Como “amicus curiae” (amigo ou conselheiro da corte), participamos do julgamento na Primeira Seção do STJ, ocorrido nos dias 9/4/2025 e 14/5/2025, sobre o Tema 1.283, relativo a recursos repetitivos (REsp’s 2.126.428/RJ, 2.126.436/RJ, 2.130.054/CE, 2.138.576/PE, 2.144.064/PE e 2.144.088/CE), que analisou dois aspectos do Perse - Programa Emergencial de Recuperação do Setor de Eventos ou Turismo, introduzido pela lei 14.148/21. O benefício principal para o setor de turismo correspondeu (e corresponde) à redução da alíquota a zero nos tributos federais do setor de turismo por 60 meses, de março de 2022 a fevereiro de 2027 e dois pontos foram analisados no julgamento correspondem a (1) se as empresas do segmento que estavam no regime do Simples Nacional poderiam gozar do benefício e (2) se há necessidade de estarem as empresas registradas regularmente no CADASTUR (cadastro do Ministério de Turismo), registro esse que fora criado e regulado pela lei 11.771/08 (lei do turismo).
Por termos conversado com alguns dos ministros julgadores do caso, em despacho oficial como “amicus curiae” e por estarmos presentes em ambas as seções de julgamento, entendemos que podemos colaborar com o Poder Judiciário, eliminando a confusão que temos visto na interpretação do referido julgamento no que se refere ao segundo ponto e aclarando, em primeira análise, os respectivos aspectos do que foi decidido pela ministra-relatora do caso, Maria Thereza de Assis Moura, que foi acompanhada por unanimidade pelos demais membros da corte no referido julgamento, que fora presidido pela ministra Regina Helena Costa.
Inicialmente e como o próprio acórdão da ministra Maria Thereza deixa transparecer cristalinamente, o que foi julgado cobriu apenas o INÍCIO das discussões jurídicas sobre o Perse. Isso porque apenas tocou nos pontos acima mencionados, que se referem somente a aspectos do CADASTUR e ao Simples Nacional.
É importante lembrar que as sucessivas normas atinentes ao Perse vêm trazendo ao mencionado benefício fiscal inúmeras modificações, quer seja por regras administrativas posteriores à publicação da lei 14.148/21, quer seja por medidas provisórias e leis que alteraram partes da referida lei original.
Concentrando-se na questão do CADASTUR, o acórdão decidiu que “é necessário que o prestador de serviços turísticos esteja “previamente” inscrito no CADASTUR, conforme previsto na lei 11.771/08 (lei do turismo), para que possa se beneficiar da alíquota zero relativa ao PIS/Cofins, à CSLL e ao IRPJ, instituído pelo art. 4º da lei 14.148/21 (lei do Perse)”. Porém, é necessário esclarecer que o termo “previamente” deve ser entendido, segundo a leitura atenta do voto da ministra-relatora, como sendo, (1) nos prazos estabelecidos pela própria lei do Perse e, obviamente, (2) antes de se aproveitar daquilo que a própria lei do Perse proporciona.
Esse esclarecimento é relevante porque as normas subsequentes do Perse foram alterando as datas exigíveis para já estar o contribuinte com o CADASTUR realizado. Por fim, tais normas firmaram o entendimento que terá direito ao desfrute dos benefícios proporcionados pela lei do Perse os contribuintes que efetivaram o CADASTUR entre 18 de março de 2022 e 30 de maio de 2023: Isso é o que, desde logo ficou decidido pelo acórdão do STJ!
O acórdão também leva como questão fundamental o que chamou de CNAE da empresa prestadora de serviço. CNAE significa o código que a empresa possui na Classificação Nacional de Atividades Econômicas. Nesse aspecto cabe também elucidar que a decisão não adentrou a discussão existente no Poder Judiciário sobre as mutilações que o rol de CNAE’s vem sofrendo com as consecutivas alterações ocorridas na lei do Perse. Não adentrou, mas forneceu um sinal claro do entendimento que deve prevalecer no STJ, quando essa discussão lá chegar: a obediência ao que prescreve a lei do Perse.
