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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
Introdução Objetivamos tratar dos limites da qualificação tabelioa, abrangendo algumas situações mais controvertidas. O tabelião de protesto tem de qualificar o título para identificar eventual vício formal, pois a irregularidade formal impede o protesto. Qualificar um título é a análise feita pelo tabelião a fim de verificar a viabilidade jurídica do protesto. Trata-se do que se conhece como qualificação tabelioa. De fato, o apresentante é o senhor do protesto. Logo, é de sua responsabilidade o conteúdo do protesto. Só sobra ao tabelião a verificação de questões meramente formais. Por isso, não cabe ao tabelião, por exemplo, verificar eventual obstáculo material à cobrança do título, como a existência de eventual pagamento da dívida perante o credor. Nesse sentido, em São Paulo, acertadamente a juíza Tânia Mara Ahualli rejeitou a pretensão de um devedor que queria obstar o protesto de uma CDA Vara de Registros Públicos, argumentando já ter pago a dívida na Fazenda Pública e que tal fato estava sendo apurado em sede de um procedimento administrativo (1VRPSP - Pedido de Providências nº 0011319-29.2018.8.26.0100/SP, Juíza Tânia Mara Ahualli, DJ: 10/4/2018). Tendência de interpretação extensiva do conceito de irregularidade formal Há uma tendência de interpretação extensiva do que seja irregularidade formal. Isso faz com que seja muito difícil definir, cartesianamente, os reais limites do dever de qualificação formal do tabelião. Em São Paulo, há normas específicas de situações de indícios de abusos de direito por parte do apresentante que impedem o registro do protesto, como a existência de tempo considerável entre a data de emissão do título e a sua apresentação para protesto. Como se verá mais abaixo, o entendimento do STJ é no sentido de que o tabelião deve analisar se há ou não prescrição do título, pois isso seria uma irregularidade formal a impedir o protesto (itens 34 e 35 do Capítulo XV das NSCGJ-SP). Providência no caso de qualificação negativa Se o tabelião detectar alguma irregularidade formal no título, ele deve abster-se de lavrar o protesto e devolver o título ao apresentante. Não é cabível a cobrança de emolumentos nesse caso, apesar do trabalho de qualificação. De fato, nada pode ser cobrado pelo exame do título devolvido ao apresentante por irregularidade formal (art. 3º, Provimento nº 86/2019-CN/CNJ). Exemplo de questões formais Presença dos requisitos formais de um título de crédito As leis que regulam os títulos de crédito costumam exigir a presença obrigatória de determinadas informações na cártula, sob pena de nulidade do título de crédito. Cabe ao tabelião de protesto, ao realizar a qualificação tabelioa, conferir se esses requisitos formais específicos de cada título de crédito foi ou não observado. Inteligibilidade do título O tabelião deve negar o protesto de um título quando as informações nele contidas (como o valor por extenso) for ininteligível ou incompreensível, pois se trata de questão meramente formal.  Nesse sentido, a Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo chancelou a recusa de um tabelião em protestar um cheque com valor por extenso incompreensível (CGJ-SP, Processo nº 211.185/2017, Rel. Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, DJ 19/03/2018). Análise do respeito ao princípio da especialidade subjetiva Pelo princípio da especialidade subjetiva, o devedor precisa ser identificado. Dados como CPF, CNPJ ou número de documento de identidade são essenciais para evitar homonímias. Sem esses dados oferecidos pelo apresentante, o pedido de protesto deve ser recusado (§ 1º do art. 27 da LP). O próprio instrumento de protesto exige essa informação como obrigatória (art. 22, VII, LP). No DF, é obrigatório indicação do CPF do número do documento de identidade, se pessoa natural, ou do CNPJ, se pessoa jurídica (art. 83, parágrafo único, PGC-DFT). Em São Paulo, vigora igual entendimento, do que dá prova decisão da 1ª Vara de Registros Públicos no sentido de vedar o protesto de sentença judicial contra pessoa jurídica cujo CNPJ não foi informado ao cartório de protesto (1VRPSP - Pedido De Providências nº 1100010-36.2017.8.26.0100/SP, Juíza Tânia Mara Ahualli, DJ 13/3/2018). Questões especiais Cautelas no protesto para fins falimentares Tabelião deve, na qualificação de um título no caso de protesto para fins falimentares, verificar se o devedor é pessoa sujeita à legislação falimentar, sob pena de recusar o protesto. Por exemplo, não se aplica falência para sociedades simples nem para instituições financeiras, de modo que deve ser recusado pedido de protestos para fins falimentares contra essas pessoas jurídicas (art. 23, parágrafo único, LP). Igualmente o tabelião também tem de avaliar se o título ou documento de dívida objeto do protesto para fins falimentares é ou não sujeita à legislação falimentar. Se não for, o tabelião tem de recusar o protesto (art. 23, parágrafo único, LP1). Ademais, o art. 94, § 3º, da lei 11.101/2005 exige protesto para fins falimentares para pedido de falência decorrente do não pagamento de títulos executivos que ultrapassem o valor de 40 salários mínimos. Não há, porém, necessidade de o tabelião averiguar o valor do título protestado; isso incumbe ao juiz que for analisar o pedido de falências. É que o credor pode protestar vários títulos de pequeno valor que, somados, alcancem 40 salários mínimos. Se o pedido de falência for feito sem o respeito a esse piso, o pleito deve ser julgado improcedente (STJ, AgRg no REsp 1124763/PR, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 28/2/2014). Prescrição e caducidade Conforme já anunciado anteriormente, há discussão acerca do dever de o tabelião ter de analisar a presença ou não de prescrição ou caducidade do título. Em princípio, conforme texto expresso do art. 9º da LP, não cabe ao tabelião de protesto analisar a prescrição ou a caducidade do documento de dívida. Todavia, o STJ entende que, como a lei 11.280/2006 alçou a prescrição ao patamar de matéria de ordem pública, cognoscível de ofício pelo juiz, cabe ao tabelião de protesto também averiguar a sua ocorrência de ofício. Para o STJ, a prescrição passa a integrar a regularidade formal do título e, portanto, deve ser objeto de qualificação pelo tabelião (STJ, AgRg no AgRg no REsp 1100768/SE, 4ª Turma, Rel. Ministro Marco Buzzi, DJe 17/11/2014). Não se pode falar, no entanto, que se trata de uma jurisprudência consolidada do STJ contra o tabelião, pois, na verdade, o assunto relativo à eventual responsabilização do tabelião de protesto não era o centro da discussão nesse julgado2. De qualquer sorte, ousamos discordar desse entendimento, pois, além de não enxergamos nenhuma revogação tácita (há compatibilidade entre o Código Civil e a LP: tabelião não é juiz), a análise da prescrição depende do exame de fatos externos ao título para identificar hipóteses de suspensão e de interrupção do prazo prescricional, o que não é da alçada do tabelião, e sim de um juiz. Temos que o apresentante é o responsável por eventual prescrição do título protestado. Análise de prazos para a apresentação de títulos de crédito a protestos A legislação costuma estabelecer diferentes prazos para a realização de protestos de títulos de crédito a fim de que o portador garanta direitos contra todos os coobrigados cambiais. Entendemos que não cabe, porém, ao tabelião fiscalizar esses prazos por não se tratar de irregularidade formal interna ao título3. Reconhecemos, porém, que esse assunto é complexo pelo fato de o STJ já ter sinalizado para o dever de o tabelião averiguar se há ou não prescrição. Aferição de valores e de encargos acessórios Dentro da competência do tabelião em identificar vícios formais, indaga-se: o tabelião tem o dever de averiguar o acerto do valor cobrado pelo apresentante, com inclusão dos encargos acessórios (correção monetária e juros moratórios)? Se o apresentante limitar-se a indicar o valor nominal do título, sem qualquer acréscimo ou conversão, cabe ao tabelião verificar apenas se o valor indicado no título condiz com o cobrado. Se, porém, o apresentante adicionar outros encargos - como juros moratórios e correção monetária -, entendemos que a competência do tabelião limitar-se-ia a identificar se esse acréscimo é admissível pela lei (an debeatur), mas não abrangeria a obrigação de conferir a exatidão do valor calculado (quantum debeatur). Tabelião não é contador! Isso, porque o art. 11 da lei 9.492/974 estabelece que é o apresentante - e não o tabelião! - quem indica o valor do título que foi sujeito a algum tipo de correção, levando em conta a data da apresentação do título. Ademais, o art. 40 da LP prevê o termo inicial dos juros e da correção monetária a partir da data do registro do protesto, salvo se houver marco diverso pactuado, o que deixa implícito que o tabelião de protesto tem dever de viabilizar a cobrança dos encargos acessórios. Ilustremos o quanto exposto: a) Ex.1: se alguém apresenta, para protesto, uma nota promissória com valor nominal de R$ 3.000,00 e pede o protesto no valor de R$ 5.000,00, o tabelião deve recusar o pedido de protesto, pois o valor indicado é incompatível com o nominal da cártula e não há justificativa para isso. b) Ex.2: se, no exemplo acima, o apresentante apresenta a nota promissória com uma planilha indicativa da incidência de correção monetária e de juros moratórios desde a data da emissão da cártula, o tabelião teria de avaliar, em primeiro lugar, se esses acréscimos são devidos para a nota promissória. E, nesse ponto, o título deveria ser recusado pelo tabelião, pois entendemos que: (1) a correção monetária só pode incidir a partir da data de vencimento do título, e não da sua emissão, em razão do princípio do nominalismo previsto no art. 305 do CC, extensível aos títulos de crédito por falta de lei especial contrária, conforme art. 903 do CC; (2) os juros moratórios só podem incidir a partir da data do protesto, pois só aí terá havido a constituição do devedor em mora à luz do art. 397, parágrafo único, do CC. c) Ex.3: se, no exemplo acima, a nota promissória for apresentada com planilha fazendo a correção monetária e os juros moratórios incidirem de acordo com os termos iniciais corretos, entendemos que é risco do apresentante eventual falha de cálculo; não cabe ao tabelião de protesto refazer os cálculos. A prática quotidiana, porém, é um pouco diferente. É que, quando o título a ser protestado for um título de crédito, os cartórios de protesto em alguns entes federativos só costumam aceitar o protesto do valor nominal do título, sem acréscimos de juros moratórios ou de correção monetária, e orientam o credor a cobrar esses acréscimos em ação judicial destinada apenas a tanto, mesmo na hipótese de o valor nominal já ter sido pago pelo devedor. Trata-se de medida de cautela adotada pelos tabeliães de protesto, mas entendemos que, caso o apresentante insista, é seu direito fazer acrescer os encargos moratórios à dívida principal na forma acima. __________ 1 Art. 23, parágrafo único, LP: "Somente poderão ser protestados, para fins falimentares, os títulos ou documentos de dívida de responsabilidade das pessoas sujeitas às consequências da legislação falimentar". 2 No caso concreto, porém, o tabelião de protesto não era réu. Desconhecemos caso concreto do STJ em que o tabelião tenha sido pessoalmente responsabilizado. Todavia, como obiter dictum, o precedente retrocitado permite a responsabilização do tabelião. 3 BUENO, Sérgio Luiz José. Tabelionato de Protesto. São Paulo: Editora Saraiva, 2013,  pp. 113. 4 Lei 9.492/97: "Art. 11. Tratando-se de títulos ou documentos de dívida sujeitos a qualquer tipo de correção, o pagamento será feito pela conversão vigorante no dia da apresentação, no valor indicado pelo apresentante."
1. O direito ao nome e a possibilidade de alteração Neste artigo, trataremos de algumas noções do sistema de registro civil eletrônico e compartilhamento de informações, especialmente a partir do Provimento n. 46 de 2015, do Conselho Nacional de Justiça, e o aprimoramento da segurança jurídica em relação às hipóteses de relativização do princípio da imutabilidade do nome. O nome, enquanto instrumento de individualização da pessoa, tem uma dimensão pública incontestável, tendo em vista que é essencial para a identificação do sujeito no concernente à maior parte de suas relações sociais, especialmente quanto o Poder Público, sendo, portanto, uma vertente inexorável da personalidade. A legislação brasileira determinou que tal direito importantíssimo às pessoas e à própria sociedade brasileira fosse efetivado pelo Registrador Civil de Pessoas Naturais, conforme artigo 55 da lei 6.015 de 1973: [...] art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato. Não é demais asseverar que a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 18, determina: [...] Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. Por isso é que, em regra, o nome civil é imodificável. Ocorre que há situações nas quais sua modificação é imperiosa, por situações pessoais ou mesmo de interesse público, inclusive, para que sejam preservados outros direitos fundamentais do cidadão e, no limite, a própria dignidade da pessoa humana, mesmo que em detrimento da segurança registral. Ocorre que, sem um sistema de registro confiável, porém, a modificação do nome civil, apesar de necessária em diversas hipóteses, pode ocasionar prejuízos jurídicos e econômicos imensos, com a realização de diversas fraudes. Neste viés, imperiosa a segurança jurídica proporcionada pelo registro civil eletrônico em relação à modificação do nome, para que assim possam ser comunicados imediatamente tais atos, dentro do sigilo que o caso eventualmente requerer. O surgimento do Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC), por meio do provimento 46 de 2015 do Conselho Nacional de Justiça tornou-se uma fonte de segurança para aprimorar ou mesmo aumentar as exceções ao princípio da imutabilidade do nome. Deveras, os direitos da personalidade, que encontram inúmeras nomenclaturas, não compõem um rol exaustivo, tendo em vista que se submetem às vicissitudes sociais que impõem sua evolução e, até mesmo, surgimento de novos direitos, afirmação que é válida para o direito fundamental ao nome civil. O princípio da imutabilidade do nome surgiu, historicamente, para dar maior segurança jurídica às relações sociais, demonstrando-se, assim, sua essencialidade, bem como a necessidade de que esse instrumento de individualização da pessoa seja objeto de registro público. Destarte, o princípio da imutabilidade encontra exceções previamente fixadas na legislação civil e em alguns instrumentos normativos infralegais, não se tratando, porém, de rol exaustivo, pois a evolução social tem demonstrado a necessidade de que outras situações de mutabilidade sejam consagradas. A mutabilidade do nome pode gerar consequências jurídicas e econômicas, portanto, um sistema eletrônico interligado de compartilhamento de informações do registro civil é capaz de assegurar segurança jurídica bastante para permitir a evolução do direito fundamental ao nome e sua adaptabilidade às necessidades contemporâneas, ainda mais com a extensão territorial do Brasil. Veja-se que todos os direitos da personalidade são essenciais à existência das pessoas e ao seu convívio em sociedade, especialmente o direito ao nome, que é indispensável à individualização dos sujeitos, bem como para permitir a aplicação correta e justa de uma infinidade de dispositivos jurídicos. Em decorrência dessa necessidade é que, em regra, o nome constante do registro civil das pessoas naturais é imutável, salvo no que concerne às hipóteses delimitadas pela legislação infraconstitucional e por normas infralegais. Sua mutabilidade irrestrita pode ter consequências nefastas. Ocorre que, por ser um direito fundamental indispensável à convivência do indivíduo em sociedade, é possível que surjam novas possibilidades de modificação no nome civil após o registro, especialmente dirigidas à preservação da dignidade das pessoas. Nesse sentido, o Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC), especialmente a partir do Provimento 46 de 2015 do Conselho Nacional de Justiça, pode ser capaz de fornecer a segurança jurídica necessária para permitir a ampliação das hipóteses de mutabilidade do nome civil. 2. O direito ao nome como direito da personalidade e a importância do registro civil de pessoas naturais O nome civil é, sem dúvida alguma, um direito da personalidade, fundamental ao convívio das pessoas em sociedade. Antes de ser possível definir tais direitos, é essencial entender aquilo que se entende por personalidade para, no momento seguinte, compreender suas relações com o campo jurídico. A individualmente compreendida, corresponde ao modo individual de se portar diante de valores, assim como dirigir a própria vontade; já no sentido empírico-psicológico, no entanto, pode ser utilizada como sinônimo de caráter1. São, desse modo, indispensáveis a todas as pessoas. Em princípio, direitos humanos e direitos da personalidade são sinônimos. Aqueles, porém, são essenciais ao indivíduo no concernente ao direito público, no que concerne à proteção dos indivíduos em relação às arbitrariedades possíveis do Estado.2 Concatenam, todavia, às relações entre particulares, determinando sua defesa em detrimento de atentados perpetrados por outras pessoas3. Nessa classificação é que se encontra o direito ao nome, indispensável à individualização dos sujeitos e, consequentemente, para lhes atribuir qualquer direito. Os direitos da personalidade se encontram em constante expansão, com conteúdos deveras multifacetados. Com a evolução legislativa e o desenvolvimento do conhecimento jurídico, revelam-se novas situações que demandam proteção jurídica e, via de consequência, novos direitos são reconhecidos.4 Neste prisma, aqueles que constam da legislação são meramente exemplificativos, refletindo certo momento histórico, inclusive, por força do Art. 5º, §2º, do Texto Constitucional, que determina que os direitos e garantias não excluem outros posteriormente reconhecidos.5 Desse modo, os direitos de personalidade se submetem à evolução da sociedade na qual se encontram seus titulares, situação que torna impossível determinar que se encaixam em um rol exaustivo, devendo ser adaptáveis às modificações do meio no qual se inserem os sujeitos. Têm, assim, uma tipicidade aberta, de maneira que os tipos previstos na Constituição e na legislação civil são meramente enunciativos, de forma que não esgotam as situações que demandam tutela jurídica à personalidade6. O mesmo se aplica ao direito ao nome. Referido direito é amplamente protegido pela legislação brasileira, encontrando resguardo expresso no Código Civil de 2002, especificamente no art. 167, que assim determina: "Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome". O nome civil é o principal elemento de identificação da pessoa natural. Trata-se da designação pela qual se identificam e distinguem as pessoas naturais, nas relações de sua vida civil. Comporta: prenome e apelido de família, também denominado patronímico ou sobrenome.8 O nome da pessoa é o traço linguístico capaz de distingui-la dos demais indivíduos, permitindo, dessa forma, que se torne sujeito de direitos e obrigações específicas, exercitando plenamente sua capacidade e, consequentemente, os atos da vida civil. Portanto, o direito ao nome é um direito de personalidade por excelência. Trata-se, nesse sentido, do primeiro direito de toda pessoa humana, adquirido logo após o nascimento e que o acompanha por toda a vida. Trata-se de consequência e complemento de sua própria personalidade.9 Abrange, no entanto, espectro muito mais amplo, pois respeita à própria existência da pessoa10. Por se relacionar diretamente ao convívio entre os indivíduos, deve se adaptar às vicissitudes sociais. Nesse aspecto é que se faz necessário estudar sua imutabilidade. No direito romano, era possível tomar um nome pertencente a outrem. Caso isso ocorresse, seria fácil nascer a fraude, esta, sim, proibida. O regime de mutabilidade desapareceu, porque o interesse público conexo com o nome passou a se afirmar.11 Isso porque o Estado precisa individualizar exatamente os súditos por várias razões, para possibilitar a repressão penal, a atividade fiscal, a imposição de sanções civis, o recrutamento militar, dentre várias. Quanto mais numerosa é a sociedade, mais indispensável para a ordem pública é a individualização dos indivíduos.12 Por isso é que passou a vigorar a imposição da conservação do nome, surgindo a obrigação para com o Estado de se utilizar devidamente seu próprio epíteto, sendo excluída, dessa maneira, qualquer possibilidade de mudança arbitrária13, de modo a estabelecer segurança em relação a diversos atos jurídicos públicos e privados. Na maioria das vezes, os interesses de terceiros em relação à imutabilidade dos nomes das pessoas são de natureza econômica e, portanto, disponíveis. Já o interesse de uma pessoa quanto à alteração de seu nome é, em regra, conservar e exercer atributos de personalidade.14 Assim, o fundamento da imutabilidade do nome não é, historicamente, a proteção dos direitos da personalidade, mas, sim, o resguardo de legítimos interesses de terceiros. Referida situação, todavia, não corrobora os fundamentos ou as finalidades dos direitos da personalidade.15 Em decorrência disso, apesar de o princípio da imutabilidade do nome se dirigir à garantia da segurança jurídica e à estabilidade de diversos atos da vida civil, é que a legislação infraconstitucional traz exceções à referida norma, permitindo a modificação do nome civil. Referidas hipóteses contam, por exemplo, do §1º do art. 58 da Lei de Registros Públicos, no art. 43 do Estatuto do Estrangeiro e na Lei 9.807 de 1999. Além disso, a jurisprudência que admite sua flexibilização se não houver risco à segurança jurídica e à estabilidade dos atos da vida civil.16 Não se pode, portanto, estabelecer a imutabilidade do nome de maneira absoluta, tendo em vista que, por se tratar de um direito da personalidade, deve se adequar às vicissitudes sociais e até mesmo de autorreconhecimento. Apesar da necessária adaptabilidade ao contexto social no qual se insere, é impossível abrir mão da segurança jurídica. Nesse sentido, o Provimento 46, de 16 de junho de 2015, considera que a interligação via rede mundial de computadores (internet) entre os cartórios de registro civil das pessoas naturais, o Poder Judiciário e a Administração Pública atende ao interesse público, à racionalidade, à economicidade e à desburocratização da prestação de serviços públicos.17 O provimento instituiu a Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC), a ser operada por meio de sistema interligado, disponibilizado na internet, interligando os oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais e permitindo o intercâmbio de documentos e informações.18 Deveras, aprimora tecnologias dirigidas a viabilizar os serviços eletrônicos de registro civil das pessoas naturais, implantando o sistema nacional de localização de registros e solicitação de certidões e possibilita ainda interligações com o Poder Público e o Ministério das Relações Exteriores.19 Outrossim, deve ser integrada por todos os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais do Brasil, que deverão acessá-la para incluir dados, bem como deve permitir a consulta por entes públicos20. Trata-se, portanto, de instrumento claramente dirigido a aprimorar a segurança jurídica dos registros públicos, assim como sua publicidade e eficiência. 3. Conclusão A Central de Informações de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRC) é instrumento vital para os direitos da personalidade da sociedade brasileira, sendo capaz de prover a segurança jurídica necessária e permitir a evolução do direito ao nome, inclusive no que concerne ao alargamento das hipóteses de sua modificação, identificáveis na legislação, por exemplo, a testemunha em ação penal que foi ameaçada, ou mesmo o direito de mudança do prenome dos transexuais. Ocorre que em vários Municípios do País, os serviços extrajudiciais de registro civil de pessoas naturais (RCPN) são completamente deficitários, com praticamente renda de emolumentos baixíssima, já que vários atos (1ª via de certidões de nascimentos e óbitos) são gratuitos e o respectivo Oficial, dado que delegatário do Poder Público e não sendo servidor estatal, deve prover os meios para inserir tais dados no sistema, para que realmente se efetive a segurança necessária. A Constituição Federal, em seu artigo 236, caput preceitua: [...] art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público", assim, vislumbra-se que a atividade é pública, mas exercida em caráter privado, ou seja, o titular do Registro Civil de Pessoas Naturais sobrevive apenas com os emolumentos recebidos e eventuais ressarcimentos de atos gratuitos. Portanto, ao contrário do quê algumas pessoas imaginam, no sentido de que todos titulares de serventias extrajudiciais ("cartorários") do Brasil sejam abastados financeiramente, a realidade nua e crua é que a quase totalidade das serventias extrajudiciais do Brasil se constituem de registros civis de pessoas naturais deficitários, com poucas condições materiais, não tendo sequer condições de manter uma estrutura mínima de funcionamento, com funcionários e equipamentos, às vezes sequer tendo uma internet de qualidade. Sem sombra de dúvidas, portanto, que o Registrador Civil de Pessoas Naturais é elemento essencial para a documentação e segurança das pessoas e da sociedade. Neste ínterim é que se torna vital o exercício e a manutenção de tal função extrajudicial, relevante do início ao fim da vida do ser humano, havendo necessidade imperiosa de que os Tribunais de Justiça pátrios superem eventuais entraves e implementem uma renda mínima condigna, justa e razoável aos Oficiais de RCPN de todo o Brasil, na forma do Provimento 81, de 6 de dezembro de 2018. Tal asseguramento de renda mínima, proporcionará condições mínimas para um efetivo desempenho de uma produção registral de qualidade e com eficiência, com observância efetiva de todas as normas legais e observando a imperiosa inserção de dados confiáveis na Central de Registro Civil, prestando assim segurança jurídica à sociedade e ao próprio Estado, bem como mantendo a dignidade do Oficial de Registro Civil, o qual possui, dentre as serventias existentes, a maior capilaridade no Brasil.  *Robson Martins é doutorando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino. Mestre em Direito pela Universidade Paranaense. Especialista em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduado em Direito pela Universidade Paranaense. Procurador da República. **Érika Silvana Saquetti Martins é mestranda em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Público, Direito do Trabalho e Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Paranaense. Advogada. __________ Referências preliminares ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a existência registral e a identidade pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 13, v. 52, p. 203-243, out.-dez., 2012. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. 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São Paulo: Quorum, 2008, p. 181. 12 Ibidem, p. 182. 13 Idem. 14 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Op. Cit., p. 222-223. 15 Ibidem, p. 223. 16 Idem. 17 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento 46. 16 de junho de 2015, n.p. 18 Idem. 19 Idem. 20 Idem.
Introdução Uma das questões mais tormentosas no âmbito do Direito Notarial e Registral diz respeito à Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores. Foram diversos os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema no decorrer dos últimos anos. O estudo desse instituto exige uma breve reflexão sobre a natureza jurídica do Notário e Registrador, a forma como é concedida a titularidade do exercício de tais atividades, para, posteriormente, tratarmos das diversas fases e evoluções das teses sobre a Responsabilidade Civil até a posição atual do Supremo Tribunal Federal. Convém mencionar que os Notários e Registradores são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado a atribuição de velar pela segurança, validade, eficácia e publicidade dos negócios jurídicos. Em outras palavras, trata-se de agentes públicos, especializados na área de direito privado, encarregados pela segurança preventiva dos atos e negócios jurídicos. Agentes Públicos, na lição de José dos Santos Carvalho Filho (2006, p.487) A expressão agentes públicos tem sentido amplo. Significa o conjunto de pessoas que, a qualquer título, exerçam uma função pública como prepostos do Estado. Essa função, é mister que se diga, pode ser remunerada ou gratuita, definitiva ou transitória, política ou jurídica. O que é certo é que, quando atuam no mundo jurídico, tais agentes estão de alguma forma vinculadas ao Estado.  A atividade notarial e registral está prevista no artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil, da seguinte forma: Art. 236- Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público. (.....) Assim, observa-se que é uma Delegação com caráter constitucional para a prática de atividades notariais e registrais à serem exercidas em caráter privado. O titular da atividade notarial e registral é um particular, pessoa física, que recebe a delegação do Estado para a prática de certas atividades de natureza pública, titularizadas pelo Estado. Convém ressaltar aqui, que, ao contrário dos demais delegatários de serviços públicos, concessionários e permissionários, a atividade profissional exercida pelos Notários e Registradores não é material (como as obras e serviços concedidos pelo Estado) e, sim, de natureza jurídica e intelectual, tais como: prestar consultoria, formalizar juridicamente a vontade das partes, autenticar fatos jurídicos, dentre outras (artigo 6º da lei 8935/94). Para José dos Santos Carvalho Filho (2006, p.489), os Notários e Registradores são espécies de Particulares em Colaboração com o Poder Público. Uma espécie de agentes públicos que, embora particulares, executam funções especiais que se qualificam como públicas, sempre como resultado do vínculo jurídico que os prende ao Estado. No que concerne especificamente aos titulares de registros e ofícios de notas, cujas funções são desempenhadas em caráter privado, por delegação do Poder Público, como consigna o art. 236 da CF, sujeitam-se eles a regime jurídico singular, contemplado na lei 8935/94 (.....) (...) Apesar de a função caracterizar-se como de natureza privada, sua investidura depende de aprovação em concurso público e sua atuação se submete ao controle do Poder Judiciário, de onde se infere que se trata de regime jurídico híbrido.                No que tange à forma como é concedida a Delegação aos titulares destas atividades, destaca-se o previsto no artigo 236, § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 236- Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público. (.....) § 3º- O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou remoção, por mais de seis meses. São duas as formas de acesso ao exercício dos serviços notariais e de registro: o provimento pode se dar por ingresso ou remoção. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, ambas são modalidades de provimentos originários, e obedecem ao comando constitucional da necessidade de concurso por provas e títulos. Isso porque os serviços em questão, e as funções que lhe são inerentes, não se confundem com cargos públicos. Não são organizados em classes ou carreiras, de tal forma que o concurso de remoção não é uma promoção ou ascensão.  Os denominados Cartórios ou Serventias Extrajudiciais não possuem personalidade jurídica, de forma que todos os atos praticados são imputados ao Delegatário pessoa física e não à estes Órgãos. Outra importante questão à ser ressaltada é que, como Delegatários de um serviço de natureza pública, os Titulares se submetem a um controle estatal. Esse controle é feito pelo Poder Judiciário, conforme previsão no artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil. Tal poder fiscalizatório abrange a elaboração de normas técnicas e regulamentadoras, além da própria correição para análises de cumprimentos das normas legais as quais se submetem. É mister destacar, ainda, que os Titulares se submetem aos princípios constitucionais referentes à Administração Pública, por serem Agentes Públicos. Nesse diapasão, se submetem aos princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência. Feita este breve introdução, com objetivo de esclarecer aspectos importantes da atividade notarial e registral como forma de compreensão do objeto do trabalho, passaremos à abordar em seguida sobre a Responsabilidade Civil do Notário e Registrador, com a evolução histórica até chegarmos no posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal.  Da responsabilidade civil dos notários e registradores  Os Notários e Registradores se submetem à lei 8935/1994, chamada pela doutrina de Lei Orgânica dos Notários e Registradores. Esta tem o condão de regulamentar e disciplinar a atividade notarial e registral, tratando também dos direitos e deveres. O artigo 22 da citada lei, por sua vez, trata da Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores. Teve sua redação alterada pela lei 13286 de 2015, estabelecendo expressamente o seguinte: Art.22- Os notários e oficiais de registros são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizem, assegurado o direito de regresso. Parágrafo único. Prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, contado o prazo da data de lavratura do ato registral ou notarial. Já o artigo 23 da mesma lei, assim determina: Art.23- A responsabilidade civil independe da criminal. Da análise desses dispositivos, percebe-se que o legislador teve a intenção de adotar a responsabilidade subjetiva do Notário e Registrador. Assim, responderiam apenas nas hipóteses de atos ilícitos ou faltas de conduta, praticados pessoalmente ou por seus prepostos. Nesta última hipótese, teriam direito de regresso em face de seus prepostos quando estes tivessem agido com dolo ou culpa. No que tange à responsabilidade civil, a doutrina de Luiz Guilherme Loureiro (2019, p.118) A responsabilidade civil pode ser definida como sendo a obrigação que recai sobre o autor de um ato contrário ao direito de reparar o dano causado à vítima. Esta definição se aproxima do conceito clássico de Savatier, para quem "responsabilidade civil é a obrigação que pode incumbir a uma outra pessoa de reparar o dano causado à outrem, por seu fato, ou pelo fato de outrém ou de coisa dependente dele." Depreende-se deste conceito que instituto da responsabilidade civil responde a uma preocupação de reparação ou indenização de vítimas. No entanto, este não era o entendimento doutrinário e jurisprudencial à respeito do tema antes da alteração legislativa citada. Antes do advento da lei alteradora 13286/2015, a redação do artigo 22 da lei 8935/94, era a seguinte: 'Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.'                Percebe-se da leitura da norma anterior à nova redação que o legislador não falava em dolo ou culpa do Titular da Serventia. Surgiram, assim, diversas interpretações doutrinárias e jurisprudências ao longo dos anos. Para Walter Ceneviva (2010, p.152-155), a responsabilidade nesses casos, à época da redação original do citado artigo 22 da lei 8935/1994, era objetiva do Estado. Partia do princípio de que o Supremo Tribunal Federal vinha entendendo que os delegatários seriam servidores públicos "lato sensu" e, que por esta razão a responsabilidade do Estado seria objetiva, em obediência ao disposto no artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil. Emerge com a afirmação de que a dupla condição de agente público e de atuante em caráter privado suscita a persistência da responsabilidade do Estado pelos danos causados. Cabendo Ação de regresso em face do Titular da Serventia que ocasionou de fato o dano. Esta também era a posição de Abrão Nelson (1996, p.182-183 e 187): Na interpretação do artigo 37, § 6º da lei Maior, sem a menor margem de imprecisão, torna-se constatável que a responsabilidade do Estado se afigura direta pelos atos, em sentido amplo, causados por seus agentes, sinalizando um contexto no qual o lesado exporá o direito violado, na junção do dano e seu respectivo nexo causal. Bem por tal preceito, dispensável a demonstração de culpa do Notário, em virtude da possibilidade primeiro de ser acionado o Estado, que na linha de responsabilidade objetiva, ficará obrigado, a reparar, inclusive o dano moral, presentes o prejuízo e o nexo causal descritos. Da leitura de tais atores renomados e especialistas na matéria, verifica-se que havia uma corrente doutrinária forte no sentido de que era o Estado quem responderia objetivamente, com base no artigo 37, §6º da Constituição da República Federativa do Brasil. Tal responsabilização do Estado se dava, baseado na Teoria do Risco Administrativo. Como o Estado tem maior poder e mais prerrogativas do que seus administrados, não seria justo, para esta doutrina que, diante de prejuízos oriundos de um serviço em que é delegado a um particular, mas de titularidade do Estado, tivesse o usuário de um serviço público que se empenhar demasiadamente para conquistar o direito à reparação dos danos. Assim, bastava comprovar o nexo de causalidade entre a conduta praticada e o dano, pra poder responsabilizar diretamente o Estado delegante do serviço. Ainda no campo doutrinário, se encontrava à época vozes dissonantes deste entendimento. Para Leonardo Brandelli (2016, p.126-133), a responsabilidade seria direta do Registrador e de forma subjetiva, mesmo a época da antiga redação. Em primeiro lugar, o artigo 37, § 6º da Constituição Federal, que institui a responsabilidade civil objetiva, ao asseverar que "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa", não se aplicam aos Registradores. Ele parte da idéia de que esta norma é voltada as pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos, ao passo que o Registrador é uma pessoa física e, como dito anteriormente, as Serventias extrajudiciais são Órgãos desprovidos de personalidade jurídica. No entanto, por muitos anos, essa tese defendida por Leonardo Brandelli não foi adotada pela maioria da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais Superiores. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, em diversos julgados, entendeu que, por receber delegação de uma atividade estatal, os Notários e Registradores agiam por sua conta e risco, nos moldes das concessões e permissões. Assim, o Delegatário responderia diretamente pelos danos causados de forma objetiva, ou seja, sem a necessidade de se comprovar culpa ou dolo. Se utilizava do fundamento de que o artigo 22 da lei 8935/1994 era claro ao estabelecer a responsabilidade dos Notários e Oficiais de Registros por danos causados a terceiros, não permitindo a interpretação de que o Estado deveria responder de forma solidária. Caberia ao Ente Delegante a responsabilidade apenas subsidiária, ou seja, só responderia caso o Delegatário não tivesse condições de arcar com o pagamento, havendo, assim, uma espécie de benefício de ordem. Em um caso específico, o mesmo Superior Tribunal de justiça, no Resp. 1.163.652/PE, com julgamento em 1/6/2010, entendeu que aplicar-se-ia o Código de Defesa do Consumidor nas relações entre os Notários e Registradores e o usuário do serviço público. Quanto à esta última decisão citada, entretanto, a doutrina majoritária rechaça a possibilidade de aplicação do código consumerista nestas relações. Não se aplicaria porque os serviços notariais e de registro gozam de natureza de serviço público típico, comparável ao serviço de peritos judiciais, sendo os emolumentos forma de remuneração com natureza de tributo, o que, por conseguinte, supostamente, implica refutar a destinação de tais serviços ao mercado de consumo.  Já para o Supremo Tribunal Federal, à época da antiga redação do citado artigo 22 da lei 8935/1994, o entendimento que predominava era também de que o Notário e Registrador tinha a responsabilidade objetiva, pois deviam ser equiparados aos concessionários e permissionários de serviços públicos. No entanto, essa Corte entendia que havia responsabilidade solidária do Estado. Assim, percebe-se que os Tribunais Superiores eram uníssonos no entendimento de que aqueles profissionais de direito deveriam responder diretamente e de forma objetiva. A divergência entre eles apenas se dava em relação à forma como o Estado deveria responder: de forma solidaria ou subsidiária. Com o advento da lei 13286, em 2015, que veio a por fim à polêmica da interpretação da citada norma, como dito anteriormente, fazendo prever expressamente no texto a necessidade de que a conduta tenha sido praticada mediante dolo ou culpa, a doutrina passou a acreditar que estava pacificada a questão. Nos dizeres de Luiz Guilherme Loureiro (2019, p.119) Em suma, a responsabilidade civil dos Notários e Registradores é subjetiva: eles respondem apenas nas hipóteses de atos ilícitos ou faltas de conduta, praticados pessoalmente ou por seus prepostos. Nesta última hipótese, os primeiros têm direito de regresso contra os segundos quando estes tiverem agido com dolo ou culpa próprios, ou seja, quando agirem contrariamente às regras e modelos colocados pelos titulares do serviço. Aliás, esse é o regime de responsabilidade aplicado aos funcionários públicos, aos agentes políticos e aos profissionais liberais, regulamentados ou não, consagrado não apenas pelo ordenamento pátrio mas também pelo direito comparado. Mas, diferente dos demais profissionais jurídicos, a responsabilidade dos Notários e Registradores não é de meio e sim de resultado. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em 27 de fevereiro de 2019 em sede de recurso extraordinário nº 842.846 com repercussão geral, entendeu que o Estado deve responder diretamente e de forma objetiva, por força do disposto no artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil, devendo ser proposta contra o Estado ou Distrito Federal, a qual é vinculado aquele Delegatário que causou o dano. Tendo o Ente Federativo o dever de regresso em face do Delegatário causador do dano, se tiver agido com dolo ou culpa, sob pena de responder por Improbidade Administrativa. Nesse sentido, Ministro Luiz Fux, relator da Ação em sua decisão fez constar que, não obstante o exercício da atividade se dê em caráter privado, por delegação do Poder Público, o regime de direito público norteia relevantes aspectos desta atividade. Como a atividade é estatal e o titular é o Estado, caberia à este responder nos termos do artigo 37, § 6º da Carta Magna. Repare-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal corroborou com a tese da responsabilidade subjetiva do Delegatário, ao afirmar que caberá regresso em face deste, se tiver agido com dolo ou culpa.  