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Operações de reorganização societária e M&A no Brasil

Visão clara das estratégias, fundamentos e caminhos práticos para estruturar reorganizações societárias e M&A no Brasil, com foco em valor, governança e eficiência.

22/12/2025
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Para quem é este artigo: empresários, executivos, sócios-investidores e gestores de private equity e venture capital que desejam entender - com profundidade e objetividade - como planejar, estruturar, negociar e concluir operações de reorganização societária, fusões e aquisições (M&A) com segurança jurídica, eficiência contábil e foco em criação de valor.

1) Introdução: por que reorganizar?

O universo das reorganizações societárias é vasto e multidisciplinar: envolve banqueiros, investidores, consultores financeiros, advogados, contadores, administradores e reguladores. É um mercado permeado por siglas e jargões do inglês (M&Aprivate equityventure capitaltakeover/hostile takeoverleveraged buyoutmanagement buyoutdrag alongtag along, entre outros) e, não raro, gera dúvidas conceituais.

De forma direta e prática, reorganização societária é o realinhamento da propriedade, operações, ativos ou estrutura de capital de uma companhia para elevar desempenho operacional, otimizar a estrutura financeira e fortalecer a percepção do mercado. O conceito, inicialmente associado a ajustes no balanço, evoluiu para abarcar alternativas que vão da melhoria interna de performance à venda, fusão ou aquisição de empresas, passando por alienação de ativos, dividendos extraordinários e recompra de ações diante de ofertas de aquisição. Em última análise, o propósito é aumentar o valor para o acionista.

Esse movimento tem base econômica simples: ativos produtivos mudam de valor para diferentes partes conforme condições competitivas, capacidade de gestão e sinergias. Quando os ativos migram para quem melhor os utiliza, a alocação de recursos torna-se mais eficiente e o valor agregado tende a crescer.

2) Companhias abertas x companhias de capital fechado: impactos jurídicos e de governança

No Brasil, a lei 6.404/1976 (lei das S.A.) distingue sociedades anônimas de capital aberto (cujos valores mobiliários são admitidos à negociação) daquelas de capital fechado. As abertas são minuciosamente supervisionadas pela CVM - Comissão de Valores Mobiliários, com foco em proteção ao investidor e integridade de mercado: exigência de informações adequadas, vigilância contra a criação de condições artificiais de negociação e repressão a práticas como o insider trading.

Já as empresas fechadas não acessam a poupança pública e se capitalizam em operações privadas. A distinção impacta diretamente a forma de reorganizar: exigências de divulgação, padrões contábeis, governança, prazos e custos variam conforme o regime societário.

3) Venture Capital x Private Equity: perfis de investimento e implicações societárias

VC - Venture Capital  e PE - Private Equity são formas distintas de participação em sociedades privadas:

  • Venture Capital: foca empresas recém-formadas com alto potencial de crescimento (time fundador diferenciado, propriedade intelectual relevante, mercado nascente). O investimento é tipicamente temporário, com plano de saída desde o início (IPO ou venda estratégica), e frequentemente envolve apoio intenso à governança e à profissionalização do negócio.
  • Private Equity: investe em empresas já operacionais que necessitam de capital e disciplina de gestão para atingir novo patamar de porte e eficiência. Em regra, assume posições minoritárias (ou de controle, conforme o caso), também com horizonte de saída predefinido.

Além disso, investidores institucionais (fundos de investimento, fundos de pensão, seguradoras, instituições financeiras) - por administrarem recursos de terceiros - condicionam seus aportes a processos robustos de governança corporativa e compliance, influenciando cláusulas contratuais e o desenho das reorganizações.

4) Objetivos típicos das reorganizações societárias

Desde a década de 1970, reorganizações intensificaram-se como instrumentos de eficiência e criação de valor. Motivações recorrentes incluem:

  1. Foco no core business: vender linhas não essenciais e reforçar o negócio principal, onde a empresa possui vantagem competitiva.
  2. Terceirização industrial: marcas fortes podem optar por manter gestão de marca e distribuição e terceirizar a manufatura, reduzindo custos e riscos operacionais.
  3. Alienação de divisões deficitárias: retirar “peso morto” do portfólio, liberar caixa e concentrar investimentos nas unidades rentáveis.
  4. Preparação para M&A/IPO: saneamento prévio de passivos tributários, trabalhistas, societários, contábeis e cíveis para maximizar valuation e acelerar o closing.
  5. Otimização de capital: simplificar estruturas, reduzir endividamento, alongar passivos, reorganizar garantias e melhorar indicadores financeiros.

5) Foco no core business: como capturar valor

Com o tempo, muitas companhias acumulam negócios paralelos que distraem gestão e capital. Negociar a venda do “Negócio A” para um player mais eficiente - e reinvestir os recursos no “Negócio B”, onde há domínio operacional - tende a:

  • Elevar margens e produtividade;
  • Ampliar escala e reduzir concorrência via aquisições estratégicas;
  • Capturar sinergias (complementaridade de ativos, distribuição, tecnologia e pessoas).

