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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
Com a reforma da lei 11.101/05 pela lei 14.112/20, houve uma profunda modernização do sistema de insolvência brasileiro, através da incorporação de inúmeros entendimentos jurisprudenciais (como exemplos, temos a prorrogação do stay period, competência do juízo recuperacional para deliberar sobre a essencialidade de bens da recuperanda), bem como da inclusão de diversas regras voltadas a conferir maior segurança jurídica aos institutos já existentes (cito como exemplos a previsão do financiamento do devedor em recuperação judicial, a inclusão de regras sobre insolvência transnacional e a melhora nos procedimentos de venda de ativos para os processos regidos pela LRF). Também fruto da ampla reforma introduzida pela lei 14.112/20, a inclusão da Seção II-A trouxe a previsão das conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, tema este pensado pelo PL 1.397/20, cujo objetivo era a inserção de regras negociais antecedentes aos procedimentos da lei 11.101/05 para auxiliar as empresas em crise em razão da pandemia do COVID-19, inclusive para evitar que os agentes econômicos se valessem de medidas judiciais, as quais possuem a tendência de encarecer e burocratizar as reestruturações. Aqui o texto legal sobre o tema: Art. 20-A. A conciliação e a mediação deverão ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição, inclusive no âmbito de recursos em segundo grau de jurisdição e nos Tribunais Superiores, e não implicarão a suspensão dos prazos previstos nesta lei, salvo se houver consenso entre as partes em sentido contrário ou determinação judicial. Art. 20-B. Serão admitidas conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, notadamente: I - nas fases pré-processual e processual de disputas entre os sócios e acionistas de sociedade em dificuldade ou em recuperação judicial, bem como nos litígios que envolverem credores não sujeitos à recuperação judicial, nos termos dos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, ou credores extraconcursais; II - em conflitos que envolverem concessionárias ou permissionárias de serviços públicos em recuperação judicial e órgãos reguladores ou entes públicos municipais, distritais, estaduais ou federais; III - na hipótese de haver créditos extraconcursais contra empresas em recuperação judicial durante período de vigência de estado de calamidade pública, a fim de permitir a continuidade da prestação de serviços essenciais; IV - na hipótese de negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial. § 1º Na hipótese prevista no inciso IV do caput deste artigo, será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar, nos termos do art. 305 e seguintes da lei 13.105, de 16/3/15 (CPC), a fim de que sejam suspensas as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 dias, para tentativa de composição com seus credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurado perante o Cejusc - Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania do tribunal competente ou da câmara especializada, observados, no que couber, os arts. 16 e 17 da lei 13.140, de 26/6/15. § 2º São vedadas a conciliação e a mediação sobre a natureza jurídica e a classificação de créditos, bem como sobre critérios de votação em assembleia-geral de credores. § 3º Se houver pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, observados os critérios desta Lei, o período de suspensão previsto no § 1º deste artigo será deduzido do período de suspensão previsto no art. 6º desta lei.   Atualmente, alguns doutrinadores e julgados têm vinculado a existência da negociação antecedente a um futuro processo de recuperação judicial. Mesmo sem discorrer exaustivamente sobre o tema, correlacionam a aplicação do art. 20-B e seu parágrafo 1º à propositura de uma recuperação judicial futura, conferindo à tutela cautelar de urgência uma natureza antecedente (justamente porque atrelada ao processo principal de recuperação judicial) e restringindo seus efeitos somente a eventuais créditos sujeitos à recuperação judicial. Respeitado tal posicionamento, creio que ele não se coaduna com a tendência moderna de sistemas de insolvência mais desenvolvidos nos quais sejam priorizadas efetivas negociações entre os devedores e seus credores. Não posso negar que o texto da lei é ruim e conduz a essa interpretação mais restritiva do instituto, pois o parágrafo primeiro faz menção expressa ao inciso IV, que em seu conteúdo faz expressa menção ao "caráter antecedente ao ajuizamento da recuperação judicial" (assim como o próprio caput do art. 20-B, embora depois os seus incisos tragam ampla e exemplificativa lista de situações nas quais as negociações podem ocorrer). Mas isso, por si só, não justifica tal interpretação. Sabemos como é difícil a democrática composição de interesses dentro do Congresso Nacional, do que se extrai, muitas vezes, textos legais não dotados do tecnicismo necessário para expressar corretamente o instituto jurídico que se pretendeu introduzir no ordenamento. Por isso mesmo a jurisprudência possui papel fundamental em conformar a interpretação dos textos legislativos, a fim de que seu alcance possa gozar da efetividade necessária ao bem-estar social. Um dos maiores exemplos que posso mencionar é a construção jurisprudencial sobre a prorrogabilidade do prazo do stay period antes da reforma introduzida pela lei 14.112/20. Ora, se os incisos do art. 20-B trazem situações distintas e exemplificativas e o art. 20-A incentiva a conciliação e a mediação, não haveria problemas em se interpretar o dispositivo da negociação antecedente de maneira mais ampla, a fim de que o ambiente de negociação fosse realmente estimulado. Também é importante considerar (e as doutrinas, textos e julgados não discorrem sobre o assunto) que já há medida própria de antecipação dos efeitos da recuperação judicial no art. 6º, parágrafo 12, da lei 11.101/05, não havendo sentido em se pensar que existam dois dispositivos distintos na mesma lei para a mesma finalidade. O próprio parágrafo 1º do art. 20-B não menciona que a cautelar nele prevista seja de caráter antecedente a um processo principal (como se fosse de natureza processual) ou condiciona a sua eficácia ao ajuizamento da recuperação judicial. Quando a lei menciona o termo "antecedente", assim o faz apenas para deixar claro que negociações podem e devem ser buscadas para a composição entre o devedor e o credor. Neste particular, conferir ao termo "antecedente" a natureza processual que encontra semelhante menção no CPC é desvirtuar a aplicação do art. 189 da lei 11.101/05, que possui regras de direito material e processual próprias, com dinâmica diversa de nossa legislação processual civil, que somente entra em campo quando houver lacuna e com respeito á dinâmica própria da lei das empresas em crise. Tanto assim o é que no parágrafo 3º do art.20-B, traz a possibilidade de haver um pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, mas sem qualquer obrigatoriedade, justamente por se utilizar da conjunção "se" e não "quando". Logo, não é correto se considerar que a medida cautelar do art. 20-B possui natureza antecedente à uma futura recuperação judicial ou extrajudicial. Mas o que me motiva a discordar frontalmente dos posicionamentos adotados é o caráter econômico dos processos de negociação e reestruturação, que jamais podem ficar subordinados a discussões de termos e conceitos jurídicos, sob pena de real inefetividade dos instrumentos existentes para o soerguimento de agentes econômicos. A suspensão de medidas judiciais adotadas pelos credores contra os devedores é regra basilar de qualquer negociação que possa existir entre eles. Os standstill agreements revelam-se como verdadeiros pressupostos para que uma saída negocial possa ser engendrada, pois todos nós sabemos que basta a adoção de uma medida individual de satisfação de crédito contra o patrimônio do devedor para que todos os demais participem dessa "corrida", tornando quase impossível uma composição ordenada que permita a discussão séria e eficaz sobre uma reestruturação do agente econômico. A tendência moderna do direito de insolvência em nível mundial é a de estímulo às negociações entre credores e devedores, se possível fora das cortes, conferindo maior agilidade, discrição, menor burocracia e redução nos custos na construção da solução negociada que atenda a manutenção do agente econômico, a preservação do valor agregado dos seus ativos que continuam a servir a empresa em funcionamento (valor de going concern) e a recuperação dos créditos investidos. No "statement of principles for a global approach to multi-creditor workouts ii" da INSOL, há previsão de princípios voltados à recomendação de posturas nas negociações entre devedor e seus credores, dentre os quais, cito os seguintes: FIRST PRINCIPLE: Where a debtor is found to be in financial difficulties, all relevant creditors should be prepared to co-operate with each other to give sufficient (though limited) time (a "Standstill Period") to the debtor for information about the debtor to be obtained and evaluated and for proposals for resolving the debtor's financial difficulties to be formulated and assessed, unless such a course is inappropriate in a particular case. SECOND PRINCIPLE: During the Standstill Period, all relevant creditors should agree to refrain from taking any steps to enforce their claims against or (otherwise than by disposal of their debt to a third party) to reduce their exposure to the debtor but are entitled to expect that during the Standstill Period their position relative to other creditors and each other will not be prejudiced. Conflicts of interest in the creditor group should be identified early and dealt with appropriately. THIRD PRINCIPLE: During the Standstill Period, the debtor should not take any action which might adversely affect the prospective return to relevant creditors (either collectively or individually) as compared with the position at the Standstill Commencement Date. Como pode ser percebido, deve haver apropriado estímulo para que negociações entre o devedor e seus credores possam ser realizadas, de modo a se evitar procedimentos da lei 11.101/05 ou, ao menos, que eles venham mais bem estruturados para diminuir o tempo do processo e dos custos a ele inerentes. Assim, justifica-se a independência da negociação antecedente, desvinculando-a de uma recuperação judicial ou extrajudicial futura, as quais somente devem ocorrer se forem os instrumentos mais apropriados para a continuidade da reestruturação do agente econômico. Mas a sua independência não significa que o juízo deva se abster de verificar a presença dos requisitos da concessão da tutela de urgência. Quando o devedor não consegue a negociação por seus próprios meios e, a partir de então, recorre ao Poder Judiciário e à tutela de urgência do art. 20-B, devemos compreender que é de sua responsabilidade a escolha efetuada, bem como é seu o ônus material, processual e negocial da reestruturação desejada. Não podemos esquecer que a utilização dos institutos da lei 11.101/05 pode ocasionar a impressão de que a empresa está em dificuldades, sem que se tenha dimensão da extensão de sua crise, de modo que a informação sobre o manejo da negociação antecedente pode gerar uma especulação de uma situação de insolvência do devedor.1 É evidente que todas as implicações causadas pela informação (ou especulação) de que a sociedade empresária está em situação de insolvência geram impactos de ordem econômica, financeira e mesmo laboral. O devedor pode passar a ter dificuldades em receber de volta seus empréstimos por uma série de empecilhos criados por seus devedores, bem como pode afastar futuros compradores que poderiam subsidiar sua restruturação, isso se mencionar que os empregados poderiam ficar menos empenhados em desenvolver o seu trabalho. Logo, esse contexto deve ser bem avaliado pelo empresário, quando ele formula o pedido de concessão da tutela de urgência de suspensão de medidas contra seu patrimônio, para fins de negociação com seus credores. Além disso, até para se evitar o mau uso do instituto, seria recomendável que houvesse demonstração de eventual resistência de um ou mais credores na busca de uma negociação com o devedor e que essa resistência tivesse ao menos a aparência de ser injustificada, já que em se tratando de tutela cautelar, análise judicial deve ser perfunctória pela urgência da situação e, porque o período de suspensão é exíguo, não traduzindo qualquer irreversibilidade para o credor que estará paralisado no prazo de 60 dias. Em todo caso, não é recomendável exigir-se a documentação necessária para o ajuizamento do pedido da recuperação judicial, seja porque ausente previsão legal, seja porque a negociação antecedente deve ser desvinculada de um procedimento futuro, seja para que se facilite a instauração de um ambiente de negociação no caso concreto. Como bem salientam Daniel Carnio Costa e Alexandre Nasser de Melo2: O deferimento dessa tutela de urgência cautelar pressupõe a demonstração, pela devedora, de elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art. 300 do CPC). O perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo é presumido in re ipsa, na medida em que a suspensão das execuções daqueles que estão envolvidos na mediação ou conciliação é absolutamente necessária para a criação de um ambiente saudável e eficiente de negociação. A probabilidade do direito consiste na apresentação dos documentos relacionados no art. 48, que comprovam que a devedora tem direito de pedir recuperação judicial. Não é necessária a apresentação dos documentos do art. 51, uma vez que não se trata de distribuição de um pedido de recuperação judicial, mas apenas dessa medida cautelar. Os documentos sensíveis da empresa, relacionados ao seu funcionamento, poderão ser mostrados aos credores envolvidos na negociação, caso necessário, mediante proteção do sigilo próprio das mediações. A exigência de documentação mínima para postular a tutela de urgência relaciona-se à seriedade da empresa que a postula, no seu regular funcionamento no mercado e não atrelá-la, inexoravelmente, a uma recuperação judicial futura. É muito comum que os institutos da lei 11.101/05 (negociação antecedente, recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência) se valham uns dos outros para regulação de determinadas situações, a fim de que o sistema de insolvência possa ter coerência, na medida da ontologia de cada um deles. Todavia, jamais tais institutos podem ser confundidos e imiscuídas as dinâmicas próprias de cada qual, sob pena de subversão do sistemas em detrimento de sua eficiência. No caso da negociação antecedente, prosseguem os autores acima citados3: Por outro lado, a existência de um procedimento simplificado, desburocratizado e flexível, possibilitará a reestruturação da empresa em crise em momento precoce e sem os riscos, os custos e os danos de imagem que afugentam muitas das empresas do uso da recuperação judicial ou mesmo da extrajudicial. (...) O objetivo da medida cautelar de suspensão das execuções é proporcionar um espaço de respiro e um ambiente mais adequado de negociação da devedora com seus credores. Na medida em que credores sujeitos à negociação não podem prosseguir nas suas execuções individuais, cria-se o estímulo necessário para que se sentem à mesa para negociar com a devedora. Nesse sentido, é importante esclarecer que a suspensão das execuções só faz sentido em relação àqueles credores envolvidos na mediação ou conciliação, não atingindo os demais credores que não tenham sido convidados a participar do procedimento de negociação. Indo mais adiante, pelo fato da negociação antecedente não estar atrelada a uma necessária recuperação judicial futura e ser um instituto dela independente, pela necessidade de se estabelecer um ambiente adequado para que negociações possam ocorrer e pela própria previsão legal de possibilidade de negociação de créditos extraconcursais, qualquer credor pode ser incluído no procedimento, pois, como já dito anteriormente, o exíguo prazo de 60 dias não impõe reflexos irreversíveis ao credor ou ao manejo futuro de sua garantia. O sistema de insolvência brasileiro deve sempre se atentar para o equilíbrio entre o direito da empresa em demonstrar que pode buscar sua recuperação e o direito dos credores de reaverem da maneira mais efetiva possível o crédito investido na empresa. A natureza preponderantemente econômica da lei 11.101/05 reclama que os aplicadores do direito possuam a sensibilidade necessária para a compreensão desse aspecto, mediante uma mudança cultural que envolva menor intervenção estatal e afaste a busca exclusiva de soluções através de discussões jurídicas que passem ao largo do racional econômico envolvido. A atuação interpretação restritiva do instituto da negociação antecedente deve ceder em prol da atuação jurisdicional e acadêmica que prestigie a instauração do ambiente de negociação e a construção multifacetada de uma solução de composição entre o devedor e seus credores. _________ 1 Sobre o tema do timing acerca da utilização de institutos da insolvência: JACKSON, Thomas H. The Logic and Limits of Bankruptcy Law. Washington: BeardBooks, 2001, p. 203/208. 2 COSTA, Daniel Carnio e MELO, Alexandre Nasser. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 3ª edição revista e atualizada. Curitiba. Juruá. 2022. Página 148. 3 Op. Cit., páginas 149 e 150.
No último dia 4 de novembro de 2024, o IBRA - Instituto Brasileiro de Rastreamento de Ativos realizou seu VI seminário internacional de rastreamento de ativos, no conselho superior do Ministério Público, cujo tema foi "métricas na solução amigável em insolvência com indicativo de fraude", em homenagem ao querido e saudoso professor Carlos Fernando Mathias, figura de alegria singular e de vasto conhecimento jurídico, saudado com maestria pelo presidente do conselho do IBRA, Krykor Kaysserlian. Com o amadurecimento do direito das empresas em dificuldade no Brasil, o instituto da responsabilização nas insolvências também deve evoluir, buscando a melhor solução para a recomposição da massa falida, na proporção da fraude perpetrada. A escolha do tema pelo IBRA é muito pertinente, tendo em vista a crescente celebração de acordos em ações de responsabilidade, gerando resultados e eficiência para todas as partes envolvidas, notadamente, a massa falida e, como consequência, os destinatários dos recursos financeiros - os credores. O objetivo desta coluna do Migalhas Insolvência em Foco é retratar algumas das relevantes passagens ocorridas no seminário, além de compartilhar reflexões suscitadas durante minha intervenção. A importância de métricas em acordos no âmbito da insolvência O conceito de métrica pode ser entendido como um parâmetro para analisar consequências, ações ou estratégias. O Ministro Raul Araújo Filho bem ressaltou a dificuldade em se encontrar as métricas adequadas para os acordos no âmbito da insolvência. A nosso ver, a pergunta delineadora deve ser: diante de uma ação de responsabilidade na insolvência, com o bloqueio de diversos bens, em demanda judicial longa, custosa e imprevisível, como e quando os bens serão realizados em benefício dos credores?, na linha das bem postas palavras de abertura do presidente do IBRA, Rodrigo Kaysserlian. Para buscar uma resposta a tal questionamento, com o objetivo de se fixar métricas apropriadas para tanto, três premissas nos parecem necessárias, quais sejam: a) análise fática do caso, b) o apuro técnico na aplicação do direito, e c) os critérios que comporão a equação do acordo. Análise fática e investigação A ação de responsabilidade na insolvência tem por fim a demonstração de ato fraudulento cometido, em regra, pelo falido ou por terceiros, buscando indenizar a massa falida pelo prejuízo causado, com o (re)ingresso de bens desviados ou do montante correspondente. Antes de se ingressar com qualquer medida judicial, a investigação prévia de tais atos, baseados em fatos pretéritos, deve ser precisa e aprofundada. O principal erro em uma investigação é a conclusão açodada, pautada na "vontade de acusar", acarretando fragilidade e anulação dos atos processuais. Em quase duas décadas em que exerci a função de membro do Ministério Público no Rio de Janeiro, obtive a experiência de que uma boa investigação somente gera frutos quando imparcial e desinteressada; caso não tenha encontrado o que procura, procure mais e melhor, como muito bem pontuado por Keith Oliver em sua fala, com o seguinte adágio "you can run, but you cannot hide" (você pode correr, mas não pode se esconder), citando as ferramentas de investigação das Sections 235, 236 do Insolvency Act de 1986 (UK). Somente com um trabalho de inteligência, paciência e preparo a fraude é corretamente identificada, nas palavras proferidas por Martin Kenney. O promotor de justiça Nilton Belli explanou com precisão a atuação moderna do "Ministério Público resolutivo", retratando tais premissas, sobretudo em prol da busca do melhor resultado para a ordem econômica, cujo interesse é o objeto maior da presença do Parquet. Em alguns casos, verifica-se uma descrição confusa e, às vezes, desconectada dos fatos com o aparato probatório do processo, o que enfraquece a métrica fática quanto à possibilidade de responsabilização do fraudador e, via de consequência, a possibilidade de um acordo. Aplicação técnica do direito A segunda premissa para aferição da métrica como solução amigável na insolvência deve ser a correta aplicação da ciência jurídica, com a aferição de como a técnica é aplicada. Não se pode confundir o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 50 do CC (aplicação determinada pelo art. 82-A da lei 11.101/05), com a ação de responsabilidade dos sócios controladores e administradores, prevista no art. 82, tampouco com a mal fadada 'ação de extensão dos efeitos da falência", cuja incidência prevista em seu artigo 81, praticamente inexiste, em razão da ausência de sociedades cuja responsabilidade dos sócios é ilimitada, como muito bem explicitado no recurso especial 1.293.636-GO, da lavra do eminente e saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino. A exposição do ministro Humberto Martins foi no sentido de que o Brasil possui amplo aparato normativo para coibição da fraude na insolvência, ressaltando a necessidade da correta aplicação das ferramentas jurídicas disponíveis no direito material incidente em cada hipótese. Infelizmente, não raro, denota-se que esses três institutos são confundidos, dificultando a concepção de uma métrica para tratativas na busca de uma solução amigável. Em suma, apenas com a correta definição fática do conjunto probatório dos autos, aliada à tese jurídica que se pretende impingir ao fraudador, no caso concreto em exame para fins de acordo, é que se poderá, com segurança, ultrapassarmos para a terceira premissa - os critérios métricos. Critérios métricos Frederico Rezende, em interessante e precisa fala que antecedeu a minha, elencou três critérios métricos para a realização de um acordo, quais sejam a) a duração e custo do processo, b) a capacidade de pagamento dos fraudadores e c) a probabilidade de ganho de causa, classificando-a como o risco provável, possível e remoto. Acredito que um quarto critério métrico deve ser adicionado, de caráter subjetivo, pautado na real vontade de busca de uma solução pelo apontado como fraudador e pela massa falida, que em muito decorre de uma evolução cultural do direito das empresas em dificuldade no Brasil, como bem ressaltado esse último ponto por Ivo Waisberg. Para que as tratativas de um acordo se iniciem, e fluam bem, é necessário que as partes estejam amadurecidas e prontas para tanto, dispostas a compreender a situação e quais serão os avanços e concessões de lado a lado; caso contrário, é perda de tempo, eis que não haverá acordo. Duração e custo do processo. O processo judicial, não apenas no Brasil, mas em boa parte das jurisdições mundiais, é demorado e custoso, devendo ser realizada uma análise racional de até quando a busca de ativos durará, com base na muito bem ponderada afirmação da desembargadora Anglizey Solivan. O tempo é um fator relevante de eficácia na busca e no rastreamento dos ativos, em sua realização e seu destino aos credores. Alguns estudos jurimétricos e a prática já experimentada em diversos casos revelam que mais de uma década (em alguns casos duas décadas) é necessária para que se tenha um desfecho exitoso. Tal lapso temporal, por si só, retrata um prejuízo natural aos credores da massa, os quais deverão aguardar muito tempo para que um dia que possam receber seus créditos. Além disso, um dos objetivos do direito das empresas em dificuldade é a reinserção dos ativos estressados na economia - o que, a todo evidente, também não ocorre, diante de lapso tão extenso. Sob o enfoque da pessoa que recai a imputação de fraude, esta também amarga relevante prejuízo em razão do tempo que permanecerá com seus bens bloqueados, muitas das vezes se deteriorando. O fator custo deve ser enfrentado não apenas sob o aspecto financeiro, mas, acima de tudo, o custo de oportunidade e de transação. O bloqueio de ativos do suposto fraudador é apenas o limiar de um processo longo e complexo, não só para esse como também para a massa falida, enfrentando uma série de questões jurídicas inerentes ao direito material elencado, bem como questões processuais, invocadas como, algumas vezes, violadoras do devido processo legal. Mais uma vez o critério subjetivo, pautando na evolução cultural, tem espaço relevante, para a tomada de decisão na busca de um acordo, pois diversos casos brasileiros concretizaram um cenário comparativo em que as partes se basearão para definir as métricas do possível acordo - países mais avançados no tema, com uma experiência importante em diversos casos, têm maior facilidade nesse momento ao buscar soluções amigáveis desde o início do processo, beneficiando todas as partes, e, sobretudo, alcançando o objetivo principal do direito das empresas em dificuldade: encerrar a atividade econômica o quanto antes, liquidando-a, com a realocação dos ativos na economia. Capacidade de pagamento. Ultrapassadas as métricas referentes ao tempo e ao custo do processo, impõe-se uma próxima análise, referente à capacidade de pagamento do suposto fraudador. Trata-se de requisito delicado, pois, de um lado, a massa falida, em tese, já empreendeu todos os esforços para o bloqueio dos bens deste último, não havendo nada mais a se buscar em seu patrimônio; e, de outro, o investigado deverá buscar recursos para o adimplemento do acordo que se pretende entabular. Mais um aspecto cultural a ser superado. Quando das tratativas, é necessário que as partes deixem de lado o aspecto persecutório processual para ingresso em outra seara, a negocial. O valor negociado para fins de acordo, na maioria das vezes, partirá de um teto como sendo aquele referente aos bens bloqueados no processo que, em conjunto com as métricas já delineadas (contexto probatório, tese jurídica aplicada, tempo e custo), servirão de equação para a busca de um número final, justificado em bases mais sólidas do que apenas a retórica de que "o acordo é melhor do que uma ação judicial", o que nem sempre é verdade, como bem indicado pelo procurador de justiça Eronides dos Santos. A liquidação dos bens arrecadados é muitas vezes um entrave ao acordo, em razão da dificuldade na sua consecução, isto é os bens foram arrecadados mas ninguém consegue vende-los, pelas razões já conhecidas dos profissionais da área. O mercado financeiro se refere como o problema de se "prover liquidez a ativos complexos". Entretanto, existem inúmeras alternativas para isso, como a substituição dos bens e a fixação de leilão com a cláusula de complementação em caso de insucesso, bem como o auxílio de terceiros financiadores interessados, como fundos especializados em ativos estressados, na forma exposta por Andre Montuori ao tratar do "capital inteligente" na solução eficaz de litígios, e tangenciado por Gustavo Sanseverino em relação à liquidação dos ativos. Mérito da demanda. O critério seguinte é referente ao mérito da causa, classificando o risco como provável, possível ou remoto. Nesse sentido, uma análise técnica aprofundada por ambas as partes, seguida de diálogo transparente e franco, pode alcançar a classificação desejada. Quando o processo já se encontra em estágio avançado, a tarefa é mais fácil, diante de todos os dados do processo e do percurso engendrado. O desafio maior será nas hipóteses em que a negociação for pretendida no início da tomada de medidas de busca de ativos do suposto fraudador. Nessa hipótese, o aspecto cultural terá grande importância, fundado na experiência temporal de outros casos e com o que se tem em mãos como conjunto probatório fático, bem como a técnica jurídica aplicada. Assim, as partes poderão chegar a um denominador comum e precificar o acordo, como ocorre em jurisdições internacionais mais avançadas no tema; o que, repita-se, foi construído ao longo de experiências (tempo), cenário que começa a se concretizar no Brasil, mesmo que ainda de forma inicial. O juiz João Oliveira Rodrigues Filho ressaltou a necessidade de se buscar um racional econômico. Ruy Pereira Camilo Júnior discorreu sobre a técnica de negociação fundada no Best Alternative to a Negociated Agreement - BATNA, denotando como diversos aspectos devem ser levados em consideração na construção de um acordo. Nesse aspecto, o Ministro Paulo Moura Ribeiro bem acentuou que o ambiente brasileiro está cada vez mais propício à busca de soluções amigáveis aos litígios, em prol da eficiência do processo. No que foi acompanhado pelo Ministro Marco Aurélio Buzzi, ao afirmar que o mais importante não é cumprimento frio da lei, mas a realização da justiça. A juíza Clarissa Tauk expôs, de forma didática, que a lei de insolvência brasileira possui disposição própria a incentivar os acordos em diversos momentos do processo. Conclusão. No Brasil as falências não chegavam ao fim, tampouco eram eficientes, aí incluídas as medidas de busca de ativos, por mais que obtivessem sucesso num primeiro momento, bloqueando alguns bens. O ministro Rogério Schietti destacou a importância da justiça procedimental nesse aspecto. A evolução cultural demonstra que os atores do processo de insolvência precisam ter coragem para encerrar um processo de falência, o que se começa a se verificar na prática. As soluções amigáveis em insolvência com indicativo de fraude são cada vez mais concretas, mas, para que isso ocorra, é necessário que nas negociações haja transparência, confiança e vontade das partes, com relevo significativo aos advogados envolvidos, como bem ressaltou o ministro Sebastião Reis Júnior. A pergunta inicial "diante de uma ação de responsabilidade na insolvência, com o bloqueio de diversos bens, em demanda judicial longa, custosa e imprevisível, como e quando os bens serão realizados em benefício dos credores?", pode ser respondida com métricas a serem construídas, em muito contribuindo o seminário do IBRA, com a sensação de que ainda temos um longo caminho, porém com bons passos já empreendidos.
