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Como proceder em caso de injúria racial ou racismo

Dentre todas as posturas recomendadas, destacamos aquela que consideramos a principal: não se cale diante de qualquer forma de injúria racial ou de racismo.

1/8/2022

Por mais incrível que possa parecer, ainda em tempos atuais são recorrentes notícias repulsiva prática de injúria racial e racismo. A incredulidade se dá em razão do fato de não se poder atribuir ignorância em favor dos ofensores, pois muitas são as campanhas e manifestações à luz das quais se esclarece tratar-se de crime – sem olvidar o fato de que se configura verdadeira desumanidade.

A didática nos recomenda iniciarmos pela distinção entre injúria racial e racismo.

A conduta de injúria racial é descrita no bojo do parágrafo 3º do art. 140 do Código Penal:  Injuriar alguém, ofendendo lhe a dignidade ou o decoro: Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa.

Desta forma, constitui injúria racial a ofensa em razão de raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Como odiosos – porém reais – exemplos, cite-se o pronunciamento de frases como “Pretos Imundos, voltem para a África” (ofensa racista sofrida pelos filhos de Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso em 31 de julho).

O dispositivo legal acima transcrito tutela a honra subjetiva da(s) vítima(s), ou seja, a dignidade da pessoa ou determinado grupo de pessoas atingido por ofensa de cunho racial. Neste aspecto, rogata maxima venia, ousamos compreender que a tutela segue além, abrangendo não só a pessoa ofendida, mas todos em mesmas condições – a bem da verdade, a ofensa atinge (ou deveria atingir) a sociedade como um todo. Todavia, como veremos a seguir, o crime de racismo se ocupa de tanto.

Não se admitindo a denominada “exceção da verdade”, o crime se consuma quando a vítima passa a conhecer a ofensa, sendo indiferente se esta foi praticada direta ou indiretamente. O aspecto cognitivo do delito é o conhecimento dos elementos descritivos e normativos e a previsão da causalidade e do resultado; já o aspecto conativo é o dolo de dano, seja ele direto ou eventual, e a seriedade da ofensa, não sendo punível a simples intenção de brincar.

Todavia, é preciso ter toda cautela sobre esta “intenção de brincar”. O animus jocandi ocorre quando alguém profere palavras, comentários e ofensas em “tom de brincadeira”, condição que afasta o dolo e, como os crimes contra a honra exigem este elemento subjetivo, inexisti crime.

Relevante esclarecer que é muito tênue a fronteira entre o “brincar” e o ofender. O que muitas vezes para o emissor da mensagem é uma “brincadeira”, para o receptor é uma ofensa capaz de atingir-lhe legitimamente a honra.

Diferentemente, o crime de racismo é tratado em legislação própria, qual seja, lei 7.716/89, a qual prevê os delitos resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. 

À luz da lei 7.716/89 constitui crime: a) Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos; b) negar ou obstar emprego em empresa privada; c) recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador; d) recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau; e) impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar; f) impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público; g) impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público; h) impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades; i) impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos; j) impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido; k) impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas; l) impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social e m) praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Sobre a discriminação racial, a Constituição Federal (1988) manifesta os seus princípios no sentido de repúdio ao racismo em seus artigos 4º e 5º:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Assim, se o crime de injúria racial caracteriza-se pela ofensa à uma pessoa ou grupo determinado de pessoas, o racismo, atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Outra distinção se dá em razão do crime de racismo ser inafiançável, enquanto o de injúria racial o é, nos termos da legislação. 

Importante salientar, todavia, o Ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal – em sede o Habeas Corpus 154.248/DF, ação em que se pretende assentar o entendimento acerca da equiparação dos crimes de racismo e injúria racial no que tange à imprescritibilidade e seus consectários legais – proferiu voto considerando que o crime de injúria racial é uma espécie do gênero racismo e, portanto, imprescritível, o que impossibilita o reconhecimento da extinção da punibilidade. Segundo o relator:

A diferença, desse modo, é meramente topológica, logo, insuficiente para sustentar a equivocada conclusão de que injúria racial não configura racismo. Conforme sustenta Guilherme de Souza Nucci, o rol daquele diploma não é exaustivo, devendo-se considerar a conduta prevista no art. 140, §3º, do CP 'mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão'. Observe-se, nesse contexto, que o crime em análise, por ser sujeito à pena de reclusão, não destoa do tratamento dado pela Constituição ao que ali se prevê como crime de racismo.1 

Estabelecida a distinção, por certo de se reconhecer que ambas as condutas são repulsivas, constituem crime e hão de ser combatidas incansavelmente. Como agir, pois, no caso de sofrer ou assistir uma destas condutas? Seguem breves orientações:

  1. Ao início, esclareça ao ofensor não concordar com sua postura;
  2. Controle-se e não aja de sorte a também se tornar um agressor;
  3. Reúna provas, a exemplo de gravações por intermédio de celular;
  4. Anote nome e contato de eventuais testemunhas;
  5. A depender do local onde se deu a ofensa, verifique se há câmeras de segurança que porventura possam ter registrado a ação;
  6. Convoque a Polícia Militar (190) para que os agentes públicos possam certificar a ocorrência de crime e – se caso – promovam a prisão em flagrante do ofensor;
  7. Procure a Delegacia de Polícia mais próxima e noticie o crime à Autoridade Policial;
  8. Saiba lhe assistir o direito de buscar a reparação civil pelos danos materiais e morais experimentados;
  9. Caso esteja assistido a ofensa a outrem, busque gravar a ação do ofensor;
  10. Caso tenha assistido ofensa dirigida a outem, proponha-se a testemunhar.

Dentre todas as posturas recomendadas, destacamos aquela que consideramos a principal: não se cale diante de qualquer forma de injúria racial ou de racismo. Quem se cala contribui com o ofensor; quem permanece inerte consente com a ofensa; quem não reage contra esta odiosa postura deixa de fazer sua parte na construção de uma sociedade digna, humana, justa e respeitosa.

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1 STF. 2ª Turma. Relator Min. Edson Fachin. HC 154.248/DF. Voto proferido em 26/11/2020.

Fernando Borges Vieira
Advogado desde 1997 - OAB/SP 147.519, OAB/MG 189.867, OAB/PR 94.745, OAB/RJ 213.221 - Sócio Administrador de Fernando Borges Vieira Sociedade de Advogados, Mestre em Direito (Mackenzie).

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