A lei do Perse prescreve, com total clareza, qual o âmbito de seu alcance logo em seu art. 2º, parágrafo 1º, inciso IV, apresentando comando maior, consubstanciado no fato de que o programa foi criado para beneficiar as prestadoras de serviços turísticos descritas no art. 21 da lei 11.771/08, a lei do turismo. E, por sua vez, a lei do turismo, no citado art. 21, parágrafo 1º, é explícita, ao explicar, para o julgamento do STJ, que as atividades que devem ser consideradas como prestadoras de serviços turísticos, desde que tenham o CADASTUR, são os restaurantes, as cafeterias, os bares e as empresas que lhes são “similares”.
Regina Helena Costa, atualmente a ministra presidente da 1ª seção do STJ, que foi o órgão que proferiu a decisão aqui comentada, em seu tradicional trabalho “Conceitos Jurídicos Indeterminados e Discricionariedade Administrativa”, ensinou com acerto que a menção pela lei a conceitos indeterminados, como é o caso da conceituação de “similares”, mencionado na lei do turismo, deve se ter a interpretação ligada ao caso concreto na lei referido. Esclarece que há casos em que os conceitos jurídicos indeterminados podem ser considerados conceitos de valor, exatamente como no caso do termo “similares” diante do Perse, ocasião em que não deve existir qualquer margem de escolha de seu significado, por parte do aplicador da lei (in “Revista da Procuradoria Geral do Estado”, São Paulo, v. 29, p. 79-108, jun. 1988).
Sim, é justamente o que ocorre com a lei do Perse. Veja-se que o Perse foi uma desoneração tributária aprovada no contexto de uma catástrofe nacional sem precedentes, consistente na pandemia de Coronavírus. Tornou-se fato público, notório porque evidente, que todas as atividades que trabalhavam com alimentação sofreram prejuízos gravíssimos e, pode-se dizer, irrecuperáveis, em razão das seguidas quarentenas e do extenso e indiscriminado perigo de contágio, provocado pela pandemia. Nessa situação concreta, não há dúvidas de que são similares a “restaurantes, cafeterias e bares”, as lanchonetes, as docerias, as hamburguerias, as cervejarias artesanais com atendimento ao público, as casas de suco ou açaí com estrutura de consumo local, os bistrôs e as padarias com atendimento de consumo no local, os pubs e lounges, os estabelecimentos de culinária regional com atendimento de consumo no local, porquanto esta é a única conceituação de valor plausível, tomando-se o ensinamento de Regina Helena Costa. E o são tanto sob o crivo da lei do turismo, quanto sob a análise da lei do Perse.
No que se refere à lei do turismo, é fato incontestável que qualquer uma das atividades acima indicadas pode, sim, atender a quaisquer turistas, que são as pessoas físicas que estejam em viagens e estadas em lugares diferentes do seu entorno habitual, por um período inferior a um ano, com finalidade de lazer, negócios, comparecimento a eventos etc., como consta na conceituação de turismo fornecida pelo art. 2º da mesma lei do turismo.
Sob o ponto de vista da lei do Perse, todas aquelas 13 também atividades foram consideradas na emenda legislativa que incluiu o setor de turismo no Perse, uma vez que estiveram computadas no estudo do deputado Eduardo Henrique Maia Bismarck, conclusivo de que, à época, em apenas oito meses de pandemia, o setor do turismo no Brasil já havia perdido R$ 51 bilhões, o que representou quase R$ 6,4 bilhões por mês.
Dessa forma, nas entrelinhas do acórdão do STJ, objeto dessas primeiras observações, podemos entrever que quaisquer alterações em CNAE’s relativos às empresas beneficiadas pelo Perse, só podem ser aceitas se estiverem obedecendo a interpretação literal do art. 2º. da própria lei do Perse, o qual, topologicamente, antecede e ilumina todos os outros dispositivos seguintes da referida lei, de forma que estes não podem invalidar os comandos cogentes do mencionado artigo 2º.
Isso se torna mais evidente ainda, quando nos aprofundamos nos efeitos econômicos da pandemia para todas aquelas atividades. Tomando-se o período de março de 2020, quando foi publicado o decreto legislativo 6/20, decretando o estado de calamidade pública, até outubro de 2021, quando se encerrou o auxílio emergencial (MP 1.039/21), temos que, nesses 20 meses, foram retirados da economia mais de 127 bilhões de reais.