O reerguimento da empresa em crise, tanto aqui como em outros países, constitui enorme desafio, exigindo muitos sacrifícios diante dos significativos obstáculos a serem ultrapassados. Diante da tão variada gama de causas que podem levar a empresa à situação de crise, relacionadas a problemas de ordem interna ou  externa à sociedade, há que se ter um expressivo leque de alternativas para a sua reorganização e, nesse contexto, o rol exemplificativo do art. 50 da lei 11.101/05 aponta alternativas que podem ser utilizadas, sem prejuízo de outras medidas que não encontram limites se não aqueles previstos no ordenamento, para que sejam preservados os direitos de terceiros. Não raramente, a alienação de ativos para pagamento de dívidas ou mesmo para o desenvolvimento de atividades mais lucrativas, além de outras medidas como a oneração de ativos para a obtenção de financiamentos, a transferência de controle e outras formas de reorganização societária, acabam sendo medidas imprescindíveis na prática1. Nos EUA, a utilização do processo de reorganização é comum para a venda ativos ao abrigo da lei e a repartição do produto entre os credores de forma rápida e segura2. Pelo sistema brasileiro, além do trespasse do estabelecimento, pode ocorrer a venda de bens isolados ou de unidade produtiva isolada (UPI), que pode representar uma parte do complexo de bens da sociedade ou mesmo a venda integral da devedora, que será considerada nessa hipótese como única unidade. A venda integral da empresa foi incluída pela reforma de 2020 e se assemelha, por um lado, à liquidação da sociedade, porque representa a venda integral dos ativos do devedor para satisfazer os seus credores; mas, difere de um plano de liquidação, já que possibilita a continuidade da empresa, que é alienada em pleno funcionamento, evitando a depreciação do complexo de ativos, que normalmente ocorre com a paralização das atividades na falência. Nessa opção, não basta que a medida seja aprovada pelos credores, necessário o controle judicial, porque, lembremos, o processo de recuperação judicial somente abrange parte dos credores da sociedade e os recursos provenientes da venda integral deverá satisfazer a todos de forma equilibrada, inclusive, os chamados credores extraconcursais. E a condicionante prevista no art. 50, XVIII, da lei 11.101/05 é de que sejam respeitados os interesses dos credores não submetidos e também dos não aderentes, garantindo-lhes condições no mínimo equivalentes às que teriam em caso de falência da devedora. Nesse sentido, fala a doutrina em "teste do melhor interesse dos credores", para que haja comparação entre o cenário da alienação que ocorreria na falência com aquele que está sendo proposto no plano de recuperação judicial.3 Ademais, deve haver a necessária autorização do juízo e a cautela de avaliação do ativo sobre o qual incidirá o negócio, como deverá ocorrer na mesma forma prevista para a liquidação ordinária dos ativos no caso de falência, conforme as modalidades previstas no art. 142 da lei 11.101/05, que se refere ao leilão eletrônico, processo competitivo organizado ou outra modalidade desde que aprovada nos termos da lei. Ainda que se tenha conhecimento da existência de apenas um interessado, imprescindível abrir-se oportunidade a outros que possam se interessar, para que a concorrência estimule a melhor oferta possível. No processo de recuperação, serão eficazes ainda a venda de parte do estabelecimento do devedor, a chamada unidade produtiva isolada (UPI)4 e filiais, se prevista a alienação pelo plano e aprovada pela maioria dos (art.60, parágrafo único, da LRE), como também os atos de disposição de bens isolados, desde que autorizados pelo juiz (art.66 da LRE). E a primeira indagação consiste no que considerar como ativo permanente da empresa. Tal ativo pode incluir bens materiais e imateriais5, como marcas, patentes, direitos creditórios e até mesmo o banco de dados da empresa, desde que respeitadas as regras e garantias exigidas pela LGPD6, em contraposição aos bens que se encaixam como ativo circulante, posto que, para estes, não se exige o controle judicial e nem a anuência da vontade dos credores, porque que se referem a bens rotineiramente comercializados pelo devedor7. Para algumas empresas, a sua principal mercadoria são bens de grande valor, como imóveis, veículos, máquinas e outros, desde que seu objeto compreenda a negociação de tais bens. Dessa forma, para tais empresas não seriam exigidas as mesmas cautelas que se exigiriam de outras para a alienação desses bens, pois, constituem seu ativo circulante. Para a venda de bens individuais prevista ou não no plano, deve proceder-se à discriminação dos bens que serão vendidos, as condições dos negócios e a destinação dos produtos a serem auferidos8, que podem ser empregados para o pagamento dos credores concursais e extraconcursais9 e o fomento da atividade da recuperanda10. Após a reforma de 2020, para a venda de UPIs, a lei dispõe que o "objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta lei" (parágrafo único do art. 60 da LRE), aplicando-se, portanto, a quaisquer espécies de obrigações. Da mesma forma, em relação à venda de bens isolados, garantindo a segurança dos adquirentes, o art. 66-A dispõe que, desde que autorizados pelo juiz ou previstos no plano e aprovados pela maioria dos credores, os negócios relativos à alienação não poderão ser anulados ou tornados ineficazes após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor. Aliás, em se tratando da venda de bens isolados, a lei menciona que credores que correspondam a mais de 15% do valor total de créditos sujeitos à recuperação judicial, comprovada a prestação da caução equivalente ao valor total da alienação, poderão manifestar ao administrador judicial, fundamentadamente, o interesse na realização da assembleia-geral, para deliberar sobre a realização da venda, o que demonstra a restrição ao poder do devedor quanto à disposição de ativos e a gestão da empresa. A prévia e necessária autorização judicial do juízo da recuperação judicial ou aprovação pelos credores, não se trata de simples limitação à atividade negocial da devedora, representa a preservação dos interesses dos credores da empresa. O descumprimento da vedação leva à ineficácia do ato, como tem reiteradamente decidido nossos tribunais, com a preocupação de que os atos de disposição esvaziarão o patrimônio do devedor11. Nesse sentido, a iniciativa de alienação dos ativos não circulantes durante o processo depende da análise, primeiramente, da existência e da equivalência da contraprestação ofertada pelo negócio, para que não leve a eventual esvaziamento patrimonial, bem como para averiguar, inclusive, se determinados bens já não se acham constritos em processos individuais movidos por credores extraconcursais, dado o efeito tão somente ex nunc do deferimento da recuperação judicial12, ou se estão gravados por direitos reais de garantia, cuja supressão ou substituição depende do consentimento do credor13. Com efeito, a ineficácia dos atos de disposição pode em tese alcançar os sucessivos negócios até aquele que foi celebrado com a sociedade devedora, como também os negócios e atos jurídicos subsequentes, que podem ter beneficiado os sócios, terceiros ou determinado credor em detrimento dos demais. E a existência de sucessivos negócios realizados sobre bens do ativo não circulante da empresa em crise não livra seus adquirentes das consequências de eventual reconhecimento dos possíveis atos de fraude a credores, pondo-os sob o risco desde medidas de urgência14, que nem mesmo prescindem da prévia desconsideração da personalidade jurídica15, até que se reconheça judicialmente a ineficácia dos negócios realizados. Nesse contexto, o intuito de refazimento do patrimônio do devedor e de diminuição dos prejuízos de seus credores, pode levar à responsabilização patrimonial de outras pessoas físicas e jurídicas e até mesmo a ineficácia dos negócios realizados. Veja-se que, após a reforma, foi acrescentada outra causa para a decretação da falência da devedora, quando constado do esvaziamento patrimonial que implique liquidação substancial da empresa, o que pode ser alegado por qualquer credor, inclusive, aqueles não sujeitos à recuperação judicial. Além disso, é preciso verificar também se com a pretendida alienação não se reduzirá significativamente a atividade do devedor ou levará à liquidação antecipada da empresa, em contrariedade aos objetivos dispostos no art. 47 da LRF. Relevante, ainda, a coerência do negócio proposto com o propósito de reorganização e recuperação do devedor em crise e com a possibilidade remanescente de gerar faturamento para o cumprimento das obrigações assumidas no plano. A alienação de bens é medida que pode representar extrema relevância para a reorganização da empresa em crise, para fins de recapitalização, investimento, favorecendo a manutenção da atividade produtiva, e o cumprimento do plano proposto, principais objetivos da recuperação judicial; mas, deverá ser observado o que estabelece expressamente a legislação que rege a matéria, posto que dependerá de prévia autorização judicial ou aprovação dos credores e obedecerá às regras previstas nos arts. 60, 60-A, 66, 66-A e 142, da LRF, pois, afinal, o patrimônio da empresa representa a principal garantia de pagamento dos credores. ________ 1 Cf. MUNHOZ, Eduardo Secchi. "Financiamento e investimento na recuperação judicial", in CEREZETTI, Sheila Christina Neder e MAFFIOLETTI, Emanuelle Urbano (Coordenadoras). Dez anos da lei 11.101/05. 1ª edição. São Paulo: Almedina. 2015, pp.271-271. 2 Cf. BAIRD, Douglas G., RASMUNSSEN, Robert K. "The end of Bankruptcy", in Stanford LAW Review 55 (2002-2003), p. 37. 3 Cf. TOMAZETTE, Marlon; GOMES, Tadeu Alves Sena. A Alienação de ativos na Recuperação Judicial a luz da Teoria Econômica Institucional, in Coluna Migalhas, 5.955, publicada em 25.01.23. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/380502/a-alienacao-de-ativos-na-recuperacao-judicial. Último acesso em 10.10.24). 4 Conforme a doutrina: "A crítica que já se fazia ao uso dessa designação (Unidade Produtiva Isolada - UPI) ganhou força com a nova disposição da lei, que considera UPI ativos isolados que não têm capacidade produtiva autônoma. Até participações societárias podem ser alienadas (UPI) leilão" (Cf. GARBI, Carlos Alberto. A venda de ativos na falência e na recuperação judicial: principais questões, in Coluna Migalhas, disponível aqui. Último acesso 10.10.24. 5 Dentre esses bens que compõem o ativo permanente estariam os investimentos, participações societárias, imóveis, equipamentos industriais e outros bens do imobilizado, intangíveis, como marcas, patentes, know how, e ativos realizáveis a longo prazo (Cf. SCALZILLI, João Pedro, SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência, cit., 1ª ed., 2016, p.297 6 Ver a respeito: Brito, Cristiano Gomes de. O banco de dados como ativo alienável na falência e na recuperação judicial. Revista de Direito Privado. vol. 120. ano 25. p. 139-156. São Paulo: Ed. RT, abr./jun. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10.10.24. 7 Consoante a doutrina: "Os ativos circulantes são aqueles destinados à comercialização pelo empresário devedor no desenvolvimento de sua atividade empresarial. A alienação destes prescinde de qualquer autorização, sob pena de se comprometer a própria atividade empresarial que se procura preservar. Por outro lado, como o patrimônio geral do devedor é a garantia de satisfação das obrigações dos credores, a alienação ou oneração de ativos não circulantes pelo devedor poderia aumentar o risco de inadimplemento de suas obrigações por ocasião de eventual liquidação dos bens num procedimento falimentar". Cf. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência / Marcelo Barbosa Sacramone. - 2. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Comentário ao art. 66 8 Nesse sentido: AI 2023279-78.2023.8.26.0000; Rel. Des. Cesar Ciampolini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. em 13/07/23. 9 Nesse sentido: TJSP - AgIn 2138405-16.2022.8.26.0000 - 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial - j. 23/1/2023 - julgado por J. B. Franco de Godoi - DJe 23/1/23. 10 Nesse sentido: STJ - REsp 1788216 - 3ª turma - j. 22/3/22 - julgado por Paulo de Tarso Vieira Sanseverino - DJe 29/3/22 - Área do Direito: Comercial/Empresarial. 11 Nesse sentido: TJ-SP -  Agravo de Instrumento 2216891-15.2022.8.26.0000; Relator: Maurício Pessoa; Data do Julgamento: 12/12/22; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Registro: 12/12/22; TJ-SP - AI: 21849496220228260000 SP 2184949-62.2022.8.26.0000, relator: Maurício Pessoa, data de julgamento: 02/12/22, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 02/12/22; TJ-SP - Agravo de Instrumento: 20749519120248260000 São Paulo, relator: J.B. Paula Lima, data de julgamento: 30/06/24, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 30/06/24). 12 Nesse sentido: Agravo de Instrumento nº 2196106-61.2024.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. NATAN ZELINSCHI DE ARRUDA 3 de setembro de 2024. 13 Nesse sentido: STJ - REsp 1.794.209 - 2.ª Seção - j. 12/5/2021 - julgado por Ricardo Villas Bôas Cueva - DJe 29/6/21 - Área do Direito: Comercial/Empresarial. 14 Conforme a doutrina: "Apesar de desnecessária a menção na LREF, pois já expressamente autorizada pelo Código de Processo Civil, o juiz poderá, para garantir o resultado útil da demanda, determinar as medidas cautelares, de ofício ou a requerimento das partes interessadas. As providencias cautelares exigem a prova da verossimilhança do direito alegado e o periculum in mora de que os bens particulares dos réus possam ser comprometidos até que ocorra o provimento final Para resguardar o resultado útil da ação condenatória, poderá o juízo determinar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado" (cf. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência / Marcelo Barbosa Sacramone. - 2. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Comentário ao art. 82). 15 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2213018-07.2022.8.26.0000; Relator (a): Jorge Tosta; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 04/04/2023; Data de Registro: 05/04/23.
Sabemos que a recuperação judicial ("RJ") tem como objetivo reorganizar a estrutura de capital das empresas em crise financeira que são viáveis. O alcance desse objetivo seria facilitado se todas as dívidas existentes até a data do pedido de recuperação fossem submetidas ao procedimento concursal, mas o nosso sistema de insolvência está calcado por um regime de exceções legais.  A lei 11.101/05 ("LFRE") exclui da reestruturação promovida pela recuperação judicial (e extrajudicial também) os créditos com garantia fiduciária, os decorrentes de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, os tributários, dentre tantos outros. Isso nos parece criar, já na largada, um certo embaraço à efetividade da lei para recuperar a empresa em crise financeira. Mas a situação é posta, ao menos enquanto temos a LFRE atual em pleno vigor.  A nosso ver, a cautela, então, deve estar focada em impedir a criação de novas exceções não previstas em lei capazes de dificultar ainda mais o processo de reestruturação. Esse é o caso da fiança, quando ela é honrada pelo fiador após o ajuizamento da RJ, mas para pagar dívida preexistente. Apesar de ser um crédito concursal por natureza, em razão da sub-rogação que o pagamento imediatamente produz, a jurisprudência do STJ, e consequentemente dos tribunais estaduais, tendia a considerar que o crédito do fiador seria pós concursal, quando honrado após o ajuizamento do pedido, e nessa qualidade não sujeito aos efeitos da RJ. A relevância da matéria reside no fato de que no Brasil praticamente todos os bancos exigem a garantia pessoal dos sócios e acionistas das empresas tomadoras dos empréstimos. E muitas dessas garantias são formalizadas por meio de fiança. Veja-se os casos de project finance perante instituições de desenvolvimento como BNDES1  e FINEP2, que costumam praticar taxas a princípio mais acessíveis no mercado, contra a prestação de fiança bancária3. Significa dizer que raramente a empresa que se socorre da RJ não possui endividamento atrelado a esse tipo de financiamento garantido por cartas fianças também emitidas por instituições financeiras. O cenário é ainda mais grave porque em geral as instituições financeiras acionam a fiança após o ajuizamento da RJ, e justamente após declararem o vencimento antecipado dos contratos de financiamento em razão do ajuizamento da RJ (utilizando-se da chamada cláusula ipso facto de insolvência, cuja validade em nosso ordenamento é polêmica e divide opiniões, o que dá assunto para outro artigo). Ou seja, como regra geral, havendo créditos de fiança numa RJ (e quase sempre há), estes serão decorrentes de fianças honradas após o pedido. Ocorre que a partir de 2020 esses créditos vinham sendo considerados pós concursais em alguns julgados esparsos do STJ, e nessa qualidade não sujeitos à RJ. Esse entendimento que foi se consolidando no STJ4 teve como esteio situação bem específica ocorrida na RJ do Grupo OAS, cujo contexto envolvia discussões particulares da rede de contratos do Grupo OAS, em que muitas das cartas fianças asseguravam o pagamento de garantias de primeira demanda (em muitos casos, stand by letter of credit5) prestadas pelas instituições financeiras (obrigação principal); garantias essas típicas de projetos de construção e de engenharia (que possuem, em regra, diversas fases para constituição do crédito).  A tese desenvolvida no âmbito da referida RJ estava relacionada ao momento de surgimento das garantias de primeira demanda (obrigação garantida), mas acabou sendo reproduzida indiscriminadamente em outros casos que envolviam fianças simples, prestadas para assegurar créditos preexistentes à RJ, causando um verdadeiro rebuliço na aplicação de conceitos jurídicos relativos à sub-rogação, direito de regresso, novação e cessão (vide artigo de autoria destes autores "Sub-rogação e direito de regresso: os "novos inimigos" da reestruturação de empresas"6). O resultado foi o entendimento do STJ no REsp 1.860.368-SP7. A partir daí, ganhou força a ideia de que a fiança estaria desatrelada da natureza (concursal ou extraconcursal) da dívida principal. O entendimento vinha sendo indiscriminadamente reproduzido pelas instâncias estaduais relegando ao escanteio as particularidades da natureza jurídica da fiança em decorrência de sua acessoriedade e da sub-rogação como efeito próprio do pagamento da obrigação afiançada pelo fiador. Os ventos começaram a mudar quando, em 6/22, o TJGO8 reestabeleceu a natureza acessória da fiança em caso que defendemos, alterando entendimento já consolidado em sentido oposto na mesma RJ. Reconhecendo o nascimento do crédito (ou fato gerador) como sendo o momento da sua constituição (celebração do contrato), declarou concursal dívida decorrente de fiança honrada após o pedido da RJ, em razão da sub-rogação do fiador nos direitos de crédito do credor original. O caso transitou em julgado em segundo grau e o STJ não teve a oportunidade de avaliar a discussão.  Mas, para alegria de todos, outro recurso especial oriundo da mesma recuperação judicial subiu ao STJ e foi o precursor da mudança de posicionamento da corte especial sobre a matéria9. Em voto recente10, o ministro relator, exmo. Ricardo Villas Bôas Cueva, reconheceu que, sendo a fiança contratada antes do pedido de RJ, esse é o momento gerador da fonte de obrigação do devedor originário com o fiador, de modo que "o pagamento feito pelo fiador e a subsequente exigência do valor por ele adimplido estão relacionadas com a execução do contrato de fiança e não com sua existência". Além disso, o ministro declarou que o pagamento da fiança tem como efeito legal próprio a sub-rogação que, por sua vez, não enseja a criação de uma nova relação jurídica, mas apenas a substituição do polo ativo, mantendo as demais características da obrigação. Nesse sentido, "se o credor originário tinha um crédito submetido aos efeitos da recuperação judicial, é isso o que ele tem a transferir ao subrogado. Não se trata de uma característica ligada à pessoa do sujeito sucedido, ou ao momento do pagamento, mas ao próprio direito de crédito, que é repassado com seus defeitos e qualidades". O inverossímil da tese que perdurou no STJ durante esses últimos anos foi exposto a olhos nu pelo ministro Cueva, quando afirmou o contrassenso da situação ao se admitir que diferentes fiadores de uma mesma dívida que honrassem seus compromissos em momentos diversos pudessem possuir classificações distintas no universo da RJ. Seria também um convite aos credores para sempre escolherem chamar a fiança após o ajuizamento da recuperação, já que nessa situação, além de serem pagos pelo fiador, propiciariam a não sujeição à RJ do crédito afiançado. Isso certamente incentivaria a concessão de fianças no mercado, barateando a garantia, mas geraria em contrapartida mais uma exclusão importante (e indevida) de créditos em detrimento da recuperação.  A notícia merece ser festejada, já que corrige uma distorção legal dos institutos jurídicos que norteiam o tema da fiança. Afinal, a acessoriedade da fiança (arts. 818 e 823 do CC) impede que ela, como um negócio jurídico subordinado, altere a causa jurídica do negócio principal: se o crédito afiançado é concursal nos termos do art. 49, caput, da LFRE, assim deve ser o crédito do fiador quando honrar a garantia). Somado a isso, a sub-rogação, como efeito legal próprio da honra da fiança (arts. 831 e 349 do CC) assegura que o fiador assuma exatamente a mesma posição que credor originário, inclusive no cenário concursal (se o originário está submetido aos efeitos do concurso o mesmo deve ocorrer com o fiador). Ao reestabelecer os conceitos básicos acima, o REsp 2.123.959-GO reflete o importante papel do STJ na uniformização da interpretação da lei em temas de absoluta repercussão sistêmica, como é o caso das cartas fianças. De agora em diante, espera-se que decisões como essa sejam confirmadas nos demais casos que versam sobre o mesmo tema, a fim de garantir que os créditos detidos pelos fiadores sejam considerados concursais, mesmo que a fiança tenha sido executada no curso da recuperação judicial, pois o seu fato gerador não é esse. A obrigação afiançada já existe antes do ajuizamento da recuperação judicial e é meramente sub-rogada, sem nenhum privilégio adicional, ao fiador.    __________ 1 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. 2 Financiadora de Estudos e Projetos. 3 Manual de Garantias. Disponível aqui e Guia do Financiamento. Disponível aqui. 4 REsp 1.856.902-SP e 1.856.898-SP. 5 Tipo de carta de crédito comumente utilizada em operações financeiras internacionais. 6 Disponível aqui. 7 "RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. FIANÇA. GARANTIA PRESTADA EM FAVOR DA RECUPERANDA. DISCUSSÃO ACERCA DE SUA SUJEIÇÃO AO PLANO DE SOERGUIMENTO. ART. 49 DA LEI 11.101/05. INEXISTÊNCIA DO CRÉDITO À ÉPOCA DA FORMULAÇÃO DO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXTRACONCURSALIDADE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA. 1. Recuperação judicial requerida em 31/3/2015. Recurso especial interposto em 30/8/2018. Autos encaminhados à Relatora em 9/12/2019. 2. O propósito recursal é definir se créditos lastreados em contratos de fiança bancária, firmados para garantia de obrigação contraída pela recorrente, submetem-se ou não aos efeitos de sua recuperação judicial. 3. Devidamente analisadas e discutidas as questões deduzidas pelas partes, não há que se cogitar de negativa de prestação jurisdicional, ainda que o resultado do julgamento contrarie os interesses da recorrente. 4. De acordo com a norma do art. 49, caput, da Lei 11.101/05, não se submetem aos efeitos do processo de soerguimento do devedor aqueles credores cujas obrigações foram constituídas após a data em que o devedor ingressou com o pedido de recuperação judicial. 5. Esta Terceira Turma já teve a oportunidade de esclarecer que "a noção de crédito envolve basicamente a troca de uma prestação atual por uma prestação futura. A partir de um vínculo jurídico existente entre as partes, um dos sujeitos, baseado na confiança depositada no outro (sob o aspecto subjetivo, decorrente dos predicados morais deste e/ou sob o enfoque objetivo, decorrente de sua capacidade econômico-financeira de adimplir com sua obrigação), cumpre com a sua prestação (a atual), com o que passa a assumir a condição de credor, conferindo a outra parte (o devedor) um prazo para a efetivação da contraprestação" (REsp 1.634.046/RS, DJe 18/5/2017).  6. O crédito passível de ser perseguido pelo fiador em face do afiançado - hipótese em exame -, somente se constitui a partir do adimplemento da obrigação principal pelo garante. Antes disso, não existe dever jurídico de caráter patrimonial em favor deste. 7. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo analítico entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas, circunstância não verificada na hipótese. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO." 8 AI nº 5352599-28.2020.8.09.0000. 9 REsp nº 2.123.959-GO 10 13.8.2024 11 SOLANO, Fabiana. Quando as exceções ameaçam virar regra. Disponível aqui. 12 SACRAMONE, Marcelo Barbosa e PIVA, Fernanda Neves. "O pagamento dos débitos da recuperanda: a sub-rogação e o direito de regresso na recuperação judicial". Texto publicado na obra Direito Societário III (Flávio L. Yarshell e Guilherme Setoguti Pereira coord.), Quartier Latin, São Paulo, 2018.
