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Mercados digitais, precificação personalizada e responsabilidade civil

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Atualizado às 08:11

Nas últimas décadas, os avanços tecnológicos mudaram as formas de interação e comunicação, permitindo que uma grande quantidade de dados seja processada e transmitida em um curto intervalo de tempo e com altas velocidades. As maiores empresas de hoje operam com algoritmos relacionados ao processamento de dados pessoais, que agora representam ativos econômicos e, quando cruzados, contribuem para a melhoria de serviços e produtos por meio de processos computacionais de tomada de decisão cada vez mais automatizados1.

Nesse contexto, as transformações digitais alteraram as dinâmicas sociais. As economias de dados estão consolidando novas práticas comerciais e destacando o potencial de proeminência econômica de empresas que possuem plataformas digitais, como Google LLC, Amazon.com Inc., Apple Inc. e Meta Inc., tornando o comércio eletrônico cada vez mais atrativo e personalizado.

Em tempos posteriores ao da pandemia causada pelo Sars-Cov-2 (Covid-19), o número de transações econômicas em ambientes orientados por dados cresceu substancialmente, assim como o comércio eletrônico em geral. Por isso, algoritmos sofisticados de processamento de dados pessoais passaram a permitir que plataformas digitais voltadas para o comércio eletrônico analisem as tendências de consumo e comportamento dos consumidores e, como consequência, estimem o preço de reserva de cada operação, inferindo quanto cada indivíduo provavelmente estaria disposto a pagar por um determinado produto, o que, então, permitiria a personalização dos preços cobrados pelos algoritmos para maximizar lucros e expandir a produção.

No entanto, plataformas digitais que se engajam em tais práticas podem incorrer em práticas anticompetitivas, causando efeitos nefastos e prejudicando outras empresas com menos acesso a tecnologias e bancos de dados, especialmente no que diz respeito ao abuso de poder econômico e à criação de barreiras de entrada, o que pode demandar regulação e/ou intervenção, além de se sujeitarem às regras de responsabilização civil decorrentes dessa prática.

Dadas as novas tecnologias que permitem o processamento de dados pessoais de maneira automatizada, como a medição de interesses e comportamentos para inferir preços personalizados, empresas com maiores condições financeiras e tecnológicas são capazes de criar um ambiente prejudicial aos concorrentes que não têm acesso a tais ferramentas. Logo, uma empresa incorre em precificação personalizada discriminatória quando cobra de dois consumidores de maneira desigual pelo mesmo produto ou serviço, e essa diferenciação de preço não se deve a diferenças de custo ou fatores externos2. O objetivo é maximizar os lucros da empresa, pois teoricamente abrangerá tanto os consumidores que podem pagar mais, cobrando mais por um determinado produto ou serviço, quanto aqueles que não têm o poder aquisitivo para pagar o mesmo valor, diminuindo o preço a ser cobrado.

Esses preços discriminatórios são divididos em três tipos pela doutrina, sendo preços discriminatórios de primeiro, segundo e terceiro graus3. Este artigo foca na prática de preços discriminatórios de primeiro grau, também conhecida como discriminação de preços perfeita4. É a análise de dados pessoais dos consumidores com a criação de perfis de consumo e comportamento visando uma mudança de preço personalizada, ou seja, direcionada a cada indivíduo, de acordo com o que ele está disposto a pagar por um determinado produto ou serviço.

De acordo com um estudo realizado pelo Office of Fair Trade do Reino Unido, esses preços personalizados têm dois elementos essenciais: (i) a cobrança de preços diferentes para os mesmos produtos ou serviços dos consumidores com base em suas informações e (ii) a previsão de quanto esses consumidores estarão dispostos a pagar por um produto ou serviço específico5. Nesse sentido, a Secretaria da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico aponta que há três etapas para a precificação personalizada, consistindo na coleta de dados, estimativa da vontade de pagamento dos consumidores e escolha do preço ótimo a ser cobrado de cada cliente6.

