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Descanso aos domingos: tema enfrentado por Rui Barbosa permanece atual

Atualidade do parecer de 1896, feito pela Águia de Haia, expõe a persistência do conflito entre produção e dignidade laboral.

7/12/2025

Em novembro de 2025, o TST condenou a rede de lojas Pernambucanas por submeter empregados, no Paraná, ao trabalho dominical reiterado, sem a folga mensal obrigatória prevista na CLT.

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Apesar do exemplo recente, o tema do descanso aos domingos é bastante antigo. Muitos e muitos anos antes de o legislador do governo getulista esboçar a limitação do labor dominical, Rui Barbosa escreveu as seguintes linhas:

"O Estado não tem o direito de trancar no domingo as portas à indústria. Os princípios, essencialmente morais e religiosos, que impõem esse repouso periódico ao labor humano, encontram em certas necessidades íntimas de nossa natureza a sua garantia e sanção."

Mais de um século depois, o trecho soa como comentário preciso sobre o cenário que vem sendo combatido na Justiça do Trabalho.

Não à toa, hoje essa querela também aparece nas redes sociais, ainda que travestida de humor.

Recentemente, uma trend viralizou comparando a roupa de trabalho com a do fim de semana. No vídeo, trabalhadores surgem uniformizados e, com um giro de câmera, aparecem "transformados" em trajes sociais, maquiados, sorrindo.

A brincadeira, no entanto, assumiu outro tom quando alcançou quem não é agraciado semanalmente pelo chamado descanso remunerado.

Os que cumprem a já conhecida escala 6x1 (ou que simplesmente trabalham na maioria dos fins de semana) decidiram fazer a própria versão dos vídeos.

Na leitura menos glamourosa da trend, nada muda: a roupa é a mesma porque, aos finais de semana, continuam trabalhando.

Não se trata apenas de brincadeira - e tampouco de ossos do ofício.

É claro que, em muitos setores, o trabalho dominical é imprescindível, e, por isso, o empregador pode distribuir as folgas ao longo da semana. Ocorre que nem sempre se oferece ao menos um domingo mensal, como determina o art. 67 da legislação trabalhista.

O domingo é tão indispensável que a própria CLT o coloca em posição de destaque. Daí nasce a pergunta inevitável: por que justamente o domingo? 

A resposta é bíblica, cultural, histórica e, de certo modo, civilizatória - razão pela qual Rui Barbosa também foi consultado e se debruçou sobre o tema com extraordinária precisão.

No princípio, era a religião

Rafael Venturini Trindade, mestre em Política Social, em artigo científico, afirma que o repouso semanal é uma instituição antiquíssima, "gêmea" da própria semana de sete dias, surgida de tradições religiosas milenares.

Na tradição hebraica, o shabbat não era apenas um intervalo laboral: era memória da criação, do descanso divino, e, mais adiante, um marcador identitário.

Entre os cristãos, contudo, a disputa sobre qual dia deveria ser consagrado ao repouso - se o sábado escriturístico ou o domingo eclesiástico - prolongou-se por séculos.

O estudioso recorda que a mudança de foco para o domingo foi marcada tanto por argumentos teológicos (a ressurreição de Cristo, celebrada no primeiro dia da semana) quanto por fatores políticos: Constantino, ao cristianizar o Império Romano, decretou em 321 d.C. que magistrados e trabalhadores urbanos deveriam descansar "no venerável dia do Sol", o antigo dies solis, posteriormente rebatizado como dies domini.

Essa fusão entre rito e norma continuaria ao longo dos séculos.

Pelo medievo, corporações de ofício já incorporavam a obrigação do descanso dominical, e monarquias europeias utilizaram a legislação para reforçar a sacralidade institucional do dia, ainda que sob o pretexto de "moralização" social.

A secularização do domingo

Apesar da herança religiosa, o fundamento do descanso semanal expandiu-se.

A Revolução Industrial marca esse giro. O século XIX europeizado - máquinas incansáveis e jornadas intermináveis - recolocou o descanso no centro do debate social.

E o que antes era um rito litúrgico converteu-se, gradualmente, em questão biológica, social e econômica.

O professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto/SP, Jair Aparecido Cardoso, sublinha exatamente esse ponto: a industrialização levou à positivação do repouso semanal como necessidade humana, destinada a preservar a saúde física, a convivência familiar e o equilíbrio econômico das sociedades capitalistas emergentes.

Ao mesmo tempo, organismos internacionais surgiram para uniformizar a proteção ao descanso.

A OIT, logo em 1921, aprovou a convenção nº 14, determinando pelo menos 24 horas contínuas de repouso a cada sete dias - um marco civilizatório que o Brasil só ratificaria em 1957, apesar de já prever descanso semanal em constituições anteriores, como registra Rafael Venturini Trindade ao mapear essa evolução normativa do país desde 1934 até a Carta de 1988.

Assim, chega-se ao século XX com o descanso dominical amparado por múltiplas racionalidades: teológicas, morais, sanitárias, econômicas e, finalmente, sociais.

Já não se tratava apenas de santificar um dia; tratava-se de proteger um corpo - e uma sociedade - exaustos. 

