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Subsiste a competência do juízo falimentar para o reconhecimento da prescrição e da decadência do crédito fiscal depois das alterações à lei 11.101/05?

terça-feira, 28 de junho de 2022

Atualizado às 07:41

A execução fiscal e a falência têm em comum o fato de constituírem formas de execução, a primeira de índole individual, a ser proposta pelo credor fiscal, e a segunda, verdadeira execução concursal à qual concorrem os credores do devedor comum.

Cada uma dessas espécies de processo tem regras próprias que lhes delimitam a competência, o objetivo precípuo e a forma de proceder, que se voltam, em última análise, à satisfação do crédito de forma individual, na primeira, e coletiva ou mais propriamente concursal, na segunda.

Como todo e qualquer processo, ambas as formas de execução têm que ser aparelhadas com instrumentos hábeis ao exercício dos direitos de ação e de ampla defesa, para que possam levar à efetividade dos direitos.

A lei das execuções fiscais (lei 6.830/80), em seu art. 5º, estabelece que: "A competência para processar e julgar a execução da dívida ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário".

Mesmo antes da reforma da lei falimentar, implementada pela lei 14.112/20, não obstante desvinculada a execução fiscal do juízo universal, não poderia prosseguir normalmente até a satisfação da Fazenda Pública, sob pena de afrontar as regras referentes à preferência dos créditos, pelo que eventuais valores auferidos  naquele juízo deveriam ser entregues ao juízo da falência1; agora, pelo que dispõe a lei falimentar, "as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis" (art.7º-A, §4º, inciso V, da lei 11.101/05).

De forma clara e direta, o inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, dispõe que: "a decisão sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, observado o disposto no inciso II do caput do art. 9º desta Lei e as demais regras do processo de falência, bem como sobre o eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis, competirá ao juízo da execução fiscal".

A prescrição e decadência2 são matérias relacionadas à exigibilidade dos créditos e que, portanto, pelo novo texto, não mais deveriam ser apreciadas pelo juízo da falência a teor do que consta do mencionado inciso.

Até então, não havia qualquer dispositivo que tratasse especificamente da competência para dirimir questões relacionadas à prescrição ou decadência do crédito fiscal ou de outras espécies de créditos submetidos à falência antes das alterações trazidas pela lei 14.112/20; por sua vez, a jurisprudência era unânime no sentido de reconhecer a competência do juízo falimentar para apreciar essas matérias, inclusive, em relação ao crédito tributário3.

E esse posicionamento jurisprudencial estava consonância com as disposições da Constituição, porque, por exemplo, com relação à competência da Justiça Federal e das execuções fiscais no geral, a própria lei Maior (art.109, inciso I) determina que compete aos juízes federais processar e julgar "as causas de interesses da União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho" (grifei) e também não há outro dispositivo constitucional que discipline a competência dos juízos das execuções fiscais de modo a implicar limitação à competência do juízo da quebra.

Assim, as questões relativas à matéria falimentar no geral, mormente a verificação dos créditos e demais atos atinentes à apuração do ativo e pagamento do passivo da massa falida não competem à Justiça Federal ou aos juízos estaduais das execuções fiscais, ainda que se trate de créditos tributários, como também não se pode dizer que a nova regra do inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, corresponde a qualquer determinação constitucional.

Assim, com a introdução do mencionado dispositivo, é preciso indagar sobre a sua aplicabilidade aos créditos fiscais para os quais se pretende a habilitação na falência da devedora e, diga-se, a aplicabilidade de norma em vigor somente pode ser excepcionada diante de sua inconstitucionalidade, quando contraria princípios e garantias previstos na Constituição, ou no caso de conflito com outras regras do ordenamento, situação que leva a não aplicação da regra incoerente com o sistema, porque contradiz a finalidade, os objetivos, de determinado conjunto de normas.

Nesse sentido, impende indagar logo de início se a norma contida no mencionado inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, destoa do princípio da igualdade dos credores na falência.

Veja-se que a lei determina que o credor, ao proceder a habilitação, deve indicar "...o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação" (inciso II, do artigo 9º, da lei 11.101/05).

Contudo, essa regra é contrariada pelo novo dispositivo (art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF), pelo qual a higidez do crédito sequer teria que ser comprovada pelo credor fiscal no juízo em que tramita a falência da devedora, levando não somente ao conflito de regras como veremos, mas, ainda, conduzindo à verdadeira violação do tratamento isonômico, destoando injustificavelmente do que é determinado aos demais credores da falência.

Por coerência, conclui-se que a referida regra privilegia o credor fiscal, tratando-o diferentemente dos demais, que têm que comprovar a exigibilidade dos seus créditos, violando o princípio da igualdade dos credores, que, em última análise, deriva do princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, da CF/88).

O dispositivo trazido com a reforma fere também o princípio da ampla defesa conferido às partes do processo de falência, consoante previsto na Constituição Federal, conforme disposto no art. 5º, LV, da CF/88.

