A 2ª turma do STF, em julgamento no plenário virtual, decidiu anular provas produzidas entre maio de 2020 e janeiro de 2021 em investigações por corrupção que envolvem o governador do Acre, Gladson de Lima Cameli.
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Por maioria, o colegiado reconheceu a nulidade das diligências realizadas sem supervisão do STJ, ao analisar agravo regimental em HC que discute o uso de RIFs do Coaf e a ocorrência de "fishing expedition".
O que é fishing expedition?No processo penal, a chamada fishing expedition refere-se à prática de realizar diligências investigativas amplas e genéricas, sem lastro em indícios concretos previamente delimitados, com o objetivo de "pescar" possíveis ilícitos ou envolvidos.
Ficou vencido o relator, ministro Edson Fachin, que votou por negar provimento ao recurso.
Prevaleceu a divergência inaugurada pelo ministro André Mendonça, acompanhada pelos ministros Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, formando maioria de 4 votos a 1.
Veja o placar:
Entenda o caso
O HC foi impetrado contra acórdão do STJ que recebeu denúncia e rejeitou preliminares apresentadas pela defesa no âmbito da Operação Ptolomeu, que apura, em tese, crimes de peculato, corrupção passiva, fraude à licitação, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
A defesa sustentou a usurpação da competência do STJ, em razão da prerrogativa de foro do governador, e alegou que a investigação foi marcada por "fishing expedition".
Segundo os advogados, após interceptações telefônicas que apenas mencionavam o cargo de governador, a autoridade policial aprofundou as diligências e requisitou RIFs ao Coaf envolvendo o chefe do Executivo estadual, seus familiares e empresas a ele ligadas, sem prévia supervisão do tribunal competente.
Para a defesa, essas circunstâncias contaminariam as provas produzidas, tornando-as nulas.
A PGR se manifestou pelo desprovimento do agravo.
Voto do relator
Ministro Edson Fachin votou por negar provimento ao agravo regimental, mantendo a decisão que havia denegado o HC.
O relator afastou a alegação de usurpação de competência, destacando que a simples menção ao nome ou ao cargo de autoridade com prerrogativa de foro em diálogos interceptados não desloca automaticamente a competência para tribunal superior.
Segundo o ministro, o deslocamento exige indícios concretos e plausíveis de participação ativa em ilícitos.
Quanto à alegada "fishing expedition", Fachin ressaltou que o tema já havia sido analisado e rejeitado pelo STJ, inclusive pela Corte Especial, e que as diligências se basearam em elementos concretos.
O ministro também reafirmou o entendimento do STF no Tema 990, segundo o qual é constitucional o compartilhamento de RIFs do Coaf com órgãos de persecução penal, sem prévia autorização judicial, desde que haja controle jurisdicional posterior.
Por fim, afirmou que o pedido exigiria revolvimento do conjunto fático-probatório, providência incompatível com a via do HC.
- Confira o voto.
Divergência
Ministro André Mendonça abriu divergência ao votar pelo provimento parcial do agravo.
Para S. Exa., embora a mera menção ao cargo de governador não justificasse, inicialmente, o deslocamento da competência, o cenário se alterou quando a autoridade policial requisitou RIFs ao Coaf envolvendo diretamente empresas do governador, sua esposa e até seu filho menor de idade, antes de provocar o STJ.
Segundo Mendonça, nesse momento, a polícia já tinha ciência de que investigava pessoa com prerrogativa de foro, o que tornaria indevida a continuidade das diligências sob a supervisão de juízo incompetente.
Para o ministro, houve violação às regras constitucionais de competência, o que comprometeria a validade das provas.
Mendonça destacou que a prerrogativa de foro possui natureza de garantia institucional, voltada à preservação da regularidade das instituições, e votou para reconhecer a usurpação da competência do STJ no período compreendido entre 25/5/20 e 12/1/21, declarando a nulidade das provas produzidas nesse intervalo e das que delas derivaram.
- Leia o voto.
Com a divergência
Ministro Nunes Marques acompanhou a divergência.
Segundo o ministro, embora o STF tenha firmado, no Tema 990 da repercussão geral, a constitucionalidade do compartilhamento de relatórios de inteligência financeira com órgãos de persecução penal, esse entendimento não autoriza que o MP ou a autoridade policial requisitem diretamente ao Coaf dados bancários ou fiscais para fins de investigação criminal, fora dos parâmetros legais e sem controle jurisdicional prévio.
Para Nunes Marques, no caso concreto, a atuação do Coaf não decorreu de atividade fiscalizatória espontânea, mas foi induzida por provocação da autoridade investigativa, o que desvirtua a finalidade legal dos RIFs e compromete sua higidez jurídica como elemento de prova.
Nessas circunstâncias, afirmou, as diligências violaram o direito à intimidade e ao sigilo bancário, constitucionalmente assegurados.
O ministro destacou ainda que, no momento em que houve a requisição de RIFs envolvendo diretamente o governador, seus familiares e empresas a ele vinculadas, a investigação já incidia sobre pessoa com prerrogativa de foro, o que exigiria a supervisão do STJ.
Assim, votou pelo reconhecimento da ilicitude das provas produzidas nesse contexto e pelo seu desentranhamento dos autos, bem como das provas delas derivadas.
Veja o voto.
- Processo: AgRg no HC 247.281
Situação no STJ
Paralelamente ao julgamento no STF, tramita no STJ a AP 1.076, na qual o governador responde por crimes de fraude à licitação, peculato, corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa, no contexto da Operação Ptolomeu.
O julgamento foi iniciado na Corte Especial, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, que rejeitou todas as preliminares e questões de ordem suscitadas pela defesa, julgou procedente a denúncia e condenou o governador a 25 anos e 9 meses de reclusão, em regime inicial fechado, além de 600 dias-multa.
A relatora também decretou a perda do cargo, fixou indenização de R$ 11,785 milhões por danos materiais ao erário e afastou o pedido de indenização por dano moral coletivo.
Durante a sessão, a defesa invocou o HC em trâmite no STF, sustentando que a investigação teria sido marcada por fishing expedition e usurpação da competência do STJ desde a origem.
Nancy, contudo, afastou o pedido de suspensão do julgamento em razão do HC no STF, ao argumento de que a condenação se apoia em provas autônomas e independentes, produzidas sob a supervisão do STJ, e não nos relatórios de inteligência financeira questionados na Suprema Corte.
Após o voto da relatora, ministro João Otávio de Noronha pediu vista dos autos, suspendendo o julgamento.
Por que o caso tramita no STF e no STJ?
O caso é analisado simultaneamente pelo STF e pelo STJ porque as Cortes examinam objetos distintos.
No STF, discute-se exclusivamente a legalidade de atos investigativos praticados antes da remessa do caso ao tribunal competente, especialmente a requisição de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs ao Coaf) e a alegada ocorrência de fishing expedition, no âmbito de habeas corpus.
Já no STJ, a Corte Especial julga o mérito da ação penal, apreciando a existência ou não dos crimes imputados ao governador, com base no conjunto probatório produzido sob sua supervisão.
Assim, embora os processos dialoguem, as decisões não se confundem: o STF analisa a validade de provas e a observância das regras de competência, enquanto o STJ decide sobre responsabilidade penal e eventual condenação.