Para quem compra o “Negócio A”, o racional é simétrico: se possui capacidade superior de gestão e ativos complementares, também destrava valor.

6) Terceirização de atividades industriais: oportunidades e cautelas

É comum que empresas marcárias reconheçam: apesar da força de marca e de design superior, sua fábrica tornou-se cara (pacotes trabalhistas generosos, normas de segurança rígidas, custos fixos elevados). Nesses casos, a estratégia de terceirizar a manufatura e reter gestão de marca e distribuição pode:

  • Reduzir CAPEX e OPEX;
  • Aumentar flexibilidade de produção;
  • Mitigar riscos trabalhistas e regulatórios.

Cautelas jurídicas: contratos de fabricação devem endereçar qualidade, propriedade intelectual, confidencialidade, responsabilidade por recall, service levels e continuidade; muitas vezes, a operação exige acordos de serviços de transição (TSAs) para evitar disrupções.

Aqui vale uma breve definição de CAPEX e OPEX:

  • CAPEX - Capital Expenditure: Gastos de investimento em ativos que geram benefícios ao longo de vários períodos: compra de máquinas, construção/ampliação de plantas, desenvolvimento de software capitalizável, aquisições de equipamentos, melhorias que aumentam a capacidade ou a vida útil. Vai para o Ativo (Imobilizado/Intangível) e é depreciado/amortizado ao longo do tempo.
  • OPEX - Operating Expenditure: Gastos operacionais recorrentes para manter o negócio funcionando: salários, aluguéis, manutenção rotineira, energia, serviços terceirizados, marketing, assinaturas SaaS, fretes, etc. Vai para a DRE como despesa do período (impacta diretamente o resultado daquele ano).

7) Divisões com baixa rentabilidade: carve-outs e vendas parciais

Quando uma divisão contamina os resultados do grupo, aliená-la para terceiros que acreditem operar melhor pode limpar o portfólio e financiar expansão das unidades saudáveis. Operações de carve-out (separação contábil, operacional e jurídica do perímetro a ser vendido) pedem:

  • Segregação de ativos e passivos específicos;
  • Acordos de compartilhamento de serviços temporários;
  • Reorganização societária intragrupo para acomodar o perímetro e viabilizar a transação.

8) Reorganizações preparatórias para M&A/IPO: saneamento e readiness

Empresas em crescimento tendem a acumular “esqueletos no armário” (pendências tributárias, contábeis, societárias, trabalhistas e cíveis). Antes da abertura de capital ou venda parcial/total, é recomendável:

  • Vendor due diligence (auditoria vendedora) para mapear riscos;
  • Ajustes societários: contratos/estatutos, atas e registros;
  • Compliance e LGPD: políticas, mapeamento de dados, bases legais, contratos;
  • Contabilidade: demonstrações auditadas, quality of earnings, capital de giro alvo;
  • Tributário: revisão de estruturas, créditos e contingências;
  • Trabalhista: revisão de passivos, rotinas e benefícios.

Esse preparo reduz descontos de risco, evita renegociação de preço e acelera closing.

9) Combinação de negócios (CPC 15 / IFRS): conceito, mensuração e reflexos

Com a lei 11.638/07 e a lei 11.941/08, o Brasil incorporou o IFRS. O pronunciamento técnico CPC 15 introduz o conceito de combinação de negócios: operação ou evento em que um adquirente obtém controle de um ou mais negócios, independentemente da forma jurídica. A definição inclui fusões entre partes independentes (true mergers ou merger of equals).

Aquisição de negócio x aquisição de ativo: há combinação de negócios quando se adquire atividade organizada (cliente, pessoas, processos, sistemas, contratos, estabelecimento). Se a operação envolve apenas um ativo (e.g., compra de 10.000 veículos usados), é aquisição de ativo, não de negócio.

Quem é o adquirente? Mesmo em fusões, o CPC 15 demanda identificar o adquirente, pois isso determina a contabilização (alocação do preço, reconhecimento de goodwill, mensuração de ativos/passivos).

Valor justo e PPA: na combinação de negócios, o adquirente deve identificar e mensurar a valor justo todos os ativos tangíveis e intangíveis e passivos da adquirida (inclusive intangíveis como marca, relacionamento com clientes, software; e passivos contingentes). Em seguida, realiza-se a PPA - Purchase Price Allocation:

  • Goodwill (ágio por rentabilidade futura): diferença positiva entre a contraprestação (incluindo participações de não controladores e eventual participação prévia do adquirente) e o valor justo dos ativos líquidos da adquirida.
  • Compra vantajosa (bargain purchase): diferença negativa, reconhecida como ganho.

Reflexos tributários: o tratamento fiscal do ágio - com raízes no decreto-lei 1.598/77 e evoluções posteriores - é sensível e demanda estruturas robustas, documentação idônea e análise caso a caso. A coordenação contábil-tributária é crucial para evitar glosas e litígios.

10) Estruturas de operação: share deal x asset deal e cláusulas essenciais

Share deal (compra de ações/quotas):

  • Transferência de participação societária e, com ela, ativos, passivos e contratos da companhia;
  • Exige due diligence ampla e cláusulas de indenização sólidas;
  • Mais simples do ponto de vista de continuidade operacional.