O objetivo deste artigo é analisar a questão relativa ao controle judicial do plano de recuperação proposto pelo devedor, antes de deliberação dos credores.  O plano de recuperação judicial é um negócio jurídico e, como tal, deve observar os requisitos gerais de existência, validade e eficácia do negócio jurídico.  A análise do negócio jurídico deve obedecer a seguinte ordem: primeiro analisa-se a existência; concluindo-se pela existência, examina-se a validade e; por fim, sendo existente e válido, analisa-se a eficácia do negócio. Não há sentido em se analisar a eficácia de um negócio inválido, nem a validade de um negócio inexistente.            São elementos de existência do negócio jurídico a declaração de vontade, o objeto e a forma.  Transpondo-se esses elementos para um plano de recuperação judicial, é preciso (i) manifestação de vontade do devedor e da coletividade dos credores; (ii) que esse acordo de vontades tenha um objeto (um conteúdo), como, por exemplo, medidas para redução da dívida e o soerguimento da empresa e (iii) que o acordo entre credores e devedor se materialize de alguma forma, que geralmente é a forma escrita.  Por sua vez, os requisitos de validade do negócio jurídico estão previstos no art. 104 do Código Civil e são (i) agente capaz; (ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e (iii) forma prescrita ou não defesa em lei.  Transpondo-se esses requisitos de existência e validade para o plano de recuperação judicial, é possível concluir que a manifestação de vontades do devedor e dos seus credores é um elemento de existência do negócio, ao passo que eventual inconstitucionalidade ou ilegalidade das cláusulas do plano de recuperação seria elemento de validade do negócio jurídico.  Como explicado acima, há uma ordem na análise dos planos do negócio jurídico. Como o exame da existência deve preceder a verificação da validade do negócio, é descabida a apreciação judicial sobre eventual ilegalidade de cláusula do plano de recuperação antes da sua aprovação.   O descabimento não ocorre apenas pelas razões teóricas acima referidas, mas também por razões práticas: o art. 35, inciso I, alínea "a" da lei 11.101/2005 dispõe ser de competência da assembleia-geral de credores a "aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor".  Em suma: antes da aprovação do plano de recuperação, a cláusula potencialmente inválida simplesmente não existe no mundo jurídico. Logo, não é suscetível de controle de legalidade algo que sequer existe.  É possível também traçar um paralelo com o direito público que também leva à mesma conclusão: o Supremo Tribunal Federal ("STF") entende que "não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei" (controle preventivo de normas em curso de formação).  O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é "a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo". Relevante a referência ao seguinte trecho do acórdão do STF:  "A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detêm de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de vetá-lo, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico. 4. Mandado de segurança indeferido.1"  As mesmas razões que levam o STF a inadmitir o controle prévio jurisdicional de constitucionalidade de projeto de lei são aquelas que nos levam a concluir pela impossibilidade de o Poder Judiciário analisar eventual ilegalidade de dispositivo do plano de recuperação antes da sua deliberação pela assembleia de credores.  Enquanto o controle prévio de constitucionalidade de projetos de leis cabe ao poder legislativo (e ao poder executivo, mediante o veto), o controle prévio de legalidade e constitucionalidade do plano de recuperação cabe aos credores.  A aprovação (por deliberação ou ausência de objeção), rejeição ou modificação do plano de recuperação pelos credores pode ocorrer por fundamentos econômicos ou jurídicos. Nesse sentido, é possível que os credores rejeitem uma cláusula do plano de recuperação por entendê-la ilegal.  A avaliação econômica de conveniência e oportunidade dos credores acerca do plano é insuscetível de controle a posteriori pelo Poder Judiciário. Todavia, eventual controle de legalidade dos credores poderá ser, posteriormente à deliberação dos credores, objeto de reexame pelo Poder Judiciário.  Além disso, é preciso pontuar que a Lei nº 11.101/2005 prevê um procedimento de proposição e aprovação do plano. O devedor apresenta a sua proposta e os credores analisam; eventualmente objetam o plano de recuperação proposto, oportunidade na qual é convocada assembleia geral de credores para que estes deliberem sobre a aprovação do plano de recuperação; em sendo aprovado pelos credores e, atendidos certos requisitos legais, o juiz o homologa, salvo se houver um vício de legalidade (art. 58).  Note que o legislador estabeleceu a concessão da recuperação judicial pelo juiz "cumpridas as exigências desta Lei" (art. 58) em dispositivo imediatamente subsequente à previsão de "juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores" (art. 57), deixando claro a opção legislativa pelo diferimento do controle judicial de legalidade do plano de recuperação para momento posterior a sua votação e aprovação.  Nessa mesma linha, o Enunciado 44 da I Jornada de Direito Comercial do CJF esclarece que é a "homologação" do plano de recuperação que está sujeita a controle judicial de legalidade, e não a mera possibilidade de submissão à votação.  A impossibilidade de controle judicial prévio do plano de recuperação pode ser encontrada em outros tópicos da Lei nº 11.101/2005. Com efeito, de igual modo não haveria sentido em se realizar controle judicial prévio de plano de recuperação extrajudicial, haja vista que a própria Lei nº 11.101/2005 faculta aos credores se pronunciarem acerca do plano apresentado em juízo (art. 164, caput) - portanto previamente aprovado - para que, somente após eventual impugnação dos credores, o juízo exerça seu controle de legalidade (art. 164, §5º).  Portanto, a Lei nº 11.101/2005 disciplina o controle de legalidade do plano de recuperação após a sua aprovação, não prevendo qualquer hipótese de seu exercício prévio.  Admitir o controle judicial prévio, por consectário, seria contra legem e, na prática, restringiria a negociação entre devedor e credores, sendo evidente também - e principalmente - o prejuízo à celeridade processual que acarretaria, considerando a inevitabilidade de sucessivos adiamentos da assembleias gerais de credores, enquanto não dirimidas todas as objeções e recursos dos credores contra o plano, a prolongar indefinidamente o processo de recuperação.  Por fim, cabe uma ressalva: o STF admite controle prévio de constitucionalidade para coibir atos praticados no processo de aprovação de lei que afrontem o processo legislativo. Aqui também há um paralelo com o processo de recuperação judicial, na medida em que também é possível controle prévio de questões procedimentais, pois essas não são de competência dos credores (art. 35 da lei 11.101/2005).  Desse modo, questões instrumentais podem ser objeto de controle prévio de legalidade pelo Poder Judiciário, na medida em que não dizem respeito ao plano, mas sim de aspectos processuais para a sua deliberação e aprovação. Contudo, disposições do plano apenas podem ser submetidos ao controle de legalidade após a sua aprovação pela assembleia de credores.  Concluindo: o controle de legalidade de cláusula do plano de recuperação judicial é exercido após a sua aprovação pela assembleia geral de credores; antes de deliberação dos credores, é cabível o controle judicial prévio das questões instrumentais, que dizem respeito aos aspectos processuais para a deliberação e aprovação do plano. __________ 1 (MS 32033, Relator(a): GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão: TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 20-06-2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-033 DIVULG 17-02-2014 PUBLIC 18-02-2014 RTJ VOL-00227-01 PP-00330).
Introdução O sistema de saúde no Brasil é dividido entre o sistema público (Sistema Único de Saúde) e o sistema privado, composto pelos agentes que integram o denominado Sistema de Saúde Suplementar. Neste último estão compreendidos os serviços, seguros e planos de saúde - o terceiro maior objeto de consumo da população brasileira, protagonizando uma busca que aumenta exponencialmente desde o enfrentamento da COVID-19, quando o setor atingiu o maior número de beneficiários dos últimos cinco anos.1 O Sistema de Saúde Suplementar é objeto de regulação econômica por parte da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, que cria normas e fiscaliza este segmento de mercado em razão do interesse público que lhe é inerente. Sua atuação visa corrigir a assimetria de informações entre os usuários e as operadoras de planos de saúde, buscando minimizar eventuais falhas e/ou prejuízos na prestação deste tipo de serviço. Alguns entraves estruturais no setor vêm sendo alvo de intensos debates e proposições normativas e regulatórias. É o caso, por exemplo, do aumento dos custos para os usuários versus a amplitude da cobertura oferecida para tratamentos de saúde, situação em que a harmonização entre os interesses privados das operadoras de saúde e o interesse público na adequada prestação de serviços relacionados à saúde é tarefa complexa. Nesse cenário, a busca pelo equilíbrio de interesses daqueles que atuam no segmento e pela melhoria da governança interna das operadoras é essencial para a perenidade e o bom funcionamento do sistema de saúde suplementar no Brasil, o que contribui para a sua sustentabilidade. Além da já mencionada regulação normativa à qual as entidades do sistema de saúde suplementar estão submetidas, há também medidas de salvaguarda visando a proteção contra o risco de  colapso sistêmico, que pode ocorrer em situações de crise da empresa. Essas medidas compõem a regulação prudencial do setor. A governança das entidades e os regimes de direção fiscal e de liquidação extrajudicial das operadoras privadas têm como objetivo manter a saúde financeira e o equilíbrio do segmento a médio e longo prazo. São institutos que buscam recuperar as operadoras em crise por meio de intervenções específicas e evitar que o problema de uma operadora impacte negativamente as demais integrantes do Sistema de Saúde Suplementar no Brasil, gerando o denominado risco sistêmico no mercado, decorrente do receio dos todos os usuários. Governança das entidades de saúde suplementar A lei 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, tem como um de seus objetivos principais regular o setor, equacionando conflitos de interesse entre os consumidores e as prestadoras de serviços de saúde privados, como aqueles relacionados a reajustes abusivos de mensalidades, falta de cobertura de procedimentos médicos essenciais e exclusão de faixas etárias avançadas nos produtos oferecidos no mercado. Neste sentido, o referido diploma dispõe de inúmeras regras essenciais para o funcionamento eficiente do setor, no que se inclui normas sobre a governança das entidades de saúde suplementar. Com efeito, a relevância do tema é tamanha que 53% dos artigos que compõem a lei 9.656/98 tratam do regime de governança das operadoras de saúde.2 Além disso, o mesmo diploma legal estipula a regulação prudencial para o mercado de saúde suplementar em seus arts. 35-A, inciso IV e parágrafo único, e 35-L. Em síntese, trata-se de um conjunto de regras - inclusive de governança - que visam reduzir a possibilidade de insolvência das entidades atuantes neste segmento, bem como mitigar os efeitos negativos decorrente da crise da empresa, a fim de não causar um colapso no setor de saúde suplementar. Visando robustecer as normas relativas à governança corporativa e, consequentemente, à higidez e equilíbrio sistêmico do setor por meio da prevenção da insolvência, a Agência Nacional de Saúde recentemente afastou a antiga regra da "margem de insolvência"3 e passou a adotar a nova regra de CBR - "capital baseado em riscos", estabelecendo que o capital regulatório mínimo4 exigido das operadoras passa a ser calculado de forma mais individualizada, de acordo com dados concretos relacionados à operação da entidade. Nesta abordagem, que acompanha as recomendações internacionais mais avançadas de regulação prudencial, mesclam-se técnicas quantitativas e qualitativas: As primeiras, relacionadas aos cálculos de exposição aos riscos financeiros de entidades que compõe o sistema; as segundas, são compostas pelas já mencionadas regras de governança, abarcando normas de controles internos e gestão de riscos nas operadoras, cuja aplicação foi recentemente reforçada em diversas Resoluções Normativas da ANS. Sobre estas últimas (regras de governança), seu mencionado robustecimento foi precedido de ampla discussão na CPS - Comissão Permanente de Solvência da ANS5, bem como objeto de ampla participação social através de realização de audiências e consultas públicas.6 O resultado destas discussões foi consolidado na Resolução Normativa 518/22, que atualmente disciplina a adoção de práticas de governança corporativa visando à manutenção da solvência das operadoras de saúde, com o regramento atinente aos controles internos e à gestão de riscos. De acordo com as normas atuais, a fim de viabilizar a fiscalização da ANS sobre sua situação econômico-financeira, as operadoras devem apresentar Relatório de PPA -Procedimentos Previamente Acordados, demonstrando ao órgão regulador a adequada adoção de práticas mínimas relacionadas à gestão de riscos e controles internos, como análise de monitoramento econômico-financeiro semestral com indicadores mínimos, gestão de risco de crédito e de mercado, dentre outras.7 Visando à maior independência e evitando conflitos de interesses, o relatório de PPA deve ser elaborado por auditor independente, registrado no Conselho Regional de Contabilidade e na Comissão de Valores Mobiliários (não sendo permitido que tenha atuado nas funções de auditoria interna ou que tenha prestado serviços de auditoria independente ou consultoria à operadora nos dois anos anteriores à emissão do relatório). Como incentivo à adoção paulatina das regras e práticas de governança para fins de solvência, a operadora que comprove o atendimento integral dos requisitos mínimos de governança exigidos pela ANS poderá solicitar a redução dos fatores de capital regulatório a ser observado para atuação no setor de saúde suplementar, ou seja poderá operar com um limite menor de patrimônio líquido ajustado, como consequência de sua menor exposição a riscos. O incremento do sistema de controles internos, objeto das recentes resoluções normativas da ANS, insere no âmbito da regulação do órgão a fiscalização e o controle dos atos dos administradores dirigentes das entidades, evitando ou mitigando o risco de graves crises de insolvência que necessitem ser corrigidas através dos regimes de direção fiscal e liquidação extrajudicial - medidas estas que devem ser adotadas em situações extremas.   Confira aqui a íntegra da coluna. ____________ 1 Um 'empurrão' na melhoria da governança das operadoras de planos de saúde. Disponível aqui. Acesso em: 03.04.2024. 2 "Cerca de 53% dos artigos da Lei nº 9.656/98 são voltados às práticas de governança, seguidos de 25% e 21% das instruções e as resoluções normativas, respectivamente, o que significa que a regulação econômico-financeira desse setor impulsionou a adoção de práticas de governança no setor de saúde suplementar". Jácome, Maria Augusta Raulino; PAIVA, Simone Bastos; MARTINS, Orleans Silva. Regulação Econômico-financeira como propulsora de práticas de governança corporativa na Saúde Suplementar. In: Revista Pensamento e Realidade. Vol. 35. Nº 1. Ano 2020. pp. 99-11. 3 De acordo com o art. 2º, inciso II da Resolução Normativa nº 526/2022 da ANS, a margem de solvência é uma regra de capital que define um montante variável a ser observado em função do volume de contraprestações e eventos indenizáveis aferidos pela operadora. Em apertada síntese, seu objetivo era aferir se o capital das entidades de saúde suplementar era suficiente para contrabalancear os riscos aptos a afetar negativamente seus resultados e operações. 4 De acordo com o art. 2º, inciso IV da Resolução Normativa nº 526/2022 da ANS, o capital regulatório corresponde ao limite mínimo de Patrimônio Líquido Ajustado que a operadora deve observar, a qualquer tempo, em função das regras de capital regulamentadas na Resolução Normativa em comento. 5 A Comissão Permanente de Solvência da ANS tem como funções precípuas: (i) identificação e quantificação dos riscos enfrentados pelas operadoras de planos de saúde; (ii) cálculo do capital baseado nos riscos identificados; (iii) discutir temas relacionados a governança e a (iv) transparência. Disponível aqui. Acesso em 10/7/2024. 6 Audiência Pública nº 8/18 e da Consulta Pública nº 67/18. 7 Anexo I da Resolução Normativa nº 518/2022 da ANS.