Se considerarmos até o final de 2020, ultrapassa-se a incrível casa dos R$ 140 bilhões retirados da economia em 2020, em decorrência da paralisação do setor de turismo, na conceituação usada na lei do Perse.
Estudos do WTTC - World Travel & Tourism Council e da FGV - Fundação Getúlio Vargas indicam que o turismo no Brasil tem um multiplicador médio de 2,6 a 3,2 vezes. Ou seja, cada R$ 1 gasto no setor turístico gera entre R$ 2,60 e R$ 3,20 na economia como um todo.1 2 3
Usando-se um multiplicador conservador, de 2,8 vezes, os R$ 140 bilhões perdidos diretamente no turismo geraram uma retração de praticamente R$ 400 bilhões, montante que deixou de circular na economia brasileira em 2020, apenas por conta da paralisação do turismo!
Mais que isso. A mencionada perda transversal estimada de R$ 400 bilhões em 2020, considerada sob um crescimento médio do PIB brasileiro de 2,5% ao ano, representa em 2025 uma subtração acumulada de aproximadamente R$ 443,5 bilhões na economia brasileira! Mesmo com uma eventual recuperação econômica, nossa economia estará quase meio trilhão de reais menor até o final deste 2025 do que estaria se essa perda no setor de turismo e suas cadeias associadas não tivesse ocorrido!
Como se vê, não foi sem motivo que a lei do Perse contemplou o setor de turismo e, principalmente, as atividades ligadas ao fornecimento de alimentos.
Tudo nos indica que isso deve iluminar o Poder Judiciário, ao enfrentar as outras questões judicializadas sobre o Perse, as quais ainda estão longe de serem tratadas pelo STJ: As decisões judiciais dos juízos federais também têm efeitos tributários indutores, que não podem ser perdidos de vista.
Cabe ainda lembrar de outro aspecto não enfrentado pelo STJ, relativo à paralisação do benefício do Perse em razão de se ter atingido um total de 15 bilhões de reais de desoneração tributária, limite esse objeto de alteração legislativa posterior à redação original da lei do Perse. É que o acórdão do STJ, aqui explicado em suas primeiras linhas, asseverou expressamente que, para o setor de turismo, “a opção pelo CADASTUR é ‘constitutiva’ da situação de prestador de serviços turísticos”, frisando, ainda ser “nesse sentido que deve ser compreendida a obrigatoriedade do cadastro, prevista no art. 22, em relação àqueles que poderão ser cadastrados, na forma do art. 21, § 1º, da lei 11.771/08”, a lei do turismo.
O acórdão se refere ao rol de empresas que podem ou não aderir ao status de estarem no seguimento de turismo, desde que efetivem o CADASTUR, que é exatamente a situação dos mencionados (1) restaurantes, (2) cafeterias, (3) bares, (4) lanchonetes, (5) docerias, (6) hamburguerias, (7) cervejarias artesanais com atendimento ao público, (8) casas de suco ou açaí com estrutura de consumo local, (9) bistrôs, (10) padarias com atendimento de consumo no local, (11) pubs, (12) lounges, (13) estabelecimentos de culinária regional com atendimento de consumo no local.
Isso equivale dizer que, para tais empresas, o CADASTUR, se tornou uma condição constitutiva para o aproveitamento dos benefícios da lei do Perse - e, frise-se, não existe óbice para que um requisito legal, principalmente, quando tal requisito é “facultativo”, como no caso do Perse, venha a se tornar uma condição de uma desoneração tributária, aliás, já observamos esse fenômeno na antiga lei 12.101/09, em seu art. 29, III, IV e VII.
O benefício do Perse foi criado em 2021, entrando em vigor em março de 2022 por prazo determinado (até fevereiro de 2027) e, pelo menos para as 13 atividades mencionadas, “desde que” elas atendam à condição de terem efetivado o CADASTUR entre 18 de março de 2022 e 30 de maio de 2023 - o caráter constitutivo, nos termos do que constou no acórdão do STJ enfatiza essa condição.
