A resposta processual adequada não é recorrer, mas atuar dentro do próprio processo, mediante:
- Pedido de reconsideração fundamentado, especialmente com comprovação documental detalhada das despesas essenciais;
- Demonstração concreta do mínimo existencial, e não mera alegação genérica;
- Proposta racional de cumprimento parcelado do débito, conciliando efetividade e menor onerosidade;
- Prospecção de impugnação futura, caso a decisão venha a ser reiterada em sentença.
De outro lado, é preciso reconhecer que a execução também não pode ser esvaziada. O sistema não pode favorecer o inadimplemento estratégico, tampouco permitir que o devedor, a partir da invocação automática da impenhorabilidade, inviabilize o cumprimento. A relativização, quando criteriosa e proporcional, não agride a dignidade - a preserva, evitando que o processo se torne simbólico.
O ponto de equilíbrio é claro:
- Penhora salarial é possível, mas não automática.
- Recurso imediato não é permitido, mas o controle judicial permanece, pela via adequada e no tempo processual correto.
A jurisprudência paraibana contribui, assim, para a estabilização do tema. Ao reconhecer a natureza interlocutória da decisão de penhora, reafirma-se a lógica dos juizados: celeridade, simplicidade e racionalidade recursal. Ao mesmo tempo, ao admitir a mitigação da impenhorabilidade após análise concreta da situação financeira, harmonizam-se efetividade e proteção da dignidade.
No final, esse é o ponto central: nenhum desses princípios deve ser sacrificado. A execução deve ser eficaz, mas não desumana. A dignidade deve ser resguardada, mas não instrumentalizada como escudo para frustração do direito alheio.
A solução, portanto, não está na intensificação do rigor, nem na ampliação da proteção absoluta, mas na ponderação caso a caso, guiada por prova, proporcionalidade e boa-fé.