Cultura, política, religião e economia alinharam-se, cada uma a seu modo, para transformá-lo no dia "preferencial" de pausa.

Com a palavra, Rui

No final do século XIX, a Câmara Municipal de Cataguases/MG recorreu a Rui Barbosa em busca de orientação.

O tema, o repouso de trabalhadores aos domingos, estava no centro de um debate local sobre o fechamento obrigatório do comércio.

Em 18 de junho de 1896, ao responder à consulta, Rui fez muito mais do que analisar o caso concreto: produziu verdadeira teoria sobre o descanso semanal na história ocidental.

O jurista reconheceu, logo de início, que a proibição do trabalho aos domingos sempre dividiu sociedades e doutrinas.

Ao percorrer a experiência comparada de países como França, Bélgica, Inglaterra, Suíça e Estados Unidos, mostrou que diferentes ordenamentos jurídicos haviam enfrentado o tema de maneiras distintas.

Na França, lembrou, antigas ordenações que puniam o trabalho nos dias santos caíram em desuso e foram revogadas em 1880, revelando mudança de sensibilidade política.

Na Bélgica, a Constituição de 1831 chegou a assegurar que "ninguém pode ser constrangido a observar dias de repouso", expressão típica do liberalismo do século XIX.

Ainda assim, destacou Rui, a realidade econômica e social das nações industrializadas acabou rompendo essa resistência. Inglaterra, Estados Unidos e Suíça, descritos por ele como "três países mais industriosos do mundo", adotaram legislações robustas proibindo o trabalho dominical não por motivos religiosos, mas por razões civis, sociais e sanitárias.

 

Em parecer, Rui Barbosa apontou Inglaterra, Estados Unidos e Suíça como países que respeitavam o descanso dominical.(Imagem: Rui Barbosa Online - OCRB Digital)

Nos Estados Unidos, citou o jurista, a própria Suprema Corte afirmava que tais leis "não têm caráter religioso": elas existem para proteger a saúde e a ordem social, evitar “a depauperação proveniente do trabalho ininterrupto” e resguardar a liberdade religiosa daqueles que desejam observar o domingo segundo sua fé.

É nesse ponto que Rui formulou uma das passagens centrais de seu parecer: o repouso semanal cumpre três funções essenciais:

Assim, Rui deslocou o descanso dominical do campo estritamente religioso para o terreno do direito civilizatório, fundamento da saúde pública e da dignidade do trabalhador.

A organização humana, diz ele textualmente, "impõe-lhe um dia de descanso em cada sete", e a ciência confirma que esse intervalo "é indispensável" à recomposição física e mental - uma conclusão surpreendentemente moderna para fins do século XIX.

Ao final, respondeu às questões submetidas pela Câmara: afirmou não haver violação constitucional em leis que restrinjam a abertura do comércio aos domingos, desde que justificadas pelo interesse público e pela ordem urbana.

Ainda, invocou precedente norte-americano segundo o qual cabe ao poder municipal, nos limites da lei, vedar atividades em benefício da paz, da saúde e da moralidade públicas. Para ele, argumentos dessa natureza "resultam logicamente da natureza da função" administrativa dos municípios.

Com isso, Rui Barbosa consolidou uma ideia que ecoa até hoje: o descanso não é concessão graciosa, mas limite civilizatório à exploração humana, mecanismo destinado a impedir que a sociedade retroceda às formas de trabalho servil.

Domingo e descanso

O domingo se tornou uma construção civilizatória cuidadosamente sedimentada para proteger a integridade física, psíquica e social do trabalhador.

Seja no shabbat hebraico, na prescrição imperial de Constantino, nas corporações medievais, nas convenções da OIT ou na pena de Rui Barbosa, a mensagem é a mesma: sem um tempo inviolável de repouso, não há trabalho digno.

Mais de um século separa Rui das trends de hoje. Ainda assim, ambos denunciam, a seu modo, o mesmo fenômeno: a precarização do tempo privado diante da lógica produtiva.

A brincadeira nas redes, quando despida de humor, apenas repete aquilo que o jurista baiano intuiu com clareza rara para sua época: os limites do labor não surgem por benevolência, mas por necessidade humana.

Por isso, quando a Justiça do Trabalho condena empregadores que insistem em ignorar esses limites, não está apenas aplicando a CLT. Está reafirmando uma tradição que atravessa religiões, impérios, economias e Constituições - a tradição de que todo corpo precisa parar.

E se hoje ainda discutimos o óbvio - o direito de descansar um domingo por mês - é porque a luta por esse limite mínimo é contínua.

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Referências

CARDOSO, Jair Aparecido. O direito ao descanso como direito fundamental e como elemento de proteção ao direito existencial e ao meio ambiente do trabalho. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 52, n. 207, p. 7–26, jul./set. 2015. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/52/207/ril_v52_n207_p7.pdf. Acesso em: 5 dez. 2025.

TRINDADE, Rafael Venturini. O repouso semanal: entre o direito social e a imposição religiosa. Revista Labirinto, Porto Velho, ano XX, v. 32, n. 1, p. 146-166, jan./jun. 2020. Disponível em: https://periodicos.unir.br/index.php/LABIRINTO/article/view/5324. Acesso em: 5 dez. 2025.

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