Com efeito, o art. 8º da lei 11.101/05 dispõe que: "...o Comitê, qualquer credor, o devedor ou seus sócios ou o Ministério Público podem apresentar ao juiz impugnação contra a relação de credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimidade, importância ou classificação de crédito relacionado".

Considere-se, desta maneira, que os demais credores que concorrem na falência podem ter legítimo interesse em se opor à pretensão do fisco quanto à questão da exigibilidade do crédito fiscal na falência.

Na execução fiscal, dado seu caráter individual, figuram como partes apenas o credor fazendário, a devedora e eventuais corresponsáveis; nesse processo, os demais credores da falência não estarão no cenário da execução concursal, podendo ser questionada a legitimidade da defesa de seus interesses, para que possam se insurgir contra a higidez do crédito fiscal nessa seara, fechando-lhes a via de impugnação, negando-lhes a ampla defesa4.

Algumas normas, instituídas em benefício ou para regular o direito de ação (como é o caso daquelas que, dentre outras, regulam a competência), como advertem Marinoni, Arenhart e Mitidiero, "...inegavelmente limitam o direito de defesa. Essas normas, embora possam afetar uma posição jurídica situada no âmbito de proteção do direito fundamental, não podem violar o seu núcleo fundamental"5 e é exatamente isso o que ocorre com o dispositivo aqui abordado, que obsta a defesa dos interesses dos credores concursais, por submeter a questão de higidez do crédito fazendário somente ao juízo da execução individual.

Some-se ainda o prejuízo à razoável duração do processo que causaria a aplicação da nova regra, levando toda a discussão sobre a higidez do crédito tributário para outro juízo, que mormente não caminha no mesmo compasso que o juízo falimentar e pode até estar localizado em outro foro, dificultando sobremaneira o rápido desenvolvimento da defesa dos interesses da massa, isso sem falar naqueles casos em que não houver sido ajuizada a respectiva execução fiscal, obrigando o administrador judicial à propositura de específica ação para ver declarada a prescrição ou a decadência do crédito fiscal.

Pondere-se que a razoável duração do processo6 é garantia prevista em sede constitucional (art. 5º, LXXVIII)7 e que deve ser sopesada juntamente com a eficiência, os custos do processo, as consequências negativas do congestionamento judicial e, principalmente, os prejuízos causados ao devedor e aos credores pela demora da solução à crise da empresa.

A aplicação do referido dispositivo do art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF, portanto, cria situação excepcional que não se aplica aos demais credores, instituindo privilégio que não se justifica diante da par conditio creditorum, burlando a análise sobre a exigibilidade do crédito no processo de falência, que é absolutamente essencial à natureza concursal desse procedimento, ferindo os princípios da isonomia, da ampla defesa e da razoável duração do processo, previstos na Constituição.

Tomemos em conta que a natureza, a função e o conteúdo jurídico, formal e material dos princípios, sejam eles expressos ou implícitos, demonstram os valores hermenêuticos superiores construídos pela sociedade, ínsitos na estrutura e na unidade do sistema jurídico, constituindo suas normas fundamentais8.

Além de inconstitucional, a mencionada regra contraria frontalmente outras regras da lei falimentar.

E, nesse sentido, é preciso dizer que, a partir do momento em que o devedor tem a quebra decretada, forma-se o juízo universal da falência, responsável pela deliberação acerca de todos os créditos e demais discussões atreladas à massa falida, incluindo-se aí possíveis digressões sobre o tema da exigibilidade, com a verificação da decadência ou prescrição dos créditos.

A limitação de recursos na falência é evidente e leva, na grande maioria das situações, à necessidade de se recorrer ao rateio dos limitados ativos realizados e, nesse contexto, o inciso I do art. 5º da LRF dispõe que são inexigíveis ao devedor, na recuperação judicial ou na falência, as obrigações a título gratuito.

Observar o disposto na regra contida no art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF, fatalmente implicará o reconhecimento do direito de compor o quadro geral de credores da falência com créditos que podem ter perdido a exigibilidade, seja pela prescrição ou pela decadência, o que corresponde ao cumprimento de obrigações a título gratuito.

Nessa hipótese, há evidente contradição do disposto no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF, com o disposto no art. 5º, inciso I, da mesma lei.

Lembremos que conflito entre regras fatalmente leva à necessidade de não aplicação de uma delas e, no presente caso, há que se eleger aquela que se amolda perfeitamente ao sistema concursal criado pela lei 11.101/05, que certamente não será a norma disposta no art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF.

A alternativa para evitar o pagamento desses créditos indevidos seria a suspenção das habilitações de créditos impugnados com fundamento na eventual prescrição ou decadência, para a discussão na seara da execução fiscal, se ajuizada, ou em ação própria, se não ajuizada, o que, como abordado, comprometeria a razoável duração do processo e a ampla defesa dos interesses pelos demais credores da massa.