Na coluna de hoje, vamos tratar de um tema atual e relevante: A definição do que é o principal estabelecimento da empresa devedora para fins de definição da competência do juízo para o processamento e julgamento dos processos de recuperação de empresas e falências. Conforme dispõe a legislação de regência (art. 3º da lei 11.101/05), será competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil. Entretanto, não há uma definição legal do que seja o principal estabelecimento do devedor. E mais. Tratando-se de recuperação judicial de grupos econômicos, com diversas empresas situadas e atuantes em diferentes locais, a aferição do que seja o principal estabelecimento do grupo impõe a consideração sobre critérios variados. Pode-se afirmar que o principal estabelecimento de uma empresa poderia ser aferido a partir de três critérios: A sede da empresa, conforme consta nos seus atos constitutivos (critério formal); o local de onde parte as decisões estratégicas da empresa ou onde estão seus diretores (critério funcional); ou o local onde está o seu maior volume de negócios ou contratos (critério econômico). A escolha sobre qual o melhor critério para definição do principal estabelecimento da empresa dependerá das circunstâncias do caso concreto e das finalidades do procedimento de insolvência em questão, sempre com vistas a potencializar o atingimento dos objetivos maiores protegidos pelo sistema legal de enfrentamento da crise da empresa. Diga-se o mesmo quando se tem em consideração um grupo de empresas e não apenas uma empresa isolada. A definição de qual seria o principal estabelecimento do grupo impõe considerações sobre a forma de atuação de cada empresa do grupo, além das circunstâncias do caso concreto e das finalidades do procedimento em questão. Tratando-se de processo falimentar, que tem como objetivo realizar a rápida realocação dos ativos da devedora para outras cadeias produtivas e promover o rápido e eficaz pagamento dos credores, parece preponderar o critério para definição de principal estabelecimento aquele que reúna a maior quantidade de ativos da devedora. Assim, o juízo terá melhores condições de arrecadar e vender os bens, de forma direta, sem a necessidade de deprecação de atos processuais e com maior proximidade para fiscalização e criação de soluções tendo em consideração as circunstâncias próprias do local. Dessa forma, o procedimento falimentar terá melhores condições para atingir eficazmente seus objetivos. Tratando-se de recuperação judicial, que tem por objetivo criar um ambiente equilibrado de negociação entre credores e devedores a fim de que possa prevalecer a melhor decisão coletiva, poderão preponderar outros critérios para a definição de principal estabelecimento, pois importa mais que o juízo esteja perto do centro decisório da devedora e do local onde está o maior volume de negócios, otimizando, assim, a catalização e a fiscalização das atividades de negociação entre credores e devedora. É dizer, importa mais para o sucesso da reorganização das atividades da devedora a consideração sobre onde a recuperação judicial tem melhores condições de atingir o objetivo de preservar os benefícios econômicos e sociais, do que o endereço da sua sede. Além disso, o magistrado deve estar inserido na comunidade onde está o principal estabelecimento da empresa devedora, pois isso propicia ao julgador mais proximidade com a realidade dos fatos que envolvem o processo.1 A aferição do principal estabelecimento da devedora pressupõe, portanto, uma análise ampla da atuação da devedora ou do grupo de devedores. A identificação do local onde se situa o polo econômico mais importante ou onde está localizado o maior volume de negócios da devedora são fatores importantes - mas não exclusivos, nem isolados - para a definição do juízo competente para processar e julgar o seu processo de reestruturação. A avaliação desses fatores não é estática, mas dinâmica, devendo ser aferida à luz do caso concreto e sempre com vistas ao atingimento do objetivo de preservar os benefícios econômicos e sociais da empresa. No Brasil, a lei de recuperação judicial e falência deve ser interpretada e aplicada conforme propõe a teoria da superação do dualismo pendular. Vale aqui relembrar essa teoria para sua aplicação concreta na melhor interpretação da nossa lei e para definição dinâmica do principal estabelecimento da empresa devedora. A observação do que acontece nas reformas legislativas ao longo dos tempos releva a existência de um movimento pendular constante que oscila na proteção dos polos da relação de direito material inseridos no procedimento de insolvência. Trata-se do que Fábio Konder Comparato chamou de dualismo pendular na proteção do interesse dos credores ou dos devedores relativamente à legislação de insolvência. Nesse sentido, observa-se que a lei ora protege mais o credor, ora mais o devedor; o consumidor ou fornecedor, o inquilino ou locador; e assim por diante. Esse fenômeno também é observado em relação ao intérprete. Assim, não só a lei toma partido na proteção de um dos polos da relação de direito material, mas também o intérprete busca aplicar a lei sempre em favor de um dos polos da relação de direito discutida no processo de solução de um caso concreto. Entretanto, impõe-se a superação desse dualismo pendular, deslocando-se o foco da interpretação para a busca da finalidade útil do sistema jurídico dentro do qual se inserem os direitos materiais. A finalidade do instituto e o bom funcionamento do sistema jurídico devem prevalecer sobre a proteção do interesse de um dos polos da relação de direito material. Diante de uma situação real, é possível que o intérprete encontre diversas soluções, todas elas tecnicamente sustentáveis e de acordo com o sistema legal na qual se insere. Pode-se interpretar a lei em favor do credor ou em favor do devedor. Entretanto, qual deve ser a interpretação correta? Será aquela que prestigia a finalidade do sistema, em eficiência plena. Por isso é necessária a superação do dualismo pendular. A preservação da eficiência do sistema deve ser o limite ao exercício da interpretação da lei. Tal entendimento vem sendo adotado pelo STJ, conforme trecho de decisão proferida pelo ministro Humberto Martins, nos autos da Suspensão de Liminar e de Sentença 3.0182, que se reproduz a seguir: "No Brasil, prevalece a visão de que a crise da empresa não impacta apenas os seus credores, mas também os empregados, os consumidores, o Estado e a sociedade em geral. A crise da empresa é um fenômeno complexo e que afeta diversos interesses distintos, muito além dos interesses dos credores. É evidente que os credores são diretamente afetados pela crise da empresa, uma vez que deixaram de receber seus créditos. Mas o encerramento da atividade da empresa também afetará negativamente os seus empregados, pelo desaparecimento do posto de trabalho; os consumidores deixarão de usufruir de produtos e serviços; o Estado deixará de recolher tributos. Enfim, no Brasil, há uma forte tradição de reconhecimento da importância da função social da empresa. Assim sendo, o art. 47 da lei 11.101/05 diz que a recuperação judicial tem por objetivo superar a crise econômica e financeira da devedora, a fim de tutelar os interesses dos credores, mas não somente dos credores. Todos os demais interesses atingidos pela crise da empresa devem ser considerados pelo juiz no momento de decidir sobre a preservação da empresa. Assim dispõe o art. 47: A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. O sistema brasileiro adotou a chamada teoria da superação do dualismo pendular, na medida em que os objetivos das ferramentas de tratamento da crise da empresa não são direcionados para a tutela dos interesses exclusivos do credor (pró-credor), nem dos interesses exclusivos do devedor (pró-devedor), mas para a tutela dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da preservação da atividade econômica (empregos, tributos, produtos, serviços, circulação e produção de riquezas). Deslocou-se o pêndulo de proteção legal dos polos integrantes da relação crédito-débito para a proteção das finalidades sociais e públicas do sistema dentro do qual se insere a relação de direito material (credor e devedor). Por isso, afirma-se que o Brasil superou o dualismo pendular". (destaque inserido) Nesse sentido, a interpretação correta, quando se trata de recuperação de empresas, será sempre aquela que prestigiar a recuperação da atividade empresarial em função dos benefícios econômicos e sociais relevantes que dela resultam. Os objetivos previstos no art. 47 da lei 11.101/05 devem ter preponderância na interpretação e aplicação dos dispositivos legais relacionados à recuperação de empresas. Deve-se buscar sempre a preservação do emprego, do recolhimento de tributos, do aquecimento da atividade econômica, da renda, do salário, da circulação de bens e riquezas, mesmo que isso se dê em prejuízo do interesse imediato da própria devedora ou dos credores. A aferição do principal estabelecimento do devedor deve ser feita no momento do protocolo ou distribuição do pedido recuperacional, oportunidade na qual o juízo competente será estabilizado para os fins da lei de recuperação judicial, conforme o entendimento do STJ. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. 1. PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL AJUIZADO NO FORO DO LOCAL DO PRINCIPAL ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR. ART. 3º DA LEI 11.101/05. COMPETÊNCIA FUNCIONAL. PRECEDENTES. 2. ALTERAÇÃO DO ESTADO DE FATO SUPERVENIENTE. MAIOR VOLUME NEGOCIAL TRANSFERIDO PARA OUTRO ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR NO CURSO DA DEMANDA RECUPERACIONAL. IRRELEVÂNCIA. NOVOS NEGÓCIOS QUE NÃO SE SUBMETEM AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA ABSOLUTA INALTERADA. 3. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO DE DIREITO DA VARA DE PORTO NACIONAL/TO.  1. O juízo competente para processar e julgar pedido de recuperação judicial é aquele situado no local do principal estabelecimento (art. 3º da lei n. 11.101/05), compreendido este como o local em que se encontra "o centro vital das principais atividades do devedor". Precedentes.  2. Embora utilizado o critério em razão do local, a regra legal estabelece critério de competência funcional, encerrando hipótese legal de competência absoluta, inderrogável e improrrogável, devendo ser aferido no momento da propositura da demanda - registro ou distribuição da petição inicial. 3. A utilização do critério funcional tem por finalidade o incremento da eficiência da prestação jurisdicional, orientando-se pela natureza da lide, assegurando coerência ao sistema processual e material. 4. No curso do processo de recuperação judicial, as modificações em relação ao principal estabelecimento, por dependerem exclusivamente de decisões de gestão de negócios, sujeitas ao crivo do devedor, não acarretam a alteração do juízo competente, uma vez que os negócios ocorridos no curso da demanda nem mesmo se sujeitam à recuperação judicial.  5. Conflito conhecido para declarar competente o juízo de direito da vara de Porto Nacional/TO. (CC n. 163.818/ES, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 23/9/20, DJe de 29/9/20, destaque inserido) É importante observar que uma empresa integrante de um grupo econômico não se confunde com o próprio grupo econômico. Assim, embora possa coincidir, o "principal estabelecimento" da empresa isolada não necessariamente será o "principal estabelecimento" do grupo societário do qual ela integra. Tanto é assim que, de acordo com o art. 69-G, §2º, da lei 11.101/05, o juízo competente para deferir a recuperação judicial sob consolidação processual, ou seja, de devedores que integrem grupo sob controle societário comum, será aquele onde esteja localizado o principal estabelecimento das empresas (plural) em recuperação. Nesses casos, a análise do principal estabelecimento deve levar em consideração o grupo de empresas, e não uma empresa isolada. Isso porque, quando a solicitação de recuperação judicial é feita em um contexto de consolidação processual, o foco principal se desloca para a reorganização abrangente do conjunto de empresas do grupo, ao invés de apenas lidar com a crise de uma única sociedade isoladamente. Consoante entendimento mais recente do STJ, a existência de grupo econômico entre as empresas envolvidas impõe que as falências devem ser reunidas perante o juízo onde fica localizado o principal estabelecimento do devedor conforme estabelecido no art. 3º da lei 11.101/05, sendo irrelevante a existência de pedido de falência ajuizado em data anterior contra uma das empresas que compõe o referido grupo. Conclui-se, portanto, que o centro de principais interesses ou o principal estabelecimento do grupo de empresas para fins de fixação de competência territorial/funcional nas ações de recuperação e falência, inclusive para fins de incidência da regra de prevenção, deve levar em consideração todos os fatores acima já mencionados, de forma dinâmica, à luz das circunstâncias do caso concreto e sempre com vistas a promover a realização dos objetivos maiores tutelados pelo sistema de insolvência (preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial). Em se tratando de devedores que integrem grupo sob controle societário comum, a análise de tais critérios deve levar em consideração o grupo de empresas devedoras sob consolidação processual, e não uma empresa isolada. __________ 1 COSTA, Daniel Carnio; MELO, Alexandre Correa Nasser de. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. 5ª ed. rev. atual. Curitiba: Juruá, 2024, pág. 121. 2 SLS n. 3.018, Ministro Humberto Martins, DJe de 12/11/2021
O sucesso dos processos que se destinam à reorganização da empresa em crise nos sistemas de diversos países certamente sofre a influência de muitos fatores e não estamos nos referindo somente às condições de suas economias ou do cenário global, mas, também àqueles que tornam os processos mais amplos de forma a abranger o maior número de credores da sociedade e dos sócios, que muitas vezes empenham seus patrimônios com débitos da empresa, oferecem maior flexibilidade e liberdade de medidas para o reerguimento, além de colocarem à disposição das partes procedimentos mais céleres e menos dispendiosos. Não é menos verdade, também, que se pode identificar uma tendência dos sistemas modernos para disciplinar medidas que antecipam a solução da crise, que possibilitam a suspensão de processos contra o devedor antes mesmo que o processo principal tenha sido ajuizado e que abrem caminhos para o início das negociações com os credores e outras medidas necessárias para o primeiro enfrentamento da crise. Esses problemas que também afligem o Brasil e são objeto do projeto de lei 03/24, sobre o qual felizmente se retirou o regime de urgência1, também atingem a Itália, movendo o legislador à última reforma que se realizou com a entrada em vigor da novo Códice, em 2022, revelador da tendência frequente de adaptação aos fenômenos econômicos e às crises que se sucederam no país e no mundo2 e da antecipação das medidas de reorganização. As reformas legislativas voltadas a enfrentar a crise da empresa em diversos países têm levado certo tempo de maturação como as que ocorreram anteriormente às leis em vigor na Alemanha ou dos Estados Unidos, com debates que se estenderam por mais de duas décadas, ou mesmo do Brasil, que se deram pela aprovação inicial da lei 11.101/05, que trouxe inegáveis avanços ao Direito Concursal Brasileiro, ou ainda a última reforma empreendida pela lei 14.112/20, que também foi alvo de intenso debate na doutrina.3 A lei falimentar italiana anterior, a legge 267/42, foi promulgada após o país e o mundo terem sido atingidos pela crise financeira de 1929, tendo voltado sua atenção à reconstrução industrial, gravemente afetada à época, representando uma aberta escolha em favor da eficiência que poderia se dar com a manutenção de empresas funcionais.4 O milagre econômico do pós-guerra, em muito apoiado sobre as medidas do plano Marshall, com fortes investimentos dos Estados Unidos na Itália, favoreceram a economia até os anos 70, quando a crise do petróleo e outros problemas de ordem econômica e social levaram à necessidade de alteração da legislação, com a edição da legge prodi e depois da legge prodi bis, submetendo ao controle jurisdicional a grande empresa em crise. A velha lei de 1942, já não se mostrava hábil a enfrentar as mudanças no cenário econômico nos anos 90 e início dos anos 2000, tanto que, após alterações pontuais, sobreveio o decreto legislativo de 2006 e seu ajustamento, em 2007, retirando o juiz da posição de direção das operações concursais, para tão somente controla-las sob o aspecto jurídico, conferindo importância fundamental ao acordo entre credores e o devedor para a superação da crise, assumindo efetivamente uma solução de cunho negocial, o que a doutrina chamou de privatização da solução da crise.5 Outras intervenções legislativas pontuais ainda foram necessárias diante das crises financeiras de 2008 e 2010 e também em vista da necessidade de colocar a legislação italiana a par das leis europeias, como a legge 3, de 2012; a o D.L. de dezembro do mesmo ano e a lei 19 de 2017. Finalmente, veio o decreto legislativo 12, de 2019, conhecido como codice della crisi e dell'insolvenza, como um texto de reforma da lei falimentar, para conferir texto único, capaz de enfrentar a crise da empresa logo aos primeiros sintomas, favorecer a continuidade da empresa, reduzir os custos e a duração do procedimento, simplificar e dissipar os problemas de interpretação da norma pela jurisprudência, substituindo, para essas finalidades, a lei de 1942. A nova lei deveria entrar em vigor em 15/8/20, durante a pandemia e, após um longo período de vacatio legis, de quarenta meses, acabou por entrar em vigor com o D.L. 36/22, em setembro de 2022. Foi assim recepcionada a diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu, relativa aos quadros de reestruturação preventiva e sobre medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de reestruturação, insolvência e anulação de dívidas, alterando a anterior diretiva 2017/1132 do Parlamento Europeu e do Conselho. Com o novo texto da lei italiana, houve importante reforma estrutural do sistema, que incidiu especialmente sobre quatro pontos: os instrumentos pré-falimentares, o recurso tardio à falência, a duração excessiva dos processos de falência, que em 90% dos casos acabam em liquidação e não em acordos; e o pouco aproveitamento de segundas chances.6 A nova lei é universal e se aplica a um número considerável de entidades, incluindo qualquer categoria de devedor, pessoa singular ou coletiva, organismo coletivo, consumidor, profissional ou empresário que exerça uma atividade comercial, agrícola ou artesanal, com exceção do Estado e dos organismos públicos7 e, nesse aspecto, confere um sistema bem amplo. O texto regula os processos de reestruturação e insolvência, com excepção das leis especiais sobre a administração extraordinária de grandes empresas, a liquidação administrativa obrigatória e as relativas às empresas públicas. Substituindo o fallimento, o novo Código instituiu a liquidação judicial, que tem por finalidade única a liquidação dos ativos de um empreendedor ou de uma sociedade insolvente para o pagamento do passivo, conforme dispõe os arts. 121 a 283 da lei, algo que representou sobretudo a modificação terminológica mais neutra do que a estigmatizada falência, seguindo tendência de diversos países europeus. O papel residual da liquidação vem destacado pelo art. 7 do Codice, que dispõe que no caso da proposição de mais de uma demanda simultaneamente, será dada prioridade àqueles que não se destinem à liquidação judicial ou da liquidação controlada. Aliás, dentre os objetivos da reforma, é possível antever que se abandonou a mera lógica de liquidação de ativos da falência presente na lei de 1942, para assumir a posição de conservação da atividade, através, por exemplo, da possibilidade de locação de bens da empresa ou mesmo da venda em bloco dos complexos de bens empresariais.8 As principais novidades da liquidação judicial referem-se ao maior rol de atividades desempenhadas pelo curador e a sua maior autonomia em relação ao comitê de credores e a necessidade de autorizações judiciais; mas, por outro lado, aumentaram as obrigações relativas ao dever de informação do curador, que deve manter um registro acessível aos credores e ao tribunal. Também outras modificações foram introduzidas, como a antecipação do período suspeito; o rol de atribuições do comitê de credores, que agora não é mais obrigatório nos procedimentos menores e simplificado da liquidação e outras regras que favorecem o fresh start. O concordato preventivo semplificato, regido pelos arts. 84.º a 120.º do CCII, manteve em linhas gerais o instrumento que já era previsto na lei anterior, permitindo às empresas em dificuldade a apresentação de um plano de composição com seus credores, que deverá ser aprovado pelas maiorias previstas na lei, impedindo, após o seu ajuizamento, o prosseguimento das ações individuais dos credores.9 Durante o seu trâmite, a gestão da empresa é confiada aos diretores sob a supervisão de um comissário judicial e os atos de administração extraordinária deverão ser aprovados pelo tribunal. A lei incentiva a continuidade da empresa, prevendo a possibilidade de duas espécies de procedimento: O concordato preventivo semplificato con continuità aziendale, pelo qual o plano deve ser certificado por um especialista independente, que avalia como o devedor poderá satisfazer da melhor forma possível as diversas classes de credores; e, como solução residual, o concordato preventivo semplificato con finalità liquidatorie das obrigações assumidas. Para fins de liquidação, mantendo a continuidade dos negócios, deve a proposta do concordato contemplar o aumento de capital por meio de contribuições externas que representem de pelo menos 10% em relação à hipótese de liquidação judicial e não inferior a 20% do passivo residual. A lei não traz a posição de prioridade absoluta aos investidores externos nesse caso.10 O Código da Insolvência introduziu ainda uma composição "menor" com credores, que consiste em procedimento simplificado para a composição de pequenas empresas. Na prática e em linhas gerais, pode-se dizer que há uma série de medidas previstas na nova lei que se destinam a detectar o surgimento da crise, comunicando-a a um órgão extrajudicial especial, a OCRI (Organismo di composizione della crisi e dell'insolvenza), o qual oferece apoio ao devedor para a resolução da crise e a obtenção de um acordo com seus credores. Tal órgão é composto de três membros designados pelo presidente do Tribunal do lugar em que se localiza a sede da empresa, pelo presidente da Câmara de Comércio e um que deve ser escolhido dentre um elenco da associação representativa do setor em que atua o devedor.11 O art. 3.º da lei identifica sinais de alerta específicos para a ativação atempada das pessoas coletivas com vista à superação de uma crise financeira, especialmente: Atrasos no pagamento de encargos salariais vencidos há pelo menos 30 dias em montante superior a metade do total do passivo mensal; Responsabilidades com fornecedores que estejam vencidas há pelo menos 90 dias em excesso das responsabilidades que não estão vencidas; Posições em risco sobre o sistema de crédito e intermediários vencidas há mais de 60 dias, em montante igual a, pelo menos, 5% das posições em risco e Juros de mora que desencadeiam as obrigações de comunicação dos chamados "credores públicos qualificados". À luz das disposições acima, no caso de potencial crise, qualquer empresário ou empresa - independentemente de seu tamanho ou natureza - pode solicitar acesso on-line à Câmara de Comércio local para chegar a um acordo negociado. Em essência, os empresários e diretores de empresas são obrigados a dar prioridade aos interesses dos credores sobre os do empresário ou dos sócios. Tomando pé da situação, a OCRI estabelece com o devedor as principais medidas para enfrentar a crise, fixando o prazo de três meses, prorrogável por mais três, para a consecução dessas providências, podendo pedir ao Tribunal medidas protetivas ao patrimônio do devedor. Havendo êxito nas negociações, os acordos com os credores são reduzidos a escrito e inscritos no registro das empresas, com força de títulos executivos. Caso não tenha o êxito esperado, a OCRI determina ao devedor a apresentação de procedimento judicial para enfrentar a crise ou para a declaração de insolvência, dando notícia, neste caso, ao ministério Público.12 Ainda sob a perspectiva de antecipação das medidas de saneamento da crise empresa no direito italiano, há o piano attestato di risanamento que se trata de um plano voltado ao reequilíbrio da situação financeira da empresa, que é atestado por um profissional independente quanto à veracidade das informações nele contidas sobre a situação econômica e patrimonial da sociedade e também da possibilidade de realização das medidas propostas.13 Esse acordo pode se dirigir a um ou mais credores e tem como vantagem a praticidade de não ser submetido ao controle judicial, sendo a publicidade facultativa e dele não se pode extrair medidas protetivas ao patrimônio do devedor contra as investidas de outros credores, que não firmaram o acordo; mas, funciona como uma medida protetiva quanto à eventual ação revocatória, impedindo a discussão quanto à validade da constituição de garantia ou mesmo a transferência de bens.14 Já como medida judicial, há o acordo de "reestruturação de débitos", que é subscrito por credores que representem pelo menos 60% dos créditos devidos pela empresa e aqui também um profissional atesta a veracidade das informações patrimoniais e econômicas da empresa e a possibilidade de serem cumpridas as medidas do plano, mas, com a diferença de que esse plano é submetido ao Tribunal para a homologação.15 O conteúdo de tal acordo pode prever livremente a continuidade ou a liquidação da empresa, mas, deve prever o pagamento integral daqueles credores que não aderirem ao plano. Exclui-se aqui também a possibilidade de uma ação revocatória e as consequências da imputação de crimes falimentares. Segundo o art. 54 do Codice, no decurso do processo de abertura da falência ou do processo de acordo com os credores ou de aprovação de acordos de reestruturação e do plano de reestruturação sujeito à aprovação, o tribunal pode tomar medidas cautelares, incluindo a nomeação de um depositário da empresa ou dos bens, que se afigurem, consoante as circunstâncias, mais adequado para assegurar a execução provisória das decisões que aprovam instrumentos de regulação de crises e de insolvência e a abertura de processos de insolvência. Talvez os maiores méritos da nova lei estejam ligados à disciplina de instrumentos de solução assistida da crise empresarial, em consonância com pedidos provenientes da União Europeia e de organismos internacionais. Já havia, inclusive, desde 2014, recomendação da Comissão Europeia com o objetivo principal de assegurar às empresas recuperáveis que estejam em dificuldades financeiras o acesso a normas que lhes permitam a reestruturação em fase precoce, para evitar a insolvência e como objetivo subsidiário de dar nova oportunidade a todos que venham a falir. Os apelos da Comissão aos Estados-Membros dirigiam-se à criação de serviços de apoio às empresas para a reestruturação antecipada, reduzindo a ineficiência das legislações que dificultavam a reestruturação precoce de empresas em dificuldade, objetivando os efeitos positivos dessas medidas a conservação dos postos de trabalho e os efeitos positivos para a economia no geral, recomendando a adoção de procedimentos flexíveis, que limitem a intervenção judicial aos casos em que seja indispensável.16 Aliás, o sistema de alerta e o auxílio de um órgão independente para a enfrentar os primeiros sinais da crise no sistema italiano constituem medidas dignas de nota e deveriam estudados em nosso país, considerada a constatação de que muitas empresas no Brasil procuram a recuperação em via judicial quando em estado de superendividamento, tornando menos eficazes as soluções previstas na lei. Como se vê, não é somente aqui em nosso país que a mutação dos fatores que influenciam a economia e os evidentes reflexos que se produzem na área concursal, desafiam os legisladores à adequação constante dos sistemas; os horizontes que se descortinam mostram as tendências dos sistemas modernos, que certamente passam pela antecipação das medidas para a solução da crise para conferir maior eficiência dos processos de reestruturação. ___________ 1 Felizmente, conforme têm reconhecido a doutrina, para que se possa apurar e enfrentar os problemas que constam do referido projeto, mensurar os seus impactos sobre os processos em andamento e novos que venham a ser propostos após a vigência da pretendida reforma, de modo que se possa extrair avanços e não retrocessos em termos de resultados do sistema concursal. 2 Cf. PALUCHOWSK, Alida. I mutevoli orizzonti del diritto della crisi. Disponível aqui. Última consulta em 20/04/2024. 3 Parece evidente que o período de maturação se dá pela necessidade de discussão de temas relevantes e de posições controversas pela comunidade acadêmica e pelos operadores do direito que militam na área e têm experiências que devem ser aproveitadas e, especialmente, do constante surgimento de novas questões ou mesmo a persistência de problemas que as atuais leis concursais não conseguem resolver de forma satisfatória. 4 Cf. PALUCHOWSK, Alida. I mutevoli orizzonti del diritto della crisi, in DDC Diritto Dela Crisi, 2022. Disponível aqui. Última consulta em 24/04/2024. 5 Cf. PALUCHOWSK, Alida. I mutevoli orizzonti del diritto della crisi, in DDC Diritto Dela Crisi, 2022. Disponível aqui. Última consulta em 24/04/2024. 6 Cf. MUSSO, Pierantonio; CHIAVES, Filippo Andrea, VETTORI, Giulia; pappalettera, Federico. Nuovo Codice della Crisi e dell'Insolvenza: una rivoluzione annunciata? Setembro de 2022. Disponível aqui. Último acesso em 26/05/2024. 7 Cf. BERGAMINI, Edoardo. Addio alla legge fallimentare: spazio al nuovo Codice della crisi d'impresa e dell'insolvenza, in Salvis Juribus - Rivista di informazione giuridica, 30.07.2022. Disponível aqui. Último acesso em 16/05/2024. 8 Cf. GIANNETTI, Ida. Dalla vecchia Legge fallimentare al nuovo Codice della crisi d'impresa, in Rivista on-Line della Fondazione Prof. Massimo D'Antona, Anno XI - n° 57, Maggio/Giugno 2023. Disponível aqui. Último acesso 26/05/2024. 9 Cf. MUSSO, Pierantonio; CHIAVES, Filippo Andrea, VETTORI, Giulia; pappalettera, Federico. Nuovo Codice della Crisi e dell'Insolvenza: una rivoluzione annunciata? Setembro de 2022. Disponível aqui. Último acesso em 26/05/2024. 10 Cf. MUSSO, Pierantonio; CHIAVES, Filippo Andrea, VETTORI, Giulia; pappalettera, Federico. Nuovo Codice della Crisi e dell'Insolvenza: una rivoluzione annunciata? Setembro de 2022. Disponível aqui. Último acesso em 26/05/2024. 11 Cf. BERGAMINI, Edoardo. Addio alla legge fallimentare: spazio al nuovo Codice della crisi d'impresa e dell'insolvenza, in Salvis Juribus - Rivista di informazione giuridica, 30/07/2022. Disponível aqui. Último acesso em 16/05/2024. 12 Cf. BERGAMINI, Edoardo. Addio alla legge fallimentare: spazio al nuovo Codice della crisi d'impresa e dell'insolvenza, in Salvis Juribus - Rivista di informazione giuridica, 30/07/2022. Disponível aqui. Último acesso em 16/05/2024. 13 Cf. MUSSO, Pierantonio; CHIAVES, Filippo Andrea, VETTORI, Giulia; pappalettera, Federico. Nuovo Codice della Crisi e dell'Insolvenza: una rivoluzione annunciata? Setembro de 2022. Disponível aqui. Último acesso em 26/05/2024. 14 Cf. BERGAMINI, Edoardo. Addio alla legge fallimentare: spazio al nuovo Codice della crisi d'impresa e dell'insolvenza, in Salvis Juribus - Rivista di informazione giuridica, 30/07/2022, disponível aqui. Último acesso em 26/06/2024. 15 Cf. MUSSO, Pierantonio; CHIAVES, Filippo Andrea, VETTORI, Giulia; pappalettera, Federico. Nuovo Codice della Crisi e dell'Insolvenza: una rivoluzione annunciata? Setembro de 2022. Disponível aqui. Último acesso em 26/05/2024. 16 Cf. JORIO, Alberto. La riforma della legge fallimentare tra utopia e realtà, in Il Diritto Fallimentare e delle Società Commerciali, Fascicolo 2 - 2019. Disponível aqui. Último acesso em 26/05/2024.