Assim, seja como for, a questão está pacificada no nosso país. Considerações finais O presente trabalho tratou da natureza jurídica da atividade notarial e registral como um serviço público de natureza jurídica e intelectual exercido por uma pessoa física, aprovada em concurso público de provas e títulos que recebe uma Delegação do Ente Federativo, com status constitucional. As atividades próprias estão elencadas na lei 8935/1994. Tratamos, aqui, também, de estabelecermos a natureza jurídica do Notário e Registrador como um Agente Público da espécie Particulares em Colaboração com o Poder Público. Tal introdução foi de suma importância pra tentarmos compreender todas as controvérsias e nuances à respeito da Responsabilidade Civil do Notário e Registrador edo Estado Delegante. Foram apresentadas as posições doutrinárias à respeito das diversas interpretações do artigo 22 da lei 8935/94 realizadas ao longo dos anos, antes e depois da alteração feita pela lei 13286 de 2015, assim como os posicionamentos dos Tribunais Superiores. Coaduno com o entendimento de parte da doutrina de que a responsabilidade deve ser direta do Notário e Registrador por força do previsto no artigo 22 da lei 8935/1994, na modalidade subjetiva. É que o comando constitucional do artigo 37, § 6º da Carta Magna faz alusão à uma responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e das de direito privado prestadoras de serviços públicos. A Delegação é feita a um particular, pessoa física que pratica os atos sob sua conta e risco. As Serventias Extrajudiciais são desprovidas de personalidade jurídica e possuem a natureza de centros de atribuições para as práticas de atos previstos na lei 8935/94 e, dentro das circunscrições autorizadas a atuar nos termos das Organizações Judiciárias de cada Estado. Assim, a responsabilidade deve ser subjetiva, frente à nova redação dada ao artigo 22 da lei 8935/1994. No que se refere à responsabilidade do Estado, nesses casos, entendo ser a mais correta a corrente que a trata como de natureza subsidiária. Esta se dá em decorrência da titularização da atividade e da natureza de serviço público. Assim, na insuficiência de recursos pelo Titular de Serventia para arcar com a indenização ou compensação de dano, o Ente Delegante deve ser acionado para o pagamento de tais verbas ao prejudicado. Só poderíamos entender que a Responsabilidade seria solidária se houvesse norma constitucional tratando da responsabilidade direta dos Estados, nesses casos. É regra máxima do direito ciivl que solidariedade não se presume; decorre de lei ou da vontade das partes, conforme o disposto no artigo 265 do Código Civil Brasileiro. Outro fundamento importante para afastarmos a solidariedade aqui é que se a responsabilidade do Estado é objetiva e a do Notário ou Registrador é subjetiva, entender que haveria solidariedade seria trazer uma discussão à respeito de dolo ou culpa à uma ação em que o Estado figurando no pólo passivo bastaria comprovar o nexo de causalidade e o dano. Não obstante este posicionamento, conforme exposto neste trabalho, não foi o seguido pelo Supremo Tribunal Federal. A Suprema Corte pacificou o tema ao tratar como de responsabilidade direta e objetiva do Estado com a necessidade de entrar com ação de regresso em face do Notário ou Registrador causador do dano, sob pena de incorrer em ato de improbidade administrativa. Referências ABRÃO, Nelson. DIREITO BANCÁRIO. São Paulo. Saraiva, 1996. BRANDELLI, Leonardo. USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA. São Paulo. Saraiva. 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.163.652/PE. Disponível aqui. Acesso em 22 out. 2019. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 842.846. Disponível aqui. Acesso em 22 out. 2019. CARVALHO FILHO, José dos Santos. MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2006. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. 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Em finanças, swap (em português, permuta) é uma operação em que há troca de posições quanto ao risco e à rentabilidade, entre investidores. O contrato de swap no mercado financeiro pode ter como objeto, commodities, ativos financeiros ou moedas. Muito mais abrangente que o objeto deste artigo, as operações Barter. A operação de barter, vai além da simples permuta, pois é conhecida no Brasil como uma negociação realizada entre produtores rurais e empresas de insumo, ou cooperativas de crédito rural. O que se faz, comumente, é o pagamento dos insumos com o produto a ser futuramente colhido pela propriedade rural. Via de regra não há intermediação monetária e o acordo é realizado no momento de o produtor receber o insumo, mas pode se dar até antes da colheita, e o um dos meios do credor se resguardar será pela emissão pelo devedor da Cédula de Produto Rural (CPR). Essa operação é utilizada no Brasil desde 1990 com a publicação da lei 8.929/90 e ganhou força a partir do ano de 2001 com a possibilidade de se realizar ainda a Cédula de Produto Rural Financeira, com modificação da lei 8.929/94 pela lei 10.200/2001. Logo, ela garante ao agricultor a compra por insumos, sem que haja a necessidade de tirar dinheiro do bolso. A operação barter, entretanto, não se trata de uma simples negociação de troca ou escambo, como as práticas tradicionais de mercado, uma vez que nas operações barter, estas têm liquidação financeira diretamente pela parte interessada nos produtos agropecuários (offtaker - cooperativas, traders, indústrias processadoras de alimentos, etc.) e que esteja com seu preço fixado, ou preço mínimo, típico das operações hedge. O hedge é uma opção que mitiga riscos, mas não será objeto deste paper1. As operações Barter, em agronegócio, significa o pagamento pelo insumo através da entrega do grão na pós-colheita, ou mesmo produto agropecuário, sem a intermediação monetária, servindo como eficiente mecanismo de financiamento de safra. Ou seja, a troca de insumos, como fertilizantes, sementes, defensivos, entre outros, por produtos agropecuários, como cana, açúcar, soja, milho, algodão, sorgo, aveia, café, e demais após a colheita. Não é comum, mas até mesmo arrobas de boi podem ser objeto da operação barter. O serviço de barter é oferecido no Brasil por diversas companhias e entre estas pode-se exemplificar a Bayer, Monsanto, Cargill e Bunge, que financiam o produtor em troca dos grãos que serão colhidos mais tarde. As operações Barter e os riscos no agronegócio Qualquer atividade econômica envolve riscos, as operações barter, inclusive. Em tempo de pandemia, mais ainda2. Convém analisar o que seria o risco para o agronegócio e as operações barter. O risco em si, é evento natural do capitalismo e está associado à probabilidade de fracasso de um dado evento. Alguns fatores de risco para o agronegócio são: as crises políticas e econômicas internas; os problemas de ordem sanitária ou ambiental; o clima; a economia mundial, demanda por alimentos, câmbio e retração do mercado (vide a atual situação com a pandemia Covid-19) e as relações familiares e impactos na gestão do negócio. Pode-se classificar ainda os riscos em naturais, mercadológicos, financeiros e pessoais. Os riscos naturais, podem ser: a) tecnológicos, como a defasagem tecnológica, dificuldade de acesso à tecnologia, desconhecimento, etc.; b) climáticos como ocorrência de  granizo, excesso de chuva, seca, vendavais, temperaturas inadequadas à produção; c) biológicos locais, como a ocorrência de pragas, doenças, cultivares inadequados, etc.; d) biológicos extrínsecos, como a ocorrência de uma pandemia, impensável há poucos meses. Os riscos mercadológicos podem ser exemplificados como, a) mudança de hábitos do consumidor; b) variação do preço do produto dentro do ciclo biológico; c) Inflexibilidade do negócio, pela dificuldade em mudar de atividade em momentos de crise; d) dificuldades na exportação por diversos motivos. Os principais riscos financeiros são: a) dívidas muito elevadas do produtor que proporcionaria maior risco financeiro; b) juros altos; c) consumo e investimento, se o produtor rural gastar todo o dinheiro em consumo e nada em investimento/poupança, o seu futuro estará em risco, em caso de frustrações totais ou parciais de safra, isto é não deixa margem para eventual risco financeiro. Já os riscos pessoais são mais difíceis de serem previstos, pois é uma questão de confiança do credor, só se sabe sobre ele conhecendo bem o produtor, sua família e sua estrutura produtiva. Estes riscos podem ser de saúde (doença e acidentes pessoais do produtor, familiares ou colaboradores); de quebra de situação familiar, como brigas internas de família, separação ou divórcio; fim de sociedade; e alteração do objetivo do negócio. Dentre estes riscos, pode-se citar ainda a falta de conhecimento do que se pretende praticar, e aventurar-se em plantio de grãos desconhecidos, por exemplo, poderá aumentar o risco pois pode não conhecer a atividade; ter dificuldade de acesso às informações; não se adequar à nova atividade, e basear-se em processos produtivos de outra lavoura, por exemplo, ou outra criação de animais e tentar transpor a mesma experiência da produção anterior e esta ser totalmente inadequada. Minimizando riscos da operação Barter e lastreadas em títulos de crédito. Os títulos de crédito utilizáveis para garantir as operações barter normalmente são a Cédula de Produto Rural (CPR)3, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA)4, a Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), os três últimos títulos de crédito, trazidos pela lei 11.076/2004. Por certo que outros títulos de crédito ou mesmo contratos agrários poderão garantir tal operação, como uma permuta por instrumento particular ou mesmo escritura pública de bens agrários, dentre outros, mas este paper abordará apenas as Cédulas de Produto Rural. O conceito de título de crédito formulado por Cesare Vivante, "título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado" dá a exata noção do instituto. Dessa definição defluem três requisitos mínimos, como a literalidade, a autonomia e a cartularidade. A literalidade é o princípio segundo o qual somente produzem efeitos jurídico cambiais os atos lançados no próprio título de crédito. Já a uma concepção de autonomia nos títulos de crédito, tem-se que cada obrigação que deriva do título é autônoma em relação às demais, de modo que os vícios que comprometem a validade de uma relação jurídica documentada no título, não se estendem às demais relações abrangidas no mesmo documento. A cartularidade é princípio, segundo a qual o exercício dos direitos representados pelo título de crédito pressupõe direito ao possuidor de exercê-lo, pois o tem em sua posse. Outro princípio (ou sub-princípio) é o da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. Por este, o executado em virtude de um título de crédito não pode alegar, em seus embargos, matéria de defesa estranha à sua relação direta com o exequente, salvo se comprovada má-fé deste. Visto pequeno introito sobre os títulos de crédito, será necessário estudar a Cédula de Produto Rural. A Cédula de Produto Rural (CPR) O objeto de análise neste ponto do trabalho são os títulos cambiariformes, especificamente as cédulas que incorporam créditos destinados às atividades rurais, industriais, comerciais e bancárias, cuja ordem na exposição, atende apenas à cronologia acerca do surgimento de tais cédulas no direito positivo nacional. As rurais, como as Cédulas de Produto Rural (CPR) será o corte epistemológico para analisar as operações de barter. Para Rubens Requião5, os títulos cambiários são melhores classificados, para fins didáticos, com relação à sua natureza e, portanto: Classificam-se em abstratos e causais. Os títulos abstratos são os mais perfeitos como títulos de crédito, pois deles não se indaga a origem. Vale o crédito que na cártula foi escrito. Títulos causais são aqueles que estão vinculados, como um cordão umbilical, à sua origem. Como tais, são imperfeitos ou impróprios. São considerados títulos de crédito pois são suscetíveis de circulação por endosso, e levam neles corporificada a obrigação. A duplicata, os conhecimentos de transporte, as ações, são deles exemplo. Entre os títulos causais ou impróprios podemos distinguir os que constituem comprovante de legitimação do credor, e são geralmente declarados intransferíveis - bilhetes, passagens, cadernetas de Caixa Econômica, vales e tíquetes e outros que são títulos de legitimação, que são direitos transferíveis, tais como vales postais, cautelas de penhor ao portador. Enquanto nos comprovantes de legitimação o possuidor se legitima como contraente originário, nos títulos de legitimação quem for possuidor legitima-se como cessionário eventual. O título nesse caso é probatório e prova o contrato. O primeiro opera em favor do devedor; o segundo, título de legitimação, opera em favor de ambos, devedor e credor (Ascarelli). Entre os títulos causais ou impróprios poderíamos incluir um grupo de títulos chamados representativos, nos quais a circulação importa a transferência da mercadoria a que se referem: conhecimento de transporte ferroviário ou marítimo, warrant e conhecimento de depósito, expedidos pelos armazéns gerais. As cédulas de crédito, nesta classificação são ditas como títulos cambiariformes causais. A Cédula de Produto Rural, portanto, é um título de crédito cambiariforme. Instituída pela lei 8.929/1994, a Cédula de Produto Rural (CPR) é um título de crédito representativo da promessa de entrega de produto rural, com ou sem garantia cedularmente constituída6. Se não for constituída a garantia, será chamada de Nota de Produto Rural. A lei 8.929/1994 prevê que as operações podem ser constituídas com garantias reais, como o penhor rural7, a hipoteca8 e a alienação fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis9. O emitente cedular, em tese, poderia dispor dos elementos do título, desde que nele constem os requisitos essenciais estabelecidos pela Lei da Cédula de Produto Rural e principalmente nas normativas infra legais do BACEN. Doutrinariamente, considera-se a existência de duas modalidades de CPR, a física, e a financeira10. O registro das garantias das Cédulas de Produto Rural Com a redação da lei 13.986/2020, sua constituição após 01 de janeiro de 2021  para ter validade e eficácia, deverá ser registrada ou depositada, em até 10 (dez) dias úteis da data de emissão ou aditamento, em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros ou de valores mobiliários11. Entretanto não retirou a publicidade do registro das garantias reais, ao estipular, no parágrafo primeiro do artigo 12 da Lei, que a constituição de qualquer garantia real será realizada junto as serventias registrais imobiliárias onde estiverem localizados os bens dados em garantia. Na sequência, o parágrafo 2º atecnicamente diz que: A validade e eficácia da CPR não dependem de registro em cartório, que fica dispensado, mas as garantias reais a ela vinculadas ficam sujeitas, para valer contra terceiros, à averbação no cartório de registro de imóveis em que estiverem localizados os bens dados em garantia, devendo ser efetuada no prazo de 3 (três) dias úteis, contado da apresentação do título ou certidão de inteiro teor, sob pena de responsabilidade funcional do oficial encarregado de promover os atos necessários (grifo nosso). Ressalta-se o prazo de deposito em dez (10) dias úteis em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros, que realizará mero depósito, sem qualificação registral, apenas digitalizará, digitará ou será transmitido eletronicamente os dados do título. Já perante os registros imobiliários e de títulos e documentos, que exercem qualificação registral12-13 o prazo é mais curto, ou seja, três (3) dias, invertendo a lógica temporal em face a complexidade da execução de cada mister. E em caso de bem móvel, o parágrafo 4º comete o mesmo equívoco e diz, novamente, que a CPR será "averbada" na Serventia Registral de Títulos e Documentos do domicilio do emitente. A Cédula de Produto Rural conceitualmente é tida como um título líquido e certo, exigível pela quantidade e qualidade de produto nela previsto, que pode ser emitido por produtor rural, cooperativa ou outra associação de produtores rurais. A doutrina a classifica como um título de crédito livre, mas a regulação deste título engessa sua emissão, pois o Banco Central regula de tal forma que diríamos que é de emissão "quase vinculada". As inúmeras resoluções do Banco Central do Brasil são um emaranhado de atos normativos, que ao examinar algumas delas deixa a desejar a clareza com que trata determinados assuntos, como a seguir: 20 - A eficácia das garantias reais contra terceiros depende de registro nos cartórios ou órgãos competentes. (Res 3.239). 21 - Não se registra o penhor cedular, cuja eficácia contra terceiros nasce com a inscrição da cédula no cartório competente. (Res 3.239)14.  O item 20 da resolução do BACEN está de acordo com o sistema legal, isto é, Código Civil de 2002 e Lei de Registros Públicos. Já o item 21, daria ao leigo margem interpretativa totalmente errônea, vez que o penhor cedular, normalmente rural como penhor especial que é, necessita de seu registro para sua validade e eficácia erga omnes no Livro 3 da Serventia Registral competente15. O próprio parágrafo 2º do artigo 12 da lei 8.929/1994 prevê, como dito antes, sem técnica jurídica, a averbação do penhor. Confusas as disposições desta resolução. Do texto legal, com a redação da lei 13.986/2020 percebe-se que o mecanismo da cédula de produto rural foi profundamente alterado pela nova legislação. Como previamente estudado, deduz-se que, apesar da lei 13.986/2020 ter alterado o texto legal das Cédulas de Produto Rural, os registros das garantias reais serão feitos na Comarca (ou Circunscrição) Registral Imobiliária respectiva. Permanecem intactas as disposições referentes ao registro imobiliário das garantias, pois, mesmo que a CPR seja depositada em entidade autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil, as garantias reais, para sua oponibilidade erga omnes, faz-se necessária. *Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Especializado em Direito Civil e Processo Civil pela UES. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Professor da graduação e da pós-graduação de Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios. Atual diretor de assuntos Agrários do IRIB. Autor de diversas obras em coautoria sobre temas registrais. __________ 1 Proteção para Riscos Financeiros: Como funciona o Hedge na prática. Acesso em 4 de agosto 2020. 2 GUEDES, Paulo Roberto. É preciso discutir o que é essencial: combater a pandemia, minimizar seus efeitos e evitar riscos na retomada da atividade econômica. Disponível aqui. Acesso em 3 de agosto 2020. 3 Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994. 4 Lei 11.076, de 30 de dezembro de 2004. 5 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol. 2, 29. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2012.   6 Art. 1º - Fica instituída a Cédula de Produto Rural (CPR), representativa de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas.  7 Art. 7º - Podem ser objeto de penhor cedular, nas condições desta lei, os bens suscetíveis de penhor rural e de penhor mercantil, bem como os bens suscetíveis de penhor cedular. 8 Art. 6º - Podem ser objeto de hipoteca cedular imóveis rurais e urbanos. Parágrafo único. Aplicam-se à hipoteca cedular os preceitos da legislação sobre hipoteca, no que não colidirem com esta lei. 9 Art. 8º - A não identificação dos bens objeto de alienação fiduciária não retira a eficácia da garantia, que poderá incidir sobre outros do mesmo gênero, qualidade e quantidade, de propriedade do garante. § 1º A alienação fiduciária de produtos agropecuários e de seus subprodutos poderá recair sobre bens presentes ou futuros, fungíveis ou infungíveis, consumíveis ou não, cuja titularidade pertença ao fiduciante, devedor ou terceiro garantidor, e sujeita-se às disposições previstas na lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e na legislação especial a respeito do penhor, do penhor rural e do penhor agrícola e mercantil e às disposições sobre a alienação fiduciária de bens infungíveis, em tudo o que não for contrário ao disposto nesta Lei. (Incluído pela lei 13.986, de 2020) 10 Alguns doutrinadores, como Renato Buranello, falam em cédula de produto rural à exportação, o que discordamos, pois não se trata de modalidade e sim de finalidade. In: BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. [livro eletrônico]. São Paulo: Saraiva, 2013, c. I, item 1.2. 11 Art. 12. A CPR emitida a partir de 1º de janeiro de 2021, bem como seus aditamentos, para ter validade e eficácia, deverá ser registrada ou depositada, em até 10 (dez) dias úteis da data de emissão ou aditamento, em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou de depósito centralizado de ativos financeiros ou de valores mobiliários. (Redação da pela lei 13.986, de 2020). 12 Sobre qualificação registral vide: Qualificação registral - nótula sobre a terminologia do mister registral. JACOMINO,  Sergio: "A expressão qualificação registrária ou registral se insinuou de maneira discreta em nosso ambiente cartorário, substituindo o chamado exame de legalidade dos documentos - ou simplesmente exame de legalidade dos títulos - expressões que frequentaram assiduamente os registros prediais pátrios e era como se denominava a atividade nuclear do registrador na praxe cartorária". Disponível aqui. Acesso em 3 de agosto 2020. 13 A qualificação registral imobiliária é imperiosa à harmonização, à observância a um sistema de legalidade, e vai além dos princípios registrais, pois a moralidade é um objetivo maior, ultimando na dignidade da pessoa humana. Este deveria ser o objetivo do legislador ao municiar o registrador imobiliário com ferramentas jurídicas para que este pratique a prudência registral (jurisprudência). 14 Crédito rural. 15 Veja-se o art. 1.438 do Código Civil, "Constitui-se o penhor rural mediante instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição em que estiverem situadas as coisas empenhadas".
Introdução Em exórdio, importante destacar que, nos julgamentos dos Recursos Especiais 646.721/RS e 878.694/MG pelo Supremo Tribunal Federal, ficou definido que é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/02, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002. Com esse recurso de repercussão geral (pacificando o entendimento ao aplicar à união estável os mesmos direitos previstos no Código Civil para o casamento), o convivente supérstite concorre, hoje, com os outros parentes sucessíveis, conforme o inciso III do artigo 1.790 do CC/02. Como segundo entendimento a ser considerado importa destacar que, no regime de separação legal (ou obrigatória) de bens, regime objeto do presente, fixou-se o que a doutrina denomina de "separação relativa ou limitada", por se comunicarem os bens adquiridos na constância do casamento (Súmula 377, STF). Mas, em relação aos bens particulares, o cônjuge ou companheiro, sob esse regime, não concorrerá (como herdeiro) por expressa vedação do art. 1.829, I, do CC/02, posto que implicaria em burla à restrição protetiva da separação obrigatória. A regra protetiva subsiste, embora já reconhecida judicialmente como incompatível com dignidade da pessoa humana, igualdade e intimidade (TJSP, 2ª Câmara, Apelação 7.512-4-SJRPreto, j. 18-8-1998). Por derradeiro, temos o entendimento dominante fixando qual o regime de bens que deve vigorar nas uniões estáveis entre septuagenários, segundo o qual, como esclarece Mário Luiz Delgado (2015): "tem prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável à união estável entre septuagenários é o da separação obrigatória (REsp 646.259/RS)". Levando-se em consideração, pois, os regramentos acima delineados, podemos nos deparar com uma situação que merece a devida reflexão. Uma união estável envolvendo septuagenário, por ocasião de sua sucessão, pode resultar em um enquadramento contrário à vontade dos herdeiros, qual seja: a hipótese em que pessoa do convivente supérstite não fará jus à meação, posto que sofrerá a incidência da restrição protetiva do regime obrigatório. E nem fará jus à herança, caso o falecido só deixe bens particulares (adquiridos antes do início da convivência), cuja sucessão é vedada pelo art. 1.892, I, do CC/02. Em suma: não será meeiro nem herdeiro. Com efeito, caso os herdeiros - em reconhecimento pelo fato notório de ter sido a pessoa companheira uma valorosa companhia de vida da falecida, por exemplo - insistirem em atribuir direitos (patrimoniais) ao companheiro supérstite (que se encontrar na referida lacuna jurídica), surgem apenas duas alternativas: 1. Contemplar o convivente supérstite com uma doação no corpo do inventário extrajudicial, recolhendo o tributo de transmissão "inter vivos" e ainda arcando com os emolumentos adicionais; 2. Ou afastar a desinteressante incidência da restrição protetiva da separação obrigatória de bens, pura e simplesmente, atribuindo-lhe os meritórios direitos de meeiro e, principalmente, os de herdeiro para o caso existirem só bens particulares. A repercussão jurídica da adoção da segunda e polêmica opção pode representar algo de difícil operacionalização perante o notário e sua temida responsabilidade subsidiária tributária no caso de o Fisco discordar desse direito dos herdeiros. Contudo, como será demonstrado adiante, não se pode negar uma odiosa restrição à liberdade contratual dos próprios titulares dos direitos que, justamente, a norma cogente (regime obrigatório) objetiva tutelar. Um contrassenso que merece o devido ajuste, bastando o emprego do raciocínio lógico, como será demonstrado.  Do regime de bens da união estável septuagenária reconhecida extrajudicialmente A liberdade que aqui se pretende seja reconhecida aos herdeiros - consistente em fixar o regime que quiserem conforme o mérito que porventura desejem reconhecer ao convivente supérstite - encontra apoio tanto na corrente contrária à pretensão pretoriana de igualitarismo exagerado entre união estável e casamento (por violar o princípio constitucional da liberdade) como também, ainda que paradoxalmente, nos próprios fundamentos dos julgados que buscam sempre a extensão (do regime da separação obrigatória de bens, em razão da senilidade) às hipóteses de união estável. (DELGADO, 2015). Como afirma Fernanda Pederneiras (2020), a regra protetiva do regime de bens da separação "parte da premissa de que o casamento do idoso estaria sempre atrelado a interesses financeiros", retirando do nubente o arbítrio de se sujeitar ao formato de casamento que melhor entender. Como primeiro sinal de enfraquecimento dessa anacrônica premissa, caso a união estável iniciada "antes" do advento da idade, poder-se-á afastar tal regime, conforme entendimento do enunciado 261, da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, in verbis, "a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade". Nesse diapasão, também é o entendimento jurisprudencial que, no julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Recurso Especial 1.318.281/PE, assim definiu: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. MATRIMÔNIO CONTRAÍDO POR PESSOA COM MAIS DE 60 ANOS. REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. CASAMENTO PRECEDIDO DE LONGA UNIÃO ESTÁVEL INICIADA ANTES DE TAL IDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. O artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos, previa como sendo obrigatório o regime de separação total de bens entre os cônjuges quando o casamento envolver noivo maior de 60 anos ou noiva com mais de 50 anos. 2. Afasta-se a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico. 3. Interpretação da legislação ordinária que melhor a compatibiliza com o sentido do art. 226, §3º, da CF, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. 4. Recurso especial a que se nega provimento. Grifos Nossos Constata-se do julgado supramencionado o reconhecimento pelo Judiciário de que a regra foi estabelecida quando da "necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos havidos de última hora por interesse exclusivamente econômico". Além disso, o próprio intérprete legal fixa a existência da anterioridade da existência da união Estável como balizador do afastamento do regime legal de bens. De fato, também em sentido contrário ao sentido da regra protetiva, grande parte da doutrina defende até mesmo a inconstitucionalidade da imposição do regime de separação obrigatória aos idosos, tendo como base a violação de princípios como da isonomia, da liberdade e da dignidade humana. (Boechat Cabral e Gama Figueiredo, 2012). Noutros julgados em mesmo sentido, buscou a mitigação do regime da separação legal em homenagem ao princípio da variedade de regimes (ou da autonomia), pelo qual a lei coloca à disposição dos nubentes vários modelos de regime de bens. Tal princípio indica que, portanto, a lei não impõe um regime matrimonial; mas, sim, garante aos cônjuges a máxima liberdade na escolha do regime que melhor atenda a seus interesses. Em virtude disso, o provimento 08/2016 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Pernambuco passou a permitir ao idoso a elaboração de pacto antenupcial, permitindo-lhe afastar a norma cogente do regime da separação legal e optar pelo regime mais severo da separação convencional (ou absoluta). Afastando-se, "voluntariamente", tanto a incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal quanto a norma cogente do regime legal. Nesse mesmo sentido foi a decisão da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo no Recurso Administrativo 1065469-74.2017.8.26.0100, que assim entendeu: REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS - CASAMENTO - PACTO ANTENUPCIAL - SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA - ESTIPULAÇÃO DE AFASTAMENTO DA SÚMULA 377 DO STF - POSSIBILIDADE. Nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória. O que se constata é que, ao se dar opção aos nubentes ou companheiros septuagenários de afastar a imposição da Súmula 377 e, por conseguinte, do regime legal de bens, isso se constitui num verdadeiro exercício da autonomia privada. Portanto, seria a concretização eficaz de um planejamento familiar em um ato público, que é o pacto antenupcial. (TARTUCE, 2016) A corrente contrária ao referido pacto antenupcial, por sua vez, critica por entender que, se a separação é obrigatória, significa retirada a faculdade de escolha do regime de bens. Para essa doutrina, tal pacto seria nulo por fraude à lei cogente.  Esses entendimentos avessos ao exercício da autonomia privada de forma absoluta não levam em consideração a finalidade da norma protetiva matrimonial. Por que a lei impõe o regime de separação de bens a certas pessoas? A resposta está em proteger certas pessoas de si próprias, pois entende que o casamento pode ser fonte de prejuízos a pessoas vulneráveis. "A ratio legis foi a de proteger o idoso e seus herdeiros necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico, evitando que este seja o principal fator a mover o consorte para o enlace" (REsp 1.689.152/SC, rel. Ministro Luís Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 24/10/2017, DJe 22/11/2017). GRIFOS NOSSOS Oras, a teleologia e a razão de ser da lei é a mesma no âmbito do regime de bens obrigatório aplicável também no caso de união estável de septuagenário. Deste modo, os titulares dos direitos econômicos tutelados pela impositiva separação obrigatória são justamente os ditos herdeiros necessários que, dentro do âmbito dos seus direitos disponíveis - ainda que se cuide de uma norma cogente - podem, voluntária e livremente, afastar a regra protetiva de seu interesse, deixando de invocá-la, afastando-a em reconhecimento aos méritos de alguém que conviveu com o falecido de uma forma notória e empiricamente não atrelada a interesses econômicos. Analisando-se o artigo 19 da Resolução 35/07 do Conselho Nacional de Justiça, tem-se, in verbis: "A meação de companheiro(a) pode ser reconhecida na escritura pública, desde que todos os herdeiros e interessados na herança, absolutamente capazes, estejam de acordo." É hialino, pois, a garantia da autonomia da vontade aos herdeiros no momento da lavratura da escritura pública de inventário. Nesse sentido inclusive é o que assevera Conrado Paulino (2020, p. 365) ao destacar que: "como no inventário extrajudicial todos os herdeiros são capazes e concordes, nada impede que reconheçam na escritura a condição do(a) companheiro e de sua eventual meação, evitando a necessidade da geralmente longa via judicial para a transmissão individualizada dos bens do autor da herança." Oras, se todos são maiores e capazes e a escritura pública serve para efetivar as vontades dos respectivos direitos dos herdeiros, não existe nenhum óbice legal para ir além do reconhecimento da união estável e, por conseguinte, no caso de septuagenários, seja afastada a incidência do regime de separação legal de bens na hipótese ser essa a vontade dos herdeiros e que tal fato seja declarado na escritura, dispensando-se expressamente a proteção legal. Como ensina Leonardo Brandelli, (2011, p. 36):  "o direito é fórmula de convivência social, é instrumento que viabiliza a convivência em sociedade, o ordenamento jurídico deve colocar à disposição dos indivíduos a possibilidade de um desenvolvimento espontâneo e eficaz; deve priorizar a realização voluntária do direito, prevenindo litígios." Com a ausência de litígio acerca do direito do companheiro por parte dos herdeiros, inclusive porque os sujeitos passivos da proteção da norma são justamente eles, não há motivos para duvidar que estes podem dispor de tal direito, principalmente para preservar a eventual última vontade do falecido, privado em vida da liberdade na escolha do regime, e prestigiar o companheirismo daqueles que passaram a vida juntos, mas que, por entraves legais alheios à sua vontade, não puderam estipular quanto aos seus bens o que queriam. Assim, conforme ensina o doutrinador supramencionado, a espontaneidade dos atos praticados pelos herdeiros deve ser prestigiada pelo Direito quando da lavratura das escrituras de inventário.  Considerações Finais O ideal seria que a legislação brasileira abolisse de vez a anacrônica presunção de vulnerabilidade geradora do regime de separação obrigatória de bens dos idosos. Seja em reconhecimento às fortes críticas doutrinárias à limitação da liberdade do septuagenário. Seja em razão da constatação do envelhecimento saudável da população diante dos avanços da medicina nas últimas décadas, levando ao aumento da expectativa de vida. Outrossim, essa "presunção" legal de incapacidade pela senilidade revela-se mais evidente e insensata com o surgimento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, lei 13.146/15. Tal legislação chega ao ponto de tipificar criminalmente condutas que precipitadamente concluam que a pessoa portadora de deficiência é um incapaz. Como afirma Ricardo Torques (2020, p. 3): O Código Civil, por exemplo, pressupunha que se você fosse deficiente você era incapaz, não poderia comprar e vender uma casa, não poderia casar autonomamente, não poderia nem mesmo ser testemunha em um processo (...) Ao invés de incapaz, a pessoa com deficiência será plenamente capaz para praticar atos da vida civil. Questiona-se, então, se não seria o caso de se indagar o absurdo: a aplicação do art. 1.641, II, do Código Civil brasileiro não representaria uma conduta não só discriminatória como ilícita após o surgimento do referido Estatuto? A lei não está a presumir que o idoso não tem capacidade nem discernimento necessários para pactuar livremente o seu regime de bens? A verdade, infelizmente, é que o tratamento legislativo dado ao idoso no Brasil não goza dos mesmos critérios nem dos mesmos princípios que regem o Estatuto do Deficiente, como são, por exemplo, os do inciso I do art. 4º, in verbis: "I - respeito à dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer suas próprias escolhas, e à independência das pessoas". Pelo contrário, o País continua legislando no sentido de presumir a incapacidade do idoso de manifestar livremente sua vontade, fixando-lhe embaraços discriminatórios ao livre exercício da liberdade de contratar, sob o frágil pretexto de "adoção de medidas preventivas para a coibir a prática de abusos contra pessoas idosas, especialmente vulneráveis no período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional" (CNJ, Recomendação 46/2020). Assim, uma vez constatada a discriminação legal incompatível com o princípio da isonomia, como nem a legislação nem o Judiciário conseguem dissipar oportunamente tais incoerências, nada impede que, no exercício da liberdade contratual por quem seja o próprio titular dos direitos hereditários tutelados (pela norma cogente do art. 1.641), se corrijam eventuais efeitos nocivos das condenáveis presunções legais de incapacidade. E não nos parece justo que, no ato de contratar na escritura de inventário (reconhecendo os merecidos direitos patrimoniais do convivente supérstite), os herdeiros sofram um encargo econômico maior (impostos e emolumentos) no exercício desse poder de disponibilidade patrimonial. _____________ BOECHAT CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco. A (In) Constitucionalidade Da Imposição Do Regime Da Separação De Bens Às Pessoas Com Idade Superior A Setenta Anos. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 46/2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 35/2007. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020.  DIAS, Maria Berenice.  Art. 1641: inconstitucionais limitações ao direito de amar. Clique aqui DELGADO, Mário Luiz. A união estável septuagenária e o regime da separação obrigatória de bens. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. DA ROSA, Conrado Paulino; RODRIGUES, Marco Antonio. Inventário e Partilha: Teoria e Prática. 2ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. MIGALHAS: ESPECIAL. STJ reúne casos de união estável e separação obrigatória de bens, Obrigatoriedade da separação de bens é tratada no artigo 1.641 do CC/02. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. NOGUEIRA, Luíza Souto. O contrato de convivência na união estável e a autonomia privada. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. PEDERNEIRAS, Fernanda. União estável pré-existente afasta a separação obrigatória de bens. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. ROSAS, Daniella Ribeiro de Andrade. A imposição do regime de separação de bens aos sexagenários. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. SIMÃO, José Fernando. Separação obrigatória com pacto antenupcial? Sim, é possível.  TORQUES, Ricardo. Estatuto da Pessoa com Deficiência Esquematizado. Disponível em: clique aqui. Acesso em 10 de outubro de 2020. TARTUCE, Flávio. Da possibilidade de afastamento da súmula 377 do STF por pacto antenupcial. Disponível em: clique aqui. Acesso em 29 de outubro de 2020.
Aberta a sucessão, a viúva meeira deseja abrir mão de sua meação, a título gratuito, aos seus filhos, por possuir outros bens particulares que já garantem seu sustento. Quais seriam os caminhos para que ela satisfaça sua vontade? Poderia ela ceder os direitos da meação, ou deveria, primeiramente, receber sua meação na partilha, e só depois poderia doar? Tanto na jurisprudência, como na doutrina, encontramos divergência de entendimento sobre esse tema. É claro que estamos falando dos bens comuns do casal, por isso o assunto é meação. Antes de tudo, convido o leitor a fazer as seguintes reflexões: 1)- Existe alguma maneira de fazer o inventário somente dos 50% do falecido (herança), sem incluir os 50% da meeira (meação) ao monte mor? 2)- Se houver autorização judicial para venda de determinado bem pertencente ao Espólio, quem irá outorgar a escritura, o espólio ou o espólio e a viúva? 3)- Existe alguma maneira de identificar o bem, ou a porcentagem do bem, referente à meação, antes que se promova a partilha? 4)- Após a sucessão aberta, a viúva meeira poderia, individualmente, vender ou doar um bem específico, ou porcentagem dele, pertencente ao espólio? Após refletir sobre essas questões, chegamos à conclusão de que a meação só se trata de propriedade, enquanto está na vigência do casamento, pois, nesse caso, há como identificar que ela é proprietária da metade de cada bem que compõe o patrimônio. Nesta linha de raciocínio, aberta a sucessão, torna-se impossível identificar ou individualizar os bens que compõe a meação, até que se promova a partilha. Nesse momento, então, já não podemos afirmar que a meeira é proprietária de metade de todos os bens, e, sim, que ela passa a ter o direito de metade do patrimônio, ou seja, do monte mor. Desse modo, no momento em que é aberta a sucessão, a meação e a herança tornam-se uma universalidade de bens, passível de qualquer tipo de destinação pelos herdeiros e meeira, desde que em comum acordo. Tanto é assim, que a meação não precisa ser paga exatamente com a metade de todos os bens, pois a viúva meeira e os herdeiros podem partilhar da forma que quiserem, podendo a meação ser paga, por exemplo, somente com os bens de tal cidade, ou com todos os bens móveis, com a totalidade do usufruto dos bens, ou, de inúmeras outras maneiras, a critério dos interessados (meeira e herdeiros). No entanto, o grande dilema é que a cessão só cabe para coisas incorpóreas, enquanto as coisas corpóreas devem ser objeto de compra e venda, permuta, dação em pagamento ou doação. Os que defendem que não cabe cessão da meação, entendem ser a meação coisa corpórea, e é exatamente aí que está o "X" da questão. Se o direito à sucessão aberta é considerado coisa incorpórea, e a sucessão aberta faz com que a meação seja integrada junto ao monte mor, a meação, nesse exato momento, perde sua característica de coisa corpórea, e passa a ser coisa incorpórea, pois não se pode separar até que seja feita a partilha. Por certo, a meação, quando aberta a sucessão, não tem mais como ser certa e determinada, até que se proceda a partilha, dessa maneira, fica impossível que ela seja considerada como uma coisa corpórea, consequentemente seja objeto de doação, compra e venda etc. Posto isso, pensamos que, se ainda não foi feita a partilha dos bens, não há como se realizar uma doação da meação, pois ela não se separa da herança. Como a partilha é que põe fim à indivisibilidade dos bens, após a partilha não caberá mais cessão, e sim doação, pois aí a meação já está definida, e volta a ser coisa corpórea, assim como acontece com a própria herança. Em qualquer das hipóteses, seja na cessão ou na doação, haverá a necessidade de recolhimento do ITCMD (Imposto de transmissão causa mortis e doação), exceto se o valor cedido ou doado estiver elencado nas hipóteses de isenções previstas na legislação tributária estadual. Já no registro de imóveis, a cessão não é objeto de registro, ao menos no Estado de São Paulo; desse modo, assim como na existência de cessão de direitos hereditários, haverá somente um registro, que é o da partilha realizada no inventário. Assim, se a intenção da mãe é doar aos filhos, fazendo isso por cessão da meação, antes da partilha, estaria economizando um registro apenas, uma vez que o imposto de transmissão por doação seria recolhido tal como na doação posterior. Diferentemente do que foi alegado em algumas decisões, entendemos que essa cessão de meação é perfeitamente possível, e de maneira nenhuma estaria ofendendo o princípio da continuidade, pois se enquadraria na mesmíssima situação da cessão dos direitos hereditários, perante o registro imobiliário. Por todo o exposto, em nossa humilde opinião, defendemos que o ato realizado depois de aberta a sucessão, e antes da partilha, não tem como ser outro, senão cessão de direitos de meação, assim como acontece com os direitos hereditários, uma vez que, aberta a sucessão, a totalidade dos bens é que vai ao monte mor, e essa se torna indivisível, não se podendo aferir o que é meação e o que é herança, até que se faça a partilha. E, por fim, entendemos que, se o ato de transmissão gratuita for depois da partilha, não há como ser chamado de cessão, pois aí sim, com os bens já determinados e devidamente partilhados, só poderá ser feita, a título gratuito, a doação. Antes da partilha = cessão dos direitos de meação. Após a partilha = doação dos bens, ou parte deles. Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias1. _______________ 1 Este artigo já foi publicado no Blog do DG (clique aqui).