Como evidência da ocorrência de preços personalizados nos mercados digitais, Mikians et al. realizaram experimentos controlados testando navegador, sistema operacional, geolocalização a partir de serviços 'proxy' nas costas leste e oeste dos EUA, na Alemanha, na Espanha, na Coreia do Sul e no Brasil, histórico de navegação usando 'personas' falsas para construir um histórico que imita o comportamento de pessoas abastadas ou preocupadas com o orçamento e URL de origem. Havia 600 produtos entre 35 categorias diferentes e 200 vendedores7. O estudo demonstrou que não houve diferença nos preços para diferentes sistemas operacionais e navegadores, mas diferenças foram registradas com base na localização do usuário, seu perfil de compra (categorizado e inferido como "rico" ou "pobre"), e com base na URL de origem, o que pode ser explicado deduzindo um perfil de consumo com um preço de reserva baixo, demonstrando que quando um usuário visita o site de um fornecedor através de um site agregador de descontos, os preços podem ser até 23% mais baixos do que ao visitar o site do fornecedor diretamente.

Em um experimento realizado pela Comissão Europeia e publicado em 2018, evidências de ofertas personalizadas foram encontradas com base em informações sobre o comportamento on-line do consumidor, como históricos de pesquisa e 'cookies', além de estarem relacionadas à rota de acesso ao site, ou seja, a ferramenta de busca utilizada, ferramenta de comparação de preços, navegador e dispositivo. Além disso, notou-se que o acesso por dispositivos móveis teve um maior impacto na precificação personalizada do que o acesso por diferentes motores de busca8.

Outro estudo realizado em 2014 encontrou diferenças nos preços direcionados aos consumidores em 16 dos 'e-businesses' americanos mais populares, como Walmart e Expedia, variando de acordo com o sistema operacional utilizado, com o navegador escolhido ou com a ferramenta de uso, se computador ou celular9. No entanto, há requisitos para que a prática de preços personalizados ocorra, dos quais três se destacam: os consumidores não devem ser capazes de revender ou comparar serviços e produtos vendidos, a empresa deve ter um certo poder de mercado, além de ser capaz de realizar a análise de dados pessoais coletados com ferramentas tecnológicas avançadas.

Em síntese, a oferta de um produto ou serviço no mercado acarreta a possibilidade de que qualquer consumidor efetue a sua contratação, ainda que eletronicamente, mas desde que esteja diposto a pagar o preço exigido e contanto que lhe sejam garantidos critérios justos de oferta, preço e acesso. Em razão disso, a lei proibe que o fornecedor faça distinção de valores ou que realize ofertas contendo qualquer forma de indução exagerada (inclusive a partir da formação do perfil de consumo), conforme expressamente prevê o Código de Defesa do Consumidor:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: [...]

II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes; [...]

IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais.

Conforme se nota, a própria norma consumerista somente permite a recusa nos casos excepcionais de intermediação regulados em leis especiais, como no caso de uma farmácia que nega a venda de um medicamento sem a apresentação da necessária prescrição médica. E tal proibição de discriminação é de tamanha importância jurídica que a recusa de venda de bens e produtos oferecidos no mercado configura crime contra as relações de consumo, nos termos da lei 8.137/90:

Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: I - favorecer ou preferir, sem justa causa, comprador ou freguês, ressalvados os sistemas de entrega ao consumo por intermédio de distribuidores ou revendedores; [...] VI - sonegar insumos ou bens, recusando-se a vendê-los a quem pretenda comprá-los nas condições publicamente ofertadas, ou retê-los para o fim de especulação.

Dessa maneira, o CDC se fundamenta na ideia de que a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações devem ser respeitadas nas relações jurídicas de consumo, visando, evidentemente, consagrar uma sociedade plural mas, do mesmo modo, igualitária no que se refere ao exercício de direitos no mercado de consumo. Com base nessas premissas, constata-se que nem todas as empresas são capazes de implementar a personalização de preços e, no caso dos mercados digitais, poucas plataformas se destacam, o que pode causar efeitos anticompetitivos entre as demais, como barreiras de entrada e um abuso do poder econômico, o que abre as condições para regulação e/ou intervenção nesses casos.

