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O edital pode eliminar candidato da Polícia Militar por dioptria acima de 1,5?

Limites rígidos de visão em editais da PM podem eliminar injustamente candidatos aptos, contrariando ciência, Direito e Constituição.

30/12/2025
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A aprovação em um concurso público representa mais do que a conquista de uma vaga: representa a realização concreta de um projeto de vida. Cada candidato que sonha com a Polícia Militar sabe o tamanho da responsabilidade, da renúncia e da esperança que carrega. O estudo, as madrugadas, os simulados e as incertezas fazem parte de uma caminhada que transforma pessoas. Por isso, nenhuma eliminação pode ser banalizada - especialmente quando se baseia em critérios que pouco dizem sobre a capacidade de servir e proteger a sociedade.

Um dos pontos mais controversos nos editais recentes da PM é a exigência de limites rígidos de acuidade visual, como a obrigatoriedade de visão 20/20 com correção máxima de 1,5 dioptria esférica ou cilíndrica. Isso tem levado à eliminação de inúmeros candidatos que, apesar de possuírem pequenos graus refrativos, enxergam perfeitamente com correção e têm plena aptidão física para o cargo. Surge então a pergunta essencial: é legal eliminar um candidato da Polícia Militar porque ele possui mais de 1,5 dioptria?

A resposta jurídica, constitucional e científica é clara: não - esse critério é desproporcional, ultrapassado e inconstitucional.

Para começar, é preciso compreender que o uso de dioptrias como critério eliminatório não se apoia em evidência científica moderna. A oftalmologia já reconhece que pequenas ametropias (miopia, hipermetropia e astigmatismo), mesmo acima de 1,5 grau, são facilmente corrigidas com óculos ou lentes de contato, permitindo visão perfeita. Logo, a pergunta que o Direito deve fazer é: se o candidato enxerga normalmente com correção, qual é o prejuízo funcional?

A exigência de dioptria limitada não mede desempenho, não mede aptidão para o tiro, não mede reflexo, não mede campo visual e tampouco mede adaptação à rotina policial. É um critério meramente numérico, que nada revela sobre a capacidade real do candidato. Isso viola diretamente os princípios constitucionais da razoabilidade, proporcionalidade e pertinência ao cargo, previstos no art. 37 da Constituição Federal.

O STF e o STJ têm entendimento consolidado:

Requisitos de saúde só podem ser exigidos quando houver previsão legal e pertinência funcional direta.

E aqui está o ponto sensível: não existe lei que estabeleça limite de 1,5 dioptria para ingresso na Polícia Militar. Trata-se de mera escolha do edital - e escolhas de edital não podem restringir direitos fundamentais.

A exigência é ainda mais incoerente quando se observa que milhares de policiais em atividade utilizam óculos normalmente. Não perdem capacidade técnica, não deixam de dirigir viaturas, não deixam de atirar, não deixam de atuar em operações complexas. Logo, exigir visão “perfeita” para ingresso, quando a própria corporação admite correção óptica durante o serviço, é uma contradição administrativa que não encontra amparo jurídico.

A Justiça tem reconhecido isso repetidamente. Há decisões garantindo que:

  • Candidatos com 2, 3 ou até mais dioptrias podem exercer plenamente a função;
  • A acuidade visual corrigida é a que importa, não o grau refrativo;
  • O edital não pode excluir por ametropias tratáveis;
  • Quando há dúvida, deve haver avaliação individualizada por oftalmologista;
  • O critério “1,5 dioptria” é numérico e não funcional, portanto desproporcional.

Outro problema grave é que o edital proíbe lentes de contato durante o exame. Isso é incompatível com a oftalmologia moderna, que reconhece as lentes como método seguro e comum de correção visual. Forçar o candidato a comparecer apenas com óculos pode gerar falsa impressão de acuidade reduzida, prejudicando justamente quem depende de correção específica, como casos de astigmatismo irregular ou ceratocone inicial.

O sonho de servir na Polícia Militar não pode ser impedido por uma métrica antiga e desconectada da ciência. O Direito exige justiça, e a Constituição exige dignidade. Critérios arbitrários não podem prevalecer sobre o mérito do candidato.

Se você foi eliminado por dioptria acima do limite previsto em edital, saiba que há amplo fundamento jurídico para reverter essa decisão. A Justiça tem sido firme em proteger candidatos injustiçados.

Autores

Ricardo Fernandes Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial MilItar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo

Ana Paula Gouveia Leite Fernandes Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.

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