Introdução O patrimônio de afetação dirige-se à proteção dos adquirentes das unidades imobiliárias autônomas quanto aos riscos da atividade de incorporação imobiliária, protegendo seus investimentos, inclusive, quanto à falência ou à insolvência civil do incorporador. Ocorre que os prejuízos aos adquirentes, apesar de sua mitigação, ainda são possíveis e até usuais. Nesse mesmo sentido, o objetivo do presente trabalho é o estudo de questões relacionadas ao instituto do patrimônio de afetação no contexto da incorporação imobiliária, especialmente no que concerne ao papel da comissão de representantes em relação à sua administração. A pesquisa será bibliográfica (na doutrina aplicável) e documental (na legislação e na jurisprudência aplicáveis), de caráter exploratório, utilizando-se o procedimento qualitativo e a abordagem dedutiva. O trabalho será dividido em três partes. Inicialmente será tratado o conceito legal de patrimônio de afetação. Após, será tratada a criação e o registro do patrimônio de afetação. Finalmente, será trabalhada a comissão de representantes, a partir de sua criação e de suas funções precípuas, assim como seu papel na gestão do patrimônio de afetação, de conformidade com o que determina a legislação aplicável. Justifica-se o presente trabalho em decorrência da necessidade de se proteger os direitos dos consumidores da melhor fora possível, inclusive no contexto da incorporação imobiliária, de maneira que é imperioso identificar as possíveis omissões e contradições presentes na referida legislação.   Patrimônio de afetação: conceito legal O patrimônio de afetação no contexto da incorporação imobiliária representa uma separação patrimonial voltada a proteger a incorporação contra situações capazes de comprometer o patrimônio individual do incorporador. Nesse sentido é que a Lei 4591 de 1964 o regulamenta. O Capítulo I-A regulamenta o patrimônio de afetação. Afirma que, a critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação: terreno e acessões que compõe seu objeto e os demais bens e direitos a ela vinculados podem ser apartados do patrimônio do incorporador, constituindo patrimônio de afetação1. Trata-se, portanto, de um amplo destacamento patrimonial que pode ser submetido ao destaque por via da afetação, compreendendo direitos reais, aqueles submetidos a condições resolutivas, bem como qualquer direito patrimonial pertinente à incorporação. O patrimônio não se resume às unidades a serem entregue e aos valores apurados com as vendas, abrangendo investimentos já feitos, "[...] seja no pagamento do preço do terreno, nos custos dos projetos e da licença, nas fundações, nas propagandas ou publicidades e tudo mais"2. Os bens se destinam à consecução da edificação e à entrega das unidades aos adquirentes, servindo de garantia para o cumprimento das obrigações são contraídas no curso das obras que, "[...] em última instância, são da responsabilidade dos contratantes das unidades".3 O custo total da unidade compreende os custos de "[...] aquisição do terreno, elaboração e aprovação de projetos da edificação e implantação, taxas, emolumentos de licenças, alvarás, fundações, e outros serviços iniciais, bem como publicidade e corretagem imobiliária".4 Esses bens e valores podem constar do termo firmado no sentido de constituir o patrimônio de afetação, tornando-se vinculados à finalidade de assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos respectivos adquirentes. É possível, inclusive, reinvestir esses valores para a consecução desse objetivo. Referido patrimônio se destina à consecução da incorporação, bem como à entrega das unidades imobiliárias aos adquirentes, não se comunicando com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio do incorporador ou outros patrimônios de afetação por ele constituídos.5 O fato de o patrimônio afetado pela finalidade de assegurar a incorporação não se comunicar com o patrimônio do próprio incorporador se dirige, portanto, à garantia de que eventuais dívidas contraídas por aquele não prejudicarão os adquirentes das unidades autônomas e demais investidores. De acordo com a Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça, "[...] a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel"6, de maneira que a responsabilidade do incorporador não se transfere ao consumidor. Pode ser constituído a qualquer momento, sendo necessário apenas o registro de termo assinado pelo incorporador e pelos titulares de direitos reais de aquisição sobre o terreno. Essa proteção pode ser vista em diversas incorporações que buscma proteger seus recursos das dívidas oriundas das incorporadoras.7 O papel do patrimônio de afetação é ampliar a segurança jurídica do consumidor quanto à aquisição. Trata-se de instrumento de proteção ao acesso à moradia8, tendo em vista que resguarda os adquirentes de unidades imobiliárias, geralmente voltadas à habitação. Essa necessidade fez surgir entendimentos no Superior Tribunal de Justiça nesse sentido. Em 2002, o STJ reconheceu o direito de o consumidor inadimplente promover para recebera restituição de valores pagos, assegurando ao vendedor, entretanto, o direito de reter parcela do montante, declarando ilegais cláusulas impositoras de desvantagem ao devedor9, a partir do Código do Consumidor. Desse modo, responde somente por dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação. Bens e direitos que o integram somente poderão ser objeto de garantia real em operação de crédito se o seu produto for integralmente destinado à consecução daquela edificação e à entrega das unidades imobiliárias.10 Por meio do regime da afetação, o terreno, as acessões objeto de incorporação imobiliária e os demais bens e direitos a ela vinculados, mantêm-se apartados do patrimônio do incorporador, constituindo patrimônio separado, destinado à consecução da incorporação, à quitação do passivo e à entrega das unidades.11 O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou outros patrimônios de afetação eventualmente constituídos por ele. Assim, os recursos financeiros que o integram só podem ser utilizados para pagar ou reembolsar despesas da própria incorporação.12 A incomunicabilidade entre o patrimônio afetado e o não afetado não é capaz de impedir sua utilização, mas, sim, de restringi-la a um objeto específico, qual seja, a exclusiva utilização para a conclusão da incorporação e entrega das unidades imobiliárias adquiridas. O incorporador, nesse sentido, responderá pelos prejuízos causados por ele ao patrimônio de afetação13. Assim, o incorporador não pode desviar recursos próprios da incorporação ao seu patrimônio ou de sua empresa, salvo aquilo que exceder o necessário à sua plena realização Ocorrendo cessão (plena ou fiduciária) de direitos creditórios resultantes da comercialização das unidades, o produto da cessão também passará a integrar o patrimônio de afetação14. A cessão plena é a transferência de plano, que ocorre no ato da instrumentalização, por meio de pagamento à vista.15 Já a fiduciária se efetua com o pagamento em parcelas, e se consumar com a transferência paulatina, correspondente à adimplência das prestações. Nos dois casos, os valores recebidos ou a receber "[...] integram o conjunto dos bens afetados, passando a garantir a consecução da obra".16 Note-se, portanto, que o patrimônio separado se encontra protegido, inclusive, da atuação do próprio incorporador, situação que não prejudica a possibilidade de que tenha rendimentos ou que parte dele seja destacado, desde que reposto de maneira bastante a garantir o empreendimento. Assim, o incorporador adquire o terreno em seu nome, sendo que a este se somam seu domínio e os demais bens existentes e o dirige à exploração da atividade de incorporação "[...] tornando indisponível e incomunicável enquanto não se termina a obra, com a entrega das unidades aos compradores".17 Os bens não ficam congelados, podendo, entretanto, render frutos, assim como suportar encargos. Dessa forma, "[...] a contabilidade distinta não separa o patrimônio geral"18, de maneira que não se trata de um "isolamento patrimonial", não há inalienabilidade ou indisponibilidade. O patrimônio segregado pode ser alterado em relação aos bens que o compõem. Desse modo, caso um componente deixe o patrimônio, não mais se submeterá às relações jurídicas a este pertinentes. Caso, entretanto, um novo elemento nele ingresse, submeter-se-á a tais relações.19 Se um ativo ingressa no patrimônio, os credores poderão excuti-lo. Caso um ativo saia, exceto no caso de fraude, seus credores não mais poderão persegui-lo. É uma adaptabilidade própria das universalidades, criando imensas vantagens ao permitir a variação de elementos integrantes do patrimônio de afetação.20 Assegura-se, assim, notável dinamismo à gestão dos ativos do patrimônio separado. A análise da gestão empreendida pelo titular do patrimônio se encontra menos preocupada com o ativo individualmente considerado do que com o conglomerado de bens e sua aptidão para desempenhar sua função.21 Se os elementos integrantes do patrimônio separado se mostrarem incapazes ou insuficientes para cumprir sua finalidade, sua modificação é imperiosa. Não é um procedimento de sub-rogação, mas, sim, "[...] de alteração pura e simples dos elementos, podendo estes serem ampliados, reduzidos ou substituídos".22 Isso porque a alteração do conteúdo do patrimônio é livre, de modo que seu escopo é que deverá pautar "[...] o tipo de administração a ser empreendida pelo seu titular, de tal sorte que não se afigura possível a fixação de padrão único de conduta válido para toda gestão de patrimônio afetado".23 Assim, os recursos financeiros que integram o patrimônio de afetação podem ser utilizados para pagar ou reembolsar despesas da incorporação24, desde que não sejam desviados da referida finalidade. O patrimônio, todavia, pode ser afetado apesar da existência de gravame sobre qualquer dos bens. A existência de ônus reais gravando o imóvel não obsta a averbação, caso tenham sido constituídos sobre o imóvel objeto da incorporação para garantir o pagamento do preço de sua aquisição ou o cumprimento de obrigação de construir o empreendimento.25 Direitos reais de garantia em favor do proprietário originário do terreno poderão não ser efetivamente pagos, podendo ser contratada permuta de pagamento pela entrega das edificações futuras. Essa garantia não impede a averbação do patrimônio de afetação, se tiver a finalidade de garantir a conclusão do empreendimento.26 Trata-se de um regime negocial no qual o proprietário do terreno o cede para a construção das unidades imobiliárias autônomas em troca de algumas delas, a título de pagamento pelo referido bem. Não faria, portanto, sentido algum proibir a segregação patrimonial no referido contexto. Se houver permuta de terreno por área construída, enquanto não consumada oficialmente a transferência, não ingressará o bem no patrimônio de afetação, entendimento válido para no caso de empreitada ou administração27, sob pena de tornar indisponível ao proprietário um bem que não pertence ao incorporador. A exclusão das importâncias provindas do preço de alienação da fração ideal do terreno de cada unidade, se contratada a construção pelo regime de empreitada ou administração se justifica porque fração ideal será transferida aos adquirentes, enquanto encargo da construção permanece com o incorporador.28 O preço será satisfeito em prestações pagas no decorrer das obras, em contraprestação pela prestação de serviços, de maneira que, em princípio, não há perigo de desvio ou malversação de fundos, bem como o controle pelos contratantes é maior.29 As quotas de construção que corresponderem a acessões vinculadas a frações ideais são pagas pelo incorporador, salvo a assunção da responsabilidade por terceiros. Pode ser que, do contrato de construção, constem os responsáveis pelo pagamento da construção de cada unidade.30 Nesse caso, o incorporador responderá solidariamente com os demais contratantes pelo pagamento da construção das unidades não assumidas por terceiros, situação que não se aplica ao caso de o incorporador contratar a entrega da unidade com prazo e preços certos, determinados ou determináveis31, apesar de ser possível, excepcionalmente, a prorrogação. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a validade da cláusula de tolerância se contratada com prazo determinado e razoável, voltada a atenuar fatores de imprevisibilidade passíveis de afetar a realização do empreendimento aceitando-se como razoável o período de cento e oitenta (180).32 Ocorre que a prorrogação deve ser informada por meio de notificação que contenta sua justificação, em homenagem ao direito à informação33, novamente determinando a aplicação da interpretação mais favorável ao adquirente, com base específica no Código de Defesa do Consumidor. O reembolso do preço de aquisição do terreno só ocorrerá quando da alienação das unidades, "[...] na proporção das respectivas frações ideais"34. Também nesse caso, o patrimônio de afetação restará protegido, tendo em vista que apenas poderá ser utilizado para garantir a conclusão das obras. Isso porque, a partir da afetação, as receitas provenientes de cada patrimônio de afetação são reservadas para exclusivo cumprimento das obrigações vinculadas à incorporação respectiva. É vedado o desvio de recursos de um empreendimento para outro ou para o patrimônio geral do incorporador.35 Dessa forma, a afetação patrimonial, apesar de não determinar o congelamento dos bens imóveis e demais ativos, permite sua reaplicação apenas em relação aos objetivos que levaram à sua separação. No mesmo sentido, é possível incluir rendimentos percebidos no decorrer das vendas. Consideram-se, porém, apenas os valores efetivamente recebidos pela alienação. O patrimônio de afetação, todavia, não poderá incluir recursos financeiros que excederem o valor necessário à conclusão da obra, considerando-se, no cálculo, os recursos necessários à quitação de eventual financiamento da construção36. Além disso, não incluirá o valor relacionado ao preço de alienação de fração ideal de terreno de cada unidade vendida, caso a incorporação seja contratada por empreitada ou administração. O regime do patrimônio de afetação, porém, é diferente em relação aos conjuntos de edificações.37 Isso porque poderá ser constituído um patrimônio de afetação separado para cada subconjunto de casas para as quais esteja prevista a mesma data de conclusão e edifícios de dois ou mais pavimentos. Essa constituição múltipla deve, todavia, ser declarada no memorial de incorporação.38 Dessa forma, o patrimônio de afetação, além de declarado, assinado pelo incorporador e pelos adquirentes e, eventualmente, pela instituição financiadora, deve constar do memorial de incorporação a ser arquivado junto à matrícula da respectiva incorporação. É possível, inclusive, que, até a conclusão do empreendimento e a entrega das unidades autônomas, o terreno integre o patrimônio afetado, não respondendo nem mesmo por eventuais dívidas e obrigações do empreendimento39, aumentando a segurança dos adquirentes. Se a incorporação for objeto de financiamento, a comercialização de unidades, a instituição financiadora deverá ser cientificada ou anuir, a depender do que for estabelecido no contrato de financiamento40. A cientificação ou a anuência da entidade financeira é outro mecanismo de asseguramento patrimonial. Opera, assim, "[...] um rearranjo no direito de propriedade sobre o terreno, acessões, direitos e obrigações relacionados com a incorporação afetada": as dificuldades financeiras eventualmente enfrentadas pelo incorporador - falência, insolvência, paralisação ou atraso nas obras - não atingem o patrimônio de afetação.41 Em decorrência disso, não integrará a massa concursal ou poderá sofrer qualquer outra espécie de constrição judicial em decorrência de dívidas do incorporador desvinculadas ao empreendimento42, protegendo os adquirentes até mesmo quanto à falência do incorporador. Apesar de a averbação da afetação poder se dar a qualquer momento, caso alguma das unidades já houver tiver vendida, é necessária a anuência do titular do direito aquisitivo, que pode ser dada no próprio requerimento ou em documento apartado.43 Nos casos em que não houver a necessidade de registro da incorporação imobiliária, como nos grupos fechados, mesmo assim será possível de instituir patrimônio de afetação, em qualquer fase da construção, por registro da instituição de condomínio sobre o imóvel no qual a construção ocorre.44 Tendo em vista que será feita no curso da obra, bastam o projeto e a vontade das partes45, desde que a separação patrimonial seja averbada na respectiva matrícula, mesmo que após o arquivamento dos demais documentos essenciais à constituição da incorporação imobiliária  A contratação de financiamento e a constituição de garantias não implicam transferência para o credor de nenhuma obrigação ou responsabilidade do cedente, incorporador ou construtor. Estes permanecem como únicos responsáveis por seus respectivos deveres e obrigações.46 Essa situação inclui a transmissão ao credor da propriedade fiduciária sobre as unidades imobiliárias integrantes da incorporação, assim como a cessão (plena ou fiduciária) de direitos creditórios que decorrerem da comercialização das referidas unidades.47 Dessa forma, mesmo que o patrimônio se encontre separado, é possível a transmissão de propriedade sobre unidade imobiliárias e cessão de direitos creditórios decorrentes de sua comercialização, desde que os rendimentos sejam aplicados para alcançar os objetivos do empreendimento. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. *Mário Lúcio Garcez Calil é pós-doutor (bolsista PDJ-CNPQ) e estágio pós-doutoral (bolsista PNPD-CAPES) pela Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru (CEUB-ITE). Mestre em Direito pelo Centro Universitário Toledo (Araçatuba-SP). Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Processual. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG. Professor Associado V da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba. **Robson Martins é mestre em Direito pela Universidade Paranaense. Especialista em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduado em Direito pela Universidade Paranaense. Procurador da República em Curitiba/PR. ***Érika Silvana Saquetti Martins é mestranda em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Público, Direito do Trabalho e Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Paranaense. Advogada. __________ 1 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  2 MAZÓCOLIA, Flávio de Castro. Incorporação imobiliária e condomínio. Espirito Santo: Sinoreg, 2017, p. 53.  3 Idem.  4 Idem.  5 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 308. 2005.  7 BATISTA, Marcos Cunha Lima Rosado; LIRA, Úrsula Bezerra e Silva. A lei de incorporação imobiliária e sua aplicação aos loteamentos. Revista de Estudos Jurídicos do UNI-RN, n.2, p. 26-49, jan.- dez., 2018, p. 46.  8 Idem.  9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EREsp 59870-SP. Relator: Ministro Barros Monteiro. 2002, n.p.  10 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  11 VEDANA, Alexandre Torres. Patrimônio de afetação na incorporação imobiliária e a efetividade dos direitos do consumidor. Dissertação (Mestrado em Direito). Curitiba: UNICURITIBA, 2009, p. 25-28.  12 Idem.  13 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  14 Idem.  15 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 214.  16 Idem.  17 MAZÓCOLIA, Flávio de Castro. Op. Cit., p. 53.  18 Idem.  19 OLIVA, Milena Donato; ROQUE, Andre Vasconcelos. Patrimônio de afetação no Novo Código de Processo Civil. Pensar, v. 21, n. 2, p. 654-674, maio.-ago. 2016, p. 656.  20 Idem.  21 Idem.  22 Idem.  23 Idem.  24 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  25 AGHIARIAN, Hércules. Curso de direito imobiliário. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 180.  26 Ibidem, p. 183. 27 RIZZARDO, Arnaldo. Op. Cit., p. 214.  28 Idem.  29 Idem.  30 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  31 Idem.  32 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1582318-RJ. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. 2017, n.p.  33 Idem. 34 Idem.  35 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação Imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 68-69.  36 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p.  37 Idem. 38 Idem.  39 MAZÓCOLIA, Flávio de Castro. Op. Cit., p. 53.  40 Idem.  41 VEDANA, Alexandre Torres. Op. Cit., p. 25-28.  42 Ibidem, p. 25-28.  43 MEZZARI, Mario Pazutti. Condomínio e incorporações: no registro de imóveis. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 217.  44 Ibidem, p. 218.  45 Idem.  46 BRASIL. Lei 4591. 2004, n.p. 47 Idem.
A presente pesquisa pretende jogar luz nas discussões jurídicas sobre a eventual vigência dos dispositivos do decreto-lei 3.200/41 que tratam do bem de família convencional, após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, eis que ainda ecoam entendimentos sobre a vedação legal do inventário e partilha do imóvel com esta afetação. O trabalho se divide em três partes, sendo a primeira dedicada ao estudo dos antecedentes históricos do instituto, a segunda parte descrevendo a evolução do bem de família no ordenamento jurídico brasileiro, e a terceira parte  com a análise e compreensão da derrogação dos dispositivos do decreto-lei 3.200/41 pela lei 10.406/02, o que ainda gera dúvidas para os operadores do direito.  1. Antecedentes históricos do bem de família  Compreender a origem o instituto do bem de família facilita a interpretação da norma, e para tanto precisamos retornar ao século XVIII, quando no ano de 1821 o México se tornou independente e herdou o Texas da Espanha. Na época, os norte-americanos também queriam adquirir este território e então um acordo entre os mexicanos e dois colonos americanos foi firmado, possibilitando a eles o uso de parte do território e a permissão para entrada de pessoas visando a colonização da região. Todavia, surgiram conflitos culturais. O México libertava todos os escravos que chegavam à região e obrigava os colonos a adotarem o catolicismo como religião. Em 1830 foi proibida a entrada de novos imigrantes. Em 1836, depois de muitas desavenças, os norte-americanos que viviam naquela região declararam a sua independência adotando uma República e uma Constituição, baseadas nas normas dos Estados Unidos. Em resposta o general mexicano Sant'ana atacou a região e patrocinou um verdadeiro massacre dos colonos americanos. Os Estados Unidos então enviaram suas tropas e os mexicanos acabaram derrotados em 1836. O Texas se tornara independente (KARNAL, 2017). Entre 1837 e 1839, uma forte crise econômica atingiu os Estados Unidos e muitas famílias perderam suas terras, penhoradas por credores e vendidas por preços irrisórios. Essas famílias migraram para o Texas buscando refazer suas fortunas e rapidamente a população da região passou de 70 mil para 250 mil pessoas. Como forma de manter os imigrantes em suas terras e, consequentemente, garantir um prestígio político, o governo do Texas editou em 26 de janeiro de 1839 a lei do Homestead1, garantindo a impenhorabilidade das terras colonizadas para as famílias que lá estavam, bem como os bens móveis que lhe guarneciam (COUTO, 1917). Uma das condições para a concessão da terra era de que o proprietário devia cultivar e extrair dela o sustento para sua família, bem como a fixar residência no local por cinco anos, para então, obter o título dominial. Para que o instituto ganhasse mais repercussão entre os indivíduos, o Estado teve que tomar certas medidas: Para o total êxito do instituto, eram expedidos homestead exemption laws, ou seja, atos legislativos cuja finalidade era incentivar a medida, impulsionar a colonização e proporcionar benefícios para que aas famílias se sentissem atraídas pela oferta pioneira. Para tanto recebiam o amparo do Poder Público, com isenção de penhora sobre o bem, e garantias outras, a fim de que a família pudesse se dedicar aos trabalhos sem se preocupar com qualquer risco de desalojamento. (...) Resguardavam o imóvel residencial de qualquer penhora, para que a família pudesse viver em paz com sua prole e tornar produtiva a área de terras que para tal fim recebera. (MARMITT, 1995). Em 1845 a República do Texas foi incorporada aos Estados Unidos e em razão da difusão do instituto do Homestead pelo território americano, surgiu a lei federal do Homestead em 20 de maio de 1862 visando a colonização e o povoamento do território americano, desde que preenchidos os seguintes requisitos: a)existência de um direito sobre determinado imóvel; b) ser chefe de família; c) que o imóvel seja ocupado pela família. Assim, passaram a conviver juntas duas formas de Homestead, um formal, convencional e um de direito, legal. O Homestead legal ou de direito, forma adotada na maioria dos Estados americanos, decorria da própria norma, se preenchidos os requisitos apontados, bastando apenas demonstrar a ocupação da área. Já o Homestead formal, além dos requisitos, dependia de uma inscrição no registro de imóveis, prática adotada em alguns estados americanos, gerando uma publicidade contra terceiros e informando aos credores que o bem estava impenhorável (HORA NETO, 2007). Com a separação do Texas do território mexicano, e com as garantias e vantagens oferecidas pelo governo texano, muitos imigrantes americanos tentaram reconstruir seus lares neste território, de tal forma que a maior parte da população do Texas passou a ser de americanos. Antes mesmo da Lei do Homestead, a Constituição do Texas, de 1836, já previa a concessão de uma porção de terras aos chefes de família, para que nela se estabelecessem, trabalhassem e produzissem. Com a anexação do Texas aos Estados Unidos, em 1845, a Constituição Texana dispôs que o legislador deveria proteger determinada porção de terra, pertencente ao chefe de uma família, contra qualquer execução." (FACHIN, 2006, p. 156). A nova lei federal do Homestead Act, chamada de Lei de Terras, promulgada pelo presidente Abraham Lincoln, entregava um quarto de um distrito ainda não desenvolvido para qualquer família ou indivíduo maior de 21 anos que tivesse interesse em migrar para a região, buscando diminuir a concentração de estrangeiros no leste americano e diminuir o desemprego. A lei era fruto de anos de agitações e manobras políticas, em um momento que Lincoln retomava as rédeas do país, impedindo a fragmentação do território (KARNAL, 2017). A norma acabou servindo de modelo para outros países.  2. O bem de família no ordenamento jurídico brasileiro O Direito brasileiro desconhecia o instituto do Homestead até o Código Civil de 1916. Leciona Clóvis Beviláqua (1940) que no Projeto do Código Civil apresentado em 1900, constava o instituto sob a denominação Lar da Família, mas a ideia não ganhou adeptos na comissão do governo. Em 1903 a proposta foi reapresentada na câmara dos Deputados e também não vingou. Em 1910 o Homestead tomou corpo no Projeto de Código de Processo Civil e Comercial do Distrito Federal, o qual foi aprovado pelo Decreto 8.332 de 3 de novembro de 1910, in verbis: Art. 867. Fica reconhecida por este Código a isenção de penhora para a casa de propriedade do devedor e por elle habitada com sua família. Para que gose dessa isenção, porém, é mistér que a mesma propriedade não exceda o valor de 10:000$ e que a intenção do proprietário de constituir bem inalienável tenha sido feita publica pela imprensa e averbada no registro de hypothecas. Paragrapho unico. Esta isenção sómente poderá ser invocada contra os credores posteriores á sua constituição, publicidade e registro. (BRASIL 1910).                Finalmente, quando o Projeto do Código Civil foi ao Senado, recebeu a emenda que introduziu o Homestead no capítulo Dos Bens (originalmente estava no capítulo Das Pessoas). Bevilaqua (1940) entendia que o instituto estava mal posicionado, e deveria localizar-se no Livro de Direito de Família ou de Direito das Coisas.  Com a aprovação do Projeto do Código Civil foi então incluído o Homestead formal (convencional) no Direito brasileiro, sob a denominação de Bem de Família, sendo regrado entre os artigos 70 a 73 da lei 3.071 de 1ª de janeiro de 1916. Art. 70. É permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicilio desta, com a clausula de ficar isento de execução por dividas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio. Parágrafo único. Essa isenção durará enquanto viverem os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade. Art. 71. Para o exercício desse direito é necessário que os instituidores no ato da instituição não tenham dívidas, cujo pagamento possa por ele ser prejudicado. Parágrafo único. A isenção se refere a dividas posteriores ao ato, e não ás anteriores, se verificar que a solução destas se tornou inexeqüível em virtude de ato da instituição. Art. 72. O prédio, nas condições acima ditas, não poderá ter outro destino, ou ser alienado, sem o consentimento dos interessados e dos seus representantes legais. Art. 73. A instituição deverá constar de instrumento publico inscrito no registro de imóveis e publicado na imprensa e, na falta desta, na da capital do Estado. O Código Civil trouxe então a possibilidade de o chefe da família instituir a cláusula de bem de família sobre o imóvel de seu domicílio, por escritura pública registrada no registro de imóveis, tornando-o isento de dívidas posteriores. Mais tarde, o Decreto-lei 1.608 de 18 de setembro de 1939, que instituiu o Código de Processo Civil, tratou do tema entre os artigos 647 a 651. Depois o Decreto 4.857 de 9 de novembro de 1939, que dispôs sobre registros públicos, ressaltou a inscrição do Bem de Família no registo de imóveis. Finalmente o Decreto-Lei 3.200 de 19 de abril de 1941, alterado pela lei 6.742/79, trouxe maiores detalhes ao instituto: Art. 19. Não há limite de valor para o bem de família desde que o imóvel seja residência dos interessados por mais de dois anos. (Redação dada pela lei 6.742, de 1979) Art. 20. Por morte do instituidor, ou de seu cônjuge, o prédio instituído em bem de família não entrará em inventário, nem será partilhado, enquanto continuar a residir nele o cônjuge sobrevivente ou filho de menor idade. Num e outro caso, não sofrerá modificação a transcrição. Art. 21. A cláusula de bem de família somente será eliminada, por mandado do juiz, e a requerimento do instituidor, ou, nos casos do art. 20, de qualquer interessado, se o prédio deixar de ser domicílio da família, ou por motivo relevante plenamente comprovado. § 1º Sempre que possível, o juiz determinará que a cláusula recaia em outro prédio, em que a família estabeleça domicílio. § 2º Eliminada a cláusula, caso se tenha verificado uma das hipóteses do art. 20, entrará o prédio logo em inventário para ser partilhado. Não se cobrará juro de mora sobre o imposto de transmissão relativamente ao período decorrido da abertura da sucessão ao cancelamento da cláusula. Art. 22. Quando instituído em bem de família prédio de zona rural, poderão ficar incluídos na instituição a mobília e utensílios de uso doméstico, gado e instrumentos de trabalho, mencionados discriminadamente na escritura respectiva. Art. 23. São isentos de qualquer imposto federal, inclusive selos, todos os atos relativos à aquisição de imóvel, de valor não superior a cinqüenta contos de réis, que se institua em bem de família. Eliminada cláusula, será pago o imposto que tenha sido dispensado por ocasião da instituição. § 1º Os prédios urbanos e rurais, de valor superior a trinta contos de réis, instituídos em bem de família, gozarão de redução de cinqüenta por cento dos impostos federais que neles recaiam ou em seus rendimentos. § 2º A isenção e redução de que trata o presente artigo são extensivas aos impostos pertencentes ao Distrito Federal, cabendo aos Estados e aos Municípios regular a matéria, no que lhes diz respeito, de acordo com o disposto no art. 41 deste decreto-lei. (BRASIL, 1941) (grifo nosso). Pontes de Miranda (1956), em seu Tratado de Direito Privado, leciona que o bem de família é o prédio destinado ao domicílio da família, com isenção de execução de dívidas posteriores, exceto os impostos sobre o próprio prédio, vigorando essa isenção enquanto vivos os cônjuges ou os filhos forem menores, tornando-se inalienável além de impenhorável. Para sua constituição, independentemente do valor, adota-se a forma de escritura pública, transcrita no registro de imóveis. Após o decreto-lei 3.200/41 outras leis surgiram, sem gerar colisões ou conflitos de normas. A lei 5.869 de 11 de janeiro de 1973, por exemplo, que trouxe um novo Código de Processo Civil, manteve a referência ao Código de Processo anterior.  Já a lei 6.015/1973, que reformulou a sistemática registral imobiliária brasileira, adotando a matrícula como a tábua de direitos imobiliários, regrou o procedimento de registro do bem de família convencional entre os artigos 260 a 265, com menção ao decreto-lei 3.200/41 quando o bem de família for instituído juntamente com a transmissão da propriedade, no caso de empréstimo para núpcias. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 o ser humano passou a ser o centro de proteção da República e surgiu a necessidade de se proteger também a moradia familiar, eis que a família é base da sociedade.  Em 8 de março de 1990 foi publicada a Medida Provisória n. 143, criando o Bem de Família legal, a qual foi convertida na lei 8009 de 29 de março de 1990. O Bem de Família Legal dispensa a escritura pública e o registro imobiliário, ocorrendo uma proteção pela própria lei, a exemplo do Homestead legal americano, objeto da lei federal de 1962, promulgada por Lincoln. A lei 8.009/90 diz: Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados (BRASIL,1990). Com a publicação da lei 8.009/90, o ordenamento jurídico brasileiro passou a ter as duas modalidades de Homestead, ou bem de família, caracterizados como convencional (formal) e o legal (de direito). O bem de família legal independe de qualquer ato jurídico para a sua existência. Seus efeitos operam-se de imediato, pelo simples fato de o imóvel servir como residência da família, não havendo limite no valor do único imóvel residencial, nem se extinguindo com a dissolução da sociedade conjugal. Conforme  Lênio Streck: A lei 8.009/90, fruto da Medida Provisória 143/90, editada pelo então Presidente da República, José Sarney, representou um considerável avanço no tocante à tutela da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental à moradia, na medida em que alargou os limites políticos da atividade jurisdicional executiva, estabelecendo a impenhorabilidade do imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar (STRECK, 2018). O Estado assumiu o dever de proteção da moradia familiar, o que antes era deixado ao arbítrio do chefe de família que, para tanto, necessitava de escritura pública registrada no registro de imóveis. Surgiu, assim, uma norma em defesa do núcleo familiar, que independe de ato constitutivo. A lei 8.009/90 tem por objetivo a garantia de um patrimônio mínimo necessário à sobrevivência da família, integrando o direito ao mínimo existencial e o direito à moradia, requisitos para que o ser humano tenha uma vida digna. Mais tarde, com a Emenda Constitucional 26 de 2000, o Direito à moradia foi inserido na nossa Ordem Constitucional, entre o rol dos Direitos Sociais, sendo considerada como uma política pública criada para que o Estado diminua a desigualdade social no país: Art. 1o O art. 6o da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: "Art. 6: São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a  -assistência aos desamparados, na forma desta Constituição." (BRASIL, 2000) (grifo nosso). Neste sentido, Ingo Sarlet (2015) entende que o direito à moradia deve ser compreendido como direito à moradia digna, não significando apenas um direito à moradia própria, ou à propriedade, que guarda a ideia de um mínimo existencial. Assim, não se deve confundir mínimo existencial com mínimo vital, onde esse seria um conjunto de prestações suficientes apenas para a assegurar a existência humana, e aquele busca assegurar uma vida com dignidade, saudável, que muitos chamam de vida boa. Em 2002, com a chegada do novo Código Civil, lei 10.406/02, houve um novo regramento para Bem de Família convencional, disposto entre os artigos 1711 e 1722. Todavia não foi mencionada a derrogação dos dispositivos do decreto-lei 3.200/41. Com isso surgiram diversas discussões jurídicas a respeito do tema, onde parte da doutrina entende que nem todos os dispositivos do decreto-lei 3.200/41 foram derrogados, permanecendo alguns vigentes, e entre eles estaria vigente a vedação do inventário e partilha para o Bem de família, o que pretendemos desconstruir logo abaixo. Clique aqui para conferir a íntegra da coluna. *Marcos Costa Salomão é doutorando e mestre em Direitos Especiais pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões- Campus Santo Ângelo. Registrador Imobiliário no Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Notarial e Registral. Professor de Direito Civil na Fundação Educacional Machado de Assis (FEMA) e convidado nos cursos de pós-graduação da Universidade de Santa Cruz do SUL (Unisc) e do Centro Educacional de Ensino Renato Saraiva (CERS). **Karin Fabiane Fritzen Viana é bacharela em Direito pela Fundação Educacional Machado de Assis (FEMA) e assistente jurídica no escritório de advocacia Juarez da Silva Advogados Associados de Três de Maio. __________ 1 Serpa Lopes (1960) ensina que a palavra "homestead" compõe-se de duas palavras anglo-saxãs: "home" de difícil tradução, que seria "em sua casa" e "stead", significando "lugar". Portanto, Homestead seria o lugar da família, ou a residência da família, significando a posse efetiva, impenhorável e inalienável.
O ser humano não sobrevive sozinho, é de sua natureza viver na companhia de outras pessoas. Essa é a razão pela qual as famílias são constituídas. Ao longo dos anos, a forma de constituição da família evoluiu. Nos primórdios da organização das sociedades, as famílias eram consideradas apenas em seu aspecto consanguíneo. Era o laço de sangue que estabelecia os vínculos de parentesco e de filiação. Desde a antiguidade, entretanto, havia uma preocupação com aqueles que não podiam ter filhos naturalmente. Na Grécia, o instituto era conhecido como forma de manutenção do culto familiar pela linha masculina1. Em Roma, a ideia se difundiu e ganhou contornos mais precisos, tendo a adoção a principal característica de proporcionar prole civil àqueles que não a tinham de origem biológica2. No Brasil, a primeira previsão a respeito do tema ocorreu no Código Civil de 1916, o qual reconhecia apenas duas formas de parentesco: o natural, oriundo do vínculo consanguíneo, e o civil, resultante da adoção3. A socioafetividade como forma de estabelecer vínculo de filiação surgiu em nosso ordenamento muito tempo depois. Foi a doutrina e a jurisprudência que iniciaram o movimento no sentido de reconhecer a afetividade como energia formadora de um vínculo familiar que poderia e deveria ser protegido juridicamente. Mas foi somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ao consagrar o princípio da dignidade da pessoa humana4 e a proteção da família pelo Estado5, que o direito pátrio passou a dar outro enfoque às novas formas de constituição de família e filiação. Embora sem respaldo legislativo explícito, a filiação socioafetiva pôde encontrar guarida, a partir do ano de 2003, na expressão "outra origem" prevista no artigo 1.593 do Código o Civil de 20026. O dispositivo traz a possibilidade de se estabelecer parentesco em origem diversa da natural (sanguínea) e da civil (adoção), dando suporte mais concreto à tutela jurisdicional da socioafetividade, com base na chamada posse do estado de filho. Foi nesse sentido que se sedimentou o Enunciado 103 da I Jornada de Direito Civil7. Como se vê, ao contrário da adoção que sempre encontrou regulação expressa em nosso ordenamento, a filiação socioafetiva até os dias atuais não tem regramento específico na lei civil em sentido estrito. Hoje, o que se tem é a normatização do instituto do reconhecimento da filiação socioafetiva pelo Conselho Nacional de Justiça, com a edição do Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017, que foi alterado pelo Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019. Apesar das diferenças no âmbito de sua positivação, os institutos da adoção e da filiação socioafetiva ostentam entre si uma série de características em comum. Ambas são formas irrevogáveis de constituir família por meio de filiação não biológica, ambas gozam da proteção constitucional da igualdade entre os filhos, preconizada no artigo 227, §6º, da CF8, assim como as duas podem se sobrepor e prevalecer em relação ao vínculo biológico, com fulcro no princípio da afetividade e no princípio do melhor interesse do menor. Os efeitos jurídicos de uma e de outra estrutura também guardam bastante similaridade. Ambos pressupõem a declaração e o reconhecimento do estado de filho, assim como o ingresso desse fato no registro civil de nascimento, ficando assegurado o estabelecimento formal da relação de parentesco e a adoção do sobrenome do adotante ou do reconhecente, pelo adotado ou reconhecido. O reconhecido extrajudicialmente, a propósito, precisa ser pelo menos 16 (dezesseis) anos mais novo que o reconhecente, assim como ocorre na adoção. Ambos os institutos, ademais, geram efeitos de ordem familiar e sucessória, como o exercício do poder familiar, os deveres de guarda e sustento, e os direitos de visitas e de herança.  Tantos pontos em comum, todavia, não devem confundir o operador do direito na aplicação das regras de um e de outro instituto, pois alguns de seus efeitos são consideravelmente distintos. Destaque-se, em primeiro lugar, o fato de que a adoção só se realiza na esfera judicial, pois o vínculo da adoção apenas pode ser declarado por sentença. Diferente é a filiação socioafetiva, que tanto pode ser reconhecida judicialmente quanto extrajudicialmente, diretamente nos cartórios de registro civil do país.  Se realizado em cartório, o reconhecimento da filiação socioafetiva pode ocorrer somente com relação a pessoas maiores de 12 (doze) anos de idade, ao passo que a adoção não encontra qualquer limite de idade, podendo ocorrer até mesmo com relação a indivíduos recém-nascidos. Esse, aliás, é outro ponto importante na diferenciação dos institutos: a filiação socioafetiva exige que uma situação fática prévia esteja concretizada para que o vínculo possa ser estabelecido. Isso porque, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal9, três são os requisitos para o reconhecimento da posse do estado de filho e, consequentemente, a filiação dessa natureza: 1) ser tratado como filho pelo pai (tractatio), 2) usar o nome da família (nominatio), e 3) gozar do reconhecimento de sua condição de descendente pela comunidade (reputatio). Para a adoção, outros são os requisitos legalmente previstos. Nesse contexto, o Estatuto da Criança e do Adolescente exige apenas que a adoção seja precedida de estágio de convivência (cujo prazo máximo é de 180 dias), nas hipóteses em que o adotando já não estiver sob a tutela ou a guarda legal do adotante10.  De qualquer forma, em um e em outro instituto, identifica-se a reciprocidade como aspecto comum e bastante relevante. O filho não pode ser reconhecido sem que nutra o mesmo sentimento de afeto em relação ao reconhecente. Na adoção, o adotando maior de 12 (doze) anos precisa consentir com a medida e, mesmo com relação àquele que ainda não atingiu essa idade, haverá um acompanhamento por equipe interprofissional que avaliará a conveniência da colocação em família substituta, também considerando o viés do adotado. A filiação socioafetiva, de outro turno, não pressupõe a extinção do vínculo biológico. Ao contrário, na maioria das vezes, ambos os vínculos conviverão lado a lado, ensejando inclusive o surgimento da multiparentalidade. Isso ocorrerá nas situações em que o vínculo socioafetivo envolver indivíduos que já tenham pai e mãe biológicos conhecidos. Tal não se verifica, contudo, na adoção, uma vez que, não sendo ela unilateral, o vínculo com os pais biológicos sempre desaparecerá (ECA, Art. 41). Importantes efeitos registrais decorrem desse fato. O reconhecimento da filiação socioafetiva ingressa no Registro Civil das Pessoas Naturais como um ato de averbação no registro de nascimento do indivíduo reconhecido. Já a adoção enseja a prática de dois atos: um de averbação de cancelamento do assento de nascimento originário da pessoa adotada, e outro de registro propriamente dito, no qual se inscreverá no Livro "A" do RCPN competente, um novo assento de nascimento, estabelecendo a nova relação de parentesco civil, com o novo nome do adotado e com os dados do adotante ou dos adotantes como seus pais. A certidão de nascimento expedida após a prática de desses atos terá teor distinto em cada caso. Aquela decorrente do reconhecimento de filiação socioafetiva conterá o nome ou os nomes dos pais biológicos, junto com o nome do pai e/ou da mãe socioafetiva. O reconhecido poderá ter em seu documento o nome de até 8 (oito) avós. Assim, ainda que a lei 8.560/1992 estabeleça que não se fará, tanto no registro de nascimento, quanto nas respectivas certidões, referência à natureza da filiação11, o simples fato de se ter assentada a multiparentalidade já evidencia que uma daquelas relações de filiação não é biológica e sim socioafetiva. Tal não ocorre na adoção, pois o ordenamento pátrio permite que a adoção seja feita por no máximo duas pessoas, desde que sejam casadas ou que mantenham união estável entre si12. Aliás, neste contexto, saliente-se que nas hipóteses de reconhecimento de filiação socioafetiva que tramitem pela via extrajudicial, somente se permite a inclusão de um ascendente socioafetivo do lado paterno ou materno13. Tal óbice não se verifica quando o pleito é veiculado na via judicial e, conforme já explanado, nos casos de adoção.   Outro relevante efeito registral, que aqui merece destaque, é o fato de que a adoção permite a modificação do prenome do adotado, o que não ocorre no reconhecimento de filiação socioafetiva. Neste, o nome do reconhecido até poderá ser alterado, mas apenas para incluir o sobrenome do reconhecente, sem a possibilidade de qualquer outra alteração, como por exemplo a exclusão de algum outro sobrenome que ele tenha (o que somente seria possível pleitear na via judicial). Neste diapasão, diante de tantos elementos capazes de ensejar a confusão entre uma e outra estrutura jurídica, é de grande relevância que o operador do direito se atente para os efeitos e as finalidades buscadas pelos interessados. A depender deles, uma ou outra medida deve ser escrutinada, um ou outro pleito deve ser intentado. Em ambas as situações, todavia, jamais se deverá afastar dos vetores norteadores desses institutos: a dignidade da pessoa humana, o melhor interesse do menor e a ampla proteção da entidade familiar. Referências BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. BRASIL. Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992. Regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em: 05 set. 2020. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017. Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro "A" e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponível aqui. Acesso em: 03 set. 2020. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019. Altera a Seção II, que trata da Paternidade Socioafetiva, do Provimento n. 63, de 14 de novembro de 2017 da Corregedoria Nacional de Justiça. Disponível aqui. Acesso em: 03 set. 2020. I JORNADA DE DIREITO CIVIL, Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 103. Disponível aqui. Acesso em 03 set. 2020. RODRIGUES, Silvio. "Direito Civil: Direito de Família". 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6. VENOSA, Silvio de Salvo. "Direito Civil: Direito de Família". 12.ed. São Paulo: Atlas, 2012, v. 6. *Fernanda Amadio Piazza Jacobs Pereira é oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas em Fernandópolis/SP. Pós-graduada "lato sensu" em Direito Civil e Empresarial e em Direito Notarial e Registral. Graduada em Direito pela PUC/SP. __________ 1 VENOSA, Silvio de Salvo. "Direito Civil: Direito de Família". 12.ed. São Paulo: Atlas, 2012, v. 6, p. 277. 2 RODRIGUES, Silvio. "Direito Civil: Direito de Família". 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6, p. 380. 3 Segundo o Código Civil de 1916: "Art. 332. O parentesco é legítimo, ou ilegítimo, segundo procede, ou não, de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consanguinidade, ou adoção". 4 O Art. 1º, III, da Constituição Federal prevê como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. 5 Constituição Federal, Art. 226. "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". 6 O Código Civil de 2002 estabelece: "Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem". 7 I Jornada de Direito Civil. "Enunciado 103. Art. 1.593: O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho". 8 Constituição Federal, Art. 227, § 6º. "Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". 9 STF, RE 898060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 21/09/2016, DJe. 24/8/2017. 10 Lei 8.069/1990, Art. 46. 11 A lei 8.560/1992 reza que: "Art. 5º. No registro de nascimento não se fará qualquer referência à natureza da filiação..." e "Art. 6º. Das certidões de nascimento não constarão indícios de a concepção haver sido decorrente de relação extraconjugal. §1º. Não deverá constar, em qualquer caso, o estado civil dos pais e a natureza da filiação...". 12 De acordo com a lei 8.069/1990, "Art. 42, §2º. Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família". 13 Art. 14, §1º, do Provimento CNJ nº 63/2017, com a redação alterada pelo Provimento CNJ nº 83/2019.