A disparada dos pedidos de recuperação judicial no Brasil tem ampliado as discussões sobre fusões e aquisições de empresas em distress. Essas situações têm se tornado comuns, o que vem levando a Lei de Recuperação e Falências reformada em 2020 a novos testes. No entanto, ainda há cenários que trazem insegurança jurídica aos investidores, que precisarão ser enfrentados com ponderação pelo Judiciário. Exemplo disso é a aquisição do próprio CNPJ da empresa endividada.  Na prática, o que se vê é um movimento de concentração de mercado em diversos setores, em que as empresas mais consolidadas vêm fazendo um movimento de expansão calculado, seja ampliando geograficamente seus mercados, seja adicionando novas divisões em sua cadeia produtiva, com a aquisição de empresas menores, endividadas diante da alta de juros e aumento do custo da matéria-prima. Na maioria das vezes, esses investidores têm exigido que a troca de bastão das empresas devedoras se dê no ambiente controlado da recuperação judicial, onde a compra da empresa pode ocorrer sem a contaminação do investidor nos passivos da adquirida.  Normalmente, na recuperação judicial a aquisição da empresa endividada se dá em partes, mediante a transferência de ativos significativos a uma nova estrutura (uma SPE - sociedade de propósito específico), que é vendida no formato de uma UPI - unidade produtiva isolada. Por exemplo, quando é vendida uma divisão de negócios da empresa em recuperação judicial. Sobram ativos e atividade na empresa em recuperação judicial, que devem ser suficientes para fazer frente à sua dívida remanescente.  Acontece que a recente crise econômica no país trouxe novos desafios: muitas vezes não há como vender apenas parte da empresa endividada, e o que resolve a crise é a sua venda integral. Para esses casos, a Lei de Recuperação e Falências alterada em 2021 incluiu a possibilidade da venda do próprio CNPJ da devedora, em inspiração clara na legislação norte-americana. Isso é feito nos Estados Unidos com bastante regularidade, como se viu no caso da GM, e agora promete acontecer no caso da Gol (se o interesse da Azul ou de outros players de mercado pela empresa se confirmar).  Mas a redação da lei brasileira foi infeliz: "constitui meio de recuperação judicial a venda integral da devedora, desde que garantidas aos credores não submetidos ou não aderentes condições, no mínimo, equivalentes àquelas que teriam na falência, hipótese em que será, para todos os fins, considerada unidade produtiva isolada".  Essa redação leva a dúvidas básicas: se eu vendo o próprio CNPJ, como garantir que o investidor não suceda nas dívidas da empresa? Como garantir aos credores não submetidos à recuperação judicial (especialmente o Fisco) condições no mínimo equivalentes às que teriam na falência?  Diante da omissão da lei, que não dá a segurança necessária sobre a não sucessão das dívidas e a forma de como implementá-la, a venda integral da empresa devedora jamais foi testada até hoje, após 3 anos da sua inclusão na lei. Mas já passou da hora de colocar essa solução na prática, e há formas de fazê-lo.  A forma mais conservadora de levá-la adiante sem muito rebuliço perante o Judiciário é seguir a prática que já vinha sendo adotada antes mesmo da reforma da lei: segregar todos os ativos do CNPJ da devedora (inclusive intangíveis como marca, clientela etc), vertê-los para uma ou mais sociedades de propósito específico e vendê-los como unidades produtivas isoladas. Ao mesmo tempo, ainda que não sobre uma atividade propriamente dita na devedora original, será importante manter em seu balanço ativos suficientes para pagar seus credores remanescentes, ainda que parcialmente (o mais natural será manter nessa estrutura os próprios recursos da venda). Ou seja, não se vende o CNPJ propriamente dito, mas tudo o que existe dentro dele, mantendo uma casca apenas com recursos reservados para pagamento proporcional dos credores remanescentes. Esses credores, especialmente os extraconcursais, devem ser pagos seguindo a ordem de prioridades da falência. Fazendo isso, em tese não haveria fundamentos para que a venda da própria devedora sem sucessão fosse contestada em juízo. Uma vez pagos os credores não sujeitos à recuperação judicial, de forma proporcional ao que receberiam na falência, o juiz poderia encerrar a recuperação judicial, ordenando à junta comercial a baixa do CNPJ da empresa, sem que ela tivesse necessariamente que passar por um processo de falência para que isso ocorresse.   No entanto, ainda que assim seja feito, existem desafios. O principal deles é o próprio Fisco: hoje o STJ exige que a devedora esteja com sua situação fiscal em dia para que a recuperação judicial seja concedida. Isso quer dizer que em regra o juiz somente homologará o plano de recuperação se a devedora tiver certidão negativa de débitos, o que ocorrerá se aderir a parcelamentos ou a transação fiscal. Em caso de descumprimento desses acordos fiscais, o próprio fisco poderia pedir a quebra da empresa, por disposição expressa da lei.  Ocorre que, como vimos, a venda integral da devedora pode ocorrer desde que o fisco (que é um credor não submetido à recuperação judicial) receba valores equivalentes ao que receberia numa situação de falência. E aí está a enorme inconsistência da lei, porque na falência o Fisco receberá menos do que receberia ao celebrar parcelamentos ou transação com a empresa devedora. Isso porque está em terceiro lugar na ordem de prioridade de credores concursais; na frente dele estão credores extraconcursais (dentre eles, credores com garantias fiduciárias e créditos constituídos após o ajuizamento da recuperação judicial) e os credores trabalhistas e detentores de garantia real.  Ou seja, exigir que os devedores tenham certidão negativa de débitos fiscais para que o juiz homologue um plano de recuperação que preveja a venda integral da devedora se torna uma esquizofrenia do sistema, embalada pelo entendimento mais recente a respeito do tema pelo STJ que ratifica essa posição.   A solução para resolver esse problema está na adoção, pelo Poder Judiciário, do entendimento manifestado no passado pela própria Ministra Nancy Andrighi, do STJ, e que se aplica aqui como uma luva: não faz sentido exigir numa solução que envolva a venda integral da devedora em recuperação judicial que os devedores adiram a parcelamentos ou transações fiscais, que implicam um recebimento maior ao que o Fisco teria na falência. Nesses casos, ao invés de apresentar a CND, bastaria à devedora comprovar que a conta de liquidação dos pagamentos numa situação de falência está cumprida, devendo ser reservado ao Fisco o valor que lhe caberia nesse caso. Parece simples, mas não é. Diante da existência de riscos em razão da inconsistência das normas sobre o assunto, muitos se intimidam e partem para outras soluções. Não espanta, portanto, que a venda integral da devedora continue sem aplicação prática.  Diante dessa inconsistência legal, é preciso que o judiciário corrija o rumo e aplique as normas seguindo a interpretação lógica que mais se amolda ao sistema de insolvência. De nada adianta exigir uma posição superprivilegiada ao fisco na recuperação judicial, se na falência ele recebe atrás de outros credores importantes. Exigir CND para a devedora nesse contexto seria o mesmo que tornar sem aplicação a norma que prevê a venda integral da empresa como meio de recuperação. E diante do movimento de consolidação de empresas que vivemos, seria uma pena deixar essa oportunidade passar.
Uma das principais obrigações do auditor independente é informar os destinatários das demonstrações contábeis quanto a eventuais riscos à continuidade operacional da entidade auditada. A questão que se põe neste artigo é saber até que ponto o auditor independente pode ser responsabilizado pela omissão quanto ao dever aludido quando sobrevenha um evento de natureza falimentar. Para tanto, vamos investigar a seguir os principais pontos que envolvem a questão supracitada. A obrigação do auditor independente quanto à continuidade operacional A primeira questão que se põe neste problema é apontar a fonte da obrigação do auditor independente em evidenciar riscos envolvendo a continuidade operacional de uma entidade auditada. Sob esse aspecto, podemos dizer que a origem dessa obrigação decorre de duas fontes primárias: (1) a própria essência das informações contábeis; e (2) as normas contábeis internacionais e nacionais. Com efeito, podemos dizer, de modo geral (e com algumas exceções), que as informações contábeis pressupõem a continuidade, por tempo indefinido, das atividades empresariais da entidade auditada. O pressuposto da continuidade influencia substancialmente na avaliação de ativos, de passivos e do patrimônio líquido. Além disso, por força da normatização contábil, tanto a administração da entidade, conforme o caso, quanto o auditor, têm a obrigação de informar sobre eventuais riscos à continuidade operacional da entidade. Assim menciona a norma brasileira NBC TA 570 quanto à responsabilidade da administração: 3. Algumas estruturas de relatórios financeiros contêm exigência explícita para que a administração faça uma avaliação específica da capacidade de continuidade operacional da entidade e normas referentes a assuntos a serem considerados e divulgações a serem feitas em relação à continuidade operacional. Por exemplo, conforme os itens 25 e 26 da NBC TG 26 - Apresentação das Demonstrações Contábeis, a administração deve fazer a avaliação da capacidade da entidade de manter sua continuidade operacional. As exigências detalhadas sobre a responsabilidade da administração de avaliar a capacidade de continuidade operacional da entidade e as correspondentes divulgações às demonstrações contábeis também podem ser definidas em lei ou regulamento. 4. Em outras estruturas de relatórios financeiros, pode não haver exigência explícita para que a administração faça uma avaliação específica da capacidade de continuidade operacional da entidade. Porém, quando a base de continuidade operacional é um princípio fundamental na elaboração das demonstrações contábeis, conforme discutido no item 2, a elaboração das demonstrações contábeis requer que a administração avalie a capacidade de continuidade operacional da entidade, mesmo se a estrutura de relatório financeiro não incluir exigência explícita para isso. 5. A avaliação da administração sobre a capacidade de continuidade operacional da entidade envolve exercer julgamento, em determinado momento, sobre resultados futuros inerentemente incertos de eventos ou condições. Os seguintes fatores são relevantes para esse julgamento: o grau de incerteza associado ao resultado de evento ou condição aumenta, significativamente, quanto mais distante no futuro ocorrer o evento ou a condição, ou o correspondente resultado. Por essa razão, muitas das estruturas de relatórios financeiros que exigem a avaliação explícita da administração especificam em qual período a administração deve levar em consideração todas as informações disponíveis; o tamanho e a complexidade da entidade, a natureza e a condição de seu negócio e o grau em que ela é afetada por fatores externos impactam o julgamento em relação ao resultado de eventos ou condições; qualquer julgamento sobre o futuro é baseado em informações disponíveis na época em que o julgamento é feito. Eventos subsequentes podem produzir resultados inconsistentes com julgamentos que eram razoáveis na época em que foram feitos. A mesma norma brasileira (NBC TA 570) assim dispõe quanto à responsabilidade do auditor: Responsabilidade do auditor 6. As responsabilidades do auditor são as de obter evidência de auditoria apropriada e suficiente com relação à, e concluir sobre a, adequação do uso, pela administração, da base contábil de continuidade operacional na elaboração das demonstrações contábeis e concluir, com base na evidência de auditoria obtida, se existe incerteza relevante sobre a capacidade de continuidade operacional da entidade. Essas responsabilidades existem mesmo se a estrutura de relatório financeiro usada na elaboração das demonstrações contábeis não incluir exigência explícita para que a administração faça avaliação específica da capacidade da entidade de manter sua continuidade operacional. 7. Entretanto, conforme descrito nos itens A51 e A52 da NBC TA 200, os efeitos potenciais de limitações inerentes à capacidade do auditor de detectar distorções relevantes são maiores para eventos ou condições futuras que podem levar a entidade a cessar a continuidade de suas operações. O auditor não pode prever esses eventos ou condições futuras. Consequentemente, a ausência de qualquer referência à incerteza relevante quanto à capacidade de continuidade operacional da entidade no relatório do auditor não pode ser considerada garantia da capacidade de continuidade operacional da entidade. [...] 9. Os objetivos do auditor são: (a) obter evidência de auditoria apropriada e suficiente com relação à, e concluir sobre a, adequação do uso, pela administração, da base contábil de continuidade operacional na elaboração das demonstrações contábeis; (b) concluir, com base na evidência de auditoria obtida, se existe incerteza relevante em relação a eventos ou condições que podem levantar dúvida significativa quanto à capacidade de continuidade operacional da entidade; e (c) emitir relatório de acordo com esta norma. As diversas recomendações de conduta ao auditor no tocante a questões concernentes à continuidade operacional, ainda nos termos do preconizado pela NBC TA 570, são as seguintes (grifos nossos): Uso inapropriado da base contábil de continuidade operacional 21. Se as demonstrações contábeis foram elaboradas utilizando a base contábil de continuidade operacional, mas, no julgamento do auditor, a utilização dessa base pela administração na elaboração das demonstrações contábeis é inapropriada, ele deve expressar opinião adversa (ver itens A26 e A27). Uso da base contábil de continuidade operacional é apropriado, mas existe incerteza relevante. É feita divulgação adequada da incerteza relevante nas demonstrações contábeis 22. Se for feita divulgação adequada da incerteza relevante nas demonstrações contábeis, o auditor deve expressar uma opinião não modificada e o relatório do auditor deve incluir uma seção separada sob o título "Incerteza relevante relacionada com a continuidade operacional" para (ver itens A28 a A31 e A34): (a) chamar a atenção para a nota explicativa às demonstrações contábeis que divulga os assuntos especificados no item 19; e (b) declarar que esses eventos ou condições indicam que existe incerteza relevante que pode levantar dúvida significativa quanto à capacidade de continuidade operacional da entidade e que a opinião do auditor não está ressalvada em relação a esse assunto. Não é feita divulgação adequada da incerteza relevante nas demonstrações contábeis 23. Se não for feita divulgação adequada de incerteza relevante nas demonstrações contábeis, o auditor deve (ver itens A32 a A34): (a) expressar uma opinião com ressalva ou adversa, conforme apropriado, de acordo com a NBC TA 705 - Modificações na Opinião do Auditor Independente; e (b) na seção Base para opinião com ressalva (adversa) do relatório do auditor, declarar que existe incerteza relevante que pode levantar dúvida significativa quanto à capacidade de continuidade operacional da entidade e que as demonstrações contábeis não divulgam esse assunto de forma adequada. Relutância da administração em elaborar ou estender sua avaliação 24. Se houver relutância da administração em elaborar ou estender sua avaliação, quando solicitada pelo auditor, o auditor deve considerar as implicações em seu relatório (ver item A35). Por fim, cabe mencionar que a NBC TA 570 indica, em rol não exaustivo, alguns exemplos de situações que podem levantar dúvida significativa quanto à capacidade da entidade de manter sua continuidade operacional, como reproduzimos na tabela seguinte: Financeiro patrimônio líquido negativo (passivo a descoberto); empréstimos com prazo fixo, próximos do vencimento, sem previsões realistas de renovação ou liquidação; ou utilização excessiva de empréstimos de curto prazo para financiar ativos de longo prazo; indicações de retirada de suporte financeiro por credores; fluxos de caixa operacionais negativos indicados por demonstrações contábeis históricas ou prospectivas; principais índices financeiros adversos; prejuízos operacionais significativos ou deterioração significativa do valor dos ativos usados para gerar fluxos de caixa; atraso ou suspensão de dividendos; incapacidade de pagar credores nas datas de vencimento; incapacidade de cumprir com os termos contratuais de empréstimo; mudança nas condições de pagamento a fornecedores, de compras a prazo para pagamento à vista; incapacidade de obter financiamento para o desenvolvimento de novos produtos essenciais ou outros investimentos essenciais.  Operacional intenções da administração de liquidar a entidade ou interromper as operações; perda de pessoal-chave da administração sem reposição; perda de mercado importante, clientes importantes, franquia, licença, ou principais fornecedores; dificuldades na manutenção de mão de obra; falta de suprimentos importantes; surgimento de concorrente altamente competitivo. Outros descumprimento de exigências de capital, incluindo outras exigências legais; processos legais ou regulatórios pendentes contra a entidade que podem, no caso de perda, resultar em indenização que a entidade provavelmente não terá capacidade de saldar; mudanças de legislação, regulamentação ou política governamental, que supostamente afetam a entidade de maneira adversa; catástrofe não segurada ou segurada por valor inferior, quando de sua ocorrência. Vistas, em resumo, as características da obrigação do auditor independente em relação à evidenciação das questões relativas à continuidade operacional, cabe discutir, no tópico seguinte, a responsabilidade civil do auditor em relação a eventuais falhas no cumprimento desse dever. Responsabilidade do auditor independente quanto à continuidade operacional Na atualidade, tanto no direito pátrio quanto no direito comparado, é ponto pacífico que o auditor independente deve responder por suas condutas comissivas ou omissivas em relação àquele que o contrata (responsabilidade contratual) e a terceiros que se utilizam de seu trabalho para a tomada de decisão (responsabilidade extracontratual). Um resumo das posições modernamente acolhidas nos Estados Unidos da América em termos de responsabilidade do auditor nos é dado por Rittenberg et al. (p. 832)1 na tabela seguinte: Responsabilidade do auditor (S = sim, N = não, NA = não aplicável)   Quem pode processar? Cliente   Terceiros Sob qual legislação? Direito contratual Direito comum   Direito comum Direito estatutário Lei de 1933 Lei de 1934 Por que motivo?             Quebra de contrato S NA   NA NA NA Negligência S S   ?* S N Negligência grave S S   S S Incerto Fraude S S   S S S ?* Depende do teste utilizado: ·         Usuário identificado; Usuário previsto; Usuário previsível                 Fonte: Rittenberg et al. (cit. p. 832).  A jurisprudência brasileira, igualmente, é pacífica em afirmar a responsabilidade civil de natureza subjetiva (dependente de prova de culpa) do auditor independente. Nesse sentido já decidiu o TJSP: RESPONSABILIDADE CIVIL - Indenização - Compra e venda de ações - Aquisição supondo o autor o extinto Banco [...] se encontrasse com boa saúde financeira - Pareceres da ré que sistematicamente apontavam nesse sentido - A entidade bancária, entretanto, na prática insolvente, mercê de criminosos estratagemas maquiando sua contabilidade, transformando prejuízos em lucros - Auditoria independente há mais de vinte anos a ali operar, que deveria ter constatado as gritantes irregularidades - Liquidação decretada pelo Banco Central pouco após a aquisição das ações, fazendo com que estas, pura e simplesmente, deixassem de valer o que quer que fosse - Auditor responsável punido pelo Banco Central, proibido de exercer as suas atividades e criminalmente condenado; importando menos haja sido exculpado pelo órgão de classe, a pretexto de não haver agido (a decisão criminal, todavia, entendendo o contrário) com dolo - Responsabilidade da ré pelos danos causados, já que os pareceres ao longo de anos emitidos, por inteiro desbordavam da realidade - Apelo parcialmente provido, para julgar procedente a ação nos termos do acórdão. (TJSP; Apelação Cível 0097558-02.2005.8.26.0000; Relator (a): Luiz Ambra; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 9ª VARA CÍVEL; Data do Julgamento: 12/05/2010; Data de Registro: 17/05/2010). Fixado o pressuposto da responsabilidade do auditor em relação ao contratante e a terceiros, devemos aprofundar com mais detalhes os requisitos para que essa responsabilidade ocorra no caso concreto. O estabelecimento desses requisitos denota inegável importância, uma vez que, embora se afirme a regra de responsabilidade, não se pode, por outro lado, concluir pela responsabilização irrestrita do auditor em todos os casos em que sobrevenha um problema relativo à continuidade empresarial (falência, liquidação, etc.). Como se sabe, em se tratando de responsabilidade civil subjetiva, há de se ter como requisitos: (1) conduta (omissiva ou comissiva) de natureza culposa; (2) nexo de causalidade; (3) dano. Vejamos a seguir cada um desses requisitos para a hipótese em estudo. No tocante à conduta culposa, é preciso que haja prova que o auditor se omitiu em externar sua opinião, em caso no qual deveria fazê-lo (evidência de descumprimento de dever normativo). Nem sempre é fácil e simples concluir pelo risco à continuidade operacional, mesmo para o auditor independente. Nesse aspecto, entendemos que, se restar evidenciada conduta omissiva do auditor em hipótese em que as demonstrações contábeis apresentavam os exemplos supracitados que a norma NBC TA 570 indica como situações que podem levantar dúvida significativa quanto à capacidade da entidade de manter sua continuidade operacional (p.ex.: passivo a descoberto ou patrimônio líquido negativo), haverá forte elemento de prova a demonstrar que o auditor não cumpriu seu dever de informar (apresentando opinião com ressalvas, adversa, etc.), cabendo a este último eventual prova em contrário com relação ao cumprimento do dever normativamente imposto. No tocante ao nexo de causalidade, será preciso que se evidencie que da conduta omissiva do auditor se originou um dano ao contratante ou ao terceiro. Uma boa forma de se pesquisar a existência do nexo de causalidade é a verificação de eventual mudança de conduta da parte lesada, se hipoteticamente eliminada a omissão do auditor. Constatando-se, por exemplo, que o contratante ou o terceiro modificariam sua decisão se o auditor agisse positivamente, apontando riscos à continuidade operacional, estará estabelecido o nexo causal. Algumas questões são ainda relevantes quanto ao nexo de causalidade. A primeira é que o nexo causal deve ser observado sempre em relação a um limite temporal futuro relevante em relação às demonstrações contábeis analisadas (há quem preconize lapso máximo de um ano). Com efeito, não será possível que se estabeleça nexo entre eventual omissão de auditor referente a demonstrações elaboradas há mais de uma década de um desfecho falimentar, o que equivaleria a obrigar o auditor a prever riscos em futuro longínquo, algo que não se mostra razoável. Tal circunstância poderá, evidentemente, ser objeto de debate em cada caso concreto. A segunda é que o nexo de causalidade deve ser estabelecido diretamente entre a omissão do auditor e o dano ocasionado. Assim, embora omisso o auditor em informar o risco à continuidade operacional, entendemos que tal omissão não dará causa ao dano se a própria administração da entidade revelou tais riscos (p.ex.: em nota explicativa, fato relevante, etc.) ou se o risco à continuidade operacional era evidente pela conduta anterior da administração ou pela análise superficial das demonstrações contábeis (p.ex.: atraso ou suspensão de dividendos que faça presumir a situação de dificuldade financeira). Nesses casos, é de se presumir que o usuário da informação contábil conhecesse a situação da entidade auditada e não modificasse sua decisão, ainda que o auditor independente o informasse a respeito. Finalmente, estabelecidos os pressupostos anteriores, no tocante ao dano, como já ressalvamos alhures2, não há limitações quanto ao montante indenizável, dado que, no Brasil, não há qualquer dúvida quanto ao cabimento de valores imateriais, morais e mesmo lucros cessantes (futuros) nas verbas indenizatórias devidas pelo auditor. Entendemos, porém, que o dano há de decorrer de um evento falimentar efetivo, com cessação (descontinuidade) das atividades empresariais (falência, liquidação ou congênere), uma vez que a responsabilidade do auditor não abrange dever de informar quanto a futuras situações de crise empresarial que imponham restrições ao crédito de partes interessadas, mas não acarretem descontinuidade operacional. __________ 1 RITTENBERG, Larry E. et al. Auditing - A business risk approach. Ohio: South-Western Cengage Learning, 2010. 2 PEREIRA, Alexandre Demetrius. Auditoria das demonstrações contábeis: Uma abordagem contábil e jurídica. São Paulo: Saraiva, 2018.
