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NR-1 e a nova era da saúde mental no trabalho

A NR-1 moderniza a proteção no trabalho ao priorizar riscos psicossociais e combater o assédio, reforçando deveres, direitos e o compromisso com a saúde mental no ambiente laboral.

4/7/2025

Guardiã da dignidade, dos limites e do futuro nas relações laborais

Introdução

No alvorecer do século XXI, o mundo do trabalho assiste a uma verdadeira revolução das relações humanas. Se há trinta anos bastava que as empresas evitassem acidentes físicos e cumprissem obrigações mínimas de higiene e segurança, o cenário atual exige mais: pede-se inteligência emocional, ambientes psicologicamente saudáveis e o compromisso inequívoco com a dignidade da pessoa no labor. Mas como transformar esse imperativo ético em obrigação jurídica e operacional?

O Brasil, na esteira do movimento internacional e da experiência europeia e latino-americana, deu um passo marcante nesse sentido a partir da nova redação da norma regulamentadora 1 – NR-1, em vigor desde maio de 2025. A norma passa a considerar os riscos psicossociais, incluindo todas as formas de assédio, como risco ocupacional obrigatório no PGR - Programa de Gerenciamento de Riscos - alterando, para sempre, o papel institucional das empresas em relação à saúde mental de seus trabalhadores.

Neste artigo, vamos desvendar as novidades da NR-1, explicar sua finalidade, alcance e os desafios de sua efetiva implementação, abordar suas conexões com a NR-17, analisar exemplos de assédio nas empresas, os impactos das mudanças socioculturais, os incentivos à conformidade, o tratamento diferenciado do MEI - Microempreendedor Individual e das empresas de grau de risco 1 e 2, os desafios jurídicos das novas formas de trabalho, e o equilíbrio delicado entre proteção legítima e prevenção do uso inadequado dos instrumentos de denúncia. Ao final, apresentaremos referências legislativas e bibliográficas para o estudo aprofundado do tema.

1. O que é a NR-1? Da origem à moderna defesa da saúde integral

A NR 1 compõe o extenso rol de normas do Ministério do Trabalho que estabelecem fundamentos para a proteção da saúde e da segurança no ambiente de trabalho. Sua tradição remonta à portaria MTB 3.214, de 1978, que consolidou as primeiras normas do gênero, abarcando desde os requisitos para uso de EPIs até as rotinas de controle de riscos ambientais.

A NR-1, em sua essência, sempre teve a finalidade de:

Ao longo das décadas, a NR-1 foi atualizada para acompanhar não apenas as mudanças produtivas e tecnológicas, mas também demandas sociais e científicas sobre o que significa, na prática, um ambiente de trabalho seguro e saudável.

Para quem vale?

Aplica-se a todas as organizações que mantenham trabalhadores sob o regime da CLT, abrangendo a iniciativa privada e órgãos públicos quando atuando como empregadores celetistas.

Quem protege e com que finalidade?

Protege todos os trabalhadores, independentemente de cargo, função ou nível hierárquico e, agora, vítimas potenciais de riscos psicossociais. Sua finalidade última é garantir a preservação da vida, saúde física, mental, social e emocional do ser humano em sua jornada laboral.

2. Os riscos psicossociais e o assédio: A nova fronteira normativa

O salto mais inovador da NR-1 está no reconhecimento explícito dos riscos psicossociais como perigo ocupacional. Mas o que são esses riscos?

2.1 Conceito de riscos psicossociais

Tratam-se de fatores relacionados à organização, ao contexto relacional, às condições de trabalho, pressões e estilos de gestão que, direta ou indiretamente, podem provocar sofrimento mental, adoecimento emocional, isolamento, perda de autoestima, baixa produtividade e até mesmo doenças psicossomáticas.

Tais riscos podem se desenvolver, a partir da prática de violências, como:

A nova NR-1, ao obrigar a incorporação dos riscos psicossociais ao PGR, determina que sua prevenção e enfrentamento não são "boa prática", mas um dever legal.

2.2 Breve história das alterações na NR-1

A rigor, até 2020 a NR-1 apenas continha princípios gerais. A portaria SEPRT 6.730/20, somada à portaria MTE 1.419/24, promoveu sua modernização e consolidou o GRO/PGR como instrumento central para controle dos riscos ocupacionais. Mas a grande novidade veio com a inclusão obrigatória dos riscos psicossociais nessa metodologia, estabelecendo critérios multidisciplinares para sua avaliação e obrigando reavaliações periódicas em caso de denúncias ou adoecimento psicológico significativo. Desde maio de 2025, a obrigatoriedade é plena.

2.3 A quem se dirige a proteção?

A NR-1 protege trabalhadoras e trabalhadores celetistas, temporários, aprendizes, terceirizados que atuam na empresa, estagiários, funcionários de empresas contratadas (quando atuam no local de trabalho da tomadora), MEI (quando nas dependências do contratante ou à seu serviço ainda que externamente) e, em grau subsidiário, outros prestadores em condições análogas.

3. Tipos de assédio no ambiente de trabalho: Exemplos práticos e a importância do PGR

Nada melhor para aproximar o tema do público do que exemplos práticos, inspirados na experiência dos tribunais, da literatura jurídica e da vivência cotidiana:

Esses são apenas alguns exemplos, infelizmente cotidianos, de situações que precisam ser diagnosticadas e prevenidas pelo PGR.