1. Introdução O encargo previsto em uma escritura pública de doação deve ou não constar na matrícula do imóvel? Esse encargo tem eficácia contra terceiros? Essa é a questão principal sobre a qual ronda o presente artigo. Antes de enfrentar essa controversa questão, é fundamental delimitar o que é o encargo, tratar da doação com encargo e identificar a classificação da propriedade quanto à plenitude. 2. Conceitos importantes  2.1. Diferença entre obrigação e ônus Deveres jurídicos lato sensu ou obrigação lato sensu podem ser divididos em: (1) dever jurídico stricto sensu, também chamado de obrigação stricto sensu, e (2) ônus, também chamado de encargo ou modo. Na legislação, quando se emprega o verbete "obrigação" ou "dever", geralmente está-se a referir ao sentido estrito dessas palavras. O primeiro é aquele cujo descumprimento atrai dever de indenizar e enseja meios de execução forçada. Por exemplo, ter de respeitar a propriedade alheia ou de pagar o preço pactuado em contrato são exemplos de deveres (ou obrigações), por exporem o inadimplente a sanções jurídicas, com inclusão de meios de execução forçada, como astreintes, penhora etc. O segundo é aquele cujo descumprimento apenas acarreta a perda de uma situação jurídica ou que impede sua aquisição. Ônus não acarreta execução forçada nem dever de indenizar, por ser apenas uma faculdade. Carnelutti foi quem deu a melhor definição do conceito de ônus, que representa uma faculdade deferida a um sujeito de, se quiser (é faculdade! - reitere-se o óbvio), exercê-la como condição para obter um benefício jurídico. É o que sucede, por exemplo, no "dever" do credor de habilitar o seu crédito no inventário para receber. Se ele não habilitar o crédito, ele perde a oportunidade de fazê-lo naquele feito. O titular do ônus não pode ser compelido a praticar um ato, mas, se não o fizer, deixará de aproveitar-se de determinados resultados favoráveis (LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teori e ideologia del diritto. 3º ed. Milano: Giuffré, 1981 - Tradução em português, com adaptações e modificações pelo Professor Alcides Tomasetti Jr., Teoria da relação jurídica, 1999, mimeo, p. 14). A caução para participar de licitação é outro exemplo de ônus. Ninguém é obrigado a participar de licitação, mas, se quiser, deve caucionar. Caso não o faça, o sujeito só sofrerá uma consequência: a não obtenção do direito de participar da licitação. Ele não estará exposto a indenização, a punições nem a qualquer meio de coerção. No ônus, o sujeito está "livre de qualquer coação e também de qualquer dever de indenização na hipótese de não-cumprimento da exigência, contentando-se, em vez disso, com sanções mais amenas. Essa sanção mais amena geralmente consiste na perda de uma melhor posição jurídica ou em outra desvantagem jurídica qualquer" (GRAU, Eros Roberto. Nota sobre a distinção entre obrigação, dever e ônus. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 77, jan. 1982, p. 177-183. Disponível aqui). É diferente do que sucede no caso de "dever em sentido estrito" (ou de obrigação), pois, neste, o sujeito está sujeito a sanções no caso de descumprimento. O domínio da nomenclatura técnico-jurídica permite entender as consequências das normas jurídicas. Quando o Código Civil trata de situações jurídicas de ônus, não se poderá - salvo disposição em contrário - invocar qualquer meio de execução forçada, pois a única consequência negativa contra o sujeito é a não obtenção ou a perda de um direito. Ninguém, por exemplo, pode ser constrangido a fazer um testamento, pois esse direito envolve apenas um ônus, e não um dever: o seu titular apenas não obterá o direito de determinar a distribuição de seus bens após a morte se não fizer um testamento. Ao se tratar, porém, de obrigações, o Direito Civil entrega o dever aos constrangimentos jurídicos destinados a forçar o adimplemento. Nesse sentido, quem se compromete a pagar uma quantia em um contrato de compra e venda assume um dever, de modo que o seu inadimplemento o exporá a um carrossel de sanções (indenização por perdas e danos, execução judicial forçada, cláusula penal etc.). 2.2. Doação onerosa, modal, com encargo ou gravada (donatione sub modo) Sediada no art. 553 do CC, a doação onerosa é a que impõe ao donatário um encargo. Encargo pode ser um dever em benefício do doador, de terceiro ou do interesse geral. A questão é saber o seguinte: o que acontece se o donatário descumprir o encargo? Entendemos que encargo não pode ser equiparado a uma obrigação. Doação com encargo não se confunde com um contrato bilateral. Dar um veículo com o encargo de que o donatário tenha de levar o filho do donatário à escola por um ano não é o mesmo que celebrar um contrato de transporte escolar por um ano pagando o preço pela entrega de um veículo. As consequências jurídicas têm de ser diferentes. Temos que a diferença está exatamente nas consequências geradas pelo descumprimento. No caso de encargo, ao contrário do que se dá com as obrigações em geral, o seu descumprimento não autoriza execuções forçadas nem indenizações, mas apenas a perda de um direito. Por isso, no caso de descumprimento do encargo, é cabível a revogação da doação como única sanção. Não é devido pleito algum de indenização ou de execução forçada. O pedido de revogação pode ser feito, em qualquer caso, pelo doador, sem prejuízo do terceiro em proveito de quem se revertia o encargo. Se o encargo for em prol do doador, só este pode pedir a revogação. Se em prol de terceiro, o doador ou o terceiro podem pleitear a revogação. Por fim, se o encargo for em prol do interesse geral, o Ministério Público pode pleitear a revogação, desde que o doador já tenha falecido sem tê-lo feito. Essa é a interpretação que temos por adequada do art. 553 do CC, que, ao "mencionar expressões como "o donatário é obrigado a cumprir os encargos" ou  "o Ministério Público pode exigir sua execução", está, na verdade, referindo-se à viabilidade de eles pleitearem a única sanção cabível no caso de descumprimento de um encargo: a revogação da doação. Entendemos que a doação aí se reverterá em favor do doador ou do seu espólio. Aliás, Clóvis Bevilaqua, ao lembrar que "a inexecução do encargo dá origem a uma condictio causa data, causa non secuta", acena favoravelmente a esse entendimento. Afinal de contas, essa condictio era a ação empregada no direito romano para a retomada de uma coisa no caso de frustração da finalidade com a qual ela havia sido transferida (Bevilaqua, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 282). Interpretação diversa acabaria por equiparar a doação com encargo a um contrato bilateral qualquer, transformando o encargo em uma contraprestação, o que seria indevido1. De mais a mais, o encargo em benefício do próprio donatário (ex.: doação de dinheiro para que o donatário compre um imóvel para si) é mero conselho, não exigível judicialmente. O próprio art. 553 do CC não menciona o encargo a favor do donatário como exigível2. Ademais, a doação só será onerosa até o limite do valor do encargo. Se o bem doado for mais valioso do que as despesas decorrentes do encargo, o excedente é doação pura (art. 540, CC). A consequência prática disso é que, em relação à parte onerosa da doação, é cabível falar em efeitos próprios dos contratos onerosos, como a incidência dos vícios redibitórios (art. 441, parágrafo único, CC) e da evicção (art. 447, CC). Entendemos também que a doação onerosa não é suscetível de colação até o valor do encargo, pois só puras liberalidades são colacionáveis (arts. 544 e 2.002, CC). 2.3. Princípio da plasticidade ou da elasticidade do direito real de propriedade  O direito real de propriedade é o centro de todo o sistema dos direitos reais, pois os demais orbitam em torno dele. Ele é a matriz de todos os demais direitos reais, os quais acabam incidindo sobre a propriedade. Daí classificarem-se os direitos reais em duas categorias: os sobre coisa própria e os sobre coisa alheia. O direito real de propriedade é o direito real sobre coisa própria por excelência. Embora o direito real de laje também seja um direito real sobre coisa própria no nosso entendimento3, a laje não passa de uma variação do direito real de propriedade com um outro nome de batismo. Os demais direitos reais (usufruto, servidão, hipoteca etc.) são direitos reais sobre coisa alheia exatamente por serem meras compressões temporárias do direito real de propriedade, desdobrando ou restringindo os poderes inerentes. O usufruto, por exemplo, desdobra os poderes de usar e fruir em favor do usufrutuário. Ao se onerar a propriedade com um direito real sobre coisa alheia, a propriedade é contraída. Quando o direito real sobre coisa alheia se extingue, a propriedade se dilata. As compressões sobre a propriedade não decorrem apenas de direitos reais sobre coisa alheia. Os elementos acidentais do negócio jurídico (termo, condição e encargo) também podem fazer essa compressão, desde que tenham sido pactuados no ato de aquisição da propriedade. Não pode o proprietário, sozinho, gravar a própria propriedade com um desses elementos por falta de previsão legal. Enfim, o direito real de propriedade, ao ser comprimido (tornando-se uma propriedade menos plena), sempre tende a retornar ao seu estado de plenitude, ou seja, sempre tende a voltar a ser uma propriedade plena, à semelhança do que acontece com uma liga elástica (a famosa "liguinha"), que sempre tende a voltar ao seu estado primitivo após ser esticada. A esse potencial do direito real de propriedade em ser comprimido ou elastecido dá-se o nome de princípio (ou de atributo, ou de característica) da plasticidade ou da elasticidade. Fala-se metaforicamente em "plasticidade" por enfatizar que a propriedade admite ser modelada de diversas formas (ex.: propriedade com condição resolutiva; propriedade onerada com usufruto; etc.). 2.4. Poderes inerentes à propriedade e a plasticidade A plasticidade diz respeito a flexibilizações que podem ser feitas nos poderes inerentes à propriedade: o poder de usar (ius utendi), o poder de fruir (ius fruendi), o poder de dispor (ius abutendi) e o poder de perseguir a coisa nas mãos de terceiro (ius persequendi). Eles estão previstos no art. 1.228, CC. Quem é titular do direito real de propriedade tem esses poderes (ou faculdades) sobre a coisa. Essas flexibilizações podem ocorrer especialmente por meio: (1) dos direitos reais sobre coisa alheia ou (2) elementos acidentais do negócio jurídico (termo, condição e encargo). De um lado, por intermédio dos direitos reais sobre coisa alheia, esses poderes inerentes à propriedade podem ser desmembrados (destacados, arrancados) das mãos do proprietário em favor do titular desse direito real sobre coisa alheia. Por exemplo, ao se instituir um direito real de usufruto sobre um imóvel, os poderes de usar, fruir e parcialmente o de perseguir a coisa são destacados da propriedade e revertidos em favor do usufrutuário. Só sobrará ao proprietário o poder de dispor e parcialmente o de perseguir a coisa. O usufrutuário ficará com os poderes desmembrados4 de usar, de fruir e, parcialmente, de dispor. O direito real de propriedade, assim, ficou limitado, ficou amassado, ficou comprimido. Ele, todavia, tenderá a voltar ao seu estado inicial de plenitude quando, no futuro, o direito real de usufruto se extinguir. Outro exemplo é o direito real de hipoteca, que desmembra parcialmente o poder de dispor da coisa: o proprietário ainda poderá vender o imóvel hipotecado, mas o adquirente estará exposto aos efeitos de uma execução hipotecária no caso de inadimplemento da dívida garantida. Em regra, os direitos reais sobre coisa alheia recaem apenas sobre o direito real de propriedade, pois, além de essa ser a natureza desses direitos reais, a legislação os disciplina sobre esse pressuposto. Assim, não se pode falar em usufruto sobre outro usufruto. Todavia, excepcionalmente, quando a lei autorizar, é possível que um direito real sobre coisa alheia recai sobre um outro congênere, como na hipótese do direito real de hipoteca, que pode recair sobre o direito real de superfície por força do art. 1.473, X, CC. De outro lado, por meio dos elementos acidentais do negócio jurídico, os poderes inerentes à propriedade podem ser flexibilizados também. Nesse caso, não se trata de um desmembramento, pois esses poderes inerentes não estão sendo revertidos em prol de um terceiro. Trata-se apenas de restrições ao direito real de propriedade. Assim, quando alguém adquire um imóvel sob condição resolutiva, ele terá uma propriedade que se extinguirá com o advento da condição resolutiva. Os seus poderes inerentes à propriedade são temporários. Igualmente, quem adquire um imóvel por meio de uma doação com encargo poderá vir a perder a propriedade se descumprir o encargo. Essas outras restrições podem recair também sobre direitos reais sobre cosia alheia, salvo se houver proibição expressa ou se for contrário à natureza do direito real. Por exemplo, o direito real de usufruto pode estar sujeito a um termo ou a uma condição resolutivos. Pode também está restrito por um encargo. Não há proibição legal nem contrariedade com a natureza do direito real de usufruto. 2.5. Classificação da propriedade quanto à plenitude Em razão da elasticidade ou plasticidade do direito real de propriedade, é possível classificar a propriedade quanto à sua plenitude: a) propriedade plena; b) propriedade menos plena: pode ser subdividida em: b.1) propriedade restrita; b.2) propriedade temporária: pode ser subdivida em: b.2.1.) propriedade revogável b.2.2.) propriedade resolúvel b.2.3.) propriedade fiduciária Propriedade plena ou ilimitada é aquela cujo titular exercer plenamente todos os poderes inerentes à propriedade, sem qualquer limitação, nem mesmo temporal. Também pode ser chamada de propriedade alodial. A regra geral é a que a propriedade é plena, conforme art. 1.231 do CC, que afirma que "a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário". Portanto, a propriedade menos plena é exceção. Propriedade menos plena é aquela cujo titular tem limitações substanciais ou temporais para exercer os poderes inerentes à propriedade em razão de um fato jurídico. As faculdades de usar, fruir ou dispor está com alguma restrição: ou foi desmembrada em favor de terceiros, ou se extinguirá com algum evento futuro, ou seu exercício está condicionado a alguma conduta prévia etc. Metaforicamente, é um direito real de propriedade aleijado ou, para se lembrar dos romanos antigos, com uma lepra. A propriedade menos plena pode ser restrita ou temporária. A propriedade é restrita quando o titular do direito sofre limitações substanciais para exercer os poderes inerentes à propriedade. Isso ocorre quando há o desmembramento de poderes inerentes à propriedade, o que pode ocorrer por conta de direitos reais sobre coisa alheia, de direitos obrigacionais com eficácia real ou de constrições judiciais. Assim, um imóvel gravado por um direito real de hipoteca, de usufruto ou de servidão é exemplo de propriedade restrita. Também o são um imóvel penhorado. Nesse caso, a regra geral é que se aplique o princípio da prevalência, resumido no brocardo prior in tempore, potio in iure: o ônus ou o gravame real anterior prevalece sobre o posterior. Assim, uma penhora averbada na matrícula prevalecerá sobre posterior registro de compra e venda. A propriedade é temporária quando ela poderá a vir se extinguir no futuro por conta do advento de um fato jurídico resolutivo. A propriedade temporária pode ser revogável ou resolúvel. A propriedade resolúvel é aquela que se extingue pelo advento de um termo resolutivo ou pelo implemento de uma condição resolutiva. No caso, por exemplo, de uma doação sob condição resolutiva, o donatário terá uma propriedade resolúvel: se a condição resolutiva se implementar, a propriedade se extingue. Esses elementos acidentais (termo e condição) já são previamente conhecidos por estarem previstos no negócio que gerou o direito real de propriedade. No exemplo acima, a condição resolutiva estará noticiada na matrícula do imóvel para terceiros tomarem ciência. Por isso, o art. 1.359 do CC estabelece que, no caso da propriedade resolúvel, a extinção da propriedade é retroativa até a data da instituição da cláusula resolutiva apenas para o efeito de extinguir direitos reais contraditórios. Trata-se do que chamamos de "efeito dominó". Assim, ainda no exemplo acima da doação sob condição suspensiva, se o donatário vender o imóvel para um terceiro e se a condição resolutiva posteriormente se implementar, haverá o "efeito dominó": a doação se extinguirá e, em consequência, a posterior venda também. O terceiro perderá o imóvel. Não há injustiça nisso, pois o terceiro adquirente já sabia que estava a comprar uma propriedade menos plena, ou seja, uma propriedade leprosa: a matrícula do imóvel já noticiava a existência da condição resolutiva. A propriedade revogável ou ad tempus é aquela que se extingue por outra causa superveniente que não seja o implemento de uma condição ou termo resolutivos. Nesse caso, a extinção não tem efeito retroativo. O efeito é ex nunc. Não há extinção de direitos anteriores. Só sobrará ao beneficiário da extinção o direito de pleitear uma coisa similar ou o valor equivalente, tudo conforme art. 1.360, CC. Por exemplo, se João doa um imóvel a Manoel, que, a seu turno, vende o imóvel a Artur, e se, após isso, Manoel pratica um ato de ingratidão contra João a autorizar a revogação da doação na forma do art. 555 do CC, não haverá o "efeito dominó": Artur continuará como dono do imóvel. Não havia aí uma condição ou termo resolutivo expressos na matrícula do imóvel. A propriedade é revogável. Só sobrará ao João o direito de exigir que Manoel pague-lhe o valor do imóvel. Em poucas palavras, a diferença prática entre a propriedade resolúvel e a revogável é a de que só naquela há o "efeito dominó". A propriedade fiduciária nada mais é do que uma espécie de propriedade resolúvel com a particularidade de decorrer de uma alienação fiduciária em garantia. A alienação fiduciária em garantia é a transferência de uma coisa sob a condição resolutiva consistente no adimplemento de uma dívida. Assim, se, como garantia de um empréstimo que tomei, posso transferir ao banco a propriedade do meu veículo até que eu pague integralmente as prestações. O banco se torna proprietário do bem, mas sob uma condição resolutiva: o pagamento integral das prestações dos empréstimos. A propriedade fiduciária está genericamente disciplinada nos arts. 1.361 e seguintes do Código Civil. Todavia, quando se tratar de imóvel, a regência será dada, de modo principal, pela lei 9.514/97, caso em que, nesse ponto, o Código Civil terá aplicação subsidiária (art. 1.367, CC). Quando se tratar de móvel, além do CC, deve-se aplicar também o Decreto-Lei nº 911/69 e, no caso de a dívida garantida ter sido contraída no âmbito do mercado financeiro e de capitais, deve-se aplicar também o art. 66-B da Lei de Mercado de Capitais (lei 4.728/65)5. 3. Doação com encargo: propriedade resolúvel ou revogável  De posse de todos os conceitos acima, podemos finalmente enfrentar a questão central deste artigo: no caso de doação com encargo, a propriedade adquirida pelo donatário é resolúvel ou revogável? O tema não é pacífico6. De um lado, como o art. 1.359 do CC não faz alusão ao encargo, numa interpretação literal conduziria a entender que a doação com encargo geraria uma propriedade revogável (art. 1.360, CC). É que a propriedade resolúvel não abrange propriedade com encargo, salvo se o encargo tiver sido previsto como condição resolutiva expressamente, caso em que ele se enquadrará no art. 1.359 do CC. Encargo sem ser citado como condição resolutiva não ingressaria na matrícula. Ele geraria apenas uma propriedade ad tempus (art. 1.360 do CC). Um dos motivos para tanto é que os arts. 121 e 137, não prevê o encargo como condição resolutiva expressamente. Sob essa ótica, se o donatário descumprir o encargo e se ele já tiver vendido o imóvel a terceiro, esse terceiro não perderia a propriedade por não haver "efeito dominó". O outro motivo é que o encargo não teria eficácia real por não estar contemplado no art. 1.359 do CC, salvo se ele tiver sido previsto expressamente como uma condição resolutiva. O "efeito dominó" depende de previsão legal expressa por ser uma limitação ao direito real de propriedade, tudo em consonância com o princípio da taxatividade dos direitos reais. Essa é a primeira corrente, que, pelo que se infere7, conta com a adesão de Marco Aurélio Bezerra de Melo (2020, p. 1031), Francisco Eduardo Loureiro (2012, p. 1.410) e Laffayette Rodrigues Pereira (2013-A, p. 103). Trata-se da corrente majoritária. A favor dessa corrente, pode-se registrar que, ao conceituar encargo como uma restrição imposta a uma vantagem criada em um negócio jurídico, Clóvis Bevilaqua afirma que ele não necessariamente assumirá a forma de uma condição, salvo se "essa for a vontade do estipulante" e que, na dúvida "se se trata de condição ou encargo, supor-se-á de preferência que a modalidade do negócio jurídico é um encargo"8. De outro lado, há uma segunda corrente, segundo a qual a doação com encargo gera propriedade resolúvel, de modo que, com o descumprimento do encargo, poderá haver o "efeito dominó" nos termos do art. 1.359 do CC. São quatro os motivos: (1) assim como se dá com o advento do termo e o implemento da condição resolutiva, o descumprimento do encargo resolve o negócio jurídico, pois isso está implícito na disciplina dada aos elementos acidentais do negócio jurídico nos arts. 121 ao 137 do CC; (2) quando se trata de doação de imóvel, os elementos acidentais - termo, condição e encargo - têm de ser noticiados na matrícula do imóvel, de maneira que o terceiro adquirente tem ciência da restrição e, por isso, está a assumir o risco de adquirir um imóvel onerado por um encargo; (3) se a doação com encargo caracterizar uma propriedade revogável, o donatário poderá "burlar" facilmente o encargo, vendendo a coisa a terceiro, que não sofreria nenhum "efeito dominó" com o posterior descumprimento do encargo; (4) o encargo, com a particularidade de estar relacionado a um dever imposto à parte, deve ser equiparado a uma condição resolutiva, salvo quando, nos termos do art. 136 do CC, for "expressamente imposto no negócio jurídico, pelo disponente, como condição suspensiva", razão por que o encargo pode ser tido como abrangido pelo texto do art. 1.359 do CC. O fato de os arts. 121 ao 136 do CC não preverem textualmente o efeito resolutivo do encargo seria irrelevante, pois o que importaria é que esses preceitos disciplinam os elementos acidentais do negócio jurídico. Se o encargo se relacionar a imóvel, ele teria de ser noticiado na matrícula, à semelhança de qualquer outro elemento acidental dos negócios jurídicos, salvo pacto expresso em sentido contrário pelas partes. Não fosse assim, e o termo resolutivo também não poderia ser noticiado na matrícula, pois também inexiste previsão textual nos arts. 121 ao 136 do CC contemplando o efeito resolutivo desse tipo de termo. O legislador não afirma o óbvio. Além do mais, assentado na obviedade de que o descumprimento do encargo tem um efeito resolutivo, foi explícito em dizer que o encargo só poderia ter um efeito suspensivo se ele tivesse sido previsto expressamente como tal no negócio (art. 136, CC). O tema, porém, é controverso. No âmbito da CGJ/SP, inclinou-se a favor da segundo corrente ao se entender que faltou boa técnica a um oficial de Registro de Imóveis que deixou de noticiar na matrícula a existência de um encargo aposto em uma doação, embora tal imperfeição não seja capaz de gerar uma punição disciplinar, tudo conforme parecer do Juiz Alberto Gentil Pedroso de Almeida, acolhido pelo Corregedor-Geral da Justiça Ricardo Anafe9. Ao nosso sentir, apesar de entendermos que o mais adequado seria que a segunda corrente prevalecesse, infelizmente o legislador a rejeitou, pois não contemplou o encargo como apto a ensejar o "efeito dominó" do art. 1.359 do CC. Pensamos que o legislador deveria passar a incluí-lo aí, com a ressalva de que as partes podem, se quiser, afastar essa eficácia contra terceiros (afastar a eficácia real). Portanto, o encargo, se não tiver sido previsto como condição resolutiva expressamente, não pode ingressar na matrícula do imóvel no Cartório por não ter eficácia contra terceiro. De qualquer forma, diante da existência de controvérsias, a recomendação é que, na prática, os particulares prevejam expressamente o encargo como uma condição suspensiva ou resolutiva no instrumento contratual, pois, nessa hipótese, não haverá controvérsia sobre a viabilidade de ingresso disso na matrícula do imóvel quando se tratar de negócio imobiliário. O tabelião de notas, ao lavrar as escrituras de doações de imóveis com encargo, deve atentar para esse fato e, assim, deve deixar expresso se o encargo será ou não uma condição resolutiva com eficácia real. *Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na UnB, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, advogado/parecerista, ex-advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. __________ *Agradecemos aos professores Fernando Campos Scaff, Cláudio Luiz Bueno de Godoy, Marco Fábio Morsello, Marcel Simões e Rodrigo de Lima Vaz pela condução da disciplina "Temas Atuais de Direitos Reais" na USP, da qual tenho a honra de participar como ouvinte em complemento ao doutorado que tenho realizado na UnB. Deixo também especial agradecimentos a todos os alunos dessa disciplina, com destaque aos amigos Francisco José de Almeida P. F. Costa Júnior, Isabela Canesin e Leonardo Relvas por provocado os debates sobre o assunto tratado no presente artigo. 1 Realçamos que há respeitados doutrinadores a admitirem apenas o doador como idôneo a pleitear a revogação da doação, de maneira que terceiros em favor dos quais tenham sido estipulado o encargo poderiam valer-se dos meios de execução forçada. Nesse sentido é Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 285). 2 Nesse sentido é Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 285). 3 _______________. O que é o direito real de laje à luz da lei 13.465/2017 (parte 1). Disponível aqui. Data de publicação: 18 de setembro de 2017. 4 É atécnico afirmar que o usufrutário tem alguns poderes INERENTES à propriedade, pois ele não é proprietário. Ele, na verdade, tem alguns poderes DESMEMBRADOS da propriedade. 5 Para uma visão panorâmica, reportamo-nos a este artigo nosso: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Alienação Fiduciária em Garantia: reflexões sobre a (in)suficiência do cenário normativo e jurisprudencial atual. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, ago/2013 (Texto para Discussão nº 132). Disponível aqui. Acesso em 5 de agosto de 2013. 6 Em respeitadas obras, não encontramos enfrentamento direto à questão. Clóvis Bevilaqua, ao comentar o art. 648 do CC/1916 (que corresponde ao art. 1.360 do CC), estabelece que a propriedade "ad tempus" se refere a casos em que a propriedade "se resolve por causa superveniente, isto é, que não está no próprio título" (Bevilaqua, 1979, p. 1110) e, ao citar exemplo, limita-se à revogação da doação por ingratidão. Ele não faz menção à hipótese de revogação de doação por descumprimento de encargo. Igual silêncio encontramos na obra de Washington de Barros Monteiro e de Carlos Alberto Dabus Maluf (2012, pp. 334-339) bem como na obra de Virgilio de Sá Pereira, que escreveu um dos volumes de uma das mais prestigiosas coleções de Direito Civil do século XX, coordenada por Paulo de Lacerda. Virgilio de Sá Pereira, ao citar exemplos de propriedade ad tempus, não arrola a doação com encargo, mas apenas fatos resolutivos que não estavam consignados no título, como a revogação por ingratidão, a resolução por ação redibitória e a resolução por ação de petição de herança (1924, p. 456). 7 Diz-se infere, porque os autores citam a doação com encargo como exemplo de propriedade ad tempus sem fazer maiores aprofundamentos. 8 BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda, 1955, p. 223. 9 CGJSP, Processo Administrativo Disciplinar nº 0027775-47.2019.8.26.0576, Rel. Ricardo Mair Anafe, DJ 17/9/2020.
Há uma franca ressignificação do modelo tradicional de família, antigamente compreendido pela união entre um homem e uma mulher (art. 226, § 3º, CF/88). A dinamicidade das relações, somada à multiplicidade dos efeitos delas decorrentes, reclamam uma postura estatal tanto negativa, obstativa de condutas danosas ao indivíduo, quanto positiva, apta a conferir meios de consecução do pleno desenvolvimento do indivíduo frente à sociedade. Trata-se de uma realidade palpável, mas longe de ser amplamente aceita ou juridicamente pacificada. O presente artigo analisa o reconhecimento dos transgêneros1 e a desburocratização realizada pelo Conselho Nacional de Justiça pelo Provimento 73/2018, que permitiu a alteração do nome e do sexo nos respectivos registros de nascimento e casamento, abordando sua importância para o reconhecimento de novos modelos familiares.  Não resta dúvida de que a identidade de gênero é um conceito amplo que cria espaço para a auto-identificação da pessoa e que faz referência à sua vivência. A identidade de gênero está ligada a sua expressão e múltiplas formas, sendo a vivência interna e individual do gênero, tal como cada pessoa se sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo designado no momento do nascimento, sobretudo com a livre possibilidade de modificar seu corpo e/ou sua aparência, inclusive com intervenções cirúrgicas2. Dessa forma, interação social e padrões comportamentais, como vestimenta, modo de falar ou de se portar, são exemplos da expressão de gênero, mas que não o limitam ou o condicionam, pois podem ou não corresponder à identidade de gênero. Para tanto, a autopercepção é mais relevante do que especificamente a condição física ou a forma como é exteriorizada. Em regra, o transgênero enfrenta uma disparidade entre o sexo aparente e o psicológico, com questões de diversas ordens. Além de um severo conflito individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica. O transgênero tem a sensação de uma biologia equivocada, porquanto, ainda que reúnam em seu corpo todos os atributos físicos de um dos sexos, seu psiquismo pende ao sexo oposto3. Essa realidade comportamental evidencia a necessidade e urgência da matéria, uma vez que a ausência do reconhecimento de direitos incentiva discursos equivocados4. Por muitos anos, por falta de aparato jurídico-legal, o indivíduo transgênero, mesmo se identificando de modo distinto ao seu sexo biológico, não encontrava meios legais de efetivação de sua expressão íntima. Do que decorreu a denominada posse de estado do transgênero, caracterizada pelo exercício contínuo e público de uma realidade íntima que, com o decorrer do tempo, projetou-se socialmente conferindo nome, tratamento e fama correspondentes ao modo exteriorizado e não ao biológico. O aspecto psicossocial, defluente da identidade de gênero, é também autodefinido por cada indivíduo e essa particularidade, até então rechaçada pelo ordenamento jurídico, passa a ser reconhecida e, "quando se analisa a veracidade registrária à luz da dignidade da pessoa humana é o documento que deve se adaptar a pessoa e não a pessoa que deve se adaptar ao documento"5.   A dificuldade do direito positivo em acompanhar os fatos sociais exige a aplicação de princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, sobretudo a dignidade da pessoa humana, que permite a tutela integral e unitária da pessoa, garantindo que cada um manifeste sua verdadeira identidade6. Assim, restou pacificado na jurisprudência que a identificação do sexo não se restringe ao aspecto biológico, o que poderia limitar o registro civil ao aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico, contrariando os próprios princípios que regem a matéria7. A inércia legislativa dá vasão ao ativismo judicial, pois a falta de fôlego do Direito não pode proporcionar a negativa de direitos. A lei 11.340/2006 trouxe nova regulamentação à família, a ser compreendida como a "comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; independentemente de orientação sexual"8. Essa definição se harmoniza com o conceito de casamento "entre cônjuges", estabelecida pelo art. 1.511 do Código Civil. Esse avanço garantiu direitos também aos transgêneros. Atualmente a franca desburocratização realizada pelo Conselho Nacional de Justiça pelo Provimento 73/2018 permitiu a alteração do nome e do sexo nos registros civis, notadamente nascimento e casamento9. A medida é extremamente efetiva, porque os Registros Civis das Pessoas Naturais são representantes estatais com maior capilaridade territorial e aptidão para, de modo seguro e simplificado, concretizar celeremente as expressões mais ínsitas do indivíduo nas diversas relações familiares e sociais10. A complexidade e a dinamicidade do tema reclamam um olhar atento e diligente do Estado como garantidor de tais direitos fundamentais11. Isto porque a transição do conceito binário de sexo para o padrão plúrimo traz consigo diversas demandas, que também precisam ser corajosamente enfrentadas. Dentre elas, o fato de que o sexo pode comportar conceitos diferentes, situação a ser conjugada com as demais liberdades individuais e até coletivas, para uma interação sadia entre indivíduos. Trata-se de algo extremamente desafiador e talvez até de complexa tratativa, mas que não pode ficar à míngua de reflexão, nem de medidas de colmatação. Nesse sentido, a malha cartorária brasileira tem contribuído para a efetivação da dignidade e exercício da cidadania, pela franca desburocratização de procedimentos e especificamente no reconhecimento dos direitos dos transgêneros12. Conclusão A família deve ser tratada de forma plural, contemplando os diversos arranjos existentes na sociedade, por isso seu conceito não deve guardar qualquer relação com o gênero ou a orientação sexual do casal, preservando a dignidade da pessoa humana e o direito à busca da felicidade. É preciso atenção ao modelo familiar do imaginário social, composto pela união de pai, mãe e filhos do casal. Isso porque o modelo tradicional não pode ser visto como único, verdadeiro ou correto, é apenas um arranjo possível dentre tantos outros. Modelos diversos devem ser igualmente acolhidos pelo sistema. A intolerância com a diferença é que pode ser extremamente prejudicial à sociedade, por criar situações informais e relações marginalizadas, ainda mais em um contexto marcado pela polarização. O Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça é um mecanismo de extrema importância para o desenvolvimento das famílias. Que seja verdadeira mola propulsora de direitos e, como tal, mesmo que por vezes pareça retroceder, diante das celeumas decorrentes das lacunas legislativas, avance em verdade para conferir maior inteireza às pessoas e às relações familiares. *Daniella de Almeida Teixeira é especialista em Direito Público, Direito Tributário, Direito Constitucional e Direito Notarial e Registral. Pesquisadora. Oficial de Registro Civil em São Joaquim da Barra/SP.  **Erica Barbosa e Silva é mestre e doutora em Direito Processual pela USP. Professora convidada de Processo Civil e Registros Públicos em cursos de pós-graduação lato sensu. Pesquisadora. Autora de diversos artigos e livros jurídicos. Membro do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual). Conciliadora. Oficial de Registro Civil em SP.  Bibliografia CAMARGO NETO, Mario de Carvalho e OLIVEIRA, Marcelo Salaroli de. Registro civil das pessoas naturais: parte geral e registro de nascimento. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2014. CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 3 ed. rev. atual., e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito de Família. 8. ed. Porto Alegre: Revista dos Tribunais, 2011. ________. Transexualidade e o direito de casar. Disponível aqui, publicado em 20/7/2010. Acesso em 27 nov. 2019. ________. Ações afirmativas: a solução para a desigualdade, disponível aqui, publicado em 31/8/2010. Acesso em 28 nov.2019. FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: volume 1 - parte geral. 10 ed. Salvador: Jus Podvivm, 2012. LEWANDOWSKI, Ricardo. Revista Cartórios com você. Entrevista com o Ministro Ricardo Lewandowski. Ed. 4, ano 1 - julho/agosto de 2016. Disponível aqui. Acesso em: 24 jul. 2019. OLIVEIRA, Marcelo Salaroli de. "Mudança de nome e sexo no Registro Civil: a identidade de gênero" in Revista IBDFAM, v. 30 (nov./dez.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. SILVA, Érica Barbosa e. TEIXEIRA, Daniella de Almeida. "Consecução dos direitos dos transgêneros e novos modelos familiares", in Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões. V. 35. Mar./abr.2020. Porto Alegre: LexMagister, 2020. TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil. 8 ed. São Paulo: Método, 2018.  __________ 1 Este estudo é uma releitura do tema, já publicado pelas autoras in "Consecução dos direitos dos transgêneros e novos modelos familiares", Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, v. 35, mar./abr.2020, Porto Alegre, LexMagister, 2020. 2 Nesse sentido, v. OEA - Organização dos Estados Americanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Opinión Consultiva OC-24/17 - IDENTIDAD DE GÉNERO, E IGUALDAD Y NO DISCRIMINACIÓN A PAREJAS DEL MISMO SEXO, DE 24 DE NOVIEMBRE DE 2017. Disponível aqui. Acesso em 28 nov. 2019. 3 Para Maria Berenice Dias, "Ainda que o transexual reúna em seu corpo todos os atributos físicos de um dos sexos, seu psiquismo pende, irresistivelmente, ao sexo oposto. Mesmo sendo biologicamente normal, nutre um profundo inconformismo com o sexo anatômico e intenso desejo de modificá-lo, o que leva à busca de adequação da externalidade de seu corpo à sua alma", in Transexualidade e o direito de casar, disponível aqui, publicado em 20/7/2010. Acesso em 27 nov. 2019. 4 Frise-se que a identificação do discurso de ódio e os elementos que o caracterizam tendem a ultrapassar o limite da livre manifestação de pensamento, devendo ser considerados ilegais. A ausência de parâmetros objetivos para o enquadramento desse discurso mais uma vez faz emergir a relevância do Judiciário na aplicação de direitos e dos juristas ao realizarem estudos sobre o tema, denunciando tais situações e buscando concretamente às respostas para tais demandas. 5 Cf. Decisão proferida pelo Juiz de Direito Guilherme Madeira Dezem, Processo 0036840-54.2010.8.26.0100, 2ª. Vara de Registros Públicos do Foro Central da Comarca da Capital/SP, j. 31/1/2011. 6 É nesse sentido o voto da Min. Nancy Andrighi, que de forma pioneira preconizou "Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade", v. REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, j. 15/10/2009,  DJe 18/11/2009. 7 Para o Min. Luis Felipe Salomão, "Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito", v. REsp 1626739/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, j. 9/5/2017, DJe. 1/8/2017. 8 Art. 5º, inciso II e parágrafo único. 9 Cf. Marcelo Salaroli de Oliveira, "Mudança de nome e sexo no Registro Civil: a identidade de gênero" in Revista IBDFAM, v. 30 (nov./dez.), Belo Horizonte:IBDFAM, 2018, p. 129, "Percebe-se, assim, que a efetivação do direito das pessoas transgêneros alterarem nome e sexo no registro civil, considerado direito humano fundamental, no ramo dos direitos da personalidade, nasceu, vicejou e se consolidou por ação do Poder Judiciário, que no fim desse longo processo ainda teve a grandeza e a humildade de reconhecer que a questão já não demandava a atuação da Justiça, determinando então que esse procedimento possa ser realizado diretamente pelo serviço de Registro Civil". 10 LEWANDOWSKI, Ricardo. Revista Cartórios com você. Entrevista com o Ministro Ricardo Lewandowski. Ed. 4, ano 1 - julho/agosto de 2016. Disponível aqui. Acesso em 24 jul. 2019. 11 Sobre a importância do tema, v. Maria Berenice Dias, in Ações afirmativas: a solução para a desigualdade, disponível aqui, publicado em 31/8/2010. Acesso em 28 nov.2019. 12 Para Marcelo Salaroli de Oliveira, "Mudança de nome e sexo no Registro Civil: a identidade de gênero", ob.cit., p. 130, "O casamento entre pessoas do mesmo sexo, o registro de nascimento em técnicas de reprodução assistida (procriação medicamente assistida), o reconhecimento de filho socioafetivo e a alteração de sexo e prenome diretamente no registro civil são só alguns exemplos de que o cartório exerce com eficiência a efetivação e a salvaguarda dos direitos e liberdades individuais, sempre em equilíbrio com a segurança jurídica".
quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Da usucapião extrajudicial

Introdução                Como corolário do Acesso à Justiça de forma célere e eficaz, o legislador ordinário tem trazido à tona, nos últimos anos, leis com o objetivo de desjudicializar procedimentos em que não existam lides, concedendo atribuições aos Delegatários de Registros Públicos. Sob o aspecto do Acesso à Justiça, não se pode enfrentar o tema sob o enfoque apenas da intervenção do Judiciário. A visão mais moderna sobre o tema traz a ideia de que o exercício da jurisdição não é exclusivo do Poder Judiciário. Assim, fica a lição de Humberto Dalla Bernardino de Pinho (2016, p.322): O Novo Código de Processo Civil trouxe, em seu art. 3º, o comando de que "não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito", enquanto o texto constitucional, em seu art. 5º, XXXV, entende que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Embora haja similitude entre as duas redações, uma leitura mais atenta revela que o comando infraconstitucional busca oferecer uma garantia mais ampla, extrapolando os limites do Poder Judiciário, a quem incumbe prestar a jurisdição, mas não como um monopólio. Percebe-se nesse trecho do ilustre professor e doutrinador que ocorre uma renovação e releitura do acesso à justiça cabendo ao legislador criar ferramentas que desafoguem o Poder Judiciário para que este possa, com duração razoável de Processo e efetivações das tutelas jurisdicionais, se imiscuir apenas nas Ações que envolvam litígios. Uma dessas ferramentas criadas foi a previsão no novo Código de Processo Civil da inclusão do artigo 216-A na Lei 6015/73, possibilitando a declaração de Usucapião na forma extrajudicial. Reza o artigo 1071 do novo Código de Processo Civil: Art.1071- "O Capítulo III do Título V da Lei 6015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), passa a vigorar acrescido do seguinte artigo 216-A." Já o acréscimo do artigo 216-A da lei 6015/73, tem a seguinte redação no seu caput:  Art. 216-A- "Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registros de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado (......)".  Observa-se um grande avanço realizado pelo legislador ordinário, preocupado com a obtenção de direitos, procurando facilitação ao acesso à justiça. Incumbiu-se ao Registrador de Imóveis a realização do procedimento, análise e decisão acerca das questões relativas à usucapião. Nos dizeres de Leonardo Brandelli (2016, p.17): O registrador pode e deve presidir os processos de reconhecimento da aquisição da propriedade imobiliária pela usucapião em que não há lide, por ser atividade que lhe é mais afeta do que ao juiz. Cumpre esclarecer, no entanto, que tal mudança legislativa não trouxe o afastamento da matéria ao Poder Judiciário. O interessado apenas passa a ter a opção de utilizar-se da via judicial ou extrajudicial para o reconhecimento e a declaração da aquisição imobiliária pela Usucapião. Da usucapião extrajudicial Para fins de complementação da regra prevista no artigo 216-A da lei 6.015/73, o Conselho Nacional de Justiça expediu o Provimento 65 de 2017, estabelecendo diretrizes para o procedimento dos Serviços de Registros de Imóveis, visando uma harmonização e unificação de procedimento em todas as Serventias em âmbito nacional. Conforme esclarecido na fase introdutória, o legislador atribuiu a competência para tais procedimentos ao Registrador de Imóveis do local onde se situa o imóvel. Possui legitimidade para formular o pedido de reconhecimento da usucapião aquele que está na posse e, supostamente, possui uma posse 'ad usucapionem'. Tal requerimento deve ser feito através de um Advogado ou Defensor Público. Deve atender, no que couber, aos requisitos da petição inicial previstos no artigo 319 do Código de Processo Civil, e conter as seguintes informações: a) modalidade de usucapião requerida e sua base legal ou constitucional; b) a origem e as características da posse; c) a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo, com a referência às respectivas datas de ocorrências; d) o nome e o estado civil de todos os possuidores anteriores cujo tempo de posse foi somado ao do requerente para completar o período aquisitivo; e) o valor atribuído ao bem em questão (valor venal ou de mercado). Previamente ao requerimento, o interessado deve procurar o Tabelionato de Notas do local do imóvel para realizar um instrumento público denominado Ata Notarial de justificação de posse para fins de Usucapião. Esta Ata Notarial servirá para constatar a posse, o tempo desta e dos antecessores, conforme o caso, aplicando-se o disposto no artigo 384 do novo Código de Processo Civil. Nos dizeres de Leonardo Brandelli (2016, p.74): O objeto da Ata Notarial é, portanto, um fato jurídico captado pelo Notário, por intermédio de seus sentidos, e transcrito no documento apropriado; é mera narração de fato verificado, não podendo haver por parte do Notário qualquer alteração, interpretação ou adaptação de fato, ou juízo de valor. É a partir da Ata Notarial que se formarão as provas necessárias para o ulterior reconhecimento da aquisição da propriedade por Usucapião. Realizada a Ata Notarial, caberá ao interessado instruir o requerimento feito pelo seu assistente jurídico, com os seguintes documentos, além da própria Ata Notarial: a) planta e memorial descritivo realizados por um Engenheiro com ART quitada; b) certidões judiciais acerca do imóvel e dos interessados; c) procuração com poderes especiais outorgados ao assistente jurídico; d) documentos complementares que comprovem a posse ou justo título, se houver; e) certidão que demonstre a natureza urbana ou rural do imóvel; f) anuência dos confrontantes e de eventuais titulares de direitos reais inseridos na matrícula. No que tange à necessidade de anuência de eventuais titulares de direitos reais inscritos na matrícula do imóvel usucapiendo ou na dos confrontantes, a lei 13.465 de 2017 trouxe uma alteração recente ao parágrafo segundo do artigo 216-A da lei 6.015/73, para prever que, caso tais anuências não constem na planta ou memoriais descritivos apresentados, caberá ao Registrador notificar pessoalmente ou através do Correio com aviso de recebimento, para que se manifestem no prazo de quinze (15) dias, valendo eventual silêncio como concordância. Completando esta situação, a mesma lei, trouxe no parágrafo treze do citado artigo, o dever do Registrador de proceder, caso tais titulares de direitos reais estejam em lugares incertos ou não sabidos, à Notificação por Edital, mediante publicação por duas (02) vezes em jornal de grande circulação, para, a partir daí, iniciar-se o prazo de quinze dias para eventual manifestação. Quando se tratar de imóveis rurais, deve-se verificar se será necessário ou não que se apresente o Georreferenciamento do imóvel. A exigibilidade está prevista no decreto Federal 4449 de 2002, que regulamenta a .ei 10.267 de 2001. O artigo 10 do referido Decreto trata do tema e em seus incisos traz as hipóteses e prazos para a realização do Georreferenciamento. Hoje em dia, apenas os imóveis rurais acima de 100 hectáres é que tem que ter o Georreferenciamento, conforme o disposto no inciso V do artigo 10 do Decreto Federal 4449 de 2002. Para imóveis abaixo de 100 hectares, portanto, basta a apresentação de planta e memorial descritivo elaborados por Engenheiro ou Agrimensor com a ART quitada. Outra peculiariedade referente aos imóveis rurais é que também tem que ser apresentados como condição para o futuro registro, o CCIR (Certificado do Cadastro de Imóvel Rural) junto ao INCRA e o CAR (Cadastro Ambiental Rural) do imóvel, constando a área de reserva legal do imóvel.  A partir da apresentação de tais documentos ao registrador de imóveis, caberá a este fazer a prenotação do procedimento e cobrar os emolumentos respectivos. Cumpre destacar aqui que, o prazo de prenotação, ao contrário dos procedimentos comuns de registros de imóveis, não são apenas de 30 dias. O legislador previu no artigo 216-A, § 1º da lei 6.015/73 que o prazo de prenotação fica prorrogado até que haja a análise do pedido pelo Registrador, acolhendo ou não a pretensão. Após a prenotação do pedido, cabe ao Registrador fazer a autuação deste Procedimento, tornando-os uma única peça documental, com termo de abertura, numeração e rubrica de todas as folhas. A partir daí, todos os atos à serem praticadas pelo registrador deverão ser certificados nos autos. Protocolado o requerimento com todas as documentações presentes e autuados, caberá ao Registrador de Imóveis fazer a sua primeira qualificação jurídica. Cabe destacar aqui que a qualificação jurídica é um corolário do Princípio da Legalidade e, é neste instante que ele faz uma análise primária de conformidade do título ou documento com o ordenamento jurídico pátrio. Verificará se estão presentes os requisitos da legitimidade ativa prevista em lei, se os documentos acostados nos autos provam a prescrição aquisitiva do imóvel, e se foram apresentados todos os documentos exigidos na lei. Se não estiverem presentes quaisquer desses elementos citados, o Registrador fará uma nota devolutiva fundamentada, devolvendo os documentos ao interessado. Por sua vez, caso o interessado não concorde, poderá requerer que o Registrador realize o Procedimento de Dúvida, nos moldes do artigo 198 da lei 6.015/73. Se foram apresentados todos os documentos e a análise probatória constatar que existe a posse 'ad usucapionem' com o cumprimento específico do prazo pra aquisição da usucapião na modalidade pretendida, o Registrador fará uma primeira qualificação positiva, certificando nos autos e dando prosseguimento devido ao Procedimento. Cabe ressaltar aqui que o Registrador de Imóveis dentro da sua atribuição e independência pode solicitar ao interessado que apresente novos documentos com o intuito de reforçar o conjunto probatório qualificador da posse. Após essa primeira análise e estando todos os documentos em ordem, estando todos os confrontantes e supostos titulares de direitos reais inseridos na matrícula concordes e anuentes, caberá ao Registrador notificar os entes públicos, União, Estado ou Distrito Federal e Município, de acordo com o previsto no § 3º do artigo 216-A da lei 6.015/1973. Com relação à esta fase procedimental, os Entes Públicos terão o prazo de 15 dias para se manifestarem à respeito do bem ser público ou não. A finalidade da notificação aos Entes Públicos é tão somente de afastar a possibilidade do bem ser público e não privado. É mister reforçar aqui que não são usucapíveis bens públicos assim como bens chamados fora de comércio. Se o ente publico ficar silente dentro do prazo de 15 dias, isto implicará desinteresse tácito, que deverá ser certificado pelo Registrador e o Procedimento continuará no seu tramite normal. Havendo discordância de algum dos Entes Públicos, ficará vedada a Usucapião pela via extrajudicial, cabendo ao Registrador fazer uma qualificação negativa e remeter os autos ao Juízo competente, por força do previsto no artigo 216-A, § 10 da lei 6.015/73. Assim, uma vez passada essa fase e se não tiver demonstração do interesse público por parte de quaisquer dos Entes Públicos, deve o Registrador de Imóveis publicar em jornal de grande circulação do Município local um Edital contendo um resumo do Procedimento e com a descrição do imóvel para fins de publicidade. Através desta publicação, toda a sociedade vai tomar ciência da realização do procedimento. São os legitimados passivos incertos. Nos dizeres de Leonardo Brandelli (2016,p.100): Há, porém, os legitimados passivos incertos que são as pessoas que possam eventualmente ter algum direito afetado pelo acatamento do pedido de usucapião, mas que não são inicialmente conhecidas ou identificadas. Nesse diapasão, o legislador trouxe a previsão de um prazo de 15 dias para que estes legitimados incertos possam se manifestar reivindicando eventual direito conflitante com o do requerente. Se existir alguma impugnação dos chamados legitimados incertos, caberá aqui também ao Registrador encerrar o Procedimento e encaminhar os autos ao juízo competente. Por outro lado, se passado este prazo sem que tenha havido impugnação, poderá o Registrador dar seguimento ao procedimento, certificando nos autos do Procedimento tal situação. Cabe destacar aqui a controvérsia doutrinária existente à respeito da forma de contagem dos prazos tanto para a manifestação dos Entes Públicos quanto para manifestação dos chamados legitimados incertos. Parte da doutrina trata dos prazos à serem contados em dias corridos, sob o fundamento de que tal entendimento seria consentâneo com a dinâmica e celeridade que exige o procedimento. No entanto, a doutrina majoritária tem entendido de que tais prazos devem ser contados em dias úteis. Baseiam-se na previsão do artigo 15 do Código de Processo Civil pra chegarem à essa conclusão. Segundo este artigo, na ausência de normas que regulamentem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as Disposições do Código de Processo Civil devem ser aplicadas supletiva e subsidiariamente. Conjugam esse artigo com o artigo 219 do Novo Código de Processo Civil que trata da matéria de contagens de prazos, determinando a contagem em dias uteis. Passada a fase das notificações para manifestações dos entes públicos e de eventuais legitimados incertos, chega-se a fase da qualificação final do Registrador de Imóveis. Estando o pedido formal e materialmente em ordem, deverá o oficial aceitar o pedido de forma fundamentada e realizar o registro. Cumpre destacar aqui que a existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel não impede o registro da aquisição da propriedade por usucapião, tendo em vista ser modalidade de aquisição originária. No entanto, quando se tratar de imóvel rural, o adquirente deve apresentar os seguintes documentos: recibo de inscrição do imóvel rural no Cadastro Ambiental Rural; Certificado de Cadastro do Imóvel Rural junto ao INCRA e certificação do INCRA de que ateste que o poligonal objeto do memorial descritivo não se sobrepõe a nenhum outro constante do seu cadastro georreferenciado e que o memorial atende às exigências técnicas e legais previstas na lei 10.267/2001 e seus decretos regulamentadores. O registro da Usucapião é modalidade de registro "stricto sensu" e não averbação como prevê o Provimento 65 de 2017 do Conselho Nacional de Justiça. Houve um flagrante erro de técnica legislativa. As aquisições imobiliárias são objetos de registros e não de averbações. Nesse sentido, Leonardo Brandelli (2006, p.107): Restando provada a aquisição do direito real imobiliário pela usucapião, e, sendo assim, acolhido pelo Oficial de Registros o pedido da parte, deverá ser praticado um registro 'stricto sensu' de usucapião, nos termos dos artigos 167,I, e artigo 28 da lei 6.015/73. Por se tratar de modalidade de aquisição originária, portanto, direito novo, o usucapiente recebe um imóvel desembaraçado e livre de quaisquer ônus reais ou gravames que porventura recaiam sobre o imóvel. Também não incide o imposto de transmissão de bens imóveis (ITBI), imposto de competência Municipal para instituir e cobrar em decorrência da modalidade de aquisição. Outra questão importante é que nesta modalidade de aquisição de propriedade não é necessário que a identificação do imóvel seja coincidente com a constante na matrícula; basta que a nova descrição contenha elementos mínimos de especialidade que possibilitem a abertura da matrícula. Se o imóvel usucapido for de fração ou parte de um imóvel matrículado, como pode acontecer em imóveis rurais, deve-se fazer a averbação de destaque na matrícula de origem e abrir nova matrícula só para esta área usucapida com o consequente registro da aquisição. Nesses casos, não será obrigatório a exigência da descrição especializada da área remanescente. Caberá, posteriormente, ao proprietário da área remanescente regularizar a descrição do seu imóvel. No caso da usucapião ser da totalidade de imóvel já matriculado, proceder-se-à a ao registro da aquisição na própria matrícula já existente. Volto à ressaltar aqui que o Provimento nº 65/2017 do Conselho Nacional de Justiça trata da hipótese como caso de averbação junto à matrícula. No entanto, a melhor doutrina entende que é caso de registro por se tratar de direito real de aquisição de propriedade mesmo que esse registro tenha natureza declaratória. Nesse sentido, Luiz Guilherme Loureiro (2019, p.907): Há, evidentemente, flagrante erro de técnica legislativa, pois a norma refere-se a conceitos técnico-jurídicos de forma errônea. A usucapião, como forma de aquisição de propriedade imóvel (ou outro direito real imobiliário), é objeto de registro (e não averbação). Portanto, seria caso de registro da aquisição com fundamento no artigo 167, I e artigo 28 da lei 6.015/73. Considerações finais O presente trabalho tratou da Usucapião Extrajudicial apenas no seu aspecto procedimental. Procurou-se introduzir tratando-o como uma hipótese decorrente do fenômeno crescente da desjudicialização em busca do acesso à justiça célere e eficaz. Foi uma grande inovação do legislador ordinário trazer a possibilidade de Usucapião de Imóveis na forma extrajudicial sem limitar quais as modalidades de usucapião possíveis. Nesse diapasão, a doutrina majoritária entende que tal procedimento se aplica a todas as modalidades de usucapião existentes. Há de se destacar aqui que não há que se falar em inconstitucionalidade, muito pelo contrário. Seu amparo constitucional está no artigo 5º, LXXIII da Carta Magna. Prescreve este dispositivo que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a duração razoável do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Assim, para os casos em que não haja conflito de interesses em que a atividade estatal é de administração pública de interesses privados, o legislador ordinário tem permissão para trazer esta matéria para a seara extrajudicial. É a busca do Acesso à Justiça no seu conceito material. Acertou também o legislador ao entregar o procedimento à presidência do Registrador de Imóveis. Conforme Leonardo Brandelli, em sua doutrina, o Registrador de Imóveis é o "gatekeeper' dos direitos reais e obrigacionais imobiliários com eficácia real. Nos termos de Leonardo Brandelli (2016, p.17): É o Oficial de Registros de Imóveis, dentre todos os profissionais de direito, aquele a quem a usucapião não litigiosa de bens imóveis é mais afeta pela própria natureza jurídica da função registral imobiliária. O Registrador de Imóveis é um Delegatário de Serviços Públicos, aprovado em concurso público de provas e títulos, nos moldes do comando constitucional do artigo 236 da Constituição da República Federativa do Brasil, com atribuição de registrar atos que criem, modifiquem, extinguem ou declarem direitos referentes à imóveis. Portanto, é o profissional qualificado à depurar juridicamente os direitos reais e obrigacionais com o intuito de dar publicidade e de gerar a produção dos efeitos necessários. Sem dúvidas de que a declaração de Usucapião Extrajudicial foi acertadamente atribuída ao Registrador de Imóveis e configura um importante instrumento de regularização fundiária, possibilitando também ao usucapiente a possibilidade de exercer a função social do imóvel e econômica com acessos à financiamentos e créditos imobiliários.  REFERÊNCIAS BRANDELLI, Leonardo. USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA. São Paulo. Saraiva. 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010. LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. Jus Podium, 2019. FARIAS, Cristiano Chaves. DIREITO CIVIL. TEORIA GERAL. Salvador. Jus Podium, 2005. PINHO, Humberto Dalla Bernardino de. A DESJUDICIALIZAÇÃO ENQUANTO FERRAMENTA DE ACESSO Á JUSTIÇA NO CPC/2015: A NOVA FIGURA DA USUCAPIÃO POR ESCRITURA PÚBLICA. Revista Eletrônica de Direito Processual. Acessível no site: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/26605. SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO. Curitiba. Juruá Editora, 2018. *Marcelo da Silva Borges Brandão é notário e registrador do Ofício Único de Varre-Sai/RJ. Pós-graduado em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral.
O decreto-lei1/2020, de 9 de janeiro de 2020, introduziu no ordenamento jurídico português um novo direito real - o direito real de habitação duradoura1. "O DHD faculta a uma ou mais pessoas singulares o gozo de uma habitação alheia como sua residência permanente por um período vitalício, mediante o pagamento ao respetivo proprietário de uma caução pecuniária e de contrapartidas periódicas". (cfr.  art. 2.º). O direito real de habitação duradoura é, portanto, um direito real de gozo limitado, pois onera um imóvel2 cuja propriedade pertence a outrem. Sublinhe-se, no entanto, que apesar de o legislador definir o direito em análise como aquele que concede ao(s) seu(s) titular(es) - o(s) morador(es) -  a faculdade de gozo de uma habitação, é óbvio que o faz com pouco rigor jurídico, uma vez que, como se sabe, o direito de gozar coisa alheia abrange as faculdades de uso e de fruição. Ora, se é inquestionável que o morador usa o imóvel para habitação, dúvidas também não existem de que ele não pode perceber os frutos e produtos que a coisa produza; designadamente,  o morador não pode dar de arrendamento a habitação sobre a qual se constituiu o direito  para sua residência permanente3. Consequentemente, o direito real de habitação duradoura não concede ao morador o gozo, mas apenas o uso de coisa alheia. Acrescente-se, ainda, que tal acaba por resultar do diploma em apreço quando, no art. 23.º, o legislador estatuí que o  direito real de habitação duradoura se rege, no que não esteja disposto no Decreto-Lei e, no que neste não seja regulado, pelo disposto nos artigos 1484.º e seguintes do Código Civil, com as devidas adaptações, o mesmo é dizer, pelas normas do direito de habitação. Saliente-se, ainda, que o direito em estudo apenas pode ser constituído por contrato, como resulta dos preceitos do Decreto-Lei e das normas do Código Civil que regulam o direito real de habitação. A simples leitura das diversas normas que compõem este novo diploma legal deixa clara a existência de uma significativa carga obrigacional associada aos estatutos dos dois direitos reais, o do morador e o do proprietário. Passaremos a fazer referência a algumas das referidas obrigações, começando pelas que impendem sobre o morador, para só de seguida nos referirmos às do proprietário. A constituição do direito real de habitação duradoura impõe ao morador o pagamento de uma caução  (cfr. art. 6.º e al. b) do n.º 1 do art. 7. º)4 e de uma prestação pecuniária mensal, por cada mês de duração, cujo montante é estabelecido no contrato (cfr. art. 7.º, n.º 1, al. a)). Segundo a al. a) do n.º 1 do art. 9.º, ao morador cabe a obrigação de utilizar a habitação exclusivamente para sua residência permanente, embora não fique prejudicada a possibilidade de o morador utilizar parte da habitação para outro fim, desde que o faça ao abrigo de previsão contratual ou através de autorização prévia escrita pelo proprietário (cfr. n.º 3 do mesmo artigo)5. Deve ainda o morador entregar ao proprietário os montantes relativos ao Imposto Municipal sobre Imóveis (al. b) do n º 1 do art. 9.º). "Acresce que está também obrigado a promover ou permitir a realização das avaliações do estado de conservação da habitação previstas no decreto-lei e, salvo nos casos da avaliação prévia prevista no artigo 4.º e no n.º 3 do art. 9.º, a pagar o respetivo custo"; bem como, a "realizar e suportar o custo das obras de conservação ordinária na habitação" (cfr. al. d) do n.º 1 do art. 9.º)6. Ao morador compete igualmente a monitorização do estado de conservação do imóvel - que se realiza pela elaboração de uma ficha de avaliação a cada 8 anos de vigência do direito real de habitação duradoura -, no entanto, o proprietário pode assumir a iniciativa de efetuar a referida monitorização, caso em que o morador está obrigado a permitir o acesso ao imóvel (cfr. art. 10.º, n.º 2). "Quando o nível de conservação da habitação constante [desta] ficha (.) for inferior a médio e a avaliação demonstre que as anomalias existentes resultam da não realização de obras de conservação ordinária, o morador, no prazo máximo de seis a contar da data da ficha de avaliação, deve promover a realização das obras necessárias à reposição do nível médio de conservação e confirmá-lo através de nova avaliação" (cfr. n.º 3 do art. 10.º). Por seu turno, o proprietário tem de "assegurar que a habitação é entregue ao morador em estado de conservação, no mínimo, médio" (cfr. art. 8.º, n. º 1, al. a)7 e estão a seu cargo as obras de conservação extraordinária8 - cabendo ao morador a obrigação de o avisar da necessidade delas (cfr. als. d) e e) do art. 8.º)9. Acresce que, sendo "a habitação" uma  fracção de um prédio sujeito ao regime da propriedade horizontal, segundo a al. b) do art. 8.º, o proprietário está obrigado a "pagar, na parte relativa à habitação, os custos de obras e demais encargos relativos às partes comuns do prédio e, no caso de condomínio constituído, pagar as quotizações e cumprir as demais obrigações enquanto condómino". Ademais compete ao proprietário "gerir o montante recebido a título de caução e, com a extinção do DHD, assegurar a sua devolução ao morador nos casos e termos previstos no presente decreto-lei". (cfr. al. e) deste ar. 8.º). O direito real de habitação duradoura é um direito vitalício, para o(s) morador(es) a favor de quem é constituído-  como resulta da noção constante do art. 2.º do decreto-lei -, caducando "com a morte do morador ou, se constituído a favor de mais do que uma pessoa, com a morte do último deles" (cfr. art. 16.º). Consequentemente, sob pena de violação do princípio da taxatividade, obviamente, está proibida a sua transmissão mortis causa10-11 e entre as cláusulas integrantes do negócio constitutivo não pode constar uma na qual se estipule um termo ou uma condição resolutiva. A duração vitalícia do direito deve, naturalmente, constar  da inscrição registal nos termos gerais da al. b) do n.º 1 do art. 95.º do Cód.Reg.Pred. e de acordo com o expressamente determinado no art. 22.º do decreto-lei. Sendo aplicável ao direito de habitação duradoura, no que não esteja disposto no presente decreto-lei e, no que neste não seja regulado, os artigos 1484.º e seguintes do Código Civil, com as devidas adaptações, é inquestionável que em causa está um direito insusceptível de transmissão inter vivos (art. 1488.º do código Civil) e, consequentemente, insusceptível de ser onerado com uma garantia real que em caso de excussão conduza à sua alienação. No entanto, nos termos do n.º 1 do art. 13.º, o direito em exame  pode ser onerado com uma hipoteca que vise garantir o crédito concedido ao morador para pagar, no todo ou em parte, o valor da caução e, de acordo com o n.º 5 do art. 21.º, na hipótese de incumprimento por parte do morador, iniciando o credor hipotecário um processo executivo, para se fazer pagar à custa do direito, havendo lugar à venda executiva, o direito transmite-se ao adquirente nas condições do contrato, com exceção da duração, que passa a ser de 30 anos a contar da data da sua constituição12. A este propósito, sublinhe-se, por fim, que a alteração da duração do direito, naturalmente, deve passar a constar da inscrição registal (cfr. art.  22.º).  O proprietário, por seu turno, naturalmente, pode alienar o seu direito, uma vez que o direito real de habitação duradoura é apenas e só um direito real de gozo limitado13. Ao invés, o proprietário, apesar de o ser, não pode onerar o imóvel com outros direitos reais para além do direito real de habitação duradoura14, excepção feita à constituição de uma hipoteca após a constituição do direito de habitação duradoura (cfr. n. º 1 do art. 11.º). Nos termos do n.º 3 do art. 5.º "o contrato é celebrado por escritura pública ou por documento particular no qual as assinaturas das partes são presencialmente reconhecidas". Ora, sendo certo que o legislador português, desde Janeiro de 2009, através do decreto-lei 116/2008, admite que os negócios reais sobre imóveis obedeçam, em alternativa, à forma de escritura pública ou de documento particular autenticado15, não podemos deixar de estranhar que para a constituição do direito real de habitação duradora o legislador se baste com o mero documento particular com reconhecimento de assinaturas. De facto, tal opção causa-nos perplexidade, pois nenhum outro direito real imobiliário pode constituir-se por documento particular com reconhecimento presencial das assinaturas16. Ademais, é para nós no mínimo estranho que o legislador tenha optado por considerar equivalentes duas modalidades de formalização da vontade que são tão diversas, quer no seu ritual, quer na sua força probatória. Sublinhe-se, ainda, que nos termos previstos pelo n.º 8 do art. 5.º, o legislador também se bastou com o mero documento particular com reconhecimento de assinaturas como forma do "acto ou contrato que determine a aquisição da propriedade pelo morador ou a transferência dos direitos deste para o proprietário, com excepção da resolução".  O direito real de habitação duradoura, como a generalidade dos direitos reais sobre imóveis, está sujeito a registo para consolidar a sua oponibilidade erga omnes perante terceiros (cfr. art. 5.º do Cód.Reg.Pred.)17. Acresce que a respectiva inscrição registal é, como em regra, obrigatória. No entanto, inexplicavelmente, o legislador não quis que se aplicassem a este direito as regras gerais da obrigatoriedade, tendo  onerado o morador com a obrigação de requerer tal inscrição - não o titulador - e apenas no prazo de 30 dias a contar da data de celebração do contrato18.  Diversamente do que acontece no regime jurídico dos restantes direitos reais, o decreto-lei em apreço não integra uma parte com as regras relativas à extinção do direito real de habitação duradoura. Não o obstante, através de uma leitura complexiva do diploma, pode afirmar-se  que o legislador identifica as seguintes causas de extinção do direito: a) a reunião do direito real de habitação duradoura com a propriedade na mesma pessoa; b) a morte do morador ou, se constituído a favor de mais do que uma pessoa, a morte da última delas; c) o decurso do prazo de  30 anos, a contar da data da sua constituição, quando adquirido em venda executiva; d) a renúncia; d) a resolução do contrato por meio do qual se constituiu o direito. A extinção determina a produção de dois efeitos jurídicos essenciais, apresentados no n.º 1 do art. 15.º: o morador fica obrigado à entrega do imóvel ao proprietário -excepção feita, obviamente, aos casos em que o direito se extinga por aquisição do direito de propriedade pelo morador -, e o proprietário fica obrigado à devolução da caução. A entrega da habitação deve realizar-se nos termos descritos nos arts. 19.º e 20.º. Designadamente, extinto o direito de habitação duradoura, "a habitação deve ser entregue, livre de pessoas, no prazo máximo de três meses a contar da data do ato ou da ocorrência determinante da extinção" (primeira do n.º 1 do art. 19.º) - mas, evidentemente, sendo a coisa alienada em benefício do morador, o direito menor extinguir-se-á sem obrigação de entrega da coisa19. Simultaneamente, uma ficha de avaliação do estado de conservação tem de ser elaborada "em termos idênticos" aos previstos no art. 4.º (n.º 1 do art. 20.º)20. No entanto, obviamente, "o proprietário não pode (.) exigir a entrega da habitação em estado de conservação, no mínimo, médio se o nível de conservação inferior se relacionar com anomalias decorrentes da não realização das obras que lhe cabe assegurar nos termos do presente decreto-lei." E dizemos obviamente porque, mesmo sem o decreto-lei 1/2020, como se sabe, o abuso de direito é um acto ilícito (cfr. art. 334.º do código Civil). Durante o período que medeia entre a extinção do direito e a efetiva entrega do prédio, que como referimos pode durar três meses, o morador pagará ao proprietário uma "indemnização" pela sua utilização a título precário, de valor diário proporcional ao montante da última prestação mensal praticada à data da extinção (n.º 2 do art. 20.º). Desconsiderando a indevida utilização da expressão "indemnização" (uma vez que inexiste qualquer ilicitude na permanência do morador na habitação durante aquele prazo, apesar o direito real já se haver extinguido), o pagamento da contrapartida pelo uso do imóvel é perfeitamente compreensível, pois continuando o bem a ser usado também a correspondente contrapartida deve ser paga ao proprietário21. *Mónica Jardim é professora-doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde é regente da segunda turma da disciplina de Direito das Coisas, da disciplina de Direitos Reais II e da disciplina de Direito dos Registos e do Notariado. Presidente do Centro de Estudos Notariais e Registais. Membro cooptado, por reconhecido mérito científico, do Conselho do Notariado de Portugal. __________ 1 No preâmbulo do Decreto-Lei, o legislador -  depois de reconhecer que a habitação é um direito fundamental constitucionalmente consagrado, a base de uma sociedade estável e coesa e o alicerce a partir do qual os cidadãos constroem as condições que lhes permitem aceder a outros direitos como a educação, a saúde ou o emprego e de afirmar o papel primordial da habitação para a melhoria da qualidade de vida das populações, para a revitalização e competitividade das cidades e para a coesão social e territorial - justificou a criação deste novo direito, além do mais, declarando: "As profundas alterações dos modos de vida e das condições socioeconómicas das populações, a combinação de carências conjunturais com necessidades de habitação de natureza estrutural, a mudança de paradigma no acesso ao mercado de habitação precipitada pela crise económica e financeira internacional, e os efeitos colaterais de políticas de habitação anteriores, vieram colocar novos desafios à política de habitação e justificaram a necessidade de lançar uma Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) que contribuísse para resolver problemas herdados e para dar resposta à nova conjuntura do setor habitacional. Em paralelo com o agravamento das dificuldades de acesso a uma habitação adequada e com as alterações relativas às necessidades sentidas pelos agregados familiares, designadamente quanto à flexibilidade e à mobilidade habitacional, o perfil do parque habitacional do país em termos de regime de ocupação não tem contribuído para dar resposta aos problemas existentes. Com efeito, em Portugal foi fortemente privilegiado o regime de habitação própria face ao de arrendamento, por diversas razões, das quais se destacam a escassez de oferta e a existência de disfuncionalidades no mercado de arrendamento, a facilidade de obtenção de crédito hipotecário, a disponibilização de apoios do Estado à compra de habitação e aspetos culturais que valorizam a propriedade. Em resultado, 73 % dos alojamentos familiares clássicos de residência habitual em Portugal são ocupados pelos proprietários, o endividamento dos agregados familiares para aquisição de habitação assume valores muito elevados, o setor do arrendamento é diminuto e pouco acessível em termos de preços e as famílias encontram-se numa situação pouco favorável à mobilidade, o que reduz as suas opções e dificulta a sua adaptação a alterações nas dinâmicas pessoais, familiares e profissionais. Adicionalmente, coloca-se na atualidade o novo desafio de conciliar as necessidades em termos de estabilidade e de segurança na ocupação do alojamento, cruciais para o desenvolvimento da vida familiar, com as de flexibilidade e mobilidade, que derivam de uma maior mutabilidade dos percursos de vida das pessoas. Se em muitos casos o regime de habitação própria se tem mostrado pouco adequado pela sua rigidez, pelo peso do investimento que representa e pelas dificuldades de acesso ao mesmo, por outro lado, o regime de arrendamento nem sempre é conducente à estabilidade e segurança desejáveis. Estas desadequações afetam, de forma mais acentuada, as faixas etárias mais vulneráveis da população: os mais jovens, com menor capacidade de investimento e maiores necessidades de mobilidade, e os idosos, que já não conseguindo aceder a crédito hipotecário carecem de fortes condições de segurança e de estabilidade habitacional. Assim, uma política de habitação que combine as duas lógicas está, portanto, melhor preparada para fazer face ao caráter mutável das necessidades de habitação das famílias ao longo do seu ciclo de vida. Desse modo, assumem relevância soluções que constituem alternativas à aquisição de habitação própria e ao consequente endividamento das famílias e dão resposta ~s necessidades dos grupos etários mais vulneráveis, conciliando condições de estabilidade e de segurança da solução habitacional das famílias com condições de flexibilidade e mobilidade". 2 Imóvel esse que tem de estar "legalmente apto para ser utilizado para fins habitacionais" (cfr. termos  da al. b) do art. 3.º). 3 Nos termos da al. g) do art. 3.º, entende-se por "residência permanente, a habitação utilizada, e forma habitual e estável, por uma pessoa ou por um agregado habitacional como centro efetivo da sua vida pessoal e social". 4 O montante da caução é estabelecido por acordo entre as partes, embora o legislador avance critérios de definição dos valores mínimo e máximo  e de contrapartidas anuais a partir do décimo primeiro ano de duração do direito. De facto,  segundo o n.º 1 do art. 6.º, o montante da caução "entre 10% e 20% do valor mediano das vendas por m2 de alojamentos familiares, por freguesia, aplicável em função da localização da habitação e da área constante da respetiva caderneta predial, de acordo com a última atualização divulgada pelo Instituto Nacional de Estatística, I. P., (INE, I. P.), sendo considerado o valor da menor unidade territorial para fins estatísticos em que a habitação esteja localizada no caso de indisponibilidade do valor da freguesia". Esta "caução é prestada por um prazo de 30 anos, sendo o seu valor inicial reduzido em 5% ao ano a partir do início do 11.º ano e até ao final do 30.º ano de vigência do DHD, por força do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo seguinte. De facto, na al. b) do art. 7. º, pode ler-se que "o morador paga ao proprietário uma prestação pecuniária anual, por cada ano efetivamente decorrido desde o 11.º ano até ao final do 30.º ano, correspondente a 5% da caução inicial e paga através de dedução na caução".  5 Isto quer dizer que, contrariamente ao que se dispõe para o arrendamento, não se inclui na faculdade de uso do imóvel o exercício de qualquer indústria doméstica. Recordamos que, nos termos do art. 1092.º Código Civil, "no uso residencial do prédio arrendado inclui-se, salvo cláusula em contrário, o exercício de qualquer indústria doméstica, ainda que tributada" (n.º 1) e que "é havida como doméstica a indústria explorada na residência do arrendatário que não ocupe mais de três auxiliares assalariados" (n.º 2).  6 Entendendo-se por "obras de conservação ordinária na habitação" "as obras de reparação de deteriorações na habitação resultantes do envelhecimento dos materiais e ou do seu desgaste pelo uso normal, nestas se incluindo as benfeitorias necessárias que se destinem a evitar a deterioração dos mesmos e a garantir um estado de conservação, no mínimo, médio" (al. d) do art. 3.º). 7 Este estado de conservação será atestado por uma ficha de avaliação, que regista as condições existentes na habitação há menos de 12 meses e que deve ser "realizada por arquiteto, engenheiro ou engenheiro técnico inscrito na respetiva ordem profissional, que não se encontre em qualquer situação de incompatibilidade ou de impedimento no âmbito desse processo" (cfr. art. 4.º). 8 As obras necessárias à reposição das condições de segurança, salubridade e conforto da habitação por anomalias que não sejam decorrentes do envelhecimento dos materiais e ou do seu desgaste pelo uso normal, incluindo as benfeitorias necessárias que se destinem a evitar a perda ou destruição da habitação (al. e) do art. 3.º). 9 "Se o proprietário, no prazo de três meses a contar do aviso do morador referido na alínea e) do n.º 1, não iniciar as reparações, pode o morador fazê-las a expensas suas, desde que a necessidade das mesmas seja confirmada através de realização de avaliação realizada por arquiteto, engenheiro ou engenheiro técnico inscrito na respetiva ordem profissional, caso em que pode exigir ao proprietário o pagamento da despesa total com a realização das obras e da avaliação" (art. 9.º, n.º 3). O proprietário não está, contudo, onerado com tal obrigação sempre que as "anomalias existentes result[em] de atos ilícitos e ou do não cumprimento de obrigações por parte do morador" (ainda a al. d) deste art. 8.º). 10 No entanto, o legislador, com uma cautela despropositada, proíbe, de forma expressa, a transmissão mortis causa (art. 12.º).   Recordamos que a proibição da transmissão mortis causa  já decorreria da al. a) do n. º 1 do art 1476.º do Código Civil, aplicável em virtude da remissão feita pelo art. 23.º do decreto em análise. 11 Como se referirá de seguida, verificando-se a transmissão inter vivos do direito, em virtude da excussão da hipoteca que o onere, a sua duração passa a ser de trinta anos a contar da sua constituição. 12 Saliente-se que na hipótese de incumprimento por parte do morador e iniciando o credor hipotecário um processo executivo, para se fazer pagar à custa do direito, o proprietário tem, antes de mais, "opção de compra, devendo ser citado no âmbito da ação executiva para dizer se pretende ou não exercer essa faculdade, podendo, para o efeito, utilizar o saldo da caução existente à data" (cfr. art. 21.º, n.º 1). Não exercendo  opção de compra, o proprietário deve depositar à ordem do processo o saldo da caução existente à data da citação referida no n.º 1, não podendo continuar a utilizá-la, sem prejuízo de poder reclamar no processo os créditos que detenha ou venha a deter sobre o morador e vendo satisfeitas até ao valor da caução depositada as dívidas por si reclamadas com prioridade perante o exequente (cfr. art. 21.º, n.º 3 e n.º 4). Por fim, apenas no caso de a caução se revelar insuficiente, haverá lugar à venda executiva do direito real de habitação duradoura, tendo o proprietário direito de preferência. Caso o proprietário não exerça o direito de preferência, os créditos que tenha reclamado por causa do direito real de habitação duradoura serão graduados após os do credor hipotecário (cfr. art. 21.º, n.º 5). 13 Não obstante, estranhamente, o legislador sentiu a necessidade de o declarar de forma expressa, estatuindo no n.º 1 art. 11.º que "o proprietário pode transmitir livremente a terceiros a propriedade onerada com o direito real de habitação duradoura, de forma onerosa ou gratuita". 14 Cfr. o n.º 2 do art. 5.º, nos termos do qual: "a habitação deve ser entregue pelo proprietário ao morador (.) livre de pessoas, ónus e encargos, incluindo outros direitos ou garantias reais, designadamente a hipoteca". 15 De facto, através do decreto-lei 116/2008, foram alterados vários preceitos do Código Civil, no sentido de dispensar a escritura pública e passar a permitir a formalização da generalidade dos negócios jurídicos que têm por objecto bens imóveis por mero documento particular autenticado. Deste modo, a partir de 1 de Janeiro de 2009, passou a poder ser celebrado por documento particular autenticado, a título de exemplo: a aquisição, a modificação, a divisão ou a extinção dos direitos de propriedade, de usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão sobre coisas imóveis; a cessão de créditos hipotecários, quando a hipoteca recaia sobre imóveis; os actos de constituição, alteração e distrate de consignação de rendimentos e de fixação ou alteração de prestações mensais de alimentos, quando onerem coisas imóveis; os actos de constituição e de modificação de hipotecas, a cessão destas ou do grau de prioridade do seu registo e a cessão ou penhor de créditos hipotecários; as divisões de coisa comum e as partilhas de patrimónios hereditários, societários ou outros patrimónios comuns de que façam parte coisas imóveis; a doação de imóveis; os actos de constituição e liquidação de sociedades civis, se esta for a forma exigida para a transmissão dos bens com que os sócios entram para a sociedade; a constituição ou modificação da propriedade horizontal; a constituição ou modificação do direito real de habitação periódica; todos os demais actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, de usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão sobre imóveis, para os quais a lei não preveja forma especial; os actos de alienação de herança ou de quinhão hereditário, quando existam bens cuja alienação anteriormente devesse obedecer à forma de escritura pública. Saliente-se que também o art. 80.º do Código do Notariado foi alterado, sendo revogado o princípio, que era basilar do ordenamento jurídico português, segundo o qual estavam sujeitos à forma de escritura pública os actos que importassem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis, passando a exigir-se apenas que tais actos sejam formalizados por documento particular autenticado. Sublinhe-se, por fim, que em Portugal, tem competência para autenticar documentos particulares, além do notário, os conservadores/registradores, as câmaras de comércio e indústria, os advogados e os solicitadores. Portanto, estes agentes, com Decreto-Lei n.º 116/2008, passaram a poder dar forma à generalidade dos actos sujeitos a Registo predial. E isto, em pé de igualdade, no que respeita à sua validade, com a escritura pública. 16 É claro que as partes não deixam de poder escolher o documento particular autenticado, pois, nos termos do n.º 1 do art. 364.º Código Civil, quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, este só não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior. 17 Nos termos do n.º 2 do art. 5.º, o registo só não é condição para consolidar a oponibilidade erga omnes do direito real, tendo por isso um efeito meramente enunciativo ou de publicidade notícia, se em causa estiver uma aquisição fundada na usucapião, uma servidão aparente ou factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados. Saliente-se, por fim, que apenas quanto à hipoteca o registo assume uma função constitutiva (cfr. o n.º 2 do art. 4.º do Cód.Reg.Pred. e  o art. 687.º do Código Civil). 18 Foi o decreto-leii 116/2008, através do n.º 1 do art. 8.º-B do Cód.Reg.Pred., que impôs, em regra, a obrigação de solicitar a inscrição registal, sob pena de se ser responsabilizado pelo pagamento de quantia igual à que estiver prevista a título de emolumento (cfr. os n.os 1 do art. 8.º-D do mesmo diploma legal). De acordo com a redacção actual do n.º 1 do art. 8.º-B do Cód.Reg.Pred., devem promover o registo dos factos obrigatoriamente a ele sujeitos as entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando tais entidades não intervenham, os sujeitos activos do facto sujeito a registo. E isto, no prazo de dois meses (cfr. art. 8.º-C do Cód.Reg.Pred.). 19 No caso de extinção do direito real de habitação duradoura em virtude da aquisição da propriedade por parte do morador, o n.º 2 do art. 13.º estatuí que a hipoteca se transfere para a propriedade. Ora, esta solução não encontra paralelo no n.º 3 do art. 699.º (nos termos do n.º 2, "se a hipoteca tiver por objecto o direito de usufruto, considera-se extinta com a extinção deste direito"; porém, adianta-se no número seguinte, se a extinção do usufruto resultar da aquisição da propriedade pelo usufrutuário, "a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado"), nem no art. 1541.º ("extinguindo-se o direito de superfície perpétuo, ou o temporário antes do decurso do prazo, os direitos reais constituídos sobre a superfície ou sobre o solo continuam a onerar separadamente as duas parcelas, como se não tivesse havido extinção, sem prejuízo da aplicação das disposições dos artigos anteriores logo que o prazo decorra). 20 Inexistindo tal avaliação, "o proprietário pode assegurar a sua realização, caso em que tem direito a ser pago da correspondente despesa, bem como da despesa com as obras que, em função dessa avaliação, sejam necessárias para dotar a habitação de um estado de conservação, no mínimo, médio" (ainda o n.º 1 do art. 20.º). Estas despesas podem ser deduzidas no saldo da caução e o proprietário dispõe de um ano para devolver o saldo remanescente. 21 Na hipótese de o morador não cumprir estas obrigações (que já não são reais, uma vez que nascem após a extinção do direito real), poderá o proprietário exigir a imediata entrega da habitação e uma indemnização (cujos os montantes a ser pagos, agora sim, decorrem da ilicitude da conduta do morador) calculada nos termos do n.º 3 do art. 19.º: "por cada dia decorrido (...) do início da falta de pagamento da indemnização, correspondente ao dobro do valor diário da última prestação mensal praticada, podendo, para o efeito, o proprietário utilizar a caução existente".