Minha intenção inicial ao escrever este texto era a de contribuir propondo uma reflexão sobre a necessidade de termos uma maior aproximação com a análise econômica do direito nos processos de insolvência, em razão do caráter econômico dos institutos da lei 11.101/2005. Empiricamente, nos 8 anos que tenho a oportunidade de julgar processos de falência, recuperação judicial e extrajudicial (esta, infelizmente, em muito menor volume de processos), tenho visto uma alta carga de judicialização que, consequentemente, ocasiona um nível de intervenção estatal incompatível com o espírito de negociação que deve ocorrer nessas situações. Na atual quadra, com o advento do PL 03/2024 e das muitas discussões e polêmicas que o circundam, a ideia inicial desta coluna foi reforçada. Explico o porquê. Um dos pontos-chave quando da apresentação de tal projeto de lei era a de conferir aos credores a possibilidade de maior participação nos destinos dos processos de falência, através da nomeação de um gestor fiduciário, que estaria incumbido de apresentar e executar um plano de falência, no qual estariam dispostas as medidas de liquidação dos ativos (sem a necessidade de intervenção judicial - com menor burocracia sustentavam os autores) e pagamento dos credores, segundo a ordem prevista na lei. Apesar das discussões envolvendo a figura do gestor fiduciário e das dúvidas que pairavam no texto original do projeto de lei, pouco ou quase nada se atentou para a falta de cultura de participação efetiva dos credores nos processos de insolvência. E podemos afirmar que o nível de participação dos credores nos processos de insolvência guarda relação direta com o nível de judicialização e intervenção estatal em tais processos. Ou seja, quanto maior a intervenção do Poder Judiciário, menor a intervenção das partes na solução das questões. Com o advento da lei 14.112/2020, o direito das empresas em crise experimentou aprimoramento de seus institutos e a ele foram incorporados novos instrumentos, tudo com vistas à melhoria de sua eficiência, sob a justificativa de que, ao final, haveria melhoria do ambiente econômico brasileiro (inclusive com redução da política de juros - um dos argumentos para a propositura do PL 03/2024). Mas esse argumento, de que o sistema de direito das empresas em crise possui relevância para a economia brasileira, vem desde o nascedouro da lei 11.101/2005, como bem descrito no relatório do Senador Ramez Tebet1, por ocasião da discussão e construção da lei através da tramitação do PLC 71/2003 no Congresso Nacional, verbis: Em resumo, o quadro econômico, político e social mudou dramaticamente. A realidade bem-comportada do pós-guerra verdadeiramente explodiu numa miríade de novas estruturas sociais e econômicas cujas fronteiras são imprecisas e de caráter ainda pouco definido. A realidade sobre a qual se debruçou Trajano de Miranda Valverde para erigir esse verdadeiro monumento do direito pátrio, que é a Lei de Falências de 1945, não mais existe. Como toda obra humana, a Lei de Falências é histórica, tem lugar em um tempo específico e deve ter sua funcionalidade constantemente avaliada à luz da realidade presente. Tomar outra posição é enveredar pelo caminho do dogmatismo. A modernização das práticas empresariais e as alterações institucionais que moldaram essa nova concepção de economia fizeram necessário adequar o regime falimentar brasileiro à nova realidade. Não podemos menosprezar um importantíssimo aspecto da Lei 11.101/2005: o seu caráter econômico. Seja em qualquer modalidade de procedimento nela prevista (negociação antecedente, recuperação extrajudicial, recuperação judicial e falência), em todos eles há um objetivo implícito que é a busca de melhor eficiência no âmbito econômico de mercado. Ainda assim, temos caminhado para uma excessiva judicialização de questões que acabam por mascarar os aspectos econômicos ligados ao tema. Na negociação antecedente, prevista no art. 20-B e na recuperação extrajudicial é mais fácil observarmos essa característica econômica, pois ambos são institutos nos quais prevalece a negociação entre as partes, havendo pouco espaço para a intervenção judicial. A falência, por se tratar de um procedimento de liquidação, na qual se deva buscar a realocação de ativos da falida no mercado de maneira célere (art. 75, I e II, LRF), bem como o oferecimento do fresh start para o empresário malsucedido naquele empreendimento específico (art. 75, III, LRF), possui uma dinâmica mais estática e com seu viés jurídico mais acentuado, mas com bons espaços para uma maior participação dos credores, seja pela própria figura do Comitê, seja previsão dos arts. 142, V, 144 e 145, da lei 11.101/2005. Já na recuperação judicial, tema ainda privilegiado no ambiente jurídico, o aspecto econômico é fundamental, por se tratar de um instituto do direito de insolvência voltado a conferir uma oportunidade à determinada atividade empresarial de superação de uma situação de crise econômico-financeira momentânea, na qual a solução será dada pelo mercado (credores), mediante um processo com supervisão do Poder Judiciário2: O desenho da recuperação judicial no PLC nº 71, de 2003, salvo pequenos ajustes, é adequado às necessidades das empresas brasileiras. Extinguindo a ineficiente concordata - que se limita a uma moratória das dívidas do concordatário, incapaz de soerguer devedores em dificuldade - o projeto abre um amplo leque de possibilidades de reorganização e aumenta, assim, as chances de recuperação efetiva das empresas. O Projeto também acerta ao apontar os credores - que participam do mercado em que está inserido o devedor e são, afinal, os maiores interessados no êxito do processo - como as pessoas mais indicadas para decidir acerca da viabilidade do plano de recuperação preparado pelo devedor. Em abandono ao instituto da concordata, cuja solução era eminentemente legalista e com alta intervenção judicial, o legislador buscou conferir, através da recuperação judicial, uma solução de mercado à superação da crise da empresa, mediante a discussão e eventual aprovação pelos credores do empresário de um plano de soerguimento por ele apresentado. Isso porque a recuperação de uma atividade empresarial necessita de soluções econômicas para que haja possibilidade de sucesso. Depende de escolhas inerentes ao exercício da livre iniciativa e somente aqueles que estão no mercado é que possuem condições de avaliar se as escolhas propostas pelo empresário podem ser suscetíveis de êxito no âmbito do empreendedorismo. O soerguimento de uma atividade depende de um plano realista e consentâneo com elementos de mercado e é dependente do contexto econômico no qual será aplicado. Mas a sua construção deve respeitar os limites legais, de ordem processual e material, existentes no ordenamento jurídico, com vistas à garantia de higidez do procedimento e da livre manifestação de vontade das partes, num ambiente de transparência e supervisão judicial. A jurisprudência é uníssona sobre esse entendimento. Os precedentes dos Tribunais de Justiça do país e do Colendo Superior Tribunal de Justiça ressoam ser dos credores a titularidade da análise de viabilidade da atividade empresarial, para fins de recuperação judicial, competindo ao Poder Judiciário apenas o controle sobre os aspectos de legalidade do plano votado, sem poder se imiscuir nos aspectos econômicos discutidos. O problema enfrentado, atualmente, é a escorreita depuração sobre quais seriam elementos de ordem econômica e quais seriam elementos de ordem legal, para fins de controle do plano votado. A jurisprudência já tem alcançado diversas definições, mas o dinamismo da atividade empresarial sempre proporciona novos desafios a serem apreciados. Outro ponto que não pode ser desconsiderado no âmbito dos processos da Lei 11.101/2005, em virtude da sua natureza econômica, são os poderes econômicos existentes e, por vezes divergentes, revelados nas pessoas dos credores que buscam recuperar os investimentos feitos na atividade empresarial. E tais poderes econômicos irão se mostrar conforme a natureza do crédito sujeito e o vulto do investimento realizado na empresa. Assim, alguns credores podem assumir alguma posição de superioridade em relação a outros, como decorrência natural dos investimentos por eles realizados ou por negociações mais promissoras que lhes garantiram uma condição mais vantajosa no ambiente de negociação da recuperação judicial. É importante que essa dinâmica seja preservada em respeito à confiança dos investidores no sistema. Certamente aquele que intenciona maior volume de investimentos numa atividade empresarial espera o retorno econômico de suas ações e, caso enfrente uma situação de crise do seu parceiro comercial, terá a legítima expectativa de preservar seu poder de negociação no plano a ser apresentado, na proporção dos investimentos realizados ou das garantias que detém, presumindo-se a boa-fé nas relações predecessoras que lhe conferiram tal posição econômica. O que deve ser coibido pelo Poder Judiciário é o abuso de determinado poder econômico, que poderá se revelar por uma imposição irracional de sua vontade contra a possibilidade concreta de soerguimento da atividade, assim reconhecida pelos demais credores, ou mediante a imposição de sacrifícios desproporcionais ao devedor e aos demais credores em posição menos vantajosa, para o atendimento exclusivo de um direito descurado de sua função social por macular as finalidades contidas no art. 47 da lei 11.101/2005. Ainda assim, é preciso compreender de uma vez por todas uma premissa básica, muitas vezes esquecida nos processos envolvendo a lei 11.101/2005: reestruturar uma atividade econômica, seja pela sobrevivência da empresa ou pela realocação de ativos, envolve analisar aspectos econômicos, muito mais do que readequações jurídicas. Segundo Eduardo Lemos3: As linhas de ações necessárias para recuperar empresas englobam um campo muito mais amplo daquele ao qual se confina o trâmite judicial. Um arguto discernimento nas áreas comercial, financeira e de produção, e uma vigorosa implementação executiva dos fundamentos da Administração de Empresas devem ser respectivamente vistos e aplicados através de múltiplas lentes de competência conforme professa a disciplina do Turnaround Management. Infelizmente, o Brasil ainda carece de uma cultura de negociação no âmbito judicial. Embora nos últimos anos o legislador e o próprio Poder Judiciário tenham incentivado a existência de soluções extrajudiciais por meio de diversos institutos, tais como a mediação, a conciliação e a arbitragem, a cultura jurídica brasileira ainda é de se recorrer ao ajuizamento de demandas para solução de todos os problemas. Deste primeiro ponto decorre a outra situação que impõe dificuldades para maior efetividade dos processos envolvendo o Direito das Empresas em Crise: a aplicação do direito no Brasil é excessivamente fundada na dogmática, decorrente de uma metodologia retórica deontológica. Como bem salientam Luciano Benetti Timm e João Francisco Menegol Guarisse, ao promoverem breve estudo sobre a análise econômica do contrato, verbis: O estudo dogmático necessita de crenças a priori, que não repousam sobre hipóteses cientificamente verificáveis (como por exemplo, as interpretações bíblicas ou do Corão, que dependem da crença na existência de Deus pelo intérprete). Na dogmática jurídica não é diferente. Pugnar pela "constitucionalização do Direito Civil", exemplificativamente, supõe uma crença a priori na superioridade normativa da Constituição. Não há teste observável para isso. Vale dizer, não há uma realidade subjacente que se queira descrever. Em outras palavras, teorias jurídicas dogmáticas do contrato nada dizem sobre a realidade das partes e do fenômeno social subjacente ao contrato. Ao se aplicar o Direito a partir de uma visão dogmática, na qual a construção de uma solução muitas vezes se vale da aplicação de princípios, há, inexoravelmente, uma carga de subjetividade presente advinda do aplicador da norma. Isso é perfeitamente perceptível quando, numa determinada situação, há diversas formas de se pensar e aplicar o direito posto. Nesse contexto, a Análise Econômica do Direito (AED), pode ser um relevante instrumento de ampliação na aplicação do Direito, unindo-se ao dogmatismo hermenêutico já praticado, para que se avaliem as situações da realidade que estão presentes no caso concreto, bem como as alternativas normativas existentes para conferir uma maior objetividade na solução imposta. A AED não se circunscreve, simplesmente, a aplicar elementos da economia na interpretação e aplicação do Direito no caso concreto. Ela vai além. Segundo definição de Lionel Robbins4: "Economics is the science which studies human behavior as a relationship between ends and scare means which have alternative uses." Para que se tenha uma melhor compreensão da dimensão da AED, é preciso relacionar a economia como uma metodologia para a tentativa de compreensão de toda e qualquer decisão individual ou coletiva que verse sobre recursos escassos (a escassez de recursos é uma premissa básica da ciência econômica), seja no ambiente de mercado, seja ambiente de relações pessoais, seja no ambiente que envolva o Poder Judiciário. Desse modo, é possível considerar que é passível de análise econômica qualquer atividade humana que tenha impacto na sua esfera pessoal e na de terceiros. Muitos juristas possuem uma percepção equivocada de que a ciência econômica normalmente se relaciona com equações matemáticas, ou à ideia de subserviência do direito à economia. Não é nada disso. A economia é capaz de descrever a fundamentação de vários comportamentos racionais humanos, que estão além da garantia sobre a maximização monetária ou sobre o bem-estar subjetivo. A aplicação da AED na lei 11.101/2005 auxiliará na análise do conjunto de regras que permitirão a aferição dos custos e benefícios de determinado comportamento (INCENTIVOS) dentro de cada um dos institutos nela previstos, considerando: a escassez de recursos a serem partilhados entre os credores; custo de oportunidade - escolha de uma opção em detrimento de outra - se o melhor caminho para a reaver o crédito investido na empresa é o da cooperação na recuperação judicial ou da liquidação na falência; a ideia da racional maximizadora, considerando o elemento de falibilidade humana já apregoado pelos neoinstitucionalistas ou até mesmo por Posner, quando trata da heurística da oportunidade e; resposta aos incentivos dados pelo arcabouço jurídico, incluindo, aqui, a forma como o Poder Judiciário tratará de determinados assuntos dentro do âmbito da lei 11.101/2005. Outro ponto importante da AED, que com ela não se confunde, mas está associada à sua aplicação é o consequencialismo jurídico, já positivado no art. 20 LINDB - Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. Logo, ao considerarmos a aplicação da AED na lei 11.101/2005, haverá, necessariamente, abertura para o caminho do diálogo e da negociação entre os credores, auxiliando na construção de uma cultura de maior participação das partes nos processos de insolvência, justamente pela avaliação dos custos e benefícios que determinada alternativa do caso concreto possa apresentar. Somente considerando os aspectos econômicos das questões e alternativas envolvidas é que haverá maior propensão das partes para negociação efetiva dos meandros de uma operação empresarial, seja em sede de recuperação judicial ou extrajudicial, seja na própria falência. De outro lado, com a aplicação da AED, o Poder Judiciário disporá de uma ferramenta mais objetiva que permitirá melhor depuração das questões que lhe são apresentadas, circunscrevendo-se ao enfrentamento daquelas que possuam natureza jurídica e remetendo aos players a solução das questões de ordem econômica, tal como pretendido pelo legislador e reconhecido pela jurisprudência. Por fim, cabe aqui um registro: é da essência do Estado Democrático de Direito a pluralidade de ideias, muitas delas contrapostas e divergentes. Não é através de discursos carregados de acusações genéricas e com desconhecimento sobre a realidade de determinados assuntos que haverá a busca da melhor solução para a prosperidade social e econômica de nosso país. Nossas instituições necessitam de maior aproximação e diálogo, a fim de que os institutos jurídicos possam alcançar a efetividade que deles se espera. Ouvir é necessário, inclusive a comunidade jurídica que atua diária e diretamente com o sistema de insolvência brasileiro, tal como realizado na reforma que culminou com a lei 14.112/2020. A participação do Poder Judiciário, da academia e de demais setores da sociedade apenas contribuirá para que o aperfeiçoamento legislativo não se transforme numa externalidade cujo custo será suportado exatamente por aqueles que necessitam de um sistema de insolvência moderno, transparente e eficiente, ou seja, a sociedade brasileira como um todo. ____________ 1 Disponível aqui. Consultado em 09 de dezembro de 2023 2 LEMOS, Eduardo. Viabilizando a Recuperação Sem ou Além da Lei. Direito das Empresas em Crise: Problemas e Soluções. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo e Francisco Satiro. coord. São Paulo. Quartier Latin. 2012. Página 80. 3 ROBBINS, Lionel. An essay on the nature and significance of economic science. London. Macmillan. 1932. Página 15. Disponível aqui. Acesso em 02 maio 2023.
terça-feira, 19 de março de 2024

O desvirtuamento do PL 3/24

O Ministério da Fazenda, com o propósito de aprimorar o sistema de insolvência brasileiro, apresentou o PL 3/24 que trazia duas grandes novidades. A primeira, e a mais importante delas, é a criação do plano de falência. A ideia é fazer com que o cumprimento dos atos de venda e pagamento dos credores no processo falimentar seja feito de forma desburocratizada e substancialmente extrajudicial. É de conhecimento de todos que atuam nessa área que o processo de falência demora muito tempo em razão da burocracia do procedimento. Todos os atos do processo de falência precisam ser autorizados judicialmente e o juiz, por sua vez, tem que dar a oportunidade de manifestação ao Administrador Judicial, aos credores, à devedora e ao Ministério Público. Isso faz com que simples atos como a autorização da venda de um bem, ou a autorização da realização de um acordo, ou até mesmo a ordem de pagamento dos credos demore meses ou até mesmo anos. O plano de falência funcionaria com um plano de recuperação judicial. O administrador judicial apresenta um plano, que será aprovado pela maioria dos credores e homologado pelo juiz (que realiza o controle de legalidade). A partir daí, o Administrador Judicial cumpre o plano extrajudicialmente, com poderes devidamente já outorgados pelos credores e pelo juízo. Certamente, essa metodologia seria capaz de reduzir drasticamente o tempo da falência e, só pela economia de tempo, implicaria em sensível melhora no recebimento de valores pelos credores. A segunda novidade seria a possibilidade de os credores também poderem indicar o administrador judicial. Portanto, os administradores judiciais poderiam ser nomeados não apenas pelo juiz, mas também pelos credores. O projeto deu um nome diferente para o administrador judicial nomeado pelos credores, mas substancialmente são exatamente a mesma figura. Mas mesmo o anteprojeto, ou a versão original do PL 3/24, pecou pelo erro de comunicação. O projeto nunca teve a intenção de restringir a atuação dos administradores judiciais. Ao contrário, a ideia era ampliar sua possibilidade de atuação, autorizando sua entrada no processo de falência também pela decisão dos credores. E não só isso. Em momento algum do desenvolvimento dessas ideias se pretendeu restringir o necessário debate com a sociedade para a implementação de mudanças relevantes no sistema de insolvência. O processamento no regime de urgência constitucional foi decisão política que, juntamente com a falha de comunicação acima mencionada, transformou o projeto numa polêmica. Finalmente, foi apresentado o substitutivo ao PL 3/24 que o desfigurou completamente através da inclusão de três novidades que têm o potencial de destruir a eficiência das mudanças propostas e, mais do que isso, certamente - se aprovadas - vão prejudicar o normal funcionamento do sistema posto. O estabelecimento de mandato de 2 anos para os administradores judiciais é altamente prejudicial à profissionalização dessa função, representando medida de estímulo antieconômico que afastará dessa atividade os melhores profissionais. A limitação da remuneração dos administradores judiciais ao teto de remuneração do funcionalismo público também não faz sentido. Primeiro, porque a administração judicial é atividade privada, de livre iniciativa. E porque os custos de uma administração judicial certamente superam o valor do teto de salário de servidor, já que se trata de atividade que envolve a contratação de equipe numerosa e qualificada, não sendo exercida de forma isolada por uma única pessoa. Ademais, isso vai funcionar como desestímulo para a atuação de profissionais de mercado nesse tipo de atividade, o que contraria a própria essência da lei 11.101/05. A introdução de um período de quarentena de dois anos para administradores judiciais após sua atuação em um caso, limitando sua nomeação por um mesmo juízo, é uma medida que merece críticas substanciais. Esta disposição, embora possa ter sido concebida com a intenção de promover a diversidade e impedir a monopolização das nomeações por um pequeno grupo de administradores, na prática, pode ter efeitos contraproducentes. Nessa situação, ao invés de garantir a qualidade e a integridade do processo de insolvência, tal medida vai invariavelmente afastar administradores judiciais altamente qualificados e experientes do mercado.  Essas alterações legislativas irão, paradoxalmente, reduzir a qualidade da administração judicial em detrimento da própria eficácia e justiça que o sistema de insolvência procura assegurar. A proposta de alteração do quórum de instalação de AGCs e de aprovação de planos, exigindo maioria do crédito total e de credores por cabeça também deve ser criticada. Essa medida vai inviabilizar a instalação de Assembleias e a provação de planos em praticamente quase todos os casos. Na prática, o absenteísmo de credores é grande e isso é uma realidade que não pode ser ignorada pelo legislador. Imagine numa assembleia de condomínio se fosse exigido que as decisões teriam que se aprovadas por mais da metade do total de condôminos, e não do total daqueles que comparecem ao conclave. Isso inviabiliza qualquer solução. Conclui-se, assim, que apesar das boas novidades trazidas pelo PL 3/24, a sua tramitação apressada e as inclusões do substitutivo apresentado ao Parlamento o transformaram numa peça incapaz de trazer melhoria ao sistema e com potencial enorme de causar prejuízos de difícil reparação ao tratamento da crise da empresa no Brasil.
