O concurso público é, para milhares de brasileiros, o caminho mais seguro para alcançar estabilidade e reconhecimento profissional. A cada edital lançado, renova-se a esperança de quem investe tempo, energia e recursos na preparação. Nos últimos anos, a política de cotas raciais trouxe um novo horizonte para candidatos historicamente marginalizados, permitindo a entrada no serviço público de forma mais equitativa. Porém, a aplicação prática dessa política ainda gera controvérsias capazes de afetar profundamente a vida de muitos concorrentes.
Um exemplo que se repete é o do candidato que concorre tanto pela ampla concorrência quanto pelas cotas raciais. Após meses de estudo e dedicação, ele obtém nota suficiente para ser aprovado nas duas listas. Entretanto, não comparece à etapa de heteroidentificação exigida para confirmar sua condição de cotista. A consequência aplicada por diversas bancas tem sido a eliminação total do certame, desconsiderando inclusive a classificação alcançada na ampla concorrência.
Esse tipo de interpretação, no entanto, é equivocado e afronta os princípios que regem os concursos públicos. A heteroidentificação não é uma etapa voltada à avaliação de mérito, mas apenas um procedimento destinado a verificar se o candidato faz jus ao benefício adicional da reserva de vagas. O direito à ampla concorrência decorre exclusivamente do desempenho obtido nas provas, independentemente da condição racial.
Eliminar completamente o candidato equivale a punir de forma desproporcional, negando-lhe um direito já conquistado por esforço próprio. A Constituição assegura que os atos da Administração devem observar a razoabilidade, a proporcionalidade e a legalidade. Nada disso se vê quando a banca, em vez de apenas retirar o candidato da lista de cotas, decide excluí-lo por completo.
Na prática, o que ocorre é o aumento da judicialização dos concursos. Candidatos que se encontram nessa situação recorrem ao Judiciário, que, em reiteradas decisões, vem reconhecendo a ilegalidade da eliminação total e garantindo a permanência na lista geral. Trata-se de um movimento importante para reafirmar que a política de cotas deve ampliar direitos, e não suprimi-los.
Vale lembrar que, para o candidato, a eliminação injusta representa mais do que uma frustração. Trata-se de prejuízo emocional, financeiro e, muitas vezes, familiar. Afinal, o concurso público não é apenas uma prova: é um projeto de vida. Quando o mérito alcançado é desconsiderado por formalidade desproporcional, compromete-se a confiança de toda a sociedade no sistema de seleção.
As bancas examinadoras precisam adotar uma postura mais cuidadosa. O papel do edital é disciplinar o certame, mas ele não pode criar regras que desvirtuem a própria finalidade das políticas afirmativas ou que eliminem direitos já consolidados. O equilíbrio entre a proteção da lisura do sistema de cotas e a preservação do mérito na ampla concorrência é o que garante a legitimidade do concurso público.
O correto é reconhecer que a ausência à heteroidentificação acarreta apenas a exclusão da lista de cotas raciais, sem qualquer reflexo na lista geral. Essa solução respeita a finalidade da ação afirmativa, preserva o mérito individual e assegura a confiança de todos os participantes no processo seletivo.
O concurso público precisa ser compreendido como espaço de inclusão, de reconhecimento do esforço individual e de respeito à igualdade de condições. Não pode se tornar um campo em que a interpretação equivocada de formalidades desvirtue a trajetória de candidatos aprovados legitimamente.
Aos que enfrentam essa situação, é fundamental saber que existem mecanismos de proteção jurídica. A eliminação total não encontra respaldo e pode ser revista pelo Judiciário, que já consolidou entendimento em defesa da preservação da aprovação na ampla concorrência. O candidato que lutou, estudou e alcançou nota suficiente para se classificar não pode ter sua conquista anulada por uma exigência que não guarda relação direta com seu mérito.