A lei 9.514, de 20 de novembro de 1997 criou o denominado Sistema de Financiamento Imobiliário e como garantia, a alienação fiduciária dos bens imóveis. O conceito legal está previsto no artigo 22, definindo como o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. O Código Civil de 2002, no artigo 1.368-B, incluído pela lei 13.043/2014, determinou expressamente a natureza jurídica ao prever que: "A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor". Trata-se, portanto, de direito real de garantia, decorrente de um contrato, cuja constituição depende do registro na matrícula correspondente. Para que se configure e se constitua, há elementos e requisitos essenciais a serem observados e preenchidos, sob pena de não ingressarem no folio real. A análise do artigo 104 do Código Civil é indispensável, exigindo-se agente capaz e o objeto lícito. Além desses, os previstos no artigo 24 da lei 9.514/97 são de observância obrigatória pelos contratantes.           Vale ressaltar a possibilidade prevista no artigo 38 da referida lei, sobre a utilização de instrumento particular para todos os atos desta lei decorrentes.  De incontestável importância, referida lei facilitou o acesso ao crédito, não somente para aquisição de imóvel como também para garantia de diversas operações, fomentando, desta forma, o mercado imobiliário. Anteriormente à edição da lei ora em estudo, as garantias das operações não eram céleres no tocante à recuperação do crédito investido. Este fato obrigava ao credor utilizar-se de taxas maiores de juros, bem como encargos consideravelmente mais onerosos para o negócio jurídico.          A possibilidade de executar extrajudicialmente a dívida proveniente do contrato de alienação fiduciária em garantia é fator determinante para a garantia da celeridade no procedimento e subsequente recuperação do crédito, permitindo nova circulação em menor tempo. A tão aclamada desjudicialização é observada nas previsões decorrentes desta lei, na medida em que incentiva as partes a manterem ou resolverem o contrato sem a necessidade de socorrer-se de medidas protelatórias e judiciais. Justifica-se a utilização de meios que demonstrem agilidade tanto para concessão quanto à recuperação do crédito, pois refletirão diretamente na economia, culminando na circulação do crédito e fomento do mercado. A possibilidade de execução extrajudicial e a utilização de meios alternativos de solução dos conflitos decorrentes permitem a manutenção das soluções contratuais às partes contratantes, privilegiando a autonomia privada, primado das relações nesta matéria. Importante destacar a função, inclusive social, inserta na implementação da utilização de meios extrajudiciais para a solução dos conflitos, ante a pacificação de modo célere. A extinção do contrato deve ser analisada face ao adimplemento ou inadimplemento do mesmo. Havendo o pagamento de todas as parcelas, será dada a quitação e esta levada à averbação na matrícula, com o retorno da propriedade plena ao devedor. Em caso de inadimplemento das parcelas definidas no prazo de carência o credor deverá proceder ao início da execução extrajudicial, realizado a seu requerimento no Registro de Imóveis. O pagamento feito perante o Oficial e entregue ao credor, restabelece o contrato, que retomará seu curso normal. O não adimplemento no prazo legal, gera ao credor o direito de consolidar a propriedade em seu nome, mediante pagamento do imposto sobre transmissão de bens imóveis respectivo. Esta consolidação da propriedade fiduciária ao credor será objeto de averbação na matrícula do imóvel. Após, o credor deve realizar os leilões. Pode, ainda, ser pactuada entre as partes, a dação em pagamento, dispensando, assim, a realização daqueles. O valor que exceder ao débito e demais encargos, deve ser devolvido ao devedor. A princípio, se o valor da alienação não for suficiente para adimplir o débito,  não se permite o prosseguimento da cobrança por outros meios, nos termos do previsto no artigo 26-A , parágrafo 4º. ("Art. 26-A, § 4º Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil.") Um tema controverso que merece apontamento, diz respeito à possibilidade de quitação da dívida após a consolidação da propriedade. Esta, como é sabido, converte ao credor a propriedade plena do imóvel, bem como declara a mora do devedor. A partir da consolidação, caso haja interesse por parte do devedor em quitar a dívida, duas são as posições a serem abordadas. O Superior Tribunal de Justiça já admitiu a possibilidade de o devedor pagar a dívida antes da realização dos leilões com fundamento no fato de admitir-se a subsidiária aplicação das regras do decreto-lei 70/1966, entendimento externado em julgado anteriormente analisado. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (decisão monocrática). Recurso Especial 1.574.364/SE. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Data do Julgamento: 18 de outubro de 2016. Disponível aqui. Acesso em 29 jun de 2020) Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça tem seguido orientação no sentido de que esta regra somente se aplica se houver "financiamento imobiliário" e não ampla e irrestritamente a qualquer alienação fiduciária. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial 1.462.210/RS; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial 1.433.031/DF; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial 1.518.085.). Há, por outro lado, decisão da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo (VRPSP), cujo entendimento é o de que, embora possa haver o pagamento, impõe-se a necessidade de novo título de transmissão da propriedade, não sendo possível mero cancelamento da averbação de consolidação. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (1. Vara de registros públicos. Processo 1043214-93.2015.8.26.0100; Processo 0018132-19.2011.8.26.0100; Processo 0049689-24.2011.8.26.0100.). Ocorre que, com a entrada em vigor da lei 13.465/2017, denominada Lei da Regularização Fundiária, ao alterar o artigo 27 da lei 9.514/1997, introduzindo o parágrafo 2-B, previu expressamente o direito de preferência na aquisição e leilão por parte do devedor, não havendo mais que se falar em restabelecimento do contrato. Dessa forma, conforme texto legal do parágrafo 2º-B, após a consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, somado aos encargos e despesas. Acrescenta-se o disposto no parágrafo segundo do artigo 27, garantindo ao devedor o direito de ser comunicado sobre as datas, horários e locais dos leilões, mediante correspondência dirigida aos endereços constantes do contrato, inclusive ao endereço eletrônico.    Tal parágrafo fora incluído pela lei 13.465/2017, como o objetivo de garantir mais uma chance de reaquisição do bem pelo devedor. A mesma intenção parece ter tido o legislador no descrito parágrafo 2º-B, acrescido para possibilitar o exercício do direito de preferência na aquisição do bem, pelo valor da dívida, acrescido dos encargos. Portanto, que a partir da nova redação dada pela lei indicada, a aplicação do decreto-lei 70/1966 será possível somente quanto à execução de créditos garantidos por hipoteca, por tratar-se a lei 9.514/1997 de norma especial, em relação àquele. Outro tema controverso diz respeito à possibilidade sobre alienações fiduciárias em graus diferentes. O posicionamento prevalente é o proibitivo, justificando-se, precipuamente, no fato de que, ao constituir a garantia, o devedor fiduciário não é mais proprietário do bem, tendo, apenas, uma expectativa de aquisição, caso pague a dívida garantida. Dessa forma, não teria direito de propriedade para ser oferecido novamente. O autor Melhim Namem Chalhub assim se posiciona: "não há possibilidade jurídica de se constituir sucessivas propriedades fiduciárias sobre o mesmo bem, em diferentes graus, preferindo-se uns aos outros por ordem de registro, como acontece com a hipoteca, mas, não obstante, são legalmente admissíveis (1) a caução do direito real de aquisição do fiduciante (lei 9.514/1997, arts. 17, III, e 21) e (2) a alienação fiduciária da propriedade superveniente, da qual o fiduciante vier a se tornar titular quando do cancelamento da propriedade fiduciária que se encontrava no patrimônio do credor anterior, sendo certo que só após a averbação desse cancelamento na matrícula imobiliária é que a alienação fiduciária da propriedade superveniente passará a ter eficácia, só aí investindo o segundo credor da posição de novo proprietário fiduciário do bem". (CHALHUB, Melhim Namem; DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis em segundo grau?. Anoreg. Disponível aqui. Acesso em 2 abr de 2020.) O posicionamento permissivo da pactuação da garantia sobre a propriedade superveniente pode contrapor-se, porém,  à natureza absoluta inerente aos direitos reais, bem como à sua taxatividade. Verifica-se haver uma interpretação elástica, constituindo um direito real de garantia inovador, a par dos previstos na legislação vigente. A possibilidade de constituição de garantia em graus encontra previsão expressa relacionada à hipoteca e não à alienação fiduciária em garantia, que como visto, possui peculiaridades diversas, afrontando, inclusive, os princípios basilares do instituto dos direitos reais. Retoma-se, nesta oportunidade, a já vista supremacia das normas de ordem pública aplicáveis aos direitos reais, inviabilizando, da mesma forma, a interpretação extensiva. Alguns julgados fundamentam a impossibilidade da constituição bem como do ingresso na matrícula do imóvel da alienação fiduciária superveniente. Fundamentam-se no sentido de o Oficial de Registro Imobiliário ter sua atuação delimitada pelo princípio da tipicidade, que estabelece que são registráveis tão-somente os títulos e atos previstos em lei. Assim, é objeto passível de registro a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel, mas não a alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente, nos termos do art. 167, inc. I, item 35, da Lei de Registros Públicos. Por essa razão, não se revelaria juridicamente viável a constituição de nova garantia tendo como objeto o bem sobre o qual já pesa anterior alienação fiduciária constituída em favor da instituição financeira. De forma contrária, foi editado o Enunciado nº 506, da V Jornada de Estudos de Direito Civil promovida pelo Conselho Federal de Justiça, originando a interpretação a seguir expressa: "Estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada desde a data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc". O devedor fiduciante possui, conforme já visto, um direito expectativo de reaquisição da propriedade do bem. Sendo assim, não haveria proibição de que este seja dado em garantia de uma nova operação. A aceitação da garantia nestes termos depende exclusivamente do credor, que contratará ciente do pactuado. Poderia ser admitida a alienação fiduciária de forma superveniente, com fundamento no previsto no parágrafo 3º, do artigo 1.361 do Código Civil, prevendo que esta, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária. A partir dessa interpretação, com base no parágrafo indicado, pode-se extrair que eficácia de uma nova garantia fiduciária fica subordinada ao adimplemento da condição estabelecida pelo devedor fiduciante na primeira dívida, hipótese que deverá ser expressamente aceita pelo credor, no momento da realização do contrato, nos termos do já dito. Veja que não se trata de uma alienação em segundo grau e sim de uma nova alienação, que terá ingresso no registro de imóveis, com eficácia condicionada ao adimplemento da primeira garantia. Com a constituição dessa nova garantia, sobre o direito de aquisição da propriedade plena pelo devedor fiduciante, o credor teria também, um direito expectativo de garantia. Quitada a dívida e realizado o cancelamento da primeira, o titular do crédito garantido pela alienação superveniente, passa a ser garantido pela propriedade fiduciária de forma automática. Luciano Passarelli salienta e sustenta ser "possível a constituição da alienação fiduciária não sobre o imóvel porque este já foi transmitido ao credor primitivo, mas sobre a propriedade superveniente que o devedor adquirir após o inadimplemento da primeira obrigação". (PASSARELLI, Luciano apud SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. Direito Registral Imobiliário - volume II. Curitiba: Editora Juruá, 2018. p. 195.) E continua afirmando não haver incompatibilidade dessa posição com o artigo 29 da lei 9.514/1997, referindo-se à exigência de anuência do credor, em razão de que o artigo trata de situação jurídica diversa, qual seja, a cessão da posição contratual do devedor original. Poder-se-ia, inclusive, fundamentar a possibilidade, face ao princípio da autonomia contratual, abalizado pelo direito pátrio, sendo lícito às partes, pactuar o que melhor entenderem para o caso concreto. Em que pese fortes e concretos argumentos em sentido contrário, vale considerar os posicionamentos favoráveis ora apontados, no sentido de admissão. Melhim Namem Chalhub afirma que o Código Civil permite a constituição de direitos reais em garantia sobre a propriedade superveniente, apoiado no previsto no artigo 1.420, parágrafo 1º-A, que reza: "A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono". (CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 6. ed. Edição Kindle. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 198.) E segue no sentido de defender que, relativamente à propriedade fiduciária, a permissão estaria no parágrafo 3º do artigo 1.361 do mesmo diploma, segundo o qual a propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária. Neste sentido, a constituição de garantia sobre o direito expectativo, não teria por objeto um direito aquisitivo e sim um futuro direito de propriedade, conforme previsto nos artigos 1.420, parágrafo 1º-A, combinado com o 1.361, parágrafo 3º, ambos do Código Civil. Esta interpretação possibilita o ingresso do título no Registro de Imóveis, com fundamento no artigo 167, inciso I, combinado com artigo 29 da lei 6.015/73, item 29, que prevê o registro da compra e venda condicional. Dessa forma, feito o registro da garantia sobre a propriedade fiduciária superveniente, nos termos do disposto no parágrafo 3º do artigo 1.361, já citado, adquirida a propriedade pelo fiduciante, haverá o implemento da condição. Implementada esta, haverá a transmissão da propriedade resolúvel ao novo credor, retroagindo à data do registro. O fluxo do mercado financeiro bem como o dinamismo da economia tem que ser atendido pelo ordenamento e interpretado de forma a garantir segurança jurídica às relações contratuais. A lei 9.517/1997 prevê nos artigos 17 e 18, a possibilidade de cessão fiduciária, atribuindo, inclusive, a natureza de direito real. Confira-se: "Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: II - cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis. Art. 18. O contrato de cessão fiduciária em garantia opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida, e conterá, além de outros elementos, os seguintes: IV - a identificação dos direitos creditórios objeto da cessão fiduciária". O objeto da cessão serão os direitos creditórios, passando a ter eficácia erga omnes a partir da averbação do contrato no Registro de Imóveis. Trata-se, portanto, da cessão fiduciária de recebíveis. Cede-se o direito de receber os valores decorrentes do contrato. Dessa forma, verifica-se a possibilidade de ceder-se o crédito e não a propriedade fiduciária em si considerada. Tal previsão fomenta a possibilidade de renegociar, no âmbito da alienação fiduciária em garantia, direitos dela decorrentes. Ora, se é possível ceder o crédito decorrente da operação, não há impedimento para pactuar-se o direito do devedor de reaquisição da propriedade e sobre ele, estabelecer-se garantia futura, desde que seja aceita pelo credor fiduciário. Verifica-se, dessa forma, que, embora sólidos e conservadores posicionamentos a respeito da impossibilidade de pactuar-se o direito expectativo, outros contemporâneos e fundamentados em interpretação de dispositivos extraídos do ordenamento jurídico, podem ser defendidos e utilizados para as negociações a respeito do tema.  Por fim, importante salientar que recentemente foi incluído o item 33 no inciso II do artigo 167 na lei 6.015/73, permitindo a averbação do denominado do compartilhamento de alienação fiduciária por nova operação de crédito contratada com o mesmo credor, na forma prevista na lei 13.476, de 28 de agosto de 2017. A alteração foi objeto da Medida Provisória número 992 de 16 de julho de 2020, que objetivou o estímulo do mercado de crédito para atenuar as repercussões sobre a atividade econômica decorrentes da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).  O compartilhamento da alienação fiduciária, nos termos do artigo 9-A, incluído na lei 13.476, de 28 de agosto de 2017, permite ao devedor fiduciante, com anuência do credor fiduciário, utilizar o bem imóvel alienado fiduciariamente como garantia de novas e autônomas operações de crédito de qualquer natureza, desde que contratadas com o credor fiduciário da operação de crédito original.    Exige-se que a contratação seja feita no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, podendo ser utilizado por pessoa física ou jurídica. Sendo o fiduciante pessoa natural somente poderá contratar as operações de crédito em benefício próprio ou de sua entidade familiar, mediante a apresentação de declaração contratual destinada a esse fim. O artigo 9º-B elenca os requisitos para a contratação, sendo necessário constar do instrumento, dentre outros, o valor principal da nova operação de crédito; a taxa de juros e encargos incidentes; o prazo e condições de reposição do empréstimo ou do crédito do credor fiduciário; prazo de carência, após o qual será expedida a intimação para constituição em mora do fiduciante; cláusula com a previsão de que, enquanto o fiduciante estiver adimplente, este poderá utilizar livremente, por sua conta e risco, o imóvel objeto da alienação fiduciária. A alteração previu, no mesmo sentido do já regulado pela lei 9.514/97, a possibilidade de celebração do contrato por instrumento público ou particular, mediante a manifestação de vontade do fiduciante e do credor fiduciário, pelas formas admitidas na legislação em vigor, inclusive por meio eletrônico. Importante previsão deve ser citada relativa à possibilidade de pactuação do vencimento antecipado das operações garantidas pela alienação fiduciária, face ao inadimplemento e cobrança da dívida nos termos do previsto na lei 9.514/97. Inovação interessante relaciona-se à possibilidade de cobrança pelo credor fiduciário do saldo remanescente, com a exceção das operações que tenham natureza de financiamento imobiliário habitacional contratado por pessoa natural, conforme previsão expressa no parágrafo 4º do artigo 9-B da lei referida, de forma diversa da prevista no parágrafo 4º do art. 27 da lei 9.514/97. Vale ressaltar que a medida provisória, em seu texto inicial, previa a alteração também para incluir expressamente no inciso V no artigo 22, parágrafo primeiro, da lei 9.514/97 a propriedade superveniente e seus desdobramentos. Tal previsão faz parte de proposta em estudo e discussão do projeto de lei denominado "Home Equity". Inclusão esta que, dentre outras, configura importante instrumento de evolução e fomento para as operações de crédito imobiliário, necessidade latente especialmente, face à atual situação de crise, decorrente do Covid-19. Referências: ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 6. ed. Edição Kindle. Rio de Janeiro: Forense, 2019. CHALHUB, Melhim Namem; DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis em segundo grau?. Anoreg. Disponível aqui. Acesso em 02 abr. de 2020. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza; CLÁPIS, Alexandre Laizo (coord). Comentários ao Código Civil brasileiro, volume XI, tomo I: livro introdutório ao direito das coisas e o direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; Clápis, Alexandre Laizo; Cambler, Everaldo Augusto (coord.). Lei de registros públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014. *Suzana Camponez Portari Rodrigues é oficial de Registro de Imóveis da comarca de Panorama/SP. Mestranda em Direito pela Escola Paulista de Direito. Formada pela Faculdade Adamantinense Integrada, Adamantina/SP. 
quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Serventia ou cartório?

Após a Constituição Federal de 1988 muitos juristas têm substituído o termo Cartório Extrajudicial por Serventia Extrajudicial, com a afirmação de que a Carta Magna mudou o nome deste Instituto. Entretanto, faz-se necessária uma análise hermenêutica em relação a este tema, que foi objeto de um artigo meu durante o Doutorado em Direito Constitucional na UNIFOR-CE, na disciplina de Hermenêutica Jurídica, mas que faço um resumo aqui nesta Coluna do Migalhas Notariais e Registrais.  Evolução Histórico-Legislativa do Termo Serventia Extrajudicial  O termo Serventia foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977, que incluiu o artigo 206 à Constituição da República Federativa do Brasil de 1967:  Art. 206 - Ficam oficializadas as serventias do foro judicial e extrajudicial, mediante remuneração de seus servidores exclusivamente pelos cofres públicos, ressalvada a situação dos atuais titulares, vitalícios ou nomeados em caráter efetivo. 1º - Lei complementar, de iniciativa do Presidente da República, disporá sobre normas gerais a serem observadas pelos Estados e pelo Distrito Federal na oficialização dessas serventias. 2º  - Fica vedada até a entrada em vigor da lei complementar a que alude o parágrafo anterior, qualquer nomeação em caráter efetivo para as serventias não remuneradas pelos cofres públicos.  A Emenda Constitucional nº 22, de 1982, que acrescentou os artigos 207 e 208 à Constituição de 1967 também manteve a denominação serventias:  Art. 207 - As serventias extrajudiciais, respeitada a ressalva prevista no artigo anterior, serão providas na forma da legislação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, observado o critério da nomeação segundo a ordem de classificação obtida em concurso público de provas e títulos. Art. 208 - Fica assegurada aos substitutos das serventias extrajudiciais e do foro judicial, na vacância, a efetivação, no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, contem ou venham a contar cinco anos de exercício, nessa condição e na mesma serventia, até 31 de dezembro de 1983.    Percebe-se, portanto, que a denominação foi utilizada para designar os serviços judiciais e também os serviços extrajudiciais, não havendo opção do legislador originário em distinguir as duas atividades.  Entretanto, o termo Serventia, para designar o local em que se desenvolve a atividade notarial e registral, ganha destaque no texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, mais especificamente no §3º do artigo 236:  "O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses" e no artigo 31, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: "Serão estatizadas as serventias do foro judicial, assim definidas em lei, respeitados os direitos dos atuais titulares." Investigando-se as normas infraconstitucionais que utilizam a terminologia Serventias como local de exercício da atividade notarial e de registro verifica-se que somente duas legislações trazem tal denominação.  A primeira é a lei 8.935/94, que regulamenta o art. 236, da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro (Lei dos cartórios). Referida norma menciona o termo Serventia 9 (nove) vezes, sempre no sentido de representar o local em que a atividade notarial e registral é exercida. Entretanto, a mesma norma menciona ainda o termo Tabelionato de Notas, para designar o local de lavratura de testamentos pelos notários (Art. 20, § 4º). Importante destacar, que a mesma lei 8.935/94 utiliza a expressão cartório na parte preliminar da norma: "LEI Nº 8.935, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1994. Regulamenta o art. 236, da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos Cartórios)". Verifica-se, portanto, que no texto da referida norma o legislador optou pela expressão serventia, entretanto, no momento de realçar e explicitar, de modo conciso, sob a forma de título, o objeto da lei, conforme determina o conteúdo da ementa, determinado pela lei 95/98, o legislador optou pelo aspecto histórico e popular, utilizando a expressão: "Lei dos Cartórios".  A outra norma que também utiliza a expressão serventia para designar o local onde se desenvolve a atividade notarial e registral é o Código de Processo Civil de 2015 (lei 13.105/2015), que prevê o termo serventia em apenas 2 (dois) artigos: "Art. 53.  É competente o foro: (...) III - do lugar: (...) f) da sede da serventia notarial ou de registro, para a ação de reparação de dano por ato praticado em razão do ofício;" e "Art. 784.  São títulos executivos extrajudiciais: (...) XI - a certidão expedida por serventia notarial ou de registro relativa a valores de emolumentos e demais despesas devidas pelos atos por ela praticados, fixados nas tabelas estabelecidas em lei." Entretanto, a norma utiliza a palavra Cartório em diversos artigos, para ser mais preciso em 32 (trinta e dois) momentos: 28 (vinte e oito) vezes como sinônimo de local em que é praticada a atividade de auxílio direto à atividade jurisdicional) e 4 (quatro) vezes para indicar o local de exercício da atividade extrajudicial de notas e de registro.  Enfim, todas as demais normas de relevância para o ordenamento jurídico brasileiro criadas após o ano de 1988 utilizam a palavra Cartório para designar o local de exercício da atividade notarial e registral. Entre as normas investigadas é possível destacar: O Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/90, utiliza a expressão cartório ao se referir ao local em que é necessário o registro da convenção coletiva de consumo para sua obrigatoriedade (art. 107. § 1°). A Lei de Locação de Imóveis Urbanos, lei 8.245/91, também optou pela utilização da palavra Cartório, conforme se verifica em dois de seus artigos 33 e 38.  A lei 8.666/93, que dispõe sobre as regras de licitações e contratos da Administração Pública, também não se afastou da terminologia Cartório, conforme se pode analisar em seus artigos 32 e 60. O Código Civil Brasileiro de 2002, lei 10.406/02, utiliza a palavra Cartório 20 (vinte) vezes, sempre para designar o local de exercício da atividade notarial ou de registro e não utiliza nenhuma vez a palavra Serventia. Até mesmo as legislações relacionadas expressamente com a atividade notarial e de registro, como é o caso da lei 9.492/94, lei que regulamenta o protesto de títulos e outros documentos de dívida, não utiliza a palavra Serventia, prefere o termo Cartório, conforme se pode comprovar da análise do artigo 29, da referida lei.    Evolução Histórico-Legislativa do Termo Cartório O termo cartório surge como sinônimo de "cartairo" ou "cartarios", local em se achavam transcritos os títulos e documentos de algumas Corporações: "o nome de Chartularios, ou Cartularios (em vulgar Cartairos, ou Cartarios, que às vezes é sinônimo de Cartórios) Códices em que se acham transcritos os títulos e documentos de algumas Corporações"1. Em sentido semelhante, também afirmando as Corporações como origem da palavra cartórios, é Marcelo Caetano: "os cartulários, cartários ou cartórios (de Charta) pertencem sobretudo às grandes corporações monásticas ou às mitras, que possuíam avultados patrimônios, constituídos às vezes por centenas de prédios, fosse em plena propriedade, fosse em senhorio direto (prédios foreiros)"2. Sobre a origem da palavra cartório, como local de exercício da atividade notarial e registral é Joaquim de Oliveira Machado, segundo o qual a palavra substituiu o termo paço:  "A tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoção abriram, a pouco e pouco, ensanchas a que os tabelliães fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas. Essas casas perderam o nome de paço e o substituiram pelo de cartorio. D'onde veio este vocabulo? Porque para o tabellião ou escrivão ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio? Vamos explicar: Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever. A carta é versão literal do substantivo latino charta, chartae, equivalente a papel que, para a escripta incipiente, era fabricado da fibra do junco papyro. Este papel foi tomando diversos sentidos, segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado. D'ahi vem que carta significa o livro, o diploma, a patente, o titulo ou acto de lei, de citação, de partilhas, de liberdade, de conselho, etc. O cartorio, pois, não era sinão lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabellião. Era o archivo ou deposito onde são recolhidos os livros de notas, de audiencia, eleitoraes, os autos, os processos, as ordens do juiz, emfim todos os papeis. A officina do tabellião, do escrivão, e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer n'um compartimento da propria morada do serventuário"3.  Verifica-se, portanto, que a palavra Cartório surge para representar o local em que se guardavam os livros, documentos, enfim, os papéis escritos por aqueles que exerciam algum tipo de atividade notarial. Nesse sentido é possível afirmar que em um primeiro momento utilizou-se o termo escritório (para designar o local de exercício da atividade registral) e cartório (para designar o local de exercício e arquivo da atividade notarial), ambas as expressões substituindo o termo paço. A Constituição Política do Império do Brasil, elaborada pelo Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I em 25.03.1824 não fazia nenhuma menção aos termos Cartórios ou Serventias, ou seja, a atividade notarial e de registro e os termos para indicar o local de exercício dessas atividades eram regulamentados apenas no âmbito infraconstitucional.  Nesse sentido, o termo cartório é encontrado no Decreto nº 482, de 14 de novembro de 1846, que regulamentou o Registro Geral de Hipotecas (criado pela lei 317/1843):  "Art. 2º - As hypothecas deverão ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados. Fica porêm exceptuada desta regra a hypotheca que recahir sobre escravos, a qual deverá ser registrada, no registro da Comarca em que residir o devedor. Não produzirá effeito algum o registro feito em outros Cartorios, e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimento." Outra norma do século XVIII que também utiliza a palavra Cartório, cuja parte relacionada ao direito marítimo ainda está em vigor, ou seja, revogada apenas parcialmente pelo Código Civil Brasileiro de 2002, é o Código Comercial Brasileiro, lei 556, de 25 de julho de 1850. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de janeiro de 1891, também não adota as terminologias objeto de estudo deste artigo científico, mas menciona no artigo 58, §1º, que o provimento os "Ofícios de Justiça" compete aos Presidentes dos Tribunais.  O Código Civil de 1916 (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil) é uma das legislações que consolida a utilização do termo cartório, pois em diversos artigos utiliza o termo, em alguns momentos para designar a atividade extrajudicial, em outros para designar a atividade judicial.  No âmbito do direito registral imobiliário, o decreto 4.857, de 9 de novembro de 1939, que dispôs sobre a execução dos serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil de 1916, menciona o termo cartório 56 (cinquenta e seis vezes), ou seja, é a consolidação do termo para designar o local em que é desenvolvida a atividade notarial e registral no Brasil.  Em texto Constitucional, o termo cartório surge pela primeira vez na Constituição de 1934: "Art. 67 - Compete aos Tribunais: a) elaborar os seus Regimentos Internos, organizar as suas secretarias, os seus cartórios e mais serviços auxiliares, e propor ao Poder Legislativo a criação ou supressão de empregos e a fixação dos vencimentos respectivos; (...) c) nomear, substituir e demitir os funcionários das suas Secretarias, dos seus cartórios e serviços auxiliares, observados os preceitos legais." A Constituição de 1937, de forma muito semelhante à Constituição de 1934, também menciona o termo Cartório para designar de forma genérica o local de exercício da atividade de auxílio ao Poder Judiciário e prevê também a competência para legislar sobre registro civil, que é da União. A Constituição de 1946 e de 1967 não mencionam a palavra cartório, mas ao designar o local em que deve ser formalizado o casamento, utilizam o termo Registro Público. A de 1946 foi a primeira a versar sobre a vitaliciedade do exercício da atividade, que nesta época era exercida de forma conjunta com os serviços de auxílio direto à atividade jurisdicional. Conforme já mencionado, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 utiliza ambos os termos: Serventia e Cartório, entretanto, em nenhum momento exclui ou substitui o termo Cartório por Serventia. Mencionando a divergência e se posicionando pela não extinção do termo cartório é Celso Antônio Bandeira de Mello: "Já se expôs, amplamente, que, ao contrário do suposto na pergunta, a Constituição e a Lei 8.935/94 não fizeram desaparecer as unidades conhecidas como "cartórios" e que, não tendo se servido de tal expressão, valeram-se de outras para referir tais específicas e individuadas unidades que concentram plexos de atribuições públicas a serem exercidas em caráter privado"4. Em comentário sobre a lei 8.935/94, Celso Antônio Bandeira de Mello assim afirma: "(...) é bem ver que nomes são meros rótulos apostos às coisas. Nenhum deixa de existir ou se transforma em outro pelo simples fato de ser designado por outro nome". Menciona ainda que: "(...) Com ou sem tal nome, o certo é que nos termos da citada lei (como resulta dos art. 16, parágrafo único, 20, §5º, 21, 27, 28, 29, I, 39, §2º, 43 e 44 da lei 8.935/1994), persiste existindo o mesmo que se designa por Cartório ou Tabelionato (...)"5. Pesquisando o termo Cartório na Constituição de 1988, verifica-se que ele é utilizado no art. 64, que versa sobre a obrigatoriedade de a imprensa nacional e demais gráficas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios divulgarem edições populares do texto integral da Constituição:  Art. 64. A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil. Analisando-se o referido artigo, verifica-se que o legislador originário utiliza a palavra cartório em igualdade com outros institutos de conhecimento da população: escolas, sindicatos, igrejas e quartéis, fazendo crer que a própria Constituição reconhece a popularidade do termo Cartório como sendo o local em que se desenvolve a atividade notarial e de registro.   Os métodos de interpretação e as denominações: serventia e cartório O primeiro método de interpretação a ser utilizado em qualquer análise hermenêutica é o método gramatical. Referido método é insuficiente para se afirmar qual terminologia deve ser utilizada para designar, por si só, o local em que se desenvolve a atividade notarial e registral no Brasil, entretanto, é um ponto de partida para a análise dos dois termos. Pela interpretação gramatical, verifica-se que no dicionário Michaelis o termo cartório significa: "1 Lugar onde se arquivam cartas, notas, títulos e outros documentos de importância. 2 Escritório destinado ao funcionamento de tabelionatos, ofícios de notas, registros públicos etc. EXPRESSÕES Casar no cartório, COLOQ: formalizar união entre duas pessoas perante a lei. Ter culpa no cartório, FIG: ser culpado de alguma falta ainda não punida. ETIMOLOGIA der de carta+ório." No mesmo dicionário o termo serventia não é utilizado como sinônimo de cartório, bem como não indica tratar-se do local de arquivamento de documentos ou local de funcionamento dos registros públicos. Observe-se o que significa a palavra serventia no referido dicionário: "1 Qualidade do que é útil ou tem aplicação; préstimo, utilidade. 2 Uso que se faz de algo; utilização. 3 Trabalho desempenhado por servente. 4 Trabalho de serventuário. 5 Abertura para passar; tudo o que serve para passar; passagem. 6 Trabalho temporário ou em substituição a outra pessoa. 7 Condição do que serve; servidão. ETIMOLOGIA der de servente+ia1." O dicionário Aurélio indica que cartório é: "Substantivo masculino. 1. Lugar onde se registram e guardam cartas ou documentos importantes; arquivo: o cartório de uma empresa. 2. Repartição onde funcionam os tabelionatos, os ofícios de notas, as escrivanias da justiça, os registros públicos, e se mantêm os respectivos arquivos. Casar no cartório. Contrair casamento civil; casar no civil: "Casei no padre; a mulher "tá querendo casar no cartório também". Da mesma forma como se verificou nos demais dicionários, o Aurélio não atribui ao termo serventia qualquer significação de local de exercício da atividade de notas ou registros públicos: "Substantivo feminino. 1. Qualidade do que serve; utilidade, préstimo, proveito. 2. Uso, serviço, emprego, aplicação. 3. Servidão (1). 4. Serviço (14). 5. Serviço provisório ou feito em nome de outrem. 6. Trabalho do serventuário. 7. Trabalho do servente." Valendo-se do método de interpretação sistemática, que tem por objeto comparar os dispositivos com outros dispositivos, extrai-se que os diversos dispositivos que utilizam o termo cartório e serventia, sempre utilizam os dois termos para designar o local em que a atividade notarial e registral é exercida. Assim, a legislação utiliza os vocábulos como sinônimos, não há contradição em suas utilizações, sempre que aparecem são utilizadas para designar o mesmo instituto. De outro lado, apesar de identificar os dois vocábulos como sinônimos, a interpretação sistemática também é fundamental para verificar a força do termo cartório, pois pela interpretação sistemática extrai-se que em todas as normas que utilizam o termo serventia, utilizam também o termo cartório, entretanto, o contrário não é verdadeiro, ou seja, diversas normas utilizam apenas o termo cartório, sem nenhuma menção ao termo serventia.  Verificando-se o referido método pelo critério quantitativo, ou seja, pelo número de vezes de utilização das palavras nas normas, é possível afirmar também uma preponderância da palavra cartório, pois o termo serventia é de rara incidência no ordenamento jurídico, até mesmo em normas que tratam apenas do direito notarial e de registro preferem a denominação Cartório.  Seguindo-se e utilizando-se agora do método histórico de interpretação entende-se que em todas as normas analisadas, o termo cartório surge como elemento de conhecimento de toda a população como sendo o local em que se exerce a atividade notarial e de registro. De outro lado, o termo serventia é utilizado com intuito de desvincular a atividade notarial e registral do termo Cartório.  Analisando-se os dois vocábulos também pelo método teleológico ou axiológico, segundo o qual a interpretação deve sempre verificar as previsões e consequências que deveriam ter sido avaliadas pelo legislador, a palavra cartório segue em ampla vantagem, pois representa os fins sociais do direito às exigências do bem comum, ainda que, de fato, possa parecer que este fim social não tenha sido atingido. De outro lado, o termo serventias, por estar totalmente dissociado do fim social a que se destina o exercício da atividade notarial e registral, possui grande desvantagem no aspecto axiológico em relação à palavra cartório.  Conclusão Conforme mencionado, o presente artigo não tem a pretensão de esgotar o estudo sobre a utilização dos termos Serventia Extrajudicial ou Cartório Extrajudicial no ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, serve de início para o debate científico sobre a necessidade de se denominar adequadamente o local em que a atividade notarial e registral é desenvolvida, impedindo a utilização dos termos por empresas privadas que não representam o serviço público delegado aos Notários e Registradores.  Verificou-se que o termo Serventia Extrajudicial não possui uma evolução histórico-legislativa, surge em 1977, fruto da Emenda Constitucional nº 7, com objetivo de, por meio de uma norma, afastar o termo Cartório Extrajudicial do ordenamento jurídico, que sempre foi o nome utilizado para representar o local de atuação dos Tabeliães e Oficiais de Registro.  Entretanto, o próprio legislador não foi coerente com sua opção legislativa, pois em todas as normas em que utilizou o termo Serventia, valeu-se também do termo Cartório para indicar o local em que a atividade notarial e registral se desenvolve. De outro lado, diversas normas utilizam apenas a denominação Cartório, sem nenhuma menção à palavra Serventia.  Do estudo dos métodos de interpretação tradicionais: gramatical, sistemático, histórico, teleológico e sociológico é possível afirmar que em todos eles a palavra Cartório recebe destaque, ou seja, é a mais adequada para referir-se ao local de atuação dos Tabeliães e Oficiais de Registro Brasileiros, bem como, por sua natureza pública, não pode ser utilizado por empresas que não prestam referido serviço.  *André Villaverde de Araújo é doutor em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza - UNIFOR-CE. Mestre em Teoria do Direito e do Estado pela UNIVEM, de Marília/SP. Graduado em Direito pela UNICEM/UNIC de Sinop/MT. Professor do Complexo de Ensino Renato Saraiva - CERS; ENNOR - Escola Nacional de Notários e Registradores; ENFAM - Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Damásio Educacional e de diversas Universidades, Faculdades e Cursos Preparatórios para Concursos Públicos; Oficial do 2º Registro de Imóveis do Recife-PE. Autor do Livro: Cartórios - Prática para a Segunda Fase, da Ed. Foco. __________ 1 RIBEIRO, João Pedro. Dissertações chronologicas e criticas. 2ª ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1896, t. V, dissertação XIX; p. 3. 2 CAETANO, Marcelo. História do direito português. 4ª ed. Lisboa: Verbo, 2000; p. 73. 3 MACHADO, Joaquim de Oliveira. Manual do official de registro geral e das hypothecas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1888; p. 111. 4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. A competência para a criação e extinção de serviços notariais e de registro e para delegação para provimento desses serviços. (in) Coleção Doutrinas Essenciais Direito Registral. 1ª ed. Vol I. Org. DIP, Ricardo e JACOMINO, Sérgio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011; p. 82. 5 BANDEIRA DE MELLO. Op. Cit. P. 52.