Emerge, pois, com solar clareza, que a cessação do benefício em razão do atingimento do teto geral de R$ 15 bilhões, para aqueles 13 “CNAE’s”, fere frontalmente o art. 178 do CTN, que proíbe a revogação de benefícios desse gênero, quando concedidos “por prazo certo e em função de determinadas condições”, violando também o princípio maior da Segurança Jurídica e da Boa-fé nas relações entre a União e os seus pagadores de tributos.
Igualmente, se deve lembrar que não poderia se sujeitar a um limite de renúncia de receita a proposição legislativa que visava enfrentar as consequências sociais e econômicas da pandemia de coronavírus, porque ficou dispensada das limitações aos benefícios tributários, no que se refere à renúncia de receita, em decorrência da EC emergencial 109, de 2021 (art. 167-D da CF).
Por isso, temos certeza de que nem mesmo o caos processual existente no Poder Judiciário federal, em razão da descomunal quantidade de processos que lá tramitam, será capaz de turvar sua visão em relação ao real alcance do que se decidiu no Tema 1.283, relativo a recursos repetitivos do STJ. Certamente, a clareza da visão do Judiciário contribuirá com o natural efeito indutor de recuperação da economia no caso do Perse, a exemplo do que ocorreu no caso da famosa Tese do Século, que trouxe uma gigantesca desoneração tributária aos contribuintes, ao excluir o ICMS da base de cálculo do PIS e a Cofins, mas que, ao fim e ao cabo, induziu a um aumento de arrecadação tributária.
Naquela ocasião foi reacendido o estudo econômico denominado The Macroeconomic Effects Of Tax Changes: Estimates Based On A New Measure Of Fiscal Shocks, de Christina D. Romer e David H. Romer4, publicado na The American Economic Review. O trabalho deu novos números no ponto de inflexão da famosa Curva de Laffer. Por ele, quando a tributação de um Estado atinge o índice de 33% do PIS, inicia-se o ponto de descida na curva de arrecadação tributária, fazendo com que diminua, a despeito de seu aumento em percentual.
Pode-se dizer que, com a decisão do STF na Tese do Século, empresas passaram a recolher PIS e Cofins sobre uma base mais justa. Isso reduziu a litigiosidade, trouxe previsibilidade jurídica e, gerou fôlego financeiro para que empresas expandissem suas atividades, investissem mais ou mesmo saíssem da informalidade. Foi justamente nos anos seguintes à decisão do STF (de 2017 para frente) que se observaram recordes sucessivos de arrecadação federal, especialmente entre 2021 e 2022, mesmo com a desoneração ocorrida no PIS e na Cofins. Confira-se o aumento de arrecadação: 01/22: R$ 235,3 bilhões, o maior valor para o mês desde o início da série histórica em 1995; 03/22: aumento real de 6,92% em relação março de 2021; 05/22: crescimento real de 4,13% comparado a maio de 2021; 08/22: aumento real de 8,18% em relação a agosto de 2021; 10/22: crescimento real de 7,97% em comparação com outubro de 2021.
Portanto, a realidade ilustra um princípio essencial: nem toda desoneração tributária representa perda fiscal. Quando calibrada e necessária, serve como catalisador para crescimento econômico e aumento sustentável da arrecadação. Entre março de 2020 e outubro de 2021, vigoraram medidas excepcionais como o decreto de calamidade pública (dec. leg. 6/20) e o auxílio emergencial (PEC emergencial e MP 1.039/21). E, mesmo assim, a arrecadação federal alcançou níveis históricos, o que dá força à ideia de que a carga tributária excessiva é mais ineficiente do que se costuma admitir.
O efeito indutor positivo da correta aplicação do direito no caso do Perse também há de ser sentido em 2025 e 2026, principalmente diante da necessidade de eliminação dos reflexos que a pandemia gerou para 2025, de quase meio trilhão de reais, como foi visto.
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1 https://researchhub.wttc.org/product/brazil-economic-impact-report;
2 https://cultura.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20190116/07161615-fgv-embratur-impacto-evento-internacionais-brasil-200708.pdf?utm_source=chatgpt.com
3 https://www.e-unwto.org/doi/epdf/10.18111/9789284423200?utm_source=chatgpt.com
4 http://www.nber.org/papers/w13264.pdf