Asset deal (compra de ativos):

  • Permite selecionar ativos e passivos desejados;
  • Pode demandar cessões/novação de contratos, licenças e transfers;
  • Adequado para carve-outs ou compras de linhas específicas.

Cláusulas críticas de negociação e closing:

  • Condições precedentes e aprovações regulatórias/corporativas;
  • Declarações e garantias (R&Ws) e indenizações (escopo, limites, prazos, franquias, caps);
  • Escrowholdbacks e sandbagging;
  • Earn-outs e ajustes de preço (capital de giro, dívida líquida);
  • Cláusulas de MAC - Material Adverse Change;
  • Non-compete e non-solicit;
  • Tag along (proteção de minoritários) e drag along (viabiliza venda conjunta), inclusive em acordos de sócios/acionistas;
  • Change of control em contratos críticos (cliente/fornecedor/financiamento).

11) Governança e compliance: requisitos de investidores e melhores práticas

Investidores institucionais e compradores estratégicos buscam:

  • Transparência e disclosure alinhado a melhores práticas (e exigências da CVM, se aplicável);
  • Políticas de integridade (anticorrupção, concorrência, LGPD, ESG), canais de denúncia e auditoria interna;
  • Conselhos atuantes, com independentes, e comitês (Auditoria, Riscos, Pessoas);
  • Planejamento de saída e métricas de criação de valor (ROIC, margem, conversão de caixa).

12) Due diligence e readiness: roteiro prático

  1. Societário: contratos/estatutos, atas, livros societários, opções e stock awards.
  2. Contratual: mapa de contratos chave, cláusulas de change of control, cessões/novação, garantias.
  3. Tributário: conformidade, créditos, contencioso, riscos de planejamentos passados.
  4. Trabalhista e previdenciário: passivos, rotina, benefícios e eventuais acordos coletivos.
  5. Regulatório e licenças: autorizações, inspeções e compliance setorial.
  6. Propriedade intelectual e dados: marcas, patentes, software, cessões; LGPD (bases legais, privacy by design).
  7. Ambiental (se aplicável): licenças, passivos, remediações.
  8. Financeiro/contábil: demonstrações auditadas, quality of earnings, capital de giro alvo, endividamento e covenants.
  9. Tecnologia e segurança: inventário de sistemas, contratos de TI, continuidade e cibersegurança.
  10. Operação: cadeia de suprimentos, logística, indicadores e SLAs.

Dica prática: uma Vendor Due Diligence bem-feita antecipa pontos sensíveis, reduz descontos e evita surpresas na fase de negociação.

13) Integração pós-closing (PMI): onde o valor se materializa

O valor não nasce no closing; ele se consolida na Integração Pós-Fusão/Aquisição:

  • Plano de 100/180 dias com metas claras de sinergias (receita, custo e capital);
  • Integração de processos, sistemas, governança e cultura;
  • Retenção de talentos críticos e incentivos alinhados ao novo desenho;
  • Monitoramento de indicadores e comunicação transparente com clientes e fornecedores.

14) Perguntas frequentes (FAQ)

1) Toda compra de estabelecimento é combinação de negócios?

Não necessariamente. Se o conjunto adquirido constitui um negócio (atividade organizada com insumos, processos e capacidade de geração de outputs), tende a ser combinação; se são ativos isolados, trata-se de aquisição de ativo.

2) Quem é o “adquirente” em uma fusão de iguais?

Mesmo em fusões entre partes independentes, o CPC 15 requer atribuir o papel de adquirente a um dos participantes, o que impacta a contabilização (alocação do preço, goodwill etc.).

3) Ágio (goodwill) sempre é amortizado fiscalmente?

O reconhecimento contábil do goodwill não garante automaticamente benefícios fiscais. O tratamento tributário depende de regras específicas, documentação e estruturação adequada; recomenda-se análise caso a caso.

4) Share deal ou asset deal: qual é melhor?

Depende de objetivos, riscos e setor. Share deal preserva continuidade e contratos; asset deal permite selecionar o que se compra. A escolha deve considerar tributação, licenças, passivos e operacionalização.

5) Como proteger minoritários e viabilizar saídas?

Cláusulas de tag along protegem o minoritário em eventos de liquidez; drag along permite venda conjunta. A calibragem de gatilhos, preços e quóruns é central na negociação.

15) Conclusão: reorganizar para competir melhor

Reorganizações societárias e operações de M&A são instrumentos para ajustar estratégia, capital, ativos e governança - não um fim em si. Ao dominar os conceitos de combinação de negócios (CPC 15), mensuração a valor justo, acordos societários e estruturas contratuais, empresários e sócios-investidores tomam decisões mais informadas, reduzem riscos e aceleram a criação de valor.

Autor

Marcel André Rodrigues Como advogado com mais de 15 anos de experiência, atuo no ramo do Direito Empresarial, com foco em Direito Tributário, Societário e Contratual, tanto na esfera consultiva quanto contenciosa.

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