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No STF, advogada indígena lamenta perda de vivência no seu território

Em sustentação oral, Ayrumã Tuxá afirmou que a lei 14.701/23 aprofunda “irreparáveis danos territoriais e ambientais na história dos povos indígenas do Brasil” e perpetua violências.

11/12/2025
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O STF encerrou nesta quinta-feira, 11, a fase de sustentações orais no julgamento das quatro ações que questionam a constitucionalidade da lei 14.701/23, norma que institui o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. 

Após as manifestações, o julgamento foi suspenso para análise dos ministros e será retomado oportunamente.

A lei estabelece que povos indígenas só poderiam reivindicar áreas que estivessem ocupadas em 5 de outubro de 1988 — data da promulgação da Constituição — ou que, naquela ocasião, estivessem em disputa judicial. 

Diversas entidades sustentam que o dispositivo viola direitos originários e contraria entendimento já firmado pelo Supremo no Tema 1.031, que afastou a tese do marco temporal.

Pelo Instituto Alana, a advogada indígena Ayrumã Tuxá apresentou sustentação marcada por forte dimensão pessoal, relatando que pertence à segunda geração de crianças e adolescentes impedidos de viver em seu território tradicional, a Ilha da Viúva, em Rodelas/BA, após a inundação ocorrida na década de 1980.

“Eu não tive a oportunidade de me banhar nos rios, nas correntezas do velho Opará. E hoje, esse rio se encontra triste, silencioso", afirmou, ao contextualizar como o deslocamento compulsório afetou a infância, a cultura e a identidade de seu povo.

"A região do Nordeste, de onde venho, foi a primeira a enfrentar as violências do projeto colonial e desenvolvimentista desse país. Consequentemente, nos tornou vítimas das formas mais profundas de violência territorial, como é o caso também dos meus parentes Xukuru-Kariri". 

No STF, a advogada indígena Ayrumã Tuxá afirmou que a lei 14.701/23 “torna irreparáveis danos territoriais e ambientais na história dos povos indígenas” e abre caminho para novas violações.(Imagem: Reprodução/Youtube)

Retrocesso legislativo

Ayrumã argumentou que a lei 14.701/23 “assim como a barragem que inundou o meu território tradicional na década de 80, torna irreparáveis danos territoriais e ambientais na história dos povos indígenas do Brasil”, abrindo caminho para novas violações e impedindo que novas gerações construam memórias coletivas saudáveis.

"Eu fui uma dessas crianças que não pude viver e consolidar a minha convivência comunitária junto com as demais gerações do meu povo, porque o meu território tradicional foi inundado e não há reparação capaz de nos devolver um local tão profundo, tradicional, como é o nosso território", relatou.

A advogada destacou ainda o papel do Supremo como guardião da Constituição e responsável pela proteção de minorias vulnerabilizadas. Recordou que o RE 1.017.365, que originou o Tema 1.031, foi amplamente debatido com participação dos povos indígenas e resultou no afastamento do marco temporal, reconhecendo os direitos originários como cláusula pétrea da CF.

Impactos sobre crianças e adolescentes

A manifestação dedicou atenção especial aos efeitos da perda territorial sobre a infância indígena — tanto no bem-estar psicológico quanto na reprodução cultural e física das comunidades.

"A lei traz retrocessos que comprometem a identidade cultural das crianças e adolescentes, a reprodução física dos nossos povos, a nossa perspectiva de vida e de enxergar o futuro. A insegurança que é infundada, que foi imposta sobre os nossos territórios, abala gravemente o bem-estar psicossocial dessas crianças, minando sua autoestima e seu senso de pertencimento." 

Ayrumã mencionou dados do Núcleo Ciência pela Infância, segundo os quais a taxa de mortalidade entre crianças indígenas de até quatro anos é mais que o dobro da observada na população não indígena.

Sustentou que a proteção da infância é indissociável da proteção das terras indígenas, citando o Comentário Geral 26 do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, que afirma não ser possível garantir direitos das crianças quando se negligencia seu vínculo originário com o território.

“Dívida impagável” 

Em suas considerações finais, a advogada evocou voto da ministra Cármen Lúcia no julgamento do RE 1.017.365, ressaltando a necessidade de reconhecer a “impagável dívida que a sociedade brasileira tem com os povos indígenas”.

“No nosso país, não é fácil ser indígena. Nos tiraram as terras, os rios, as memórias. Cobiçaram e buscaram, sem cessar, as riquezas das paragens que constituem, para nós, não apenas matéria sujeita a preço, não é isso, mas é o nosso próprio mundo, onde a gente possa existir segundo o nosso próprio bem viver”, afirmou.

Ao concluir, pediu que o STF reconheça a inconstitucionalidade da lei 14.701/23, por representar retrocesso incompatível com os direitos originários assegurados pela Constituição.

Ações em julgamento

Quatro ações discutem a validade da lei que restabeleceu o marco temporal e definiu novas regras para demarcação, uso e gestão de terras indígenas: 

  • ADC 87, proposta por PL, PP e Republicanos, busca o reconhecimento da constitucionalidade integral da lei.
  • ADIn 7.582, ajuizada pela Apib, PSOL e Rede Sustentabilidade, sustenta que a lei representa o maior retrocesso aos direitos indígenas desde a redemocratização.
  • ADIn 7.583, apresentada por PT, PCdoB e PV, também pede que a lei seja declarada inconstitucional.
  • ADIn 7.586, proposta pelo PDT, questiona diversos dispositivos da norma e afirma que a lei viola a CF de maneira frontal ao restabelecer o marco temporal e impor limites que dificultam ou inviabilizam demarcações.
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