O direto das empresas em dificuldade tem por objetivo solucionar a crise da empresa e, para tanto, as regras jurídicas buscam tal desiderato no tratamento dos créditos e débitos do empresário e sociedade empresária em crise. Os interesses dos credores e dos devedores, reunidos no mesmo ambiente, buscam uma solução de reerguimento, concretizada no plano de recuperação judicial. A lei 11.101/2005 inaugurou novo sistema no tratamento da empresa em crise, dando início a um movimento de reequilíbrio do eixo devedor/credores, o que foi aprimorado com a reforma de 2020 (lei 14.112), tendo como um dos seus pilares a possibilidade de apresentação do plano de recuperação judicial pelos credores (PRJC). O PRJC existe para não ser utilizado, ao contrário do que se pode imaginar. É um instrumento de (re)equilíbrio de forças. O devedor, na lei brasileira, tem a legitimidade exclusiva em decidir se, e quando, vai ingressar em juízo com uma medida para enfrentar a crise da empresa vivenciada (recuperação judicial, extrajudicial ou medidas de prevenção). Em países mais avançados e experimentados no tema, o equilíbrio é algo bem consolidado. Nos EUA, qualquer credor pode postular a recuperação judicial do devedor (involuntary petition), nos termos do parágrafo 1.121 (c) do Chapter 11 do US Bankruptcy Code. Na França, não só qualquer credor pode fazê-lo, como também o Ministério Público e os empregados (Art. 631-19, I, al. 2 do Código Comercial francês). A previsão do PRJC foi objeto de artigo publicado na presente coluna Insolvência em Foco, no idos de 2021, de autoria de Alberto Camiña Moreira1. Passados três anos de vigência da reforma de 2020, nos permitimos revisitar o tema e amadurecer um pouco mais a sua relevância, como instrumento de negociação das dívidas.  Hipóteses de apresentação do PRJC A inovação trazida pela lei nº 14.112/2020, somente é aplicável aos processos de recuperação judicial iniciados após o início de vigência da reforma2, a qual introduziu na legislação recuperacional duas hipóteses em que será facultado aos credores apresentar um plano de recuperação judicial: (a) após o decurso do prazo do stay period, sem que tenha havido deliberação sobre o plano de recuperação judicial do devedor e (b) após a rejeição do plano em assembleia geral de credores. A primeira hipótese (art. 6º, §4º-A3) evidencia o intuito do legislador de privilegiar a possibilidade de apresentação do plano pelo próprio devedor, isto é, garantir que caberá ao próprio empresário (pessoa natural ou jurídica) propor a forma pela qual pretende se reestruturar. Não nos parece, no entanto, ter sido a melhor opção legislativa. Os credores são tão importantes quanto o devedor na sistemática econômica do direito das empresas em dificuldade, devendo ter sido concedido a esses o direito de também darem início a um processo de recuperação judicial, equilibrando as forças entre tais agentes, em benefício do mercado, tendo como consequência a antecipação da crise em razão de um controle recíproco, como se dá nos sistemas francês4 e norte americano5. A própria redação do dispositivo em comento indica que, em se tratando de mera faculdade, ao não ser apresentada qualquer proposta de plano pelos credores, na hipótese de inércia do devedor, após o stay period, o processo de recuperação judicial seguirá normalmente seu rumo, sendo possível a convocação de assembleia geral de credores para deliberação do plano apresentado posteriormente pelo próprio devedor. Assim fica bem identificado o eixo de equilíbrio devedor/credores, não sendo peremptória qualquer ação/omissão dos credores nesse sentido. Ademais, mesmo apresentado o plano alternativo pelos credores, o devedor pode, ainda que fora do prazo inicialmente previsto, juntar sua proposta de reestruturação, abrindo-se, em consequência, um caminho de diálogo e negociação entre as partes, o que é absolutamente compatível com o objetivo do instituto recuperacional6. A segunda possibilidade de apresentação do plano pelos credores se verifica no caso de rejeição da proposta elaborada pelo devedor, por ocasião da realização da assembleia geral de credores (art. 56, §§4º a 7º7). O §4º que antes previa a falência como consequência da rejeição do plano8 foi reformado para determinar ao Administrador Judicial que, no mesmo ato da assembleia, havendo reprovação do plano, submeta à votação dos próprios credores a concessão de prazo para elaboração de um alternativo (art. 56, §4º). Trata-se de norma cogente que obriga o auxiliar do juízo a assim proceder quando verificada a rejeição do plano apresentado pelo devedor.  Análise Paralela (negocial) Como já é possível perceber da análise feita acima, o aspecto negocial que se abre a partir da possibilidade de apresentação de um plano de recuperação judicial pelos credores é, a nosso ver, a principal novidade que iremos experimentar da novel legislação. O exame das condições impostas no já mencionado art. 56, 6º permite-nos refletir mais sobre a perspectiva de maior diálogo que o PRJC inaugura. De início, além do exame dos requisitos autorizadores do cram down (art. 56, §6º, inciso I), faz-se necessário cumprir as exigências constantes do art. 53 (art. 56, §6º, inciso II), sendo preciso que o PRJC apresente: (i) discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados e seu resumo; (ii) demonstração de sua viabilidade econômica; e (iii) laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor. Referido requisito é questionável na medida que impõe um ônus considerável aos credores diante do déficit informacional existente para que obtenham dados próprios do devedor. Sobre o tema, assevera Marcelo Sacramone que "o requisito não se justifica. Para além do fato de que os credores não terão acesso aos bens do devedor e às condições para a realização de laudo, o qual tampouco poderia ser produzido em lapso temporal tão curto, referidos laudos já constarão no processo diante de sua apresentação obrigatória pelo próprio devedor. Esses laudos não exigem qualquer alteração, pois a circunstância econômica do devedor, ou seus ativos, não sofreu alterações substanciais do período de rejeição do plano originário até a apresentação do plano alternativo, de modo que não precisam ser substituídos ou reapresentados."9 Ademais, nesse ponto, é possível questionarmos a viabilidade da apresentação de um plano factível pelos credores, considerando a existência de tal assimetria informacional quanto aos dados necessários para tanto. É realmente difícil imaginar como um único credor ou um grupo deles poderá ter acesso substancial a informações relevantes sobre o real estado econômico-financeiro do devedor sem contar com mínima cooperação deste último. Para tanto, tem o devedor o dever de cooperar, o administrador judicial deverá atender as demandas informacionais dos credores, podendo, inclusive, o próprio juízo recuperacional ser instado para concessão de medidas necessárias à supressão do natural déficit de informação dos credores. Comentando sobre a exigência feita em relação aos laudo econômico-financeiro, Paulo Penalva Santos assinala que o "laudo deve conter informações sobre a estruturação das operações sugeridas pelos credores e consequentes impactos tributários, regulatórios, necessidade de eventual obtenção de financiamentos adicionais, novos recursos, etc., que devem ser fornecidas pelo devedor"10. Desta feita, parece-nos essencial que, para a construção de uma proposta de reestruturação séria e exequível, os credores precisam ter mesmo acesso amplo a esse conteúdo. A terceira condição imposta pela lei diz respeito ao apoio substancial da proposta por parte dos demais credores (art. 56, §6º, inciso III). Ao exigir, alternativamente, o apoio prévio, por escrito, de um quarto (25%) da totalidade dos créditos sujeitos à recuperação judicial ou 35% dos créditos dos credores que compareceram na AGC em que rejeitado o plano do devedor, a lei almejou ter um mínimo de apoio para que a proposta seja levada à votação, dispensando-se planos que não apresentem adesão relevante e que, portanto, não têm a mínima representatividade. A quarta e quinta condições inseridas pelo legislador impõem que o plano não impute obrigações novas aos sócios do devedor, que não sejam derivadas da lei ou de contratos anteriormente celebrados (art. 56, §6º, inciso IV) e obrigam a renúncia, pelos credores apoiadores do plano e por todos aqueles que o aprovarem, das garantias pessoais prestadas por pessoas naturais em relação aos créditos novados (art. 56, §6º, inciso V). Esta última imposição é questionável. Isto porque o próprio artigo 49, §1º11 determina que a novação decorrente da aprovação do plano não atingirá coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, exceto se expressamente houver concordância dos credores. Sendo assim, é certo que a condição impõe um ônus muito alto aos credores, inexistente no âmbito de um plano proposto pelo devedor. Não é mesmo compreensível o ônus ora imposto pelo legislador ao credor a fim de lhe facultar a propositura de um plano. Em alguns casos, acaba-se por anular o próprio direito conferido ao credor de elaborar um plano alternativo, tendo em conta que o sacrifício decorrente para tanto pode não ser suficientemente atrativo12. Veja-se que, ao renunciar a garantia, o credor passará a figurar como quirografário. O fundamento para a inclusão da indigitada condição, explica Sacramone, seria a "impossibilidade de os garantidores serem prejudicados por uma deterioração das condições da recuperanda em virtude do plano alternativo apresentado pelos credores, o que exigiria que os referidos credores satisfizessem em maior parte o crédito que garantiram"13. No entanto, tal premissa se baseia em uma presunção precipitada de que, como o plano alternativo é apresentado pelos credores, necessariamente as condições para o devedor seriam piores, o que não necessariamente será verificado. Além de encerrar um pensamento consideravelmente pessimista das perspectivas do plano alternativo, ainda que reconheçamos a probabilidade de que naturalmente os credores escolham privilegiar seus créditos, não se coaduna com a própria ratio da norma de permitir uma solução mais ajustada aos interesses de todas as partes em alternativa à quebra, situação, na maioria dos casos, pior para todos. Manoel Justino Bezerra Filho observa que o rigor de tal exigência pode vir a desanimar fortemente os credores a apresentar um PRJC, sobretudo considerando a possibilidade de serem posteriormente responsabilizados pelo insucesso da aprovação de um plano que cause prejuízos ao devedor14. Com todas as vênias ao ilustre professor, não concordamos com tal hipótese, eis que os credores teriam agido em exercício regular de direito, com fundamento na lei, salvo se identificada fraude ou ato ilícito, sob os cânones do instituto da responsabilidade civil; por evidente, também aplicável ao próprio devedor, ao apresentar seu plano. A sexta condição inserta faz menção ao comparativo da falência, ao impor uma avaliação de que o sacrifício determinado ao devedor e aos seus sócios não seja maior do que aquele decorrente de uma eventual quebra (art. 56, §6º, inciso VI). O fundamento de tal regra está no direito norte americano, no denominado best interest of creditors test, hipótese em que uma fórmula de cálculo indica qual deve ser o melhor caminho - aprovação do plano de recuperação judicial ou falência15. Trata-se de um modelo reconhecido e costumeiramente utilizado nos Estados Unidos, com parâmetros bem definidos16, o que não ocorre no Brasil. Assim, o legislador almejou coibir o exercício abusivo do direito por ele conferido aos credores, impondo-lhes um ônus de difícil satisfação - regra extremamente abstrata a ser averiguada na prática. E nesse ponto a reforma de 2020 gerou desequilíbrio na fórmula devedor/credores. Por fim, a possibilidade aventada pelo §7º do art. 56 permite que o plano inclua a previsão de nova hipótese de direito de retirada do sócio do devedor em recuperação em caso de alteração do controle da sociedade por ocasião da capitalização do crédito17. Trata-se de nova hipótese legal, não prevista na Lei nº 6.404/1976 ou no Código Civil sendo, pois, potestativo e podendo ser exercido pelo sócio independentemente de comprovação de prejuízo ou justificativa. Diante de todas as condições dispostas na reforma para que se possa apresentar um PRJC, vemos a construção de um de quadro de grande incentivo à negociação dos credores com o devedor, buscando uma solução conjunta à reestruturação da empresa em crise, assim minorando os custos de todas as partes, da forma em que já ocorre em países mais avançados no tratamento da matéria, como o sistema francês18. Para tanto, é ainda fortemente recomendável o uso do mecanismo de solução consensual previsto no artigo 20-A e seguintes da lei 11.101/2005, também fruto da reforma de 2020.  Conclusão Temos a convicção de que o intento da nova lei foi mitigar a tradicional monopolização da atuação da empresa devedora na seara recuperacional, conferindo ao procedimento um maior equilíbrio de forças, sobretudo, estimulando que a negociação aconteça de forma mais célere ao encorajar também a proatividade do devedor em apresentar uma proposta viável e em tempo razoável, sabedor de que se não o fizer, os credores podem agir em seu lugar. A recém faculdade oferecida de apresentação de um plano de recuperação judicial pelos credores desponta como a abertura de uma janela maior de comunicação entre as partes envolvidas e poderá contribuir para que as discussões se tornem mais exitosas no âmbito do procedimento recuperacional, como já ocorre em diversos países mais avançados no tratamento da matéria, como a França e os Estados Unidos. Ao estimular maiores debates e negociações, parece-nos que a possibilidade de conciliação e a solução consensual dos litígios porventura existentes é mesmo o maior benefício trazido pelo novel instituto, fazendo com que a previsão do plano de credores seja, na prática, algo raro, apesar de importante instrumento de negociação antes, durante e após a assembleia de credores, em prol de todo interesse econômico e social do direito das empresas em dificuldade. __________ 1 MOREIRA, Alberto Camiña. Plano de Recuperação apresentado pelo Credor. Coluna Insolvência em Foco. Disponível aqui. Acesso em 08/03/2023.   2 Art. 5º, §1º, inciso I da lei 14.112/2005. Art. 5º Observado o disposto no art. 14 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) , esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes. § 1º Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência desta Lei: I - a proposição do plano de recuperação judicial pelos credores, conforme disposto no art. 56 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ; 3 Art. 6º § 4º-A. O decurso do prazo previsto no § 4º deste artigo sem a deliberação a respeito do plano de recuperação judicial proposto pelo devedor faculta aos credores a propositura de plano alternativo, na forma dos §§ 4º, 5º, 6º e 7º do art. 56 desta Lei, observado o seguinte: I - as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo não serão aplicáveis caso os credores não apresentem plano alternativo no prazo de 30 (trinta) dias, contado do final do prazo referido no § 4º deste artigo ou no § 4º do art. 56 desta Lei; II - as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão por 180 (cento e oitenta) dias contados do final do prazo referido no § 4º deste artigo, ou da realização da assembleia-geral de credores referida no § 4º do art. 56 desta Lei, caso os credores apresentem plano alternativo no prazo referido no inciso I deste parágrafo ou no prazo referido no § 4º do art. 56 desta Lei. 4 Art. 631-19, I,  al. 2 do Código Comercial francês: Toute partie affectée peut soumettre un projet de plan qui fera l'objet d'un rapport de l'administrateur et sera soumis, ainsi que celui proposé par le débiteur, au vote des classes conformément aux conditions de délai et aux modalités fixées par décret en Conseil d'Etat. (tradução livre: Todas as partes interessadas podem apresentar um projeto de plano, o qual será objeto de um relatório do administrador e será submetido, da mesma forma que aquele proposto pelo devedor, ao voto das classes conforme as condições de prazo e modalidades fixadas em decreto). 5 Parágrafo 1.121 (c) do Chapter 11 do US Bankruptcy Code: Any party in interest, including the debtor, the trustee, a creditors' committee, an equity security holders' committee, a creditor, an equity security holder, or any indenture trustee, may file a plan if and only if - (tradução livre: Qualquer parte interessada, incluindo o devedor, o administrador judicial, o comitê de credores securitizados, o comitê de credores, o credor securitizado ou qualquer agente fiduciário, pode apresentar um plano, sob as seguintes condições: ) 6 Sobre o tema, João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea apresentam três aspectos fundamentais: "O primeiro deles é que a legitimação para apresentar plano alternativo parece ser uma decorrência do simples decurso do prazo do período de proteção. Dessa forma, ainda que o stay period seja prorrogado (...), os credores estão legitimados a apresentar o plano alternativo. De qualquer maneira, considerando as importantes repercussões decorrentes da apresentação de um plano concorrente na recuperação judicial, não se pode descartar a possibilidade de o magistrado, a depender das particularidades das circunstâncias do caso concreto, avaliar as razões da demora na tramitação do processo e se a apresentação de um plano dos credores não pode ser um fator a contribuir ainda mais para o retardo da marcha processual. Em segundo lugar, como o plano do devedor não chegou a ser rejeitado pela assembleia geral de credores, apenas não foi submetido à deliberação, haverá planos concorrentes (devedor e credores). Sendo assim, ao menos teoricamente, continua possível a aprovação do plano do devedor - o qual pode, ainda, ser aprimorado, conforme as dinâmicas de negociação. Em terceiro lugar, caso os credores não manifestem interesse em apresentar plano alternativo na hipótese de vencimento do stay period, não se justifica a convolação da recuperação judicial em falência, dado que as hipóteses do art. 73 constituem rol taxativo. Nesse caso, o plano do devedor apresentado pelo devedor permanecerá sendo o único disponível para deliberação dos credores" SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falências. São Paulo: Almedina, 2023. p. 138. p. 786-787. 7 Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará a assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação. § 4º Rejeitado o plano de recuperação judicial, o administrador judicial submeterá, no ato, à votação da assembleia-geral de credores a concessão de prazo de 30 (trinta) dias para que seja apresentado plano de recuperação judicial pelos credores § 5º A concessão do prazo a que se refere o § 4º deste artigo deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade dos créditos presentes à assembleia-geral de credores § 6º O plano de recuperação judicial proposto pelos credores somente será posto em votação caso satisfeitas, cumulativamente, as seguintes condições:        I - não preenchimento dos requisitos previstos no § 1º do art. 58 desta Lei;       II - preenchimento dos requisitos previstos nos incisos I, II e III do caput do art. 53 desta Lei;       III - apoio por escrito de credores que representem, alternativamente:      a) mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos totais sujeitos à recuperação judicial; b) mais de 35% (trinta e cinco por cento) dos créditos dos credores presentes à assembleia-geral a que se refere o § 4º deste artigo;     IV - não imputação de obrigações novas, não previstas em lei ou em contratos anteriormente celebrados, aos sócios do devedor;       V - previsão de isenção das garantias pessoais prestadas por pessoas naturais em relação aos créditos a serem novados e que sejam de titularidade dos credores mencionados no inciso III deste parágrafo ou daqueles que votarem favoravelmente ao plano de recuperação judicial apresentado pelos credores, não permitidas ressalvas de voto; e    VI - não imposição ao devedor ou aos seus sócios de sacrifício maior do que aquele que decorreria da liquidação na falência.       § 7º O plano de recuperação judicial apresentado pelos credores poderá prever a capitalização dos créditos, inclusive com a consequente alteração do controle da sociedade devedora, permitido o exercício do direito de retirada pelo sócio do devedor.     8 O art. 73, inciso III da lei falimentar previa como efeito imediato da rejeição do plano de recuperação a decretação de quebra do devedor. A Lei nº 14.112/2020 reformou o indigitado dispositivo para prever que, apenas quando não aplicado o disposto nos §§ 4º, 5º e 6º do art. 56, ou rejeitado o plano de recuperação judicial proposto pelos credores, nos termos do § 7º do art. 56 e do art. 58-A, será convolada a recuperação judicial em falência. 9 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 326.  10 E ainda acrescenta que a obrigação referente ao laudo sequer se justifica por ser um documento que o devedor precisaria apresentar para convencer os seus credores quanto à viabilidade do plano por ele elaborado. Em se tratando de proposta de reestruturação dos próprios credores, não haveria razão para apresentação do documento a demonstrar a viabilidade que já estaria implicitamente aceita. SANTOS, Paulo Penalva. Plano Alternativo Apresentado pelos Credores. Revista do Advogado. 2021. Ano XLI, nº 150. Disponível aqui. Acesso em 09/03/2024. 11 Art. 49. § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. No mesmo sentido, o art. 59, caput expressamente determina a novação dos créditos diante da homologação do plano, ressalvando-se as garantias: Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1º do art. 50 desta Lei. 12 Nesse sentido, observa Sheila C. Neder Cerezetti em obra de coordenação de Paulo Toledo: "É de se imaginar que o conteúdo dessa regra terá o condão de impedir a viabilidade de plano de credores em alguns casos. A renúncia à garantia de terceiros imposta pelo dispositivo, sem possibilidade de ressalvas, pode contribuir para que o importante mecanismo do plano alternativo se torne muito menos frequente do que seria ideal." CEREZETTI, Sheila C. Neder. Comentários aos artigos 55 a 59. In DE TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 369. 13 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Op. Cit. p. 327. 14 "Aliás, outro aspecto que, certamente, fará com que credores não se sintam animados à apresentação de plano alternativo deflui do fato de, eventualmente, poder vir a ser estabelecida responsabilidade pelo fracasso do plano. Em tal caso, em tese, aqueles que apresentaram o plano alternativo poderão vir a ser responsabilizados pelo insucesso e deverão responder pelos prejuízos causados. Essa possibilidade de responsabilização do apresentante do plano e, eventualmente, daqueles que votaram favoravelmente, torna-se ainda mais presente no caso de ter havido oposição do devedor ao novo plano. Camila Serrano (pg. 60) ressalta que a LREF não prevê especificamente tal tipo de responsabilização, mas entende que essa ausência de previsão 'não poderá ser motivo para não responsabilizar tais credores que assumem o poder de credores controladores, assim como é a figura do acionista controlador na Lei das Sociedades Anônimas, de modo a punir as condutas lesivas, abusivas e contrárias aos princípios norteadores do processo de recuperação judicial das empresas'." (FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Recuperação de Empresas e Falência - Lei 11.101/2005. 16ª edição. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. p. RL-1.11. Disponível aqui) 15 Tal disposição está prevista no §1129 (a) (7) do Chapter 11 Bankruptcy Code, indicando que cada credor "with respect to each impaired class of claims or interests, (i) has accepted the plan or (ii) will receive or retain under the plan on account of such claim or interest property of a value, as of the effective date of the plan, that is not less than the amount that such holder would receive or retain if the debtor were liquidated under chapter 7 of this title on such date.". 16 A Simplified Approach to the Best-interests Test in Complex Bankruptcies. Tom Morrow, Tim Kreatschman and Mark Hojnakci. American Bankruptcy Institute. Journal Issue: Apr 2003 Column Name: Turnaround Topics, acesso em 30.11.2023. 17 Fábio Ulhoa Coelho, asserta que o plano poderá prever, como forma de satisfação do passivo, "o aumento do capital social da sociedade devedora, com a emissão de novas ações integralizáveis por lançamentos contábeis, a débito de rubrica do passivo e a crédito da rubrica do capital social", convertendo-se, portanto, crédito em participação societária (conversão da dívida em equity). COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 232. Ainda que seja um meio de recuperação atrativo por permitir o abatimento da dívida sem dispêndio direto de recurso da devedora, certo é que para os sócios da sociedade a solução pode vir a provocar a diluição de sua participação social. De todo modo, afigura-se uma boa alternativa à falência em que, irremediavelmente, já seria verificada uma liquidação forçada da participação dos sócios. Sobre o tema, Alberto Camiña Moreira anota que "A efetivação cogente de obrigações é um modo de tutela de direitos quando há previsão legal. No âmbito do processo de recuperação o devedor tem a primazia de liderar tanto a apresentação do plano de recuperação como as próprias negociações. Sendo infrutífera a sua iniciativa, e diante da alternativa da falência, a lei consagra aos credores a possibilidade de uma solução melhor, que consiste no prosseguimento da atividade empresarial nas mãos de outras pessoas, ainda que contra a vontade do devedor. Essa opção da lei, entre a execução forçada do patrimônio da sociedade na falência e a execução forçada da participação do sócio na sociedade que teria a falência decretada, é legítima e não ofende o direito de propriedade." MOREIRA, Alberto Camiña. Plano de Recuperação apresentado pelo Credor. Coluna Insolvência em Foco. Disponível aqui. Acesso em 08/03/2023. 18 Em recente mesa redonda de renomados especialistas na matéria, verificou-se um debate intenso sobre os custos financeiros dos processos de insolvência, incluindo os extrajudiciais. Difficulté des entreprises - Les coûts du traitement des difficultés des entreprises - Entretien. Revue des procédures collectives n° 1, Janvier-février 2024.