Preços personalizados podem ocorrer desde que as plataformas digitais atendam a certos requisitos, como ter certo poder de mercado e ser capaz de realizar a análise de dados pessoais com algoritmos sofisticados. No entanto, apenas as principais plataformas de comércio eletrônico digital possuem tais características.

Como consequência das práticas dessas plataformas, alguns efeitos incluem a apropriação do excedente do consumidor10 - caso o preço de reserva seja mais alto que o do produto não personalizado, a empresa se apropria da diferença; o efeito de expandir a produção - permitindo que a empresa venda produtos a preços mais baixos para aqueles com preços de reserva inferiores, que de outra forma não poderiam adquirir o produto pelo valor padrão; o efeito de intensificar a competição - a personalização dos preços possibilita o aumento da concorrência entre as empresas, incentivando cada uma a oferecer produtos e serviços com valores mais atraentes aos consumidores do que os de seus concorrentes; e o efeito de compromisso, que desencoraja as empresas a aumentar seus preços no futuro, uma vez que o consumidor estará ciente de que, caso não realize a compra inicialmente, é provável que surjam ofertas ou reduções de preços posteriormente11.

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1 QUINELATO, Pietra Daneluzzi. Preços personalizados à luz da Lei Geral de Proteção de Dados: viabilidade econômica e jurídica. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 4-5.

2 A precificação personalizada não se confunde, portanto, com a precificação dinâmica, conforme já analisado por FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Precificação dinâmica e proteção de dados pessoais. Migalhas de Proteção de Dados, 15 jul. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-protecao-de-dados/369839/precificacao-dinamica-e-protecao-de-dados-pessoais Acesso em 04 abr. 2024.

3 PIGOU, Arthur Cecil. The Economics of Welfare. Londres: Macmillan. 1920, passim.

4 QUINELATO, Pietra Daneluzzi. Preços personalizados à luz da Lei Geral de Proteção de Dados: viabilidade econômica e jurídica. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 84-87.

5 REINO UNIDO. Office Fair Trade. The economics of online personalised pricing- Note by UK. Londres: Crown Copyright, maio 2013. Disponível em: https://webarchive.nationalarchives.gov.uk/20140402154756/http://oft.gov.uk/shared_oft/research/oft1488.pdf  Acesso em: 04 abr. 2024.

6 ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E O DESENVOLVIMETO ECONÔMICO - OCDE. Personalised Pricing in the Digital Era - Background Note by Secretariat. Paris: OCDE Publishing, nov. 2018, p. 10. Disponível em: https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/WD(2018)127/en/pdf Acesso em: 04 abr. 2024.

7 MIKIANS, Jakub et al. Detecting price and search discrimination on the Internet. In: Proceedings of the 11th ACM Workshop on Hot Topics in Networks, Redmond, p. 79-84, out. 2012.

8 EUROPEAN COMISSION. Consumer market study on online market segmentation through personalised pricing/offers in the European Union. Luxemburgo: Publications Office of the European Union, p. 219-220, 2018. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/aid_development_cooperation_fundamental_rights/aid_and_development_by_topic/documents/synthesis_report_online_personalisation_study_final_0.pdf Acesso em: 04 abr. 2024.

9 BOURREAU, Marc; DE STREEL, Alexandre. The Regulation of Personalised Pricing in the Digital Era. Social Science Research Network, [S.l.], v. 150, p. 2, 17 jan. 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3312158 Acesso em: 04 abr. 2024.

10 JOBIM, Maria Luiza Kurban. Precificação personalizada (personalised pricing): progresso ou retrocesso? Definições e reflexões preliminares a partir da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da Análise Econômica do Direito (AED). In: SARLET, Gabrielle Bezerra Sales; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth; MELGARÉ, Plínio (coord.). Proteção de dados: temas controvertidos. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 257.

11 VAN BOOM, Willem H. Price intransparency, consumer decision making and European Consumer Law. Journal of Consumer Policy, Cham: Springer, v. 34, p. 359-376, 2011, p. 362-265.