Os últimos casos de violência contra mulheres e meninas publicados recentemente na mídia não se tratam de tragédias isoladas, mas fazem parte da estrutura de uma sociedade calcada na desigualdade entre gêneros.
No dia a dia se apresenta como uma crise pública que atravessa lares, ruas e instituições.
Nos últimos meses, a cidade de São Paulo tem sido palco de casos que expõem, com crueza, as formas variadas e persistentes dessa violência: tentativa de feminicídio com requintes de crueldade, duplo feminicídio premeditado e crimes contra meninas que deveriam estar protegidas, por força de dispositivos constitucionais e legais.
Este artigo analisa esses episódios recentes, relacionando-os às ferramentas legais existentes - em especial a lei Maria da Penha (lei 11.340/06) - e tem por objetivo apontar caminhos para que a utopia do “fim da violência” deixe de ser retórica e vire política pública ativa.
Três casos recentes, ocorridos em São Paulo, não podemos ignorar:
1) A mulher é atropelada e arrastada pela Marginal Tietê:
Em 29 de novembro de 2025, Taynara Souza Santos, 31 anos, foi atropelada e arrastada por cerca de 1 km após um ataque ocorrido na saída de um bar na zona norte da capital. O agressor - apontado como ex-companheiro - foi preso; a vítima passou por cirurgias e teve as duas pernas amputadas abaixo da linha do joelho. A Polícia Civil trata o episódio como tentativa de feminicídio com requintes de crueldade, motivada, segundo investigações iniciais, por ciúmes e sentimento de possessão sobre a vítima. Este caso ilustra a letalidade da violência de gênero em espaços públicos e a forma como disputas íntimas se transformam em ataques brutais.
2) Duplo feminicídio na Zona Leste (Cidade Tiradentes):
Em setembro houve o assassinato a facadas de Bruna Freitas Santos (29) e de sua mãe, em Cidade Tiradentes - o autor permaneceu foragido até sua prisão no final de novembro.
As investigações apontam premeditação e armadilha para atrair a vítima, atitude que revela planejamento e evidencia a desumanização de mulheres que interrompem relações abusivas e tentam reconstituir suas vidas a partir do exercício de garantias constitucionalmente protegidas, como a liberdade e a dignidade.
A responsabilização dos autores, que se afigura como única medida possível após a tragédia, embora necessária, não apaga o dano social e familiar dessas perdas.
3) Violência contra meninas: o caso de Guarulhos:
Também em novembro de 2025 foi descoberta a morte e ocultação do corpo de Emanuelly, menina de 3 (ou 4 - versões jornalísticas variam em manchetes) anos, encontrada enterrada/concretada na lavanderia da casa em Guarulhos. O pai e a madrasta foram presos por suspeita de homicídio (não seria feminicídio?), ocultação e, segundo relatos, práticas bárbaras no trato com a vítima. Esse episódio lembra que o termo “mulheres e meninas” inclui vítimas muito jovens e que a proteção infantil é parte indissociável das políticas de combate à violência de gênero.
Os episódios recentes são amostras - embora extremamente chocantes - de um problema estrutural. Levar à justiça os agressores é imprescindível; ao mesmo tempo, prevenir é tão urgente quanto punir.
A lei Maria da Penha: avanços e limites
A lei Maria da Penha (lei 11.340/06) é o principal marco normativo brasileiro para prevenção e repressão à violência doméstica e familiar contra a mulher. Entre seus avanços estão a definição ampliada das formas de violência (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), criação de mecanismos para medidas protetivas de urgência, atuação integrada entre órgãos do poder público e previsão de atendimento multidisciplinar às vítimas.
A legislação também inovou em relação a procedimentos judiciais para dar maior proteção às vítimas e celeridade nas decisões que afetam sua segurança.
No entanto, a lei sozinha não resolve. Entre os desafios práticos estão:
- A subnotificação decorrente do temor, da dependência econômica, da vergonha e do fato de que muitas vítimas sequer têm compreensão de que são vítimas de violência, em decorrência da sua naturalização;
- As falhas de implementação das medidas de prevenção e repressão, quanto à fiscalização, treinamento de redes de proteção, insuficiência de delegacias especializadas, abrigos e assistência psicológica;
- As discriminações pelas quais as vítimas são submetidas, em processos de revitimização, responsabilização da vítima e minimização de sinais prévios de risco;
- As violências fora do âmbito doméstico (casos em bares, ruas, transportes públicos), que demandam respostas imediatas, mas estão apartadas das medidas de proteção da Lei Maria da Penha uma vez que não ocorrem no âmbito das relações domésticas e afetivas.
Os limites apresentados nas falhas de proteção a mulheres e meninas deixam claro que, embora imperiosa, a Lei Maria da Penha, ainda é insuficiente, necessitando de efetivas políticas públicas e institucionais amplas, amparadas por um compromisso real de instituições e sociedade.
Algumas medidas concretas para o avanço institucional rumo ao fim da violência podem ser assim expostas:
- Fortalecimento da prevenção primária: com o estabelecimento e fortalecimento da educação sexual e de gênero nas escolas; a publicação de campanhas que desconstruam masculinidades tóxicas e consensos normatizados sobre a objetificação e desumanização das mulheres.
- Ampliação e integração da rede de atendimento: com a criação de mecanismo único de atendimento a vítimas de violência de gênero, integrando delegacias de defesa da mulher, serviços de saúde, centros de referência, casas-abrigo, apoio psicológico e assistência socioeconômica para que a mulher possa deixar situações de risco.
- Capacitação de profissionais: com a formação contínua de policiais, promotores, juízes, equipes de saúde e educação para identificação de sinais de risco, com escuta e atuação sensível à vítima.
- Uso da tecnologia para prevenção de violência urbana: com o monitoramento de pessoas, ampliação da iluminação pública, transporte seguro e rotas protegidas em áreas com histórico de violência.
- Punição efetiva e célere: investigação ágil e cooperação entre unidades policiais, com políticas que evitem a revitimização nos procedimentos judiciais.
- Proteção econômica: com a criação e ampliação de programas que reduzam dependência financeira da vítima em relação ao agressor (inserção no mercado, auxílios emergenciais, acesso a moradia).
- Apoio a crianças e adolescentes: criação de sistemas de proteção específicos para meninas, incluindo protocolos de afastamento quando o agressor é membro da família.
O fim da violência contra mulheres e meninas exige trabalho de base, com vontade políticas, dotação de recursos e transformação cultural. Os casos recentes em São Paulo - o ataque brutal na Marginal Tietê, o duplo feminicídio na Zona Leste, e a morte e ocultação da menina em Guarulhos - são lembretes dolorosos de que a violência assume formas diversas e às vezes extremas. A lei Maria da Penha é uma ferramenta valiosa, mas só surtirá efeito pleno quando combinada com prevenção, rede de atendimento robusta, políticas públicas integradas e, sobretudo, com a transformação das relações de poder entre os gêneros.
O chamado é claro: não basta revoltar-se diante das manchetes, é preciso se enxergar como parte do problema, cobrando o cumprimento efetivo de leis, ampliando as redes de proteção, investindo em prevenção e, em todas as esferas - familiar, escolar, profissional e estatal - atuando diariamente para que nenhuma mãe, irmã, filha ou amiga seja tratada como propriedade de alguém ou destino de violência.