Fenômeno já institucionalizado em vários países do mundo, o Time Sharing, também conhecido como multipropriedade, conceitua-se como o compartilhamento de determinado (s) bem (ns) por duas ou mais pessoas em períodos estipulados de tempo (fração temporal), no qual cada um dos multiproprietários exerce direito pleno sobre o (s) bem (ns), de forma exclusiva, durante a fração de tempo que lhe cabe. No Brasil, esse fenômeno foi introduzido no ordenamento jurídico pela lei 13.777, de 20 de dezembro de 2018, que dispôs sobre o regime jurídico da multipropriedade e seu registro, alterando o Código Civil e a Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73). No que pese seu brilhantismo, o texto legal limitou-se a regular a multipropriedade dos bens imóveis, de forma que não existe no ordenamento jurídico atual a regulamentação do time sharing de bens móveis. Em razão dessa lacuna legislativa, a mutipropriedade mobiliária está sendo operacionalizada por meio de contratos atípicos, ao arrepio da segurança jurídica. O legislador não pode mais manter-se inerte quanto à necessidade de regulamentação urgente desse instituto, que tem como objetivo proporcionar maior aproveitamento da coisa, diminuindo o tempo de ociosidade de determinados bens e premiando a função social da propriedade. Atendendo ao anseio social, foi apresentado o PL 3801/2020 pelo Deputado Federal Eli Corrêa Filho (DEM/SP), que altera o Código Civil e a Lei de Registros Públicos para dispor sobre a multipropriedade de bens móveis e seu registro. De acordo com a proposta legislativa, o time sharing dos bens móveis será instituído sob a forma de Condomínio Especial, estabelecido por meio de memorial de instituição e respectiva convenção de condomínio devidamente registrados em Cartório de Registro de Títulos e Documentos - RTD, no qual também deverão ser registradas todas as alterações posteriores, tais como a cessão, locação ou dação em pagamento da fração de tempo por um dos multiproprietários. Ainda deverão ser comunicadas ao cartório as restrições judiciais ou administrativas que decaiam sobre o bem, para anotação ex officio na matrícula do condomínio. Um aspecto importante diz respeito à diferenciação entre os bens que constituem a multripropriedade e o condomínio especial. Os bens móveis compartilhados deverão estar devidamente registrados nos competentes órgãos de registro, e o condomínio deverá ser registrado no cartório de Registro de Títulos e Documentos. São, dessa forma, registros distintos, que não se confundem e que não acarretam uma duplicidade registral. Exemplificando, os entes cadastrais, como a Capitania dos Portos, a Gerência Técnica do Registro Aeronáutico Brasileiro, da ANAC, ou os Detrans, seguirão registrando, respectivamente, embarcações, aeronaves e veículos automotores terrestres, bem como as garantias, penhoras e outras restrições sobre tais bens, com a única diferença de que, quando estes bens estiverem submetidos a regime de multipropriedade, no registro deverá figurar como proprietário o respectivo condomínio especial. Ainda, quaisquer referências a tais registros, que sejam feitas nas matrículas dos condomínios, serão realizadas como anotações, ex officio, ou seja, sem cobrança de emolumentos. Assim, não haverá dupla oneração dos multiproprietários. Um condomínio especial em multipropriedade mobiliária envolverá muitas situações, fatos e atos jurídicos específicos, que fogem ao interesse e fim dos entes a que são afetos o cadastro e registro das diversas espécies de bens móveis, sendo não só conveniente, mas necessário, que o registro dos condomínios em multipropriedade mobiliária seja objeto de assentamento e controle próprios, onde toda a sua dinâmica "vida" social e legal seja documentada, em apartado da "vida" dos bens integrantes do seu patrimônio. Bens esses que poderão mudar, ao longo do tempo, com a baixa de alguns e a inclusão de outros, razão pela qual nenhum registro de um bem móvel, em particular, poderia dar conta da vida do condomínio multiproprietário, que poderá abranger, de início ou posteriormente, vários outros bens móveis. O condomínio poderá ser formado por um ou mais bens móveis, desde que da mesma espécie, devidamente descritos no instrumento de constituição, que poderá ser feito por documento público ou privado, regularmente registrado no cartório de RTD do domicílio do instituidor ou dos instituidores detentores da maior parcela do direito de propriedade sobre o bem. O instituto do condomínio especial é figura jurídica ímpar, de possibilidades únicas, por permitir a realização de coisas que, de outro modo, não seria possível ou desejável, razão pela qual não poderá ser substituído ou transformado em pessoa jurídica, seja de que espécie for. Em outras palavras, não há criação de uma nova espécie de pessoa jurídica ou mesmo possibilidade de equiparação a qualquer pessoa jurídica hoje existente, isso porque não há affectio societatis entre os multiproprietários, mas sim desejo de compartilhamento de um ou mais bens móveis. Acredita-se que a aprovação desse Projeto de Lei viabilizará o surgimento de uma infinidade de novos negócios compartilhados, tendência moderna de consumo, que favorecerá uma movimentação nesse novo modelo econômico que a cada dia ganha mais adeptos em todo o país, a semelhança do que ocorre na Europa e Estados Unidos. *Rainey Marinho é presidente do Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas do Brasil (IRTDPJBrasil) e titular do 2º Ofício de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas de Maceió/AL. **Eli Corrêa Filho é deputado Federal eleito pelo Estado de São Paulo. Está na sua terceira legislatura. 
Texto de autoria de Franciny Beatriz Abreu Não há dúvidas que o Sistema de Registros Públicos brasileiro é importante instrumento para a regularização fundiária e proteção ambiental. Entretanto, cabe aos seus operadores utilizá-lo adequadamente. O Registrador tem um importante papel a desempenhar na condução da sua atividade, podendo, com base nos princípios da concentração1, publicidade e segurança jurídica (art. 1º da Lei 6015/73 e da Lei 8935/94) agir de modo a resguardar e proteger o meio ambiente (art. 225 CRFB/1988), no âmbito de sua circunscrição, utilizando de mecanismos previstos em textos normativos e leis. Os três princípios relacionam-se e são interdependentes, podendo ser considerados - juntamente com o princípio da continuidade (arts. 195 e 237 da Lei 6015/73)- as vigas mestras do Sistema Registral Imobiliário. Aplicado o princípio da concentração em sua essência de forma continua e geral no País, as relações jurídico-imobiliárias passarão a contar com muito mais segurança jurídica - fundamento e objetivo do Sistema Registral (art. 1º da Lei 6015/73). Isto é, se toda e qualquer informação que diga respeito a um imóvel  ou a seus titulares, começar a ser averbada junto à Matrícula (de forma continua e uniforme) para conferir publicidade (efeitos erga omnes), a confiança no Sistema Registral aumentará, gerando um efeito muito positivo para a sociedade, pois  bastará a qualquer pessoa ter em mãos um único documento: A certidão da Matrícula do imóvel para realizar uma transação imobiliária com segurança. Já o princípio da publicidade ambiental (decorrente dos princípios da publicidade e concentração) estabelece a possibilidade de o Registro de Imóveis averbar determinadas informações à margem da Matrícula de imóveis sujeitos a  limitações administrativas  ambientais. Por meio da aplicação deste princípio, a Matrícula deve ostentar todas as informações ambientais que pesam sobre o imóvel: limite de ocupação, taxa de construção, faixas "non aedificandi", existência de APP, Termos de Compensação Ambiental, etc.; e com isso, poderá um interessado optar seguramente pela compra de um imovel em tais condições, ou não. Assim, pretendo tratar neste artigo do papel ambiental do Registrador de Imóveis, que pode ser alçado ao status de um verdadeiro agente de proteção ambiental no Brasil, se souber utilizar de todas as ferramentas legais à sua disposição, agindo sempre com fundamento nos princípios citados. O primeiro exemplo de atuação do Registrador é no tocante às Áreas de Preservação Permanente, chamadas popularmente de "APP". A Lei nº 12.651/12 (atual Código Florestal Brasileiro) estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação das áreas de Preservação Permanente. Já a Lei Federal nº 6.766/79, dita as normas complementares sobre o parcelamento do solo, contanto que não infrinja as normas presentes no Código Florestal. A Lei 6.766/79 dispõe como requisito fundamental a obrigatoriedade de uma faixa não edificável de 15 (quinze)  metros da cada lado, ao longo das águas correntes e dormentes, bem como das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias.  Quanto às faixas "non aedificandi" de domínio público das rodovias e ferrovias, cabe ao Registrador observar se houve tal menção quando da apresentação de qualquer planta do imóvel que confronte com Estradas estaduais e federais (ou ferrovias), e, em caso de não existir a previsão de tal faixa, exigir a correção da planta em nota de exigência.  Já as faixas de terra marginais de águas correntes - incluídos os olhos d'agua - e águas dormentes, são consideradas APP, conforme o Código Florestal e a Lei do Parcelamento do Solo, havendo, entretanto, suposta antinomia, gerando divergências quanto à metragem da sua extensão, tese que está sendo há tempos discutida nos Tribunais. Conforme julgados mais recentes, o STJ vêm adotando o disciplinado no Código Florestal (mesmo em imóveis urbanos), deixando de aplicar os 15 (quinze) metros previstos na Lei 6766/79. Neste sentido, há recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, através da 2ª Turma, que julgou que  a aplicação do Código Florestal somente pode ser afastada se houver lei municipal mais rígida. O entendimento foi firmado no âmbito da AResp nº 1312435, de relatoria do Ministro Og Fernandes. De acordo com a decisão, o Código Florestal é a lei especial a ser observada na espécie, cabendo às demais leis ordinárias - municipais e/ou estaduais - apenas intensificar ou manter o patamar de proteção. No mesmo sentido, julgado que trata de imóvel de Santa Catarina: "RECURSO ESPECIAL N. 1.505.083-SC (2014/0338358-7) Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho Recorrente: Ministério Público do Estado de Santa Catarina Recorrido: Silvia Cristina Bernardo Vieira Advogados: Odirlei de Oliveira - SC028013 Fernanda Alberton Pizzolatti - SC034596 Recorrido: Fundação Ambiental Municipal de Orleans FAMOR Advogado: Aurivam Marcos Simionatto - SC010803. "EMENTA Recurso especial. Ação civil pública. Administrativo e Ambiental. Área de Preservação Permanente-APP. Suposta antinomia do Código Florestal com a Lei de Parcelamento do Solo Urbano no que tange à defi nição da área não-edifi cável às margens de rio. Maior proteção do meio ambiente. Incidência do limite previsto no Código Ambiental vigente à época dos fatos. Recurso especial do Ministério Público do Estado de Santa Catarina provido, para reconhecer a impossibilidade de continuidade ou permanência de qualquer edificação na área de preservação das margens do Rio Tubarão. 1. Discute-se nos autos, no âmbito de análise desta Corte Superior de Justiça, o suposto confl ito da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (art. 4º, III, da Lei 6.766/1979) sobre o Código Florestal (art. 2º da Lei 4.771/1965) no que tange à defi nição da dimensão non aedifi candi no leito do Rio Tubarão, considerada como Área de Preservação Permanente-APP, restando incontroverso nos autos que os recorridos edifi caram a uma distância de 22 metros do corpo d'água.  2. A aparente antinomia das normas foi enfrentada pela Corte de origem com enfoque na suposta especialidade da Lei 6.766/1979, compreendendo que a Lei 4.771/1965 cederia espaço à aplicação da Lei de Parcelamento do Solo no âmbito urbano. 3. O âmbito de proteção jurídica das normas em confronto seria, na realidade, distinto. Enquanto o art. 2º do Código Florestal visa à proteção da biodiversidade, a Lei de Parcelamento do Solo tem Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 211-267, janeiro/março 2019 237 por fi nalidade precípua a ordenação do espaço urbano destinado à habitação, de modo que a proteção pretendida estaria mais relacionada à segurança da população, prevenindo edificações em terrenos alagadiços ou sujeitos a inundações. 4. Por ser o que oferece a maior proteção ambiental, o limite que prevalece é o do art. 2º da Lei 4.771/1965, com a redação vigente à época dos fatos, que, na espécie, remontam ao ano de 2011. Incide, portanto, o teor dado ao dispositivo pela Lei 7.511/1986, que previu a distância mínima de 100 metros, em detrimento do limite de 15 metros estabelecido pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano. Precedente da Segunda Turma: REsp 1.518.490/SC, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 15.10.2018. 5. Frise-se, ademais, não se admitir, notadamente em temas de Direito Ambiental, a incidência da Teoria do Fato Consumado para a manutenção de situação que, apesar do decurso do tempo, é danosa ao ecossistema e violadora das normas de proteção ambiental." (grifei). Havendo APP, cabe ao Registrador promover a sua publicidade, averbando-a à margem das Matrículas de seu acervo, indicando sua localização e extensão, prevenindo com tal prática terceiros interessados nos citados imóveis e contribuindo para a sua fiscalização pelo poder público, pois sem tornar tal informação pública, por meio da averbação não há como efetuar-se o controle da norma ambiental. A averbação da informação da existência de APP sobre o imóvel matriculado no Registro de Imoveis é realizada privilegiando os princípios da concentração e da publicidade ambiental. Acerca da importância da averbação da APP no Registro de Imóveis, colhe-se da obra do doutrinador Marcelo M. Melo, in: clique aqui  (acesso em 07/08/2020): "4.2.1 Importância registral da APP (.) Não obstante, inegável a importância de sua especialização no Registro de Imóveis como caráter didático, já que o proprietário e futuros proprietários teriam ciência da restrição, reforçando a ideia contida na legislação ambiental aumentando-lhes a consciência ecológica. Outra utilidade em se proceder à averbação da APP seria a facilidade do Registrador imobiliário constatar uma exclusão no cômputo, em eventual especialização de RLF por vedação expressa do Código Florestal. Existe facilidade de localização já que a própria lei já apresenta algumas referências, principalmente em margens de cursos d'água. Mas a averbação poderá ser realizada a nosso ver com a apresentação de planta e memorial descritivo subscrito por profissional habilitado (engenheiros florestais ou agronômicos, por exemplo) com o respectivo recolhimento de anotação de responsabilidade técnica (ART) para se ter certeza da especialização. Em virtude da expressa indicação da legislação ambiental das APP, fácil sua constatação pelos órgãos públicos; incluído o Registro de Imóveis. (.) A publicidade de referidas áreas pode ser vista como essencial para o Registro de Imóveis e população em geral, deveria ser tratado com prioridade e acessar o fólio real antes mesmo das reservas legais florestais, pela importância ambiente e até econômica que representam." (grifei). Assim, sendo apresentados ao Registrador documentos que apontam a existência de APP (Área de Preservação Permanente) sobre determinado terreno, cabe a este exigir que seja tal área localizada e averbada junto à Matrícula, para fins de publicidade registral, em respeito também ao princípio da concentração. A respeito, dispunha o Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça de Santa Catarina no ano de 2013: "Art. 802. O Registrador informará aos intervenientes acerca das restrições ao uso do imóvel quando este se localizar em Unidade de Conservação (ex.: Parque Estadual Serra do Tabuleiro, Parque Estadual Serra Furada, Parque Estadual das Araucárias, Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, Reserva Biológica Estadual da Canela Preta, Reserva Biológica Estadual do Aguaí), bem como em área considerada de preservação permanente - APP. § 1º A providência determinada no caput será consignada no registro e será dispensada quando já constar da escritura. § 2º Na ocorrência de dúvida quanto à existência de restrição ou aos seus limites, o Registrador deverá consultar a Fundação de Amparo à Tecnologia e ao Meio Ambiente - FATMA (endereço eletrônico: www. fatma.sc.gov.br), na qualidade de gestora das referidas unidades." Já o atual Código de Normas, no mesmo sentido, assim estatui: "Art. 688. O oficial deve estar atento à completa identificação do titular de direito real e da propriedade imobiliária". "Art. 685. Além das previsões legais específicas, averbar-se-ão, na matrícula ou no registro de transcrição, para mera publicidade: (.) XI - os termos de responsabilidade de preservação de reserva legal e outros termos de compromisso relacionados à regularidade ambiental do imóvel e seus derivados;" Para a averbação da APP, cabe ao interessado apresentar ao Registro de Imóveis: -       Planta e memorial descritivo subscritos por profissional habilitado (engenheiros florestais ou agronômicos, por exemplo) com o respectivo recolhimento de anotação de responsabilidade técnica (ART); -       A aprovação do órgão ambiental (estadual ou municipal) na planta; -       A planta deverá conter a indicação da área, medidas e localização da APP. Ainda com relação à Áreas de Preservação Permanente, é dever do Registrador, no ato da qualificação  (art. 198  da Lei 6015/73), exigir a respectiva licença Ambiental (LAI) para registro de parcelamentos, condomínios de lotes, incorporações imobiliárias,  ou mesmo averbação de construção, quando o terreno se tratar de área abrangida por APP. A esse respeito, dispõe a Resolução 237/97 do CONAMA: "Art. 5º - Compete ao órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal o licenciamento ambiental dos empreendimentos e atividades: (...) II - localizados ou desenvolvidos nas florestas e demais formas de vegetação natural de preservação permanente relacionadas no artigo 2o da Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965, e em todas as que assim forem consideradas por normas federais, estaduais ou municipais;" "Art. 6º - Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio." No Estado de Santa Catarina, para o registro de Condomínio de Casas, há também necessidade de apresentação ao Registro de Imóveis da Licença Ambiental (LAI), sob pena de denegação do registro requerido. A esse respeito, dispõe o CNCGJSC: "Art. 778. Quando for o caso, será exigida licença do órgão ambiental competente na aprovação de condomínio de edificações de que trata o art. 8º da Lei n. 4.591, de 16 dezembro de 1964. (redação alterada por meio do Provimento n. 12, de 5 de agosto de 2016)". Com tais práticas, o Registrador, atuando  como braço do Estado,  verifica se está ou não sendo preservada a faixa de APP, podendo agir em caso de desrespeito ou invasão da área protegida por Lei, informando ao Ministério Público Estadual para que atue e tome providências (art. 6º da Lei 7347/85). Outra atuação do Registrador como agente de proteção Ambiental é no tocante aos imóveis rurais. Neste caso, a atuação do Registrador está adstrita à necessidade de formular nota de exigência  para que seja apresentado recibo do CAR (Cadastro Ambiental Rural) - quando se tratar de transmissão da propriedade, desmembramento ou retificação de área do imóvel - a fim de que seja fiscalizada a implantação das áreas de Reserva Florestal Legal. Em caso de ser apresentado CAR "zerado", no qual não conste área destinada à Reserva Legal, cabe ao Registrador informar ao Ministério Público da Comarca, para investigação. Sobre a matéria, o Código de Normas disciplina: "Art. 685. (.) § 3° A prévia averbação do cadastro ambiental rural (CAR) é condição para a transmissão da propriedade, desmembramento ou retificação de área do imóvel. (redação acrescentada por meio do Provimento n. 8, de 29 de janeiro de 2020)  Circular n. 15, de 29 de janeiro de 2020  § 4º Fica dispensada a averbação do número de inscrição no cadastro ambiental rural (CAR) nos casos de existência prévia de averbação da reserva legal. (redação acrescentada por meio do Provimento n. 8, de 29 de janeiro de 2020)  Circular n. 15, de 29 de janeiro de 2020". "Art. 688. O oficial deve estar atento à completa identificação do titular de direito real e da propriedade imobiliária. (redação alterada por meio do Provimento n. 21, de 13 de dezembro de 2016) (.) XII - o número de inscrição no cadastro ambiental rural (CAR). (redação acrescentada por meio do Provimento n. 8, de 29 de janeiro de 2020)  Circular n. 15, de 29 de janeiro de 2020". Cabe salientar, que a  apresentação do CAR no Registro de Imóveis e sua averbação é ato obrigatório, também para imóveis que tenham passado ao perímetro urbano após a edição da Lei n. 7.803/89, como forma de proteger o meio ambiente e não privilegiar aqueles proprietários que deixaram de proceder à averbação da reserva legal em tempo oportuno. Neste caso, não havendo apresentação do CAR com a especialização da Reserva Legal, deve  o Registrador oficiar ao Ministério Público  da Comarca, comunicando tal fato e averbar a ausência da da especialização da Reserva Legal à margem da Matrícula do imóvel. Neste sentido, dispõe o CN: "Art. 691. A averbação da transformação de imóvel rural em urbano sem a prévia especialização da reserva legal deverá ser comunicada ao Ministério Público." No Estado de Santa Catarina está em vigor a Lei 14.675/2009, que assim estabelece acerca da Reserva Legal: "Art. 122. Na propriedade ou posse de imóvel rural que não atenda ao percentual de reserva legal exigido, deverão ser adotadas as seguintes medidas, isolada ou conjuntamente: I - recompor a reserva legal mediante o plantio na área necessária a sua complementação; II - conduzir a regeneração natural da reserva legal; III - compensar a reserva legal por outra área equivalente em importância ecológica e extensão, que pertença ao mesmo ecossistema e esteja localizada na mesma bacia hidrográfica; IV - mediante o arrendamento de área sob o regime de servidão ambiental, ou de reserva legal, ou da aquisição de Cotas de Reserva Florestal - CRF; V - através da aquisição e doação ao Estado de áreas no interior de Unidades de Conservação de proteção integral de domínio publico pendentes de regularização fundiária. § 1º Quando as medidas deste artigo forem necessárias em pequenas propriedades ou posses rurais, assim entendidas para os fins desta Lei, o Poder Público Estadual prestará apoio técnico. § 2º O regulamento da presente Lei indicará os critérios técnicos para a aprovação das medidas prevista neste artigo pelo órgão ambiental". Ou seja, de acordo com a lei estadual citada, se o imóvel rural não conter Área de Reserva Legal, ou  esta encontrar-se diminuída, deverão ser adotadas medidas visando a recomposição, regeneração ou compensação da área degradada. Por fim, ainda quanto à Reserva Legal, destaco que nos termos do Parecer (pesquisa nº 133/2015 de 19/11/2015, do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do MP/SC), de autoria do coordenador do CME, Promotor de Justiça Paulo Antônio Locatelli, cabe ao MPSC investigar quando apresentado ao Registro de Imóveis recibo do CAR com área de Reserva Legal inferior a 20% (vinte por cento). Neste caso, ao receber Ofício do Registrador informando o fato, o Ministério Público irá investigar se realmente  tal propriedade (com menos de 4 módulos fiscais), possuía ou não, em 22 de julho de 2008, vegetação nativa  (art. 67, da Lei nº 12.651/12), como forma de assegurar a área rural consolidada e impedir novos desmatamentos. Por fim, como último papel ambiental do Registro de Imóveis, não se pode deixar de mencionar, a importante  missão do Registrador  consistente em fiscalizar a ocorrência de parcelamentos do solo irregulares na sua circunscrição, deixando de registrar títulos que, por vias transversas, impliquem em loteamentos clandestinos. Havendo indícios de tal prática, cumpre ao Registrador denegar o registro do título e oficiar ao Ministério Público. Os loteamentos clandestinos são uma doença das cidades que precisa ser combatida com rigor, uma vez que toda a sociedade perde - em especial as gerações futuras - com a proliferação de empreendimentos criados à margem das leis. Isso porque, deixam-se de ser criadas Áreas Verdes, praças, arruamentos e redes de esgoto. Sem falar nas questões tributárias, pois lotes clandestinos são transmitidos, muitas vezes por gerações, mediante o uso de "contratos de gaveta", prática que implica na costumeira sonegação fiscal. Enfim, um loteamento irregular é um mal que atinge múltiplas esferas: -       Ambiental - não são criadas áreas verdes, não são criadas redes de esgoto, não são observadas as regras ambientais, entre outras questões; -       Fiscal - o Estado deixa de arrecadar; -       Social - a sociedade deixa de receber (na saúde, educação, etc) os benefícios oriundos dos tributos que deveriam ter sido recolhidos aos cofres públicos; -       Ordenação Urbana - as cidades ficam desordenadas, sem vias públicas adequadas, sem praças, sem iluminação pública, sem redes de água e esgoto (.). Portanto, estando evidente que um loteador que parcela irregularmente uma gleba cria uma dívida incalculável para a sociedade, não há dúvidas que cabe ao Registrador combater com rigor os loteamentos clandestinos. A Corregedoria-Geral de Justiça do Paraná, por meio de orientação - Protocolo SEI/TJPR n. 1171304, assim disciplinou: "(.) Os Registradores de Imóveis ao efetuarem a qualificação registral devem conciliar a necessidade de fiscalização dos parcelamentos irregulares com o direito de propriedade garantindo pela Constituição Federal no artigo 5º, inciso XXII, de forma a evitar fraudes à lei nº 6.766/1979 e assim assegurar o cumprimento dos deveres urbanísticos. Neste sentido o Registrado deverá tomar as seguintes cautelas: a) verificar se há alienações sucessivas de pequenas frações ideais do imóvel, formando condomínio com a pessoa sem nenhuma afetividade familiar (parentesco) ou outros vínculos especiais, o que presume que o imóvel está sendo alienado em lotes(...) f) se há a indicação de área específica para a fração ideal comprada pelo adquirente, pois pode revelar que os condomínios estão sendo atribuídos em quinhões do imóvel, mediante parcelamento do solo disfarçado sob a forma de condomínio. Assim, verificando os Registradores no caso concreto de qualquer uma das possíveis manifestações e indícios de burla à lei de parcelamento do solo supramencionadas deverão submeter a remessa das informações relativas ao juiz Corregedor do Foro Extrajudicial, ao Ministério Público e ao Procurador do Município" Sobre o papel do Registrador no combate aos loteamentos clandestidos, em Santa Catarina, dispõe o Código de Normas: "Art. 713. É vedado ao oficial proceder ao registro de: I - venda de parcela de loteamento ou desmembramento não registrado; II - fração ideal de condomínio não aprovado pelo município; III - fração ideal com localização, numeração e metragem certa; IV - qualquer forma de instituição de condomínio ordinário que desatenda aos princípios da legislação civil ou que, de modo oblíquo e irregular, caracterize parcelamento do solo urbano; e V - escritura pública ou contrato particular que verse sobre promessa de compra e venda de propriedade imobiliária e implique parcelamento irregular do solo urbano ou fracionamento incabível de área rural." "Art. 714. As frações ideais poderão estar expressas, sem distinção, em percentuais, frações decimais ou ordinárias ou área." "Art. 715. Para a configuração de loteamento clandestino, deve-se considerar, dentre outros dados objetivos a serem isolada ou conjuntamente valorados: I - a disparidade entre a área fracionada e a do todo maior; II - a forma de pagamento em prestações; e III - os critérios de rescisão contratual." "Art. 717. Diante de indícios da existência de loteamento clandestino, o oficial noticiará tal fato ao representante do Ministério Público, com remessa de cópia da documentação disponível." A jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo recusa o registro de título de aquisição de lote de terreno, sem a prévia regularização do loteamento: "REGISTRO DE IMÓVEIS - Escritura de venda e compra - Loteamento não registrado - Abertura de Matrícula - Impossibilidade - Imóvel com descrição precária e, sua área maior, vendido em parte segregada - Necessidade de apuração do remanescente - Ausência de controle da disponibilidade e da especialidade - Identificação do proprietário e de sua mulher - Necessidade de adequação dos dados qualificativos do título com os do registro - Averbação que se faz necessária -Recurso não provido (Conselho Superior da Magistratura, Apelação n.º 118-6/0, Rei. Des. Luiz TâmbaraJ. 25.11.2003). "REGISTRO DE IMÓVEIS. Recusa de registro de escritura pública de compra e venda de lotes que integram loteamento não inscrito, mantida na sentença de procedência da dúvida suscitada pelo Oficial. Lotes destacados de área maior, que apresentam descrição precária. Necessidade de apuração da área e devida delimitação e caracterização dos lotes, de modo a permitir o ingresso seguro, no registro imobiliário, evitar sobreposição de área e possibilitar o controle da disponibilidade. Recurso não provido (Conselho Superior da Magistratura, Apelação n.º 651-6/2, Rei. Des. Gilberto Passos de Freitas, j . 22.2.2007). "REGISTRO DE IMÓVEIS - Dúvida julgada procedente - Negado registro de escritura de venda e compra de lote destacado de área maior -Loteamento clandestino - Indispensável a prévia regularização do parcelamento - Ocorrência de destaques anteriores - Inviabilizado o controle de disponibilidade e especialidade - Necessidade de apuração do remanescente e da correta localização do lote na área de que foi destacado - Recurso não provido (Conselho Superior da Magistratura, Apelação n.º 810-6/9, Rei. Des. Ruy Camilo, j . 27.5.2008) REGISTRO DE IMÓVEIS - Dúvida - Fração ideal de imóvel a que atribuída área certa - Elementos registrados que demonstram a implantação de parcelamento irregular do solo urbano - Registro inviável - Recurso não provido (Conselho Superior da Magistratura, Apelação n.º 857-6/2, Rei. Des. Ruy Camilo, j . 3.6.2008). O combate aos loteamentos cladestinos deve ser efetuado inclusive nos procedimentos extrajudiciais de usucapião, denegando o Registrador o processamento e o consequente registro, por ofensa à Lei 6766/79 e à Constituição Federal (art. 225). Em suma: Sem parcelamento regular, não é possível abrir a Matrícula. Sem a Matrícula, o usucapião não pode ser registrado. A Doutrina pátria  comunga  desse entendimento: "Sem possibilidade de registro, por falta de Matrícula, que não poderia ser aberta, sem a regularização do loteamento, a sentença concessiva do usucapião seria um título inútil. Não se concebe que possa extrair algum resultado útil" (Cintra, Grinover e Dinamarco, Teoria Geral do Processo, 7 ed., p. 230, RT, S. Paulo, 1990). Os Tribunais, por sua vez,  têm reiteradamente decidido que o usucapião não é via adequada à regularização de loteamento clandestino, consoante os seguintes precedentes: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMÓVEL RURAL. FRACIONAMENTO IRREGULAR. LOTEAMENTO CLANDESTINO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. SENTENÇA MANTIDA. I - A ação de usucapião não se constitui em instrumento processual adequado a regularizar o fracionamento de área rural em urbana, notadamente quando se sabe que se trata de área integrante de loteamento clandestino, não aprovado pelo município, que sequer Matrícula existe no registro imobiliário. II - Verificado que eventual sentença declaratória de aquisição do domínio de bem imóvel não poderá ser transcrita no registro de imóveis, é de se manter a sentença que julgou extinto o processo, sem a resolução de mérito" (TJMG - Data de Julgamento: 16/12/2014; Data de Publicação: 28/01/2015; Cidade: Esmeraldas; Estado: Minas Gerais; Relator: Vicente de Oliveira Silva) "USUCAPIÃO - O usucapião não é o meio apropriado para regularização de loteamento clandestino e sim modo de aquisição de propriedade pela posse animus domini. Recurso provido para julgar improcedente a ação". (TJSP - Apelação Cível nº 84.792-4 - Rei. Ênio Zulianni - 27.07.99 - V.U.). "USUCAPIÃO DE LOTE DE TERRENO DE DESMEMBRAMENTO CLANDESTINO, EM DESACORDO COM OS REQUISITOS DO ARTIGO 18 DA LEI 6.766/79 - Impossibilidade de registro, a inviabilizar o pedido de reconhecimento da prescrição aquisitiva - Apelo do Ministério Público provido, para julgar improcedente a ação -Comunicada a Corregedoria Geral da Justiça das irregularidades apuradas no Registro Imobiliário local." (TJSP - Apelação nº 157.508-4/4-00 - Rei. Luiz Ambra - 8 Câmara de Direito Privado - j . 27.03.09). "USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO - Imóvel urbano - O lote usucapiendo faz parte de loteamento irregular e foi dado em aforamento ao apelado pela Mitra Diocesana de Taubaté - O direito real de enfiteuse não se constituiu, à falta de registro do loteamento e abertura de Matrículas dos lotes - Conquanto tenha permanecido no plano do direito pessoal o aforamento, conclui-se que a posse direta do apelado não é exercida animo domini- Por derivar de contrato, a posse do apelado não é apta à aquisição de domínio pela longevidade -Ademais, não se presta o usucapião à regularização de loteamento clandestino - Sem parcelamento, não é possível a abertura de Matrículas - À falta de Matrícula, não é possível o registro de sentença que concedesse o usucapião - Precedentes do Conselho Superior da Magistratura - Configurada a inutilidade do provimento jurisdicional pleiteado - Processo extinto, sem julgamento do mérito (art. 267 , VI, do CPC )- Recurso provido" (TJ-SP - Apelação APL 994050556150 SP  - Data de publicação: 17/03/2010). Portanto, diante de todo o exposto, conclui-se que é de grande amplitude o papel do Registrador de Imóveis como agente de proteção ambiental, podendo contribuir de forma decisiva, por meio de sua atuação diária, para a preservação ambiental em sua circunscrição. *Franciny Beatriz Abreu é Registradora Pública da Comarca de Porto Belo/SC.       __________ 1- " No seu aspecto formal, o princípio da concentração é um dos princípios registrais que decorre da interpretação da Lei dos Registros Públicos e se consagrou na prática registral brasileira, tendo sido amplamente reconhecido, não apenas pelos Registradores, mas também pela jurisprudência dos Tribunais. Esse princípio foi doutrinariamente desenvolvido pelos estudos de Décio Erpen, desembargador aposentado do TJRS, e João Pedro Lamana Paiva, Registrador imobiliário em Porto Alegre-RS, com a adesão de Mário Pazutti Mezzari, Registrador imobiliário em Pelotas-RS. (...) tem seu fundamento mais remoto no fato de que o Direito só protege aquilo que é dado a conhecer às pessoas e, quando isso não se realize publicamente, pelo menos que chegue ao conhecimento daquelas pessoas que tenham real interesse em relação a determinada situação jurídica" (in: LAMANA PAIVA, João Pedro, Princípio da Concentração, extraído do site: https://registrodeimoveis1zona.com.br/?p=695, acesso em 07/08/2020).  