4. Implementação das novas regras: Interseção com a NR-17 e práticas empresariais eficazes

A NR-1 dispõe que é obrigatório diagnosticar, avaliar, monitorar e adequar o ambiente organizacional quando se tratar de fatores psicossociais - exigindo metodologia multidisciplinar. Entretanto, como mapear riscos tão difusos? A resposta está na articulação conjunta da NR-1 com a NR-17 (ergonomia).

Etapas obrigatórias para empresas:

  1. Diagnóstico pelo PGR: Levantamento de riscos com base em entrevistas, aplicação de questionários, escuta ativa, grupos focais e indicadores objetivos (absenteísmo, afastamentos, volume de denúncias, clima organizacional).
  2. Planos de ação: Elaboração de políticas internas claras sobre assédio, prevenção e acolhimento, integrando códigos de conduta, canais anônimos e protocolos transparentes de apuração.
  3. Comunicação e capacitação: Treinamentos obrigatórios para todos os níveis hierárquicos, com linguagem acessível, exemplos práticos, abordagem sociocultural e ênfase em empatia e escuta qualificada.
  4. Canais de denúncia e acolhimento: Estruturas independentes, com garantia real de anonimato, proteção contra retaliações, registro ordenado e previsão de acolhimento psicológico, além de processo investigativo com aplicação das punições quando devidas.
  5. Monitoramento permanente: Reavaliação periódica do PGR, especialmente após alterações nas relações de trabalho, denúncias relevantes ou reorganização estrutural.

A NR-17 - especialmente após sua aproximação com a NR-1 - aponta caminhos complementares, exigindo análise psicossocial transversal, respeito à diversidade, cuidado com o tempo de descanso, ergonomia mental e física, e ambientes com relações de autoridade bem delimitadas.

5. Incentivos à implantação: Certificações, produtividade e imagem de marca

Não se trata apenas de evitar multas ou litígios. Empresas que interiorizam a cultura de prevenção dos riscos psicossociais e assédio constroem diferenciais estratégicos, tais como:

6. MEI e empresas de grau 1 e 2: Obrigações específicas, proteção e novos conceitos

A NR-1 traz diferenciação importante para pequenos atores econômicos, equilibrando proteção justa e proporcionalidade:

6.1 O que diz o item 1.8 e seguintes do anexo I?

Quem se beneficia?

O regime protege o MEI de situações de exposição não controlada, responsabilizando contratantes. Já as empresas de menor porte ganham instrumentos proporcionais ao tamanho do seu risco. Em todos os casos, a dignidade do trabalhador (ou prestador em condição frágil) permanece o foco máximo da proteção, mantendo-se a obrigação de ações de prevenção de riscos e as competentes respostas.

7. Novas formas de relação de trabalho e impactos: Reflexos da reforma trabalhista de 2017

A chamada “reforma trabalhista”, introduzida pela lei 13.467/17, promoveu flexibilização nos contratos, permitiu trabalho intermitente, reforçou a terceirização, estendeu o uso de “pejotização” (contratação de PJs para atividades-fim) e empregou modelos híbridos, remotos ou por plataformas digitais.

Desafios:

Reflexos práticos

A tendência é exigir das organizações um olhar transversal: não basta mais conferir se há “carteira assinada”, mas sim identificar condições de subordinação, pessoalidade, habitualidade e risco (físico ou psicossocial) para definir obrigações de proteção.

8. O desafio da "nova geração": Cultura do acolhimento, fragilidade e o risco da banalização dos instrumentos

O papel do compliance e dos recursos humanos

Empresas e profissionais devem equilibrar acolhimento e critérios técnicos, garantindo que os canais não se deturpem em “muros de lamentação” ou se transformem em instrumentos de vingança. O treinamento em inteligência emocional, a formação ética de lideranças, a validação de denúncias por equipe multidisciplinar e a transparência dos processos são ferramentas indispensáveis.

Soluções: Educação continuada para todos os atores, definição hermenêutica precisa do conceito de assédio, supervisão ética dos canais, acolhimento sem permissividade e, sobretudo, formação de adultos aptos a conviver, ouvir críticas e desenvolver resiliência sem perder a capacidade de reivindicar direitos legítimos.

9. Conclusão

A revolução promovida pela NR-1 marca um divisor de águas na proteção da saúde do trabalhador e no combate às múltiplas formas de assédio dentro das organizações brasileiras. Não se trata apenas de um avanço normativo, mas de mudança cultural, de mentalidade e de propósito.

Ao determinar que os riscos psicossociais sejam identificados, monitorados e prevenidos com o mesmo rigor dos demais riscos ocupacionais, a norma confere estatuto ético e jurídico à promoção da dignidade emocional no trabalho. As empresas ganham a oportunidade de transformar suas rotinas, fortalecer sua reputação e impulsionar produtividade, mas precisarão lidar com desafios operacionais, culturais e éticos cada vez mais complexos.

O futuro exige equilíbrio, maturidade e empatia - princípios que, na visão da NR-1 e de uma sociedade civilizada, são inegociáveis. O caminho está traçado, mas sua pavimentação dependerá do compromisso, da liderança e da coragem das instituições em reconhecer o valor de cada trabalhador, para além de índices quantitativos ou formalidades arcaicas.

Ana Lucia S Andrade
Advogada de Família e Sucessões (RJ e on-line). Planejamento patrimonial, divórcios, alimentos e inventários com segurança e estratégia, do pacto à partilha.

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