Introdução O direito das empresas em dificuldade tem por objetivo dar o tratamento ideal à crise da empresa, proporcionando a reestruturação ou o encerramento do empresário ou sociedade empresária, e, para tanto, identifica o devedor e seus credores como métrica econômica do melhor instrumento aplicável. As possibilidades de soerguimento/liquidação são pautadas em diversos fatores, dentre eles, um dos mais relevantes, é o passivo do devedor em cotejo com seus créditos e capacidade de geração de riqueza. Nesse contexto, não raro o agente econômico em crise possui diversos recebíveis decorrentes de relações jurídicas estabelecidas, nos termos do art. 2º, XIII, "g", da Resolução CVM nº 175, "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas", que foram cedidos a fundos de investimento creditório não-padronizados (FDIC-NP). Diante da efetiva crise da empresa, o questionamento que se põe é a análise do tratamento jurídico dos FDIC-NP, e sua eventual subordinação ao rol de credores sujeitos ao sistema de direito das empresas em dificuldade disposto na lei 11.101/2005, objeto do ensaio a seguir desenvolvido. I. O alcance da crise da empresa A. Reestruturação econômica A lei 11.101/2005 criou um sistema de insolvência empresarial fundado na premissa de que a empresa, por se tratar de atividade indispensável ao bem-estar coletivo e essencial para o desenvolvimento econômico do país, deve contar com especial proteção jurídica. É o denominado princípio da preservação da empresa, previsto no art. 170, III da Constituição da República1 e reproduzido no art. 47 da lei 11.101/20052, que orienta todo o sistema de insolvência empresarial brasileiro. O referido diploma põe à disposição dos agentes empresários (ou seja, aqueles que exercem atividade de natureza empresarial3) os seguintes institutos destinados ao tratamento da crise: (i) as conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de insolvência (pré-insolvência); (ii) as recuperações judicial e extrajudicial e (iii) a falência. Frustrados os esforços por soluções consensuais e identificada a crise como passageira, o sistema da lei 11.101/2005 prioriza a superação da crise econômico-financeira por meio da recuperação (judicial ou extrajudicial). Reúne-se, assim, todos os agentes interessados (devedor e credores) em um único centro de decisões (o juízo recuperacional), criando-se um ambiente favorável de negociação coletiva das obrigações para que, mediante concessões mútuas4, viabilize-se a continuação das atividades empresariais - e, consequentemente, a manutenção da fonte produtiva, geradora de riquezas, tributos e empregos. A falência, por outro lado, exsurge como instrumento legal apto a eliminar do mercado a sociedade empresária que não mais se sustenta, medida extrema que se impõe nas hipóteses em que já não há mais qualquer possibilidade de continuação das atividades5. Quaisquer que sejam os instrumentos utilizados, o enquadramento jurídico dos créditos do devedor em crise, cedidos aos FDIC-NP, a fim de computar seu ativo/passivo, é de relevância crucial para se aferir a capacidade de satisfação dos credores. B. Créditos anteriores à crise da empresa Nos casos em que a crise seja identificada como meramente temporária, o devedor poderá contar com o auxílio estatal para buscar sua superação mediante a criação de um ambiente propício à negociação coletiva entre o devedor e seus credores, ou seja, os maiores interessados na continuação das atividades e na busca por uma solução conjunta. Nesse sentido, o equilíbrio dos interesses dos agentes envolvidos nesse processo é primordial para o alcance do êxito na repactuação das dívidas. A lei 11.101/2005 demonstra essa preocupação em diversas oportunidades, garantindo previsibilidade e segurança às obrigações repactuadas, como na regra inserta em seu art. 496. A aferição da existência do crédito na data do pedido de recuperação judicial leva em conta a data do seu fato gerador, ou seja, a data da fonte da obrigação - e não a data de seu reconhecimento judicial ou mesmo de sua quantificação, como chancelado pelo Superior Tribunal de Justiça7. O marco temporal estabelecido no dispositivo reproduzido acima assemelha-se a uma foto do estado econômico-financeiro do devedor no exato momento do requerimento do processamento de sua recuperação judicial, permitindo uma precisa demarcação do passivo sujeito à negociação coletiva. Permite, assim, não apenas a definição das partes do acordo coletivo, mas também uma decisão fundamentada, por parte do devedor e de seus credores, sobre os mecanismos mais apropriados para reestruturação das atividades. No mesmo sentido, Marlon Tomazette8: A possibilidade de realização da assembleia de credores e de instituição do comitê de credores, tanto na falência como na recuperação judicial, demonstra a necessidade de identificação dos credores do devedor falido ou em recuperação judicial. (...) Na recuperação judicial, a identificação é fundamental para identificar quem fará parte do acordo e, consequentemente, para saber quem poderá se manifestar sobre o plano de recuperação judicial. O disposto no art. 49 da lei 11.101/2005, além de conferir segurança jurídica às partes ao assegurar simetria de informações e transparência, concretiza o próprio espírito que norteia a referida lei no sentido de viabilizar a continuidade da empresa.  Com efeito, durante o trâmite da recuperação, o devedor empresário deve continuar exercendo suas atividades normalmente e, assim, manter regular negociação com bancos, fornecedores, clientes e demais interessados. Se os créditos originados após o pedido da recuperação judicial fossem a esta submetidos, não haveria quem aceitasse negociar com a sociedade empresária em crise, o que inviabilizaria o acesso ao crédito e a continuação da própria atividade empresarial, contrariando a principal diretriz da lei (preservação da empresa). Os parágrafos 1º e 3º do artigo 49 em comento, no entanto, abarcam opções legislativas de exceção à regra geral do caput, as quais, desde já ressaltamos não englobar os créditos cedidos aos FDIC-NP. O parágrafo primeiro9 prevê que, não obstante sujeitos à recuperação judicial, créditos assegurados por garantias cambiais, reais ou fidejussórias podem ser executados em face dos coobrigados, fiadores ou obrigados em regresso. A regra veio a ser confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de julgamento de recurso repetitivo, consolidada no Tema Repetitivo nº 88510 e que originou o enunciado da súmula 58111 da Corte. Já o parágrafo terceiro12 traz a exclusão dos créditos de titulares de propriedade fiduciária em garantia. Nesse caso, não há dúvidas de que se trata de credores que, em apertada síntese, detêm a propriedade resolúvel da coisa para garantia de uma obrigação principal, de modo que satisfeita a dívida, o bem alienado ou cedido fiduciariamente retorna à propriedade do devedor. A exclusão operada pelo dispositivo em comento se dá exatamente para proteger o direito de propriedade do credor fiduciário que pode liquidar o bem a fim de satisfazer (ou amortizar) o seu crédito, o que é confirmado pela jurisprudência iterativa do Superior Tribunal de Justiça. Em diversas ocasiões, aquele Tribunal Superior solidificou a não submissão desse tipo de crédito à recuperação judicial, diante da constatação de que a propriedade (resolúvel) do bem que garante a obrigação é do credor, e não do devedor em recuperação, sendo ainda indiferente o momento em que é performado, se antes ou depois do processamento13. Diversa, no entanto, é a situação dos FDIC-NP, caso em que, como será visto a seguir, o próprio objeto do contrato firmado - ou seja, a obrigação principal contraída - é a transferência da propriedade definitiva (e não resolúvel) dos direitos creditórios. Na pré-insolvência, recuperação extrajudicial e falência o mesmo raciocínio se aplica, por não se tratar o recebível de ativo do devedor em crise. II. Fundos de investimento creditório não-padronizados (FDIC-NP) A. Natureza dos fundos de recebíveis Sabe-se que os fundos de investimento são uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinados à aplicação em ativos financeiros14. Em outras palavras, consistem em veículos de investimento coletivo, cujo objetivo é agrupar recursos de diversas fontes para viabilizar não apenas o acesso a ativos financeiros de maior valor, mas também a repartição dos riscos inerentes aos investimentos de alta monta - que dificilmente seriam suportados por investidores individuais.  Sua operação no mercado se dá, em resumo, da seguinte maneira: a fim de arrecadar recursos para viabilizar a consecução de seu objeto, os fundos de investimento emitem cotas, ou seja, frações representativas de seu patrimônio, que são disponibilizadas para negociação no mercado de valores mobiliários. Os investidores interessados adquirem (rectius: subscrevem15) essas cotas e assim passam a ser cotistas, titulares de uma parcela do patrimônio do fundo. Os recursos obtidos com a subscrição das cotas, por sua vez, são destinados às aplicações financeiras objeto dos fundos de investimento, que pode se afigurar em diversas modalidades: fundo imobiliário, fundo de ações, fundo multimercado, fundo em dívida pública, dentre outros. Para fins deste estudo, interessa-nos especificamente o caso dos FIDC-NP. Atualmente, a definição dos FIDC-NP pode ser identificada na recente Resolução CVM nº 175, de 23 de dezembro de 2022, que constitui o novo marco regulatório dos fundos de investimento em geral, consolidando a matéria em um único ato normativo ao revogar as antigas Instruções Normativas nº 444 (que dispunha sobre os fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados) e nº 356 (que dispunha sobre os fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em cotas de fundos de investimento em direitos creditórios). De acordo com o art. 2º do Anexo Normativo II da Resolução CVM nº 175, entende-se por direitos creditórios não-padronizados aqueles direitos creditórios que possuam ao menos uma das características listadas em seus incisos16. Além disso, o §1º estipula casos em que, ainda que detentores de alguns dos atributos listados nos incisos do art. 2º, os direitos creditórios não serão considerados não-padronizados17-18. Exemplo de um direito creditório não-padronizado pôde ser verificado no recente processo de recuperação judicial do Grupo Light, com a presença do Fundo de Direitos Creditórios Light ("FIDC Light")19. Este último tinha como objeto o investimento em direitos creditórios (recebíveis) inicialmente detidos pelo primeiro. Isto é, o FIDC Light foi constituído para adquirir, na qualidade de cessionário, recebíveis de titularidade do Grupo Light, na qualidade de cedente, oriundos dos serviços de fornecimento de energia elétrica para a população. Assim, o pagamento mensal da "conta de luz" (crédito da empresa devedora) é destinado ao FDIC Light cessionário, sendo que este último, em contrapartida, já adiantou o valor do recebível ao Grupo Light. Note-se desde já que o caso exemplificado se amolda à hipótese prevista no art. 2º, XIII, alínea 'g' do Anexo Normativo II da Resolução CVM nº 175: os créditos adquiridos pelo FIDC Light são "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas" - quais sejam, aquelas estabelecidas entre o Grupo Light e seus usuários/consumidores. A aquisição dos direitos recebíveis pelo FIDC Light é caso clássico do que se denomina true sale, negócio jurídico por meio do qual o cedente/vendedor - no caso, o Grupo Light - transfere a propriedade definitiva de determinados direitos creditórios (recebíveis) anteriormente por eles detidos20. Trata-se, portanto, de operação completamente distinta de um empréstimo ou financiamento em que os recebíveis são dados como garantia fiduciária ao cumprimento da obrigação principal, constituindo-se assim uma cessão fiduciária de créditos - que, como cediço, é modalidade de propriedade resolúvel, ou seja, passível de extinção caso verificada a implementação de uma condição ou termo. Com efeito, o que ocorre frequentemente no mercado é a contratação de mútuos (obrigação principal) garantidos por créditos vincendos (obrigação acessória de garantia), de modo que o originador dos recebíveis os utiliza como garantia do empréstimo contratado. Na hipótese descrita, não há cessão definitiva do crédito: como mencionado, a propriedade do credor fiduciário é resolvida, ou seja, retorna ao titular original, o devedor, quando há a quitação integral da dívida contratada. No caso da true sale, diversamente, o próprio objeto do contrato firmado - ou seja, a obrigação principal contraída - é a transferência da propriedade definitiva dos direitos creditórios (recebíveis), que, portanto, deixam de integrar o ativo do cedente/alienante. O objeto principal do contrato firmado é a compra da carteira de recebíveis. Por este motivo, a situação da true sale, que pôde ser constatada no contrato firmado entre o FIDC Light e o Grupo Light em recuperação judicial, não se confunde com aquelas previstas nas alíneas 'e' ("o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial") e 'f' ("o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial") do art. 2º, XIII do Anexo II da Resolução CVM nº 175. Pelo contrário, amolda-se perfeitamente à definição da alínea 'g', por se tratar "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas". Ainda assim, no caso concreto, houve intensa discussão judicial sobre a inclusão do FIDC Light no rol de credores submetidos à recuperação judicial do Grupo Light, em uma aparente confusão sobre a natureza dos fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados e de seu objeto, conforme será adiante explicitado.         B. Não submissão dos fundos de recebíveis à crise da empresa Conforme anteriormente exposto, em se tratando de recuperação judicial o rol de credores submetido é estipulado no art. 49 da lei 11.101/2005, alcançando todos aqueles detentores de créditos existentes na data do pedido de reestruturação, ainda que não vencidos, e desde que não se enquadrem nas exceções dos parágrafos 1º e 3º do referido dispositivo. No já mencionado caso da true sale, negócio jurídico extremamente comum no mercado de valores mobiliários (e realizado especificamente por fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados para fins de aquisição de recebíveis), o que se verifica é a transferência da propriedade definitiva dos direitos creditórios, constituindo-se hipótese de verdadeira compra da carteira de recebíveis. O objetivo de operações desta natureza é a securitização de crédito: por meio dela, o investidor-cessionário - FDIC-NP paga uma quantia ao titular de recebíveis futuros (no exemplo do caso Light, a própria companhia em recuperação judicial), assumindo os riscos a eles associados - principalmente o risco de inadimplência. O cedente, por outro lado, recebe o preço da cessão imediatamente, desvencilhando-se dos já mencionados riscos inerentes aos direitos creditórios, devendo responder apenas pela sua existência (e não pelo seu adimplemento). A true sale é, portanto, uma cessão perfeita e acabada, em que o cedente efetivamente transfere a propriedade dos títulos e os riscos a eles inerentes ao cessionário. O que pode ser diferido é o fluxo financeiro do recebível cedido, momento em que haverá a transferência da sua posse. Isso porque em operações desta natureza, o recebimento dos direitos creditórios é comumente convergido em um Agente Centralizado, responsável por, posteriormente, realizar a mera transferência da posse dos recursos recebidos para o FIDC-NP- repita-se, o efetivo titular da propriedade destes créditos. Diante do raciocínio desenvolvido até então, por se tratar a true sale de uma operação de transferência definitiva da propriedade de direitos recebíveis, os créditos objetos de negociação não integram o patrimônio do devedor empresário (ou sociedade empresária) que se submeta a um processo de recuperação judicial ou de falência. Foi também neste sentido o entendimento adotado no caso do Grupo Light. Naquele caso, conforme mencionado, o FIDC havia firmado contrato de cessão de recebíveis com a companhia Light em momento anterior à recuperação judicial. A entrega da posse destes direitos creditórios, todavia, havia sido diferida no tempo - ou seja, ainda que o FIDC fosse seu proprietário desde a assinatura do contrato entre as partes, o Grupo Light ainda permaneceria na posse destes recebíveis durante algum tempo. Inicialmente, ao ajuizar medida cautelar antecedente à recuperação judicial, o Grupo Light incluiu o FIDC Light no polo passivo, demonstrando seu entendimento de que este se enquadraria como credor em eventual recuperação judicial ajuizada. Iniciou-se assim uma discussão entre as partes sobre a possibilidade de submissão do FIDC Light, titular da propriedade de recebíveis do Grupo Light cujo fluxo financeiro havia sido diferido (ou seja, cuja posse seria transferida em data futura, posterior à recuperação judicial), no rol de credores. A matéria chegou a ser discutida nos autos da tutela cautelar antecedente à recuperação judicial e em agravo de instrumento21. Todavia, antes mesmo de proferida uma decisão judicial sobre o tema nos referidos autos, o Grupo Light ajuizou pedido de recuperação judicial e deixou de incluir o FIDC Light em seu rol de credores, perfilhando o entendimento correto de que este não era um credor enquadrado no disposto no art. 49 da lei 11.101/2005, reconhecendo sua inequívoca condição de proprietário dos direitos creditórios, e consequentemente, sua ilegitimidade para figurar no polo passivo de uma demanda que pretenda rediscutir as dívidas financeiras do Grupo Light.                 Assim sendo, ao adquirir a titularidade/propriedade definitiva de direitos creditórios em momento anterior ao pedido de recuperação judicial do cedente, os FIDC-NPs, na qualidade de cessionários, não se submetem à crise da empresa. Repita-se que o mesmo raciocínio se aplica à pré-insolvência, recuperação extrajudicial e falência, uma vez que tais ativos (de titularidade do FDIC-NP) não integram o patrimônio do devedor. Conclusão Dentre os institutos disponibilizados na lei 11.101/2005 para viabilizar a preservação da empresa, o agente empresário pode se beneficiar da recuperação judicial, por meio da qual busca promover uma negociação coletiva com seus credores, perante e com o auxílio do Estado. O art. 49 da lei 11.101/2005 delimita quais credores serão parte da negociação coletiva ao estipular que apenas os créditos existentes na data do pedido se submetem à recuperação judicial, permitindo assim, não apenas a definição das partes do acordo coletivo, mas também uma decisão fundamentada por parte dos interessados sobre os mecanismos mais apropriados para reestruturação das atividades. No caso dos FIDC-NP, estes frequentemente realizam seus investimentos mediante a estipulação de contratos denominados true sale, por meio dos quais adquirem a propriedade definitiva de recebíveis. A hipótese não se confunde com outra comumente verificada no mercado, em que recebíveis são entregues em garantia fiduciária do cumprimento de determinada obrigação principal; no caso da true sale, a própria transferência da propriedade dos recebíveis é a obrigação principal. Assim sendo, caso o cedente de recebíveis a um FDIC-NP enfrente uma crise econômico-financeira e se valha de qualquer instrumento do direito das empresas em dificuldade (pré-insolvência, recuperação extrajudicial ou judicial ou falência), ainda que o contrato de true sale tenha sido realizado em momento anterior ao pedido, o cessionário não figurará no rol de credores, por se tratar de proprietário definitivo dos direitos creditórios, cuja posse será transferida futuramente pelo devedor - e não um credor submetido à lei 11.101/2005. __________ 1 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)  III - função social da propriedade; 2 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. 3 Sobre o tema: GUIMARÃES, Márcio Souza. A Ultrapassada Teoria da Empresa e o Direito das Empresas em Dificuldades. in WAISBERG, Ivo e RIBEIRO, J. Horácio H. Rezende (coord.) Temas de Direito da Insolvência - Estudos em homenagem ao Professor Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo: IASP, 2017, pp. 682 a 708. 4 As interações entre o devedor e seus credores no âmbito da recuperação judicial podem ser analisadas à luz da teoria dos jogos Trata-se de hipótese em que os interesses dos jogadores (devedor e credores) estão em conflito, e cada um deles tomará decisões estratégicas visando sempre potencializar suas vantagens, orientados, em todo caso, pelo princípio da função social da empresa (GUIMARÃES, Márcio Souza. Direito das empresas em dificuldades in: PINHEIRO, Armando Castellar; PORTO, Antônio J. Maristrello; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro (coord.). Direito e economia: diálogos. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019, p. 369). No mesmo sentido Mario Engler Pinto: "O modelo introduzido pela Lei 11.101, de 09.02.2005, para superação da crise financeira da empresa, pode ser considerado um jogo oficial de interação estratégica, na medida em que pressupõe o consenso mínimo entre o devedor e seus credores, sobre o plano de recuperação judicial ou extrajudicial. No lugar de negociações individuais e bilaterais entre o devedor e seus credores, surge a necessidade de interação coletiva e organizada. A celebração do acordo pode significar um ganho para as partes envolvidas, pois evita o mal maior da decretação da quebra". (grifamos) JUNIOR, Mario Engler Pinto. A Teoria dos Jogos e o Processo de Recuperação de Empresas in: WALD, Arnoldo (org.). Doutrinas Essenciais: Direito Empresarial - Vol. VI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 454. 5 Como bem pontua Raquel Sztajn: "(...) sendo inviável a recomposição da organização, melhor tratar de desfazê-la o mais rapidamente possível evitando a propagação dos danos e enviando claros sinais de que não serão feitas concessões a empresários ou empresas cuja continuidade não se justi?que no plano econômico." SZTAJN, Rachel. In SOUZA JÚNIOR, Francisco Sátiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio de A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 221. 6 Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. 7 Em decorrência de inúmeros recursos, a matéria foi examinada em sede de recurso repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça que consolidou a jurisprudência no Tema nº 1.051: Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador. 8 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 192. 9 Art. 49. § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. 10 Tema nº 885: A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005 11 A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória. (Súmula n.  581, Segunda Seção, julgado em 14/9/2016, DJe de 19/9/2016). 12 Art. 49. § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. 13 Nesse sentido, destacam-se, dentre outros, os precedentes: AgInt no REsp n. 2.032.341/SP, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 16/10/2023; AgInt no REsp n. 2.041.801/MG, Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 11/10/2023; AgInt no AREsp n. 2.090.386/SP, Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 20/3/2023, DJe de 23/3/2023. 14 Art. 1.368-C do Código Civil: O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza. 15 A subscrição é o ato por meio do qual o investidor passa a ser o titular das cotas emitidas pelo fundo de investimento, bem como assume a obrigação de integralizar (ou seja, efetivar o pagamento total correspondente) o valor das cotas adquiridas. 16 a) estejam vencidos e pendentes de pagamento quando da cessão; b) decorrentes de receitas públicas originárias ou derivadas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de suas autarquias e fundações; c) resultem de ações judiciais ou procedimentos arbitrais em curso, constituam seu objeto de litígio, tenham sido judicialmente penhorados ou dados em garantia; d) a constituição ou validade jurídica da cessão para a classe de cotas seja considerada um fator preponderante de risco; e) o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial; f) sejam cedidos por sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial, ressalvado o disposto no inciso I do § 1º; g) sejam de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas; h) derivativos de crédito, quando não utilizados para proteção ou mitigação de risco de direitos creditórios; ou i) cotas de FIDC que invistam nos direitos creditórios referidos nas alíneas "a" a "h". 17 § 1º Não são considerados direitos creditórios não-padronizados: I - direitos creditórios cedidos por sociedade empresária em processo de recuperação judicial ou extrajudicial, desde que cumulativamente atendam aos seguintes requisitos: a) não sejam originados por contratos mercantis de compra e venda de produtos, mercadorias e serviços para entrega ou prestação futura; e b) a sociedade esteja sujeita a plano de recuperação homologado em juízo, independentemente do trânsito em julgado da homologação do plano de recuperação judicial ou extrajudicial; e II - os precatórios federais, desde que cumulativamente atendam aos seguintes requisitos: a) não apresentem nenhuma impugnação, judicial ou não; e b) já tenham sido expedidos e remetidos ao Tribunal Regional Federal competente. 18 Em apertada síntese, a diferença entre direitos creditórios padronizados e não-padronizados diz respeito ao nível de riscos inerentes aos ativos. Os primeiros são ativos considerados de baixo risco, que conferem mais segurança ao investidor. Os direitos creditórios não-padronizados, por outro lado, são ativos considerados mais arriscados, como valores de natureza futura e incerta, como objeto de litígio em curso ou recebíveis futuros. 19 Processo nº 0843430-58.2023.8.19.0001 em trâmite perante a 3ª Vara Empresarial da Capital do Estado do Rio de Janeiro - RJ. 20 Didaticamente, leciona Luiza Rangel de Moraes: "A cessão desses direitos creditórios consiste na transferência pelo cedente, credor originário ou não, de seus direitos creditórios para o cessionário, que, no caso, é um FIDC. É uma operação de securitização destinada à formação de FIDC, dando origem aos valores mobiliários com lastro nos créditos que a companhia tem a receber. A operação básica é a seguinte: - uma empresa transfere o direito de recebimento de seus créditos para um FIDC, através de um contrato de cessão de direitos creditórios; - esses direitos creditórios passam a constituir patrimônio do FIDC, através de um contrato de cessão de direitos creditórios; - esses direitos creditórios passam a constituir patrimônio do FIDC, que é gerido por uma instituição financeira; e - as cotas desse fundo são subscritas" (MORAES, Luiza Rangel de. O papel dos fundos de investimento na recuperação judicial de empresas. In: Revista de direito bancário e do mercado de capitais. Vol. 37, 2007. Jul-Set, 2007. p. 15-29) 21 Agravo de Instrumento nº 0027567-98.2023.8.19.0000, que teve curso perante a 12ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Introdução Recentemente, em 31 de outubro de 2023, entrou em vigor a Lei nº 14.711/2023, resultante