Em suma, as questões atinentes à prescrição ou à decadência são matérias de ordem pública e podem ser alegadas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, não havendo qualquer tipo de restrição quanto ao reconhecimento desta matéria pelo juízo que seja competente para o processo de falência da devedora, parecendo-nos inaplicável o disposto no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF, seja pela evidente inconstitucionalidade, seja pela incongruência com outras disposições da lei falimentar.

No contexto de toda essa discussão, nos poucos casos que chegaram aos nossos tribunais após a última reforma da lei falimentar, ainda longe de se encontrar posição pacífica, tem se mostrado dividida a jurisprudência, ora reconhecendo a aplicabilidade da regra contida no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF9, ora reconhecendo que o juízo da quebra continua competente para pronunciar a prescrição ou decadência do crédito tributário submetido ao processo de falência10.

Aguardemos, então, a evolução da doutrina e a posição dos nossos tribunais sobre essa relevante questão, até mesmo porque se refere à competência absoluta, instituída em razão da matéria, constituindo questão fundamental e de suma importância para o concurso de credores.

_____

1 Cf. THEODORO JUNIOR, Humberto. Lei de Execução Fiscal. Comentários e Jurisprudência. 12ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2011, pp.94-95; ALVES, Renato de Oliveira. EXECUÇÃO FISCAL. Comentários à Lei 6.830/80. 1ª edição. Belo Horizonte: Del Rey. 2008, p.44.

2 O desenvolvimento das relações jurídicas, consoante aponta a doutrina, "não se põe imune aos efeitos inexoráveis do tempo. O pensamento jurídico concebe, assim, institutos que, vinculados a um certo intervalo temporal, criam, modificam ou extinguem direitos para os sujeitos do negócio jurídico, em nome de um elemento axiológico de maior relevo, qual seja, a segurança jurídica (cf. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 12ª edição. São Paulo: Saraiva. 2020, pp.995-996).

3 Nesse sentido: TJSP - Ap 1005334-92.2000.8.26.0100, Rel. Fábio Podestá, j: 22/8/16, 5ª câmara de Direito Privado, DJe: 22/8/16; TJ/SP Apelação 0073102-95.2013.8.26.0100   Rel. Des.  J.L. Mônaco da Silva. Comarca:  São Paulo Órgão julgador:  5ª câmara de Direito Privado. Data do julgamento:  16/3/16; TJ/SP. Apelação 1031494-52.2003.8.26.0100. Rel. Des. Vito Guglielmi Comarca:  São Paulo. Órgão julgador: 6ª câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 2/6/16.

Sob perspectiva abrangente, a ampla defesa implica necessidade de informação sobre a existência do processo, o direito ao prazo adequado para resposta, a liberdade de levar ao conhecimento do juiz todos os elementos úteis e principalmente a possibilidade de se opor à pretensão da parte contrária nos pontos em que contrariam as suas pretensões (Cf. COUCHEZ, Gérard. Procédure Civile. 15ª edição. Paris: Dalloz. 2008. p.246-249).

Cf. MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. O novo Processo Civil. 1ª edição. São Paulo: Editora revista dos tribunais. 2015, p.155.

6 Como bem adverte a doutrina: "De nada adianta o belo discurso que se faz em torno da garantia constitucional de um processo com duração razoável se, na prática, sequer há instrumentos efetivos para permitir a concretização desse direito" (cf. BONÍCIO, Marcelo José Magalhães. Princípios do Processo no novo Código de Processo Civil. 1ª edição. São Paulo: Saraiva. 2106, p.173).

7 Art. 5º, LXXVIII, da CF: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

8 Cf. HESPANHA, Benedito. "O Direito Processual e a Constituição. A relevância hermenêutica dos princípios constitucionais do processo", in Revista de Direito Constitucional e Internacional. N.48, julho-setembro de 2004, p.23.

9 Nesse sentido: AI. 2136344-22.2021.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Christiano Jorge, v.u., j. 1º/6/22; AI. 2228277-76.2021.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 1ª câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Alexandre Lazzarini, v.u., j. 10/12/21.

10 Nesse sentido: Apelação 1054632-86.2019.8.26.0100, Comarca de São Paulo, TJSP, 7ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Miguel Brandi, v.u., j. 19/8/21. Ementa: "HABILITAÇÃO DE CRÉDITO - Falência - Improcedência - Insurgência da União Federal - Descabimento - Apelação que é o recurso adequado para impugnar a decisão proferida em habilitação de crédito - Falência que é anterior à nova Lei de Falências e Recuperações - Inteligência do art. 192 da Lei nº 11.101/05 - Preliminar do Ministério Público afastada - Mérito - No caso, compete ao juízo universal da falência deliberar sobre a prescrição do crédito tributário - Prescrição intercorrente caracterizada - Inaplicabilidade do art. 7º-A, § 4º, inciso II, da lei 11.101/05 - Execução fiscal arquivada, ante a falta de andamento há mais de seis anos e qualquer ato constritivo há quase duas décadas - União que optou por habilitar o crédito, submetendo-se ao juízo universal da falência - Desistência manifestada durante o trâmite desta habilitação que também deve ser considerada - RECURSO IMPROVIDO".