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A polícia militar pode aceitar o desligamento de um aluno em crise psiquiátrica?

Aluno em sofrimento mental não pode ser desligado do curso sem acompanhamento e cuidado médico adequado.

9/12/2025
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Ingressar em um concurso público é, para muitos brasileiros, uma verdadeira travessia existencial. O candidato luta contra limitações financeiras, cansaço, incertezas e, ainda assim, persevera acreditando que o mérito e o esforço intelectual o conduzirão à aprovação. Quando finalmente conquista a tão sonhada vaga no curso de formação da Polícia Militar, ele não leva consigo apenas um documento de matrícula: leva a esperança de transformar sua vida e servir à coletividade com honra.

É justamente por isso que a eliminação de um aluno do curso de formação - especialmente quando motivada por sofrimento mental - não pode ser tratada como algo simples ou administrativo. Surge então a pergunta que tem gerado debates crescentes nos concursos públicos: a Polícia Militar pode aceitar o pedido de desligamento de um candidato que, durante o curso de formação, estava em crise psiquiátrica?

A resposta constitucional, administrativa e humana é clara: não, não pode. Não nessas condições. Não sem garantir antes saúde, cuidado e recuperação.

A Constituição Federal determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196). Isso significa que, ao ingressar no curso de formação, o aluno passa a estar sob a tutela direta da Administração Pública, que tem obrigação de garantir atendimento médico integral - inclusive psicológico e psiquiátrico. A própria natureza militar exige acompanhamento contínuo, dada a intensidade emocional das atividades.

Em momentos de crise psíquica, a vontade do indivíduo fica comprometida. A doutrina e a jurisprudência reconhecem que atos praticados sob forte sofrimento mental são marcados por vício de consentimento, o que torna o pedido de desligamento juridicamente inválido. Assim como não se pode exigir lucidez de quem está em profundo sofrimento emocional, tampouco se pode aceitar como legítima uma renúncia feita em estado de vulnerabilidade.

A Administração Pública, ao receber o pedido de desligamento de um aluno que apresenta sinais de transtorno mental, não pode simplesmente homologá-lo. Antes disso, tem o dever jurídico e ético de:

  • afastá-lo temporariamente das atividades;
  • encaminhá-lo para atendimento psiquiátrico;
  • garantir acompanhamento psicológico;
  • realizar avaliação médica especializada;
  • aguardar a estabilização do quadro;
  • oferecer ambiente de segurança emocional;
  • permitir a reavaliação consciente da decisão.

Sem essas medidas, o ato administrativo de eliminação é nulo, por violar os princípios da dignidade humana, da proteção à saúde, da prevenção, da razoabilidade e da própria finalidade pública do concurso. A lógica constitucional é inequívoca: não se elimina quem precisa de cuidado; cuida-se primeiro, decide-se depois.

A jurisprudência de vários tribunais tem determinado a reintegração de candidatos que, em estado de sofrimento mental, pediram desligamento e tiveram o pedido aceito automaticamente. Em todos esses casos, a Justiça reconheceu que o ambiente de treinamento militar é altamente estressor e que o Estado tem responsabilidade objetiva sobre o adoecimento do aluno. Quando a vulnerabilidade psíquica é temporária - como ocorre na imensa maioria das situações - a exclusão é inconstitucional e viola o direito fundamental ao futuro profissional.

O sonho de servir à sociedade como policial militar não pode ser destruído por um momento de sofrimento emocional. A Constituição não autoriza a exclusão automática, e o Direito não legitima decisões tomadas em estado de crise. O papel do Estado é proteger, tratar e amparar - jamais punir ou descartar.

Se você ou alguém que conhece passou por situação semelhante, saiba: existe solução jurídica, e as chances de reintegração são reais e significativas.

Autores

Ricardo Fernandes Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial MilItar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo

Ana Paula Gouveia Leite Fernandes Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.

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