Olhares Interseccionais

STF - HC 208240: O que une Francisco e Luiz Justino?

O tema de hoje é o quanto as tecnologias racistas operam no sistema penal de forma interligadas.

20/3/2023

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente

(Racionais MC's, Capítulo 4, Versículo 3)

Em 2020 fomos tomados por uma inquietude. Reproduzindo a lógica do ambiente jurídico geral, nos canais digitais de informação jurídica não havia uma coluna que expressasse diversidade racial, com o consequente conteúdo que tocasse o direito a partir de outro olhar que não o do universo eurocentrado.

A partir de então, um grupo de juristas composto por pessoas negras, mulheres e homens, vinculados a diversas raízes institucionais  - juiz, juíza, promotor e promotora, defensora e advogado - com diversas especialidades temáticas, ciências criminais, filosófica do direito, direito do trabalho, direitos humanos, foi acolhido pelo Portal Migalhas, que, pioneiramente, abriu espaço para uma coluna regular composta por juristas negros/as.

O primeiro texto desenvolvido pelo grupo indagava exatamente "Quantas/os professoras/es negras/os você já teve?". Ademais, constatava:

De fato, o sistema de justiça brasileiro não reflete, sequer minimamente, a diversidade étnico-racial da população em seus quadros. A propósito, quanto juízes de direito, promotores de justiça ou defensores públicos negros você conhece? E, em se tratando de mulheres negras, quantas ocupam cargos no sistema de justiça?

O primeiro tema levantado pela coluna revelava exatamente um questionamento sobre a vontade institucional, seja qual for a instituição, em acolher e realizar a pluriversalidade. Nota-se, quase 03 anos após essa manifesta inquietude, mantem-se atual a abordagem pioneira da coluna.

Ao longo do período, tratou-se de um grande cardápio temático: ativismo judicial, reformas legislativas, relações de trabalho, sexualidade, entre outros, tudo marcado por um olhar interseccional (raça, classe e gênero).

A proposta da coluna sempre foi trazer temas atuais e com visões diversificadas, a partir de sujeitos diversos. Após todo esse período, sentimos profunda alegria e honra de estarmos unidos nessa tarefa com juristas de tamanha envergadura e capacidade analítica. Todavia, duas coisas nos marcam nesse momento: (i) A deliciosa opressão de novos desafios acadêmicos e a ideia de que é preciso renovar e ampliar os quadros, visibilizar ainda mais outros juristas negros/as, o que nos leva a fazer esse texto de despedida e de votos de boa sorte aos que chegarem, sem, é claro, deixar o registro da saudade que já se avizinha relativa ao convívio específico, em razão das tarefas de manutenção da coluna.

O tema eleito então é o quanto as tecnologias racistas operam no sistema penal de forma interligadas. A escolha do tema tem por motivação o julgamento do HC 208240, que cuida da prisão em flagrante e da condenação de um homem preto chamado Francisco Cícero, que foi parado e revistado por policiais, por ser negro, e com ele foi encontrado 1.53g de droga. Portanto, condenado inicialmente a mais de sete anos de prisão, posteriormente a pena foi reduzida para 2 anos e 11 meses.

Mas o recorte analítico amplificador desse habeas corpus se dá pela prisão de um jovem negro chamado Luiz Justino.

O que além da cor da pele dessas pessoas, Francisco e Justino, os casos trazem em comum? Resposta: a abordagem policial com filtragem racial.

Muito se escreveu e falou sobre o caso Luiz Justino, em razão do reconhecimento fotográfico (na verdade aplicação de álbum de suspeito). No entanto, é preciso desvelar outro aspecto dessa história.

A prisão de Justino deve ser desdobrada em dois aspectos. 1. Porque foi decretada sua prisão? Resposta: Porque sua fotografia estava em um álbum de suspeito (instrumento produzido esmagadoramente a partir de fotos de pessoas negras).  2. Como o mandado de prisão contra Justino foi cumprido? Ele era um jovem preto, que caminhava em uma praça e foi submetido a uma abordagem policial (stop and frisk).    

Notem que os dois aspectos apresentam um mesmo recorte. Justino estava no álbum porque é preto. Justino foi parado porque é preto. Mesmo absolvido e tendo ganhado certa notoriedade, tempos depois voltou a ser abordado pela polícia e levado à delegacia, em seguida solto. Por quê? Porque é preto. A toda evidência, pessoas brancas dificilmente passam por situações como essas.

No entanto, o imbricamento dessas tecnologias deve ser denunciado igualmente. Existe uma relação direta entre a formação dos álbuns de suspeitos e as abordagens policias. Isso porque, muitas vezes, pessoas pretas são abordadas na rua e levadas para delegacias para averiguação. Não raro são fotografadas e passam a constar em álbuns oficioso. Esses catálogos surgem inexplicavelmente. A ideia de cadeia de custódia das evidências passa longe das práticas que capturam corpos negros para o sistema de justiça criminal. A formação e composição dos álbuns de suspeitos é um verdadeiro mistério jurídico, que não merece a menor atenção por parte do chamado controle externo da atividade policial.

Com o uso disseminado de smartphones, os álbuns de suspeitos e os "reconhecimentos" passaram a ter ainda maior intensidade de descontrole. Isso, pois, muitas vezes, a própria polícia militar faz abordagens, fotografa pessoas e espalha as fotos em grupos de whatsapp para "alertar" que viram "alguém" com estereótipo de suspeito em determinada região, podendo conduzir a "reconhecimentos" tanto em relação a fatos ocorridos, como a fatos que venham a acontecer.

Tudo isso para dizer que as abordagens policiais no campo do policiamento ostensivo podem gerar prisões em flagrante, conduções arbitrárias, podendo ser, também, fonte de alimentação de "álbuns de suspeitos", etc.

Daí a relevância do HC 208240 do STF que, para além de considerar ilícita a prova decorrente de abordagem policial racista, irá dar uma diretriz sobre o tipo de policiamento admitido pelo Estado Democrático de Direito. Uma vez fixada pelo STF, a tese antirracista terá o reflexo também de impedir essa tecnologia para o fim de alimentação de álbuns de suspeitos.

Como derradeira recomendação ao combate ao racismo institucional, o Ministério Público, como destinatário constitucional da missão de realizar o controle externo da atividade policial poderia criar estratégias para coibir tanto as abordagens racistas, como também exercer correições nas policias para fiscalizar a existência de "álbuns de suspeitos". O Judiciário poderia exercer rigoroso juízo de admissibilidade de denúncias fundadas em abordagens policiais racistas e reconhecimentos por álbuns de fotografias de suspeitos.

Desse modo, nos despedimos dos leitores e das leitoras e das pessoas queridas que coordenam essa coluna, com a certeza que estamos construindo um mundo livre do peso da raça.

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Colunistas

Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

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Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.