Texto de autoria de Reinaldo Velloso dos Santos Encerra-se em 19 de agosto de 2020 o prazo para apreciação, pelo Presidente da República, do Projeto de Lei de Conversão da MP 944, de 3 de abril de 2020, remetido à sanção, o qual "institui o Programa Emergencial de Suporte a Empregos; altera as leis .430, de 27 de dezembro de 1996, e 13.999, de 18 de maio de 2020; e dá outras providências". A MP 944, de 3 de abril de 2020, teve como principal objetivo viabilizar operações de crédito com empresários, sociedades empresárias e sociedades cooperativas, com a finalidade de pagamento de folha salarial de seus empregados, por meio de programa destinado às pessoas com receita bruta anual entre R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). É notório que diversos setores da atividade econômica foram gravemente afetados pela emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19). Assim, o acesso ao crédito neste momento revela-se fundamental para a preservação das empresas e dos empregos, beneficiando a economia do país e o bem-estar de seus cidadãos. A concessão de crédito, no entanto, depende de uma série de outros fatores que são sopesados no momento de sua solicitação, especialmente a capacidade de adimplemento do tomador e a existência de meios que mitiguem eventual prejuízo decorrente da operação de crédito. Em um período tão conturbado como o atualmente vivido por nossa sociedade, em que as perspectivas relativas a diversos setores econômicos são sombrias, fornecedores tendem a exigir pagamento antecipado ou garantias para venda ou prestação de serviços de forma faturada. Por sua vez, instituições financeiras agem de forma mais cautelosa, negando acesso ao crédito ou estipulando taxas compatíveis com o maior risco envolvido na operação. Nesse contexto, o Projeto de Lei de Conversão da MP 944/2020 trouxe em seu bojo uma importante inovação que deve contribuir com a retomada da atividade econômica: a possibilidade de utilização do protesto notarial para registro como perda do crédito na apuração do lucro real da pessoa jurídica. Com efeito, o art. 18 desse Projeto prevê o acréscimo à lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, da seguinte disposição: "Art. 9º-A Na hipótese de inadimplência do débito, as exigências de judicialização de que tratam a alínea c do inciso II e a alínea b do inciso III do § 7º do art. 9º e o art. 11 desta Lei poderão ser substituídas pelo instrumento de que trata a Lei nº 9.492, de 10 de setembro de 1997, e os credores deverão arcar, nesse caso, com o pagamento antecipado de taxas, de emolumentos, de acréscimos legais e de demais despesas por ocasião da protocolização e dos demais atos." Cumpre ressaltar que atualmente o registro, como perda, de valores mais expressivos depende da propositura de ação judicial. Nesse sentido, as disposições da lei 9.430/1996: "Art. 9º As perdas no recebimento de créditos decorrentes das atividades da pessoa jurídica poderão ser deduzidas como despesas, para determinação do lucro real, observado o disposto neste artigo. [...] § 7º Para os contratos inadimplidos a partir da data de publicação da Medida Provisória nº 656, de 7 de outubro de 2014, poderão ser registrados como perda os créditos: [...] II - sem garantia, de valor: [...] c) superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais), vencidos há mais de um ano, desde que iniciados e mantidos os procedimentos judiciais para o seu recebimento; III - com garantia, vencidos há mais de dois anos, de valor: [...] b) superior a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), desde que iniciados e mantidos os procedimentos judiciais para o seu recebimento ou o arresto das garantias; [...] Art. 11. Após dois meses do vencimento do crédito, sem que tenha havido o seu recebimento, a pessoa jurídica credora poderá excluir do lucro líquido, para determinação do lucro real, o valor dos encargos financeiros incidentes sobre o crédito, contabilizado como receita, auferido a partir do prazo definido neste artigo. § 1º Ressalvadas as hipóteses das alíneas a e b do inciso II do § 1º do art. 9º, das alíneas a e b do inciso II do § 7º do art. 9º e da alínea a do inciso III do § 7º do art. 9º, o disposto neste artigo somente se aplica quando a pessoa jurídica houver tomado as providências de caráter judicial necessárias ao recebimento do crédito". Deve-se ter em vista que muitas dessas ações judiciais são propostas apenas para permitir a dedução tributária da perda, sem que exista qualquer perspectiva quanto ao recebimento do crédito, já que relativas a dívidas contraídas por empresas com atividades encerradas ou com ativos de diminuto valor, situações que não justificam a movimentação desnecessária da máquina judiciária. Nesse cenário, permitir que as empresas optem pela via judicial apenas quando seja vislumbrada alguma possibilidade de sucesso das medidas, representará um inegável avanço. A legislação processual civil estabelece a regra de que o devedor responde com todos os seus bens para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei1. Mas em inúmeros casos o devedor não possui bens passíveis de penhora, sua localização é ignorada ou suas atividades foram encerradas de forma irregular, situações de pouca efetividade do processo judicial. Por outro lado, ao promover o protesto do título ou documento de dívida, o credor trilha um caminho alternativo, mais célere e menos oneroso, em um âmbito não litigioso e com a concreta possibilidade de obter a satisfação de seu crédito, no tríduo legal2 ou posteriormente. E, mesmo quando o devedor se queda inerte, o protesto inverte a iniciativa: ao invés do credor buscar a satisfação de seu direito, é o devedor que eventualmente busca a quitação ou a renegociação do débito, com vistas ao cancelamento do protesto. O protesto notarial, cabe salientar, é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida3. Como ato de incumbência de um tabelião, profissional do Direito dotado de fé pública4, é revestido da autenticidade e da publicidade inerente aos serviços notariais5. Sua autenticidade decorre da investidura do titular após aprovação em concurso público de provas e títulos, da minuciosa disciplina legal e normativa da atividade e da permanente fiscalização pelo Poder Judiciário6. Em relação à publicidade, aliás, é importante consignar que o protesto resguarda não apenas o interesse particular do credor, mas propicia conhecimento público da situação de inadimplência, já que compete ao tabelião de protesto, "na tutela dos interesses públicos" e privados, "prestar informações e fornecer certidões relativas a todos os atos praticados", na forma prevista na lei 9.492/19977. A publicidade do protesto não se restringe à tradicional certidão expedida a qualquer interessado8, pelo período mínimo de 5 (cinco) anos9, mas decorre também do fornecimento de informações às entidades de proteção ao crédito10. Além disso, a central nacional de serviços eletrônicos compartilhados dos tabeliães de protesto disponibiliza consulta gratuita quanto a devedores inadimplentes e aos protestos realizados11, serviço prático, confiável e cada vez mais utilizado pela população. Tais características do protesto notarial têm, ao longo da história, conferido elevado grau de credibilidade a esse ato probatório12. Para os Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil, o respaldo institucional dos tabelionatos de protesto representará um importante ponto de apoio para o exercício das atividades de fiscalização, especialmente tendo em vista a possibilidade de pronta verificação da regularidade da escrituração fiscal da dedução13. Embora as origens do protesto remontem à letra de câmbio, o fato é que em nosso país o instituto passou a ser utilizado no âmbito civil14 e posteriormente em outros ramos do Direito, incluindo o Tributário, com a expressa previsão legal de protesto das certidões da dívida ativa15, procedimento cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo Colendo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.13516. Neste particular, cumpre apontar que o instituto tem permitido a recuperação de créditos, incrementando o índice de arrecadação de créditos de menor valor17 e viabilizando a concentração de esforços, no âmbito judicial, para as ações versando sobre valores mais expressivos e casos com maior possibilidade de êxito. Cabe observar que a nova medida legislativa está em consonância com um movimento de extrajudicialização de procedimentos, fenômeno verificado ao longo de muitos séculos18, mas que nos últimos anos tem se intensificado, com a previsão de inventários e divórcios por escritura pública, da usucapião extrajudicial e da simplificação da retificação de registro civil, dentre outras medidas. Nessa mesma direção, o Código de Processo Civil previu que o Estado promoverá a solução consensual dos conflitos, sempre que possível, e consagrou expressamente o estímulo à conciliação, à mediação e a outros métodos de solução consensual de conflitos (art. 3º, § 2º e § 3º). De fato, a atuação do Poder Judiciário deve ser reservada aos casos em que outros mecanismos alternativos não tenham permitido aos interessados a satisfação de seu direito ou para as hipóteses em que a intervenção judicial seja necessária e apta a conduzir ao resultado almejado. Nesse contexto, uma vez sancionado o Projeto, as empresas sujeitas ao regime de tributação por lucro real poderão, a partir da avaliação das circunstâncias, definir pela conveniência ou não da propositura ou do prosseguimento da demanda judicial, evitando a desnecessária movimentação da máquina judiciária. E a diminuição da sobrecarga conferirá maior agilidade à tramitação dos demais feitos. Conclui-se, assim, que a mudança legislativa deve beneficiar não apenas as empresas sujeitas a essa forma de tributação, mas toda a sociedade brasileira, especialmente nesse momento tão triste de nossa história. *Reinaldo Velloso dos Santos é tabelião de Protesto em Campinas, mestre e doutorando em Direito Comercial pela USP e coordenador do Grupo de Pesquisa e Produção Científica "Tabelionato de Protesto" da Escola Nacional de Notários e Registradores - ENNOR. __________ 1 Conforme art. 789 do Código de Processo Civil. 2 Dispõe a lei 9.492, de 10 de setembro de 1997, que: "Art. 12. O protesto será registrado dentro de três dias úteis contados da protocolização do título ou documento de dívida". 3 Lei 9.492/1997, art. 1º. 4 Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, art. 3º. 5 A lei 9.492/1997 estabelece que: "Art. 2º Os serviços concernentes ao protesto, garantidores da autenticidade, publicidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei". 6 Conforme previsto no caput e parágrafos do art. 236 da Constituição Federal. 7 Como disposto no art. 3º dessa Lei. 8 Dispõe a lei 9.492/1997 que: "Art. 31. Poderão ser fornecidas certidões de protestos, não cancelados, a quaisquer interessados, desde que requeridas por escrito". 9 Nos termos do art. 27 da lei 9.492/1997. 10 A lei 9.492/1997 estabelece que: "Art. 29. Os cartórios fornecerão às entidades representativas da indústria e do comércio ou àquelas vinculadas à proteção do crédito, quando solicitada, certidão diária, em forma de relação, dos protestos tirados e dos cancelamentos efetuados, com a nota de se cuidar de informação reservada, da qual não se poderá dar publicidade pela imprensa, nem mesmo parcialmente". 11 Conforme art. 41-A, caput e inciso III, da lei 9.492/1997, incluído pela lei 13.775, de 20 de dezembro de 2018. Essa central eletrônica foi regulamentada pelo Provimento nº 87, de 11 de setembro de 2019, da Corregedoria Nacional de Justiça. 12 Segundo Pontes de Miranda: "Ato formal, o protesto é essencialmente probatório". Tratado de Direito Cambiário. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2001. v. I. p. 500. 13 É interessante observar a possibilidade de disponibilização de acesso a esses protestos por meio da central eletrônica de serviços compartilhados, na forma do § 1º do art. 41-A da lei 9.492/1997, segundo o qual: "§ 1º A partir da implementação da central de que trata o caput deste artigo, os tabelionatos de protesto disponibilizarão ao poder público, por meio eletrônico e sem ônus, o acesso às informações constantes dos seus bancos de dados". 14 Como afirmado em outra oportunidade: "O relato histórico evidenciou a sensível ampliação do campo de aplicação do protesto que, embora costumeiramente atrelado ao direito cambiário, se irradiou para obrigações tipicamente tratadas no âmbito civil". In: SANTOS, Reinaldo Velloso dos. Apontamentos sobre o protesto notarial. 2012. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 199. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2020. 15 A lei 12.767, de 27 de dezembro de 2012, incluiu parágrafo único no art. 1º da lei 9.492/1997. 16 Quando foi fixada tese nos seguintes termos: "O protesto das Certidões de Dívida Ativa constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política". 17 No âmbito da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, por exemplo, a portaria 429, de 4 de junho de 2014, dispõe que: "Art. 1º As certidões de dívida ativa da União e do FGTS, de valor consolidado de até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), poderão ser encaminhadas para protesto extrajudicial por falta de pagamento, no domicílio do devedor". 18 José Frederico Marques, ao tratar da jurisdição voluntária na Idade Média já apontava que: "tais atos eram praticados pelo magistrado assistido de um notário, sendo que este, aos poucos, foi absorvendo grande número das funções de jurisdição voluntária". Ensaio sobre a jurisdição voluntária. Rev., atual. e complem. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. Campinas: Millenium, 2000. p. 151.
1. INTRODUÇÃO   Tabelião de notas pode ou não lavrar escritura pública dispensando um filho de colacionar uma doação de um imóvel ocorrida há muitos anos atrás? Essa escritura precisaria ser averbada na matrícula do imóvel? A questão tem utilidade prática: vários pais, depois de doarem bens a filhos de anteriores relacionamentos com a crença de que eles não precisariam "devolver" essas liberalidades ao futuro espólio, descobrem a verdade e, assim, pretendem afastar esse dever de colação. Objetivamos tratar dessas questões neste artigo por se tratar de questão comum no quotidiano dos cartórios.   2. PROTEÇÃO DA "LEGÍTIMA"   Quem tem ascendente, cônjuge ou descendente (herdeiros necessários) só pode dispor, por testamento, de metade do seus bens (parte disponível), pois a outra metade - que é chamada de "legítima" - pertence, de pleno direito, a esses herdeiros necessários (arts. 1.789 e 1.845, CC). Em poucas palavras, se tenho um filho, não posso deixar, por testamento, 100% dos meus bens a um amigo. Só posso deixar, no máximo, 50%.   Daí se indaga: posso "driblar" essa proibição fazendo, em vida, uma doação de 100% dos meus bens a um amigo?   A resposta é não! O nosso ordenamento censura essa tentava de "burla" à legítima, estabelecendo que essa doação será nula no que exceder 50% do meu patrimônio no momento da doação. Trata-se do art. 549 do CC, que considera nula a chamada "doação inoficiosa". Não é dela, porém, que vamos tratar neste artigo. Nosso foco será a doação a descendentes.   De qualquer forma, é certo que a "legítima" dos herdeiros necessários é protegida diante de terceiros, seja por atos causa mortis (testamento), seja por atos inter vivos (doação). A proteção da legítima não é apenas diante de terceiros, mas também perante outros herdeiros necessários. Há pais que gostariam de, por diversos motivos, prestigiar patrimonialmente mais um filho do que outro. Pergunta-se: poderia um pai solteiro deixar, por testamento, 100% dos seus bens a esse filho predileto? A resposta é não, pois o testador só poderia dispor de 50% dos seus bens em respeito à legítima dos herdeiros necessários. No exemplo, o testador poderia deixar apenas 50% dos seus bens ao filho predileto, ao passo que a outra metade seria rateada entre todos os seus filhos, com inclusão do filho favorito. O filho favorito, além de receber metade do patrimônio do pai por sucessão testamentária, receberá ainda um quinhão da outra metade por sucessão hereditária legítima. Insistente, talvez esse pai pense em tentar "burlar" essa proibição de testar sobre 100% dos seus bens por meio de uma doação. Indaga-se: o pai - que tenha uma renda mensal suficiente para sua sobrevivência1 - poderia doar 100% dos bens a um filho favorito, de maneira que, com sua morte, nada sobraria a ser partilhado em favor dos outros filhos malquistos? Essa pergunta nos leva ao coração deste artigo, que é a figura da antecipação de herança do art. 544 do CC e da colação (art. 2.002 e ss do CC). 3. DOAÇÃO COMO ANTECIPAÇÃO DE HERANÇA E COLAÇÃO   Em regra, presume-se que doação feita a descendente ou a cônjuge é apenas uma antecipação de herança. Por isso, como regra geral, nesses casos, há dever de o donatário colacionar a liberalidade recebida quando da morte do doador, para efeito de igualar o seu quinhão hereditário com o do viúvo ou com o dos demais descendentes - mesmo os nascidos posteriormente ou havidos de outros relacionamentos do de cujus (irmãos bilaterais ou unilaterais)2 (arts. 544, 2.002 e 2.003, CC). A ideia é a de que, ao final da sucessão hereditária, todos os herdeiros tenham recebido patrimônio de valor igual, com inclusão das doações antecipadas em vida pelo de cujus3. Suponha, por exemplo, que João tem dois apartamentos de igual valor e dois filhos. Caso ele decida doar um apartamento a um dos filhos e, logo em seguida, faleça, o outro apartamento irá, por sucessão hereditária, apenas ao outro filho, visto que um apartamento já foi antecipado ao primeiro filho (que terá de trazer esse bem à colação para igualar sua porção da legítima à dos demais herdeiros necessários). Desse modo, cada um dos filhos ficará, ao final de tudo, com um apartamento. O Professor Pablo Stolze, em uma das obras brasileiras mais importantes sobre doação, após olhar para a figura da colação em vários países (Itália, Argentina, Cabo Verde, Espanha e Portugal), afirma que colação pode ser definida como "o ato jurídico pelo qual o herdeiro/donatário leva ao inventário, em conferência, o valor do bem doado por ascendente seu, a fim de resguardar a legítima dos demais herdeiros necessários, mediante reposição do acervo"4. A regra geral acima comporta uma exceção: a existência de cláusula expressa dispensando o filho donatário de colacionar a liberalidade. Isso, porém, só será admitido se, no momento da liberalidade, o bem doado não ultrapassar 50% do patrimônio total (art. 2.005, caput, do CC). A dispensa de colação não pode ser presumida ou tácita, salvo no caso do parágrafo único do art. 2.005 do CC! Tem de ser expressa e por escrito5. Nas palavras do Professor Flávio Tartuce, "o ato de dispensa não pode ser presumido, devendo ser expresso e inequívoco"6. No exemplo acima, se João tivesse doado um dos apartamentos a um dos filhos com cláusula expressa de dispensa de colação, a situação seria diferente. Esse filho seria prestigiado: além de não ter de colacionar esse apartamento, ainda teria direito à metade do outro apartamento por sucessão causa mortis. Há uma exceção em que a dispensa de colação é presumida (e, portanto, não depende de previsão expressa): a hipótese em que, no momento da liberalidade, o donatário não seria chamado a suceder (art. 2.005, parágrafo único, CC). É o caso, por exemplo, de uma doação feita a um neto quando os filhos estavam vivos. Nessa hipótese, presume-se a dispensa de colação, pois o neto não iria concorrer com os filhos na eventual sucessão causa mortis do doador. Outra exceção é a doação feita a cônjuge antes do CC/2002, pois, como ele não era herdeiro necessário à época do CC/1916, não havia dever de colação, tudo conforme já decidiu o STJ7.   4. DISPENSA DE COLAÇÃO PÓS-DOAÇÃO   A dispensa de colação pode ser feita em ato posterior à doação? O tabelião de notas pode lavrar escritura pública para dispensar de um filho de colacionar um imóvel doado há muitos anos atrás? Entendemos que sim, desde que respeitada a parte disponível no momento dessa dispensa posterior8. O STJ, analisando caso sob a ótica do CC/1916, já se manifestou nesse sentido9, cenário que deve ser estendido ao ambiente do CC/2002 diante da similaridade do regime jurídico. A dispensa de colação pode ser feita a qualquer momento após a data da doação, desde que, no momento dessa dispensa, o valor da coisa doada (no valor de mercado de então) não exceda a 50% do patrimônio líquido do doador. Calcular-se-á a parte disponível de acordo com o patrimônio do doador no momento do ato de dispensa, e não no da doação. Basta que esse ato seja feito de acordo com a forma legal exigida para o contrato de doação: se a doação exigia escritura pública por ter envolvido imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, a dispensa pós-doação também deverá seguir essa forma pública. Não batizaríamos essa escritura de "re-ratificação da doação" - tal como se deu em caso analisado pelo STJ10-, pois não se está corrigindo (retificando) nada, mas apenas se abrindo mão de um direito que fora "retido" pelo doador em favor dos demais herdeiros necessários. Seja como for, nominar a escritura de "re-ratificação" não geraria nulidade, pois o que importa é o conteúdo do negócio, e não o seu envelope formal. Há dois motivos a respaldar a dispensa de colação pós-doação. O primeiro é o de que o art. 2.006 do CC, ao autorizar a dispensa de colação tanto em testamento (que só terá eficácia com a morte do testador) quanto no ato da liberalidade, deixou cronologicamente aberto ao doador a possibilidade de, em vida, dispensar a colação a qualquer momento. Afinal de contas, quem pode o mais pode o menos: se o doador pode dispensar a colação após a sua morte por meio de testamento, com muito mais razão ele o pode fazer em vida por meio de negócio jurídico específico. O segundo é o princípio da disponibilidade, segundo o qual o titular de um direito pode dispor livremente dele. O doador, ao fazer uma doação sem dispensa de colação, reteve, para si (mas em favor dos demais herdeiros necessários), parte um direito cujo exercício será, como a sua morte, transmitido aos seus herdeiros necessários. Enquanto titular desse direito, o doador pode dispor dele. A solução acima respeita a legítima e se concilia com o direito do doador de dispor dos seus bens em vida. Ela será útil para os casos de o doador ter esquecido de colocar a cláusula de dispensa ou de o doador, posteriormente à doação, ter enriquecido e ter passado a ter condições de respeitar a legítima (metade do seu patrimônio). Uma cautela convém ser adotada na lavratura do instrumento de dispensa pós-doação: catalogar bens (com as devidas provas) e dívidas a ponto de demonstrar que o patrimônio líquido do doador é confortável para esse ato. Assim, por exemplo, se o apartamento doado se estimou em um milhão de reais, convém o doador demonstrar que, no mínimo, o seu patrimônio líquido atual é também de um milhão, de modo a que a dispensa da colação não está exorbitando a sua parte disponível. Eventual empobrecimento posterior do doador é irrelevante, pois a validade e a eficácia da dispensa de colação não levam em conta a sua situação patrimonial futura. Sob essa ótica, no exemplo acima, se o doador vier a falecer em plena miséria, o filho que recebeu o apartamento de um milhão de reais com posterior dispensa de colação ficará em condição vantajosa ao seu irmão, que nada receberá a título de herança. Alerta-se para o fato de que é fundamental que, no ato da dispensa da colação, sejam levadas em conta todas as doações feitas ao filho, estimando o valor total de todas elas ao tempo da dispensa. Entendimento contrário chancelaria uma burla ao regime da legítima por meio de doações sucessivas a um filho predileto. Se, por exemplo, um pai doou, em momentos diferentes, dois imóveis de valores iguais a um filho preferido, caso esse pai queira dispensar a colação sobre esses dois imóveis, ele deverá ter, no mínimo, um patrimônio líquido correspondente a esses dois imóveis, tudo com vistas a proteger a legítima. Se, no exemplo acima, o pai nada tiver de patrimônio, ele poderá dispensar a colação apenas em relação a um dos imóveis doados, pois o outro, como terá de ser colacionado, resguardará a legítima dos demais herdeiros necessários. Em arremate, a dispensa de colação pós-doação depende de consentimento do donatário, pois ninguém é obrigado a receber liberalidades. A dispensa de colação pós-doação é uma liberalidade e, como tal, aperfeiçoa-se por um negócio jurídico bilateral, à semelhança do que se dá com outras liberalidades (como a doação e a remissão de dívidas11). Nesse sentido, a própria dispensa de colação por meio de testamento na forma do art. 2.006 do CC12 dependerá de aceitação do sucessor testamentário. O consentimento do donatário poderá se dar em instrumento diverso do utilizado pelo doador para a dispensa pós-doação, mas, nesse caso, o cálculo da legítima deverá levar em conta o momento em que se aperfeiçoou esse negócio jurídico complementar, ou seja, no momento da manifestação do consentimento do donatário. 5. CONCLUSÃO   É cabível a dispensa da colação pós-doação, desde que: (1) seja respeitada a legítima, que será calculada no momento dessa dispensa de colação, a qual se aperfeiçoa com a manifestação de vontade tanto do doador quanto do donatário; (2) seja formalizada pela forma exigida por lei para a doação; e (3) haja consentimento do donatário. Convém que, no ato da dispensa pós-doação, seja demonstrado que o patrimônio líquido do doador é suficiente para evitar desconfortos probatórios no futuro. Além disso, na hipótese de ter havido doações sucessivas, todas elas deverão ser avaliadas em conjunto de acordo com o seu valor ao tempo da dispensa de colação, tudo a fim de evitar burlas à proteção da legítima. ____________   *Carlos E. Elias de Oliveira é Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília - UnB -, na Fundação Escola Superior do MPDFT - FESMPDFT e em outras instituições em SP, GO e DF. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012). Advogado/Parecerista. Ex-Advogado da União. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB). ____________   1- Isso afastaria a vedação à doação universal anunciada no art. 548 do CC ("art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador").   2- STJ, REsp 1298864/SP, 3ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 29/05/2015; REsp 730.483/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJ 20/06/2005. 3- Temos que o fato de a regra geral ser a presunção de haver o dever de colação é um entre os vários exemplos do que chamamos de princípio da proteção simplificada do agraciado (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisa/CONLEG/Senado, Dezembro/2018. Disponível em: Clique aqui. Acesso em. 4 de dezembro de 2018.   4- GAGLIANO, Pablo Stolze. O Contrato de Doação: análise crítica do atual Sistema jurídico e os seus efeitos no Direito de Família e das Sucessões. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, pp. 55-57   5- STJ, REsp 730.483/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJ 20/06/2005.   6- TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 666. 7- "A doação feita ao cônjuge antes da vigência do Código Civil de 2002 dispensa a colação do bem doado, uma vez que, na legislação revogada, o cônjuge não detinha a condição de herdeiro necessário." (STJ, REsp 1346324/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, DJe 02/12/2014). 8- Os sempre geniais Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves entendem diversamente, afirmando que a dispensa "do dever de colação tem de ser expressa e estar contida no próprio instrumento de doação, não podendo ser inserida posteriormente" (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: contratos, teoria geral e contratos em espécie. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 886). Os nobres juristas fazem citação ao REsp 730.483/MG, mas é preciso realçar que esse julgado não discutia o momento em que a dispensa de colação deve ser manifestada (se no ato da doação ou se posteriormente), mas apenas tratava da vedação de se reputar implícita essa cláusula de dispensa. Assim, na verdade, o que os preclaros civilistas não quiseram dizer que o STJ já tenha decidido pela vedação de dispensa de colação pós-doação, até porque, na verdade, há precedente contrário daquela Corte (STJ, REsp 440.128/AM, 3ª Turma, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 01/09/2003). 9- "Colação. Escritura de ratificação. Possibilidade. Manifestação de vontade do autor da herança. Preservação. Artigos 82, 148, 149 e 1.789 do Código Civil. 1. Realizada a escritura de ratificação das doações, que não ultrapassaram o limite da parte disponível, dispensando a colação, tudo compatível com a realidade vivida entre doador e donatário, pai e filho, não deve ser maculada a vontade do autor da herança. 2. A ratificação retroage à data das doações, preenchido, assim, o requisito do art. 1.789 do Código Civil. 3. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 440.128/AM, 3ª Turma, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 01/09/2003). 10- STJ, REsp 440.128/AM, 3ª Turma, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 01/09/2003. 11- Art. 385 do CC: "A remissão da dívida, aceita pelo devedor, extingue a obrigação, mas sem prejuízo de terceiro". 12- Art. 2.006 do CC: "A dispensa da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade".
Texto de autoria de Izaías Gomes Ferro Júnior Atualmente a hipoteca convencional encontra-se em verdadeiro ocaso jurídico. Não é mais constituída em praticamente nenhum contrato1. A hipoteca sobrevive, pois ainda é constituída por instrumentos cedulares rurais, pois o decreto-lei 167/67 não prevê outra forma de garantia para bens imóveis2. O funcionamento das hipotecas cedulares rurais para o agronegócio é satisfatória e o índice de excussão é baixíssimo3. O proprietário rural, via de regra, paga suas dívidas e ao segura-la junto ao credor, mitiga o inadimplemento, com eventual "quebra da safra"4. Percebeu-se a fragilidade da hipoteca convencional, ou caução de bem imóvel (que é hipoteca, lato sensu) no ordenamento jurídico brasileiro, com algumas decisões de nossos tribunais e principalmente com a edição da súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça5 e, por isso, tal garantia real praticamente deixou de ser celebrada, dando lugar a Alienação Fiduciária em Garantia (AFG) de bens imóveis instituída pela lei 9.514/97. O Código Civil Brasileiro, em seu art. 1.419, versa sobre as modalidades dos direitos reais em garantia, quais sejam, o penhor6-7, a hipoteca8-9 e a anticrese10. Ao lado destas três clássicas garantias reais, tem-se a alienação fiduciária em garantia de bens móveis e imóveis11. A transmissão da propriedade fiduciária12 constitui instrumento da realização de uma série de negócios típicos da sociedade contemporânea, dividindo a posse, em direta e indireta, ao devedor fiduciante e ao credor fiduciário respectivamente, os quais tem vantagens e desvantagens nesta transformação da propriedade13-14. Os direitos reais de garantia ganham importância na circulação de riqueza, pois contribuíram para a humanização na cobrança das dívidas, estabelecendo garantias que permitem ao credor buscar, diretamente no patrimônio do devedor dado em garantia por meio do penhor, da hipoteca, da anticrese, ou mesmo a alienação fiduciária, a satisfação do seu débito. Assim é feito em quase todo o mundo, particularmente com um instituto jurídico de direito real, historicamente recente entre nós, a Alienação Fiduciária em Garantia, seja para bens móveis ou imóveis15. Neste contexto que se procurará encontrar os motivos que levaram a não utilização da hipoteca como principal mecanismo jurídico para constituições de garantias reais imobiliárias e o avanço da alienação fiduciária em garantia dos bens imóveis. Hodiernamente a hipoteca é utilizada somente onde a Alienação Fiduciária em Garantia não seria possível ou não seria conveniente, como na concessão do crédito rural, como dito, através dos instrumentos cedulares registrados junto aos Registros de Imóveis. Estudar a revitalização da hipoteca faz necessário. A hipoteca, vetusta para muitos, é instrumento que permite múltiplas constituições e em graus subsequentes. Este mecanismo dinamiza a economia, pois um bem imóvel pode garantir operações diversas, bastando que o credor aceite a constituição em grau superior ao antecedente. O estudo da hipoteca precisa ser aperfeiçoado e para tal, sua execução, melhor estudada e alterar o instituto legislativamente e se analisar situações onde se propõe a celeridade da execução, por que não, extrajudicialmente. A Alienação Fiduciária em Garantia para bens imóveis, igualmente precisa ser renovada, pois ainda não se permite a constituição de dois direitos sobre o mesmo imóvel, apesar de correntes doutrinárias pregarem a constituição da segunda AFG com eficácia suspensiva. Estes direitos reais em garantia, hipoteca e alienação fiduciária, não podem ser constituído concomitantemente consoante doutrina majoritária, isto é, um imóvel hipotecado, não pode ser alienado fiduciariamente a um credor diferente do credor hipotecário, mas por que não? Os dois direitos reais de garantia têm soluções próprias, e em tese, a constituição de um não excluiria o outro a credor diferente, desde que publicizado junto ao registro imobiliário, apesar das peculiaridades próprias. Garantias reais constituídas por meio de um título de crédito, em especial as Cédulas de Crédito Rural constantes no decreto-lei 167/1967 não é propriamente uma algo que surge em 1967, já que a lei 492, de 30 de agosto de 1937 também regulava o penhor agrícola, o penhor pecuário e a cédula rural pignoratícia. Entretanto, não se pode olvidar que apenas com o advento do decreto-lei 167/1967 os títulos de crédito destinados ao financiamento rural foram devidamente utilizados, tanto que mencionado ordenamento constituiu um marco para os produtores, investidores rurais e principalmente as instituições financeiras credoras que puderam conceder crédito com garantia hipotecária. Tem-se claro que a constituição da hipoteca cedular é de grande valia para a correta aplicação dos instrumentos colocados à disposição dos produtores rurais, vez que são esses títulos de crédito que fomentam a atividade agrícola, auxiliando no custeio da produção e possibilitando a comercialização dos produtos, e até mesmo a garantia da venda antecipada deles como na Cédula de Produto Rural, objeto da lei 8.929/94. Salienta-se, novamente, que a vantagem da constituição da hipoteca, não impede a constituição de outra em grau superior no mesmo imóvel, ao passo que na alienação fiduciária de bens imóveis, a garantia registrada junto a serventia registral competente, não permite, via de regra, outro gravame idêntico, apesar existirem de projetos de lei que tramitam junto à Câmara Federal, neste sentido. O fato da hipoteca ser múltipla, isto é, poder ser constituída por diversos graus no mesmo imóvel, dinamiza a circulação do dinheiro, e a realidade fática do imóvel agrário demonstra isto, pois praticamente hoje, as únicas hipotecas constituídas são as oriundas das cédulas de crédito rural, e eventualmente as cédulas de crédito industrial, à exportação e a comercial. Os agentes financiadores utilizam diuturnamente a constituição de hipotecas cedulares, principalmente as rurais, e isto pode ser comprovado junto aos Registros Imobiliários Brasileiros das comarcas do interior. Entretanto, os credores não utilizam mais a hipoteca convencional. Há um motivo para tal. A Alienação Fiduciária em Garantia (AFG) de bens imóveis16 mitiga a utilização, e alguns dizem que quase efetivamente substituiu a hipoteca convencional porque tem mais liquidez e maior celeridade na recuperação do crédito. O crédito circulante traz mais atratividade ao mercado de ativos e quanto mais líquido o crédito, à medida que podem ser mais facilmente executadas para a satisfação da dívida, mais é utilizado. A Lei da Alienação Fiduciária em Garantia trouxe, ao menos inicialmente, oxigenação ao mercado imobiliário e seu financiamento, porque é mais simples e rápida para ser executada. Como dito, a AFG substitui, ou ao menos comprometeu o uso da hipoteca convencional, porque sendo mais líquida do que a hipoteca é mais eficiente, de maneira que a hipoteca, de fato, tende a ser um modelo, não obsoleto, mas subsidiário. Quanto mais líquida ou liquidável for o instituto da garantia, melhor ela será, assim como mais líquido ou liquidável for o objeto da garantia, melhor ele será. Por isso que, pela sistemática processual, a AFG é mais eficiente que a hipoteca. Entretanto, a Alienação Fiduciária em Garantia também parece enfraquecer, pois em decisão do ano de 2019 o Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.576.164 - DF (2015/0324836-0), tratou de nivelar por baixo a garantia real imobiliária constituída por Alienação Fiduciária de bens imóveis, bem como outros julgados da mesma corte. Aponta a Exma. Ministra Nancy Andrighi, relatora, que em relação à Súmula 308, os julgamentos17 que motivaram o enunciado estão firmados no sentido do controle do abuso nas garantias constituídas na incorporação imobiliária, de forma a proteger o consumidor de pactuação que acaba por transferir a ele os riscos do negócio. A Ministra relatora manifestou-se: "Partindo-se da conclusão acerca do real propósito da orientação firmada por esta corte - e que deu origem ao enunciado sumular em questão -, tem-se que as diferenças estabelecidas entre a figura da hipoteca e a da alienação fiduciária não são suficientes a afastar a sua aplicação nessa última hipótese, admitindo-se, via de consequência, a sua aplicação por analogia"18. Percebe-se que mais uma garantia real está enfraquecendo-se e daqui por diante, o caminho que a hipoteca "trilhou" poderá ser feito pela Alienação Fiduciária em Garantia de bem imóvel perdendo-se, novamente, credibilidade e encarecendo o crédito imobiliário, embora o caso analisado seja pontual e haja razões para tal decisão. A Alienação Fiduciária em Garantia ainda é a garantia real imobiliária preferida pelo mercado, apesar das recentes decisões. Entretanto, se se tratar a AFG eivada de vícios, quer de validade ou de eficácia em seu nascedouro, como na hipótese de fraude contra credores, fraude à execução ou na incorporação imobiliária, como foi o caso trazido no REsp 1.576.164 - DF citado, não deveria ser vista como enfraquecimento da garantia, pois, esse vício prévio, poderá ser invocado, apenas e excepcionalmente para derrubar a garantia fiduciária. Pode ser corrigido com uma simples alteração legislativa, quer se proibindo dar em garantia fiduciária imóvel à venda na planta ou com o cancelamento pelo credor da garantia real (quer hipotecário ou em alienação fiduciária) concomitante à venda ao adquirente. Há que se repensar o mercado imobiliário de garantias reais imobiliárias e sua excussão, baseado no Registro de Direitos, seu fortalecimento e publicização junto ao fólio real ao invés de trâmite fora da matrícula do imóvel, como imagina as recentes alterações trazidas pela lei 13.986/2020. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº 4.849, de 5 de novembro de 1965. Institucionaliza o crédito rural. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2020. BRASIL. Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre os títulos de crédito rural e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2020. BRASIL. Lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994. Institui a Cédula de Produto Rural, e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2020. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015: Código de Processo Civil. Disponível aqui. Acesso em: 27 jul. 2020. BRASIL. Lei nº 13.986, de 07 de abril de 2020: Institui o Fundo Garantidor Solidário (FGS); dispõe sobre o patrimônio rural em afetação, a Cédula Imobiliária Rural (CIR), a escrituração de títulos de crédito e a concessão de subvenção econômica para empresas cerealistas entre outras disposições. Disponível aqui. Acesso em: 27 jul. 2020. ASCENÇÃO, José de Oliveira. "Direito Civil. Reais". 5ª Ed. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. BEVILÁQUA, Clóvis. "Direito Civil. Direito das Coisas. Vol. II". Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. CHALHUB, Melhim Namem. "Propriedade Fiduciária. Função Social e outros aspectos". Rio de Janeiro: Renovar, 2000. CHALHUB, Melhim Namem. "Curso de Direito Civil. Direitos Reais". Rio de Janeiro: Forense, 2003. CHALHUB, Melhim Namem. "Negócio fiduciário". 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. CHALHUB, Melhim Namem. "Trust. Perspectivas do Direito Contemporâneo na Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia". Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 101. JUSTO, Santos. "Direitos Reais". 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. MIRANDA, Pontes de. "Tratado de Direito Privado - Parte Especial" Tomo XXI. Direito das Coisas. Penhor e Anticrese. Atualizado por Nelson Nery Jr e Luciano de Camargo Penteado. São Paulo: Ed. RT. 2012. *Izaías Gomes Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais, Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas em Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela Escola Paulista de Direito - EPD. Pós-graduado "lato sensu" em Direito Civil, Processual Civil e Direito Administrativo. Professor da graduação e pós-graduação em diversas universidades e instituições de ensino. Professor de diversos cursos jurídicos, como CERS e FMB. Autor de artigos jurídicos. Diretor para assuntos agrários do IRIB. __________ 1 Pesquisa feita entre 100 Registradores Imobiliários do Brasil. A hipoteca convencional é registrada em menos de 1% do total dos contratos com garantia real levados ao registro imobiliário brasileiro. 2 Artigo 20 do decreto-lei 167 de 14 de fevereiro de 1967, alterado em 07 de abril pela lei 13.986/2020 3 Pesquisa feita na Região de Presidente Prudente-São Paulo por este aluno com 15 Registradores Imobiliários. 4 Plano Safra 2020/2021 destinará mais de R$236 bilhões aos produtores rurais. Acesso em 20 de julho de 2020. 5 Súmula 308 do STJ. Esta súmula estabelece que a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel. 6 ASCENÇÃO, José de Oliveira. "Direito Civil. Reais". 5ª Ed. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 546 7 JUSTO, Santos. "Direitos Reais". 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 463. 8 Ibid, p. 470 9 BEVILÁQUA, Clóvis. "Direito Civil. Direito das Coisas. Vol. II". Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 129. 10 MIRANDA, Pontes de. "Tratado de Direito Privado - Parte Especial" Tomo XXI. Direito das Coisas. Penhor e Anticrese. Atualizado por Nelson Nery Jr e Luciano de Camargo Penteado. São Paulo: Ed. RT. 2012, p 205. 11 Decreto 911/1969 e lei 9.514/97 respectivamente. 12 CHALHUB, Melhim Namem. "Trust. Perspectivas do Direito Contemporâneo na Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia". Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 101. 13 CHALHUB, Melhim Namem. "Propriedade Fiduciária. Função Social e outros aspectos". Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 28. 14 CHALHUB, Melhim Namem. "Curso de Direito Civil. Direitos Reais". Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 233. 15 CHALHUB, Melhim Namem. "Negócio fiduciário". 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 138 16 A Alienação Fiduciária de Bens Imóveis é aplicável para garantia de quaisquer obrigações em geral, e pode ser prestada pelo devedor ou por terceiros (em conformidade à lei 9.514/97 e a lei 10.931/04, art. 51) e tem sido constantemente aplicada em financiamentos junto ao Sistema Financeiro Imobiliário - SFI e como garantia do pagamento do preço de aquisição de imóveis nas incorporações imobiliárias. 17 Vide REsp 2395557/SC, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., DJ 02.05.2000, DH 07.08.2000, p. 113; REsp 187.940/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., DJ 18.02.1999, DP 21.06.1999, p. 164; Resp 329968/DF, 4ª T., rel. Min. Salvio Figueiredo Teixeira, DJ 09.10.2001, DP 04.02.2002, p. 394; REsp 401.252/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., DJ 28.05.2002, DP 05.08.2002, p. 394; REsp 287774/DF, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., DJ 15.02.2001, DP 02.04.2001, p. 302. 18 Alienação fiduciária entre construtora e agente financeiro não tem eficácia contra comprador do imóvel. Acesso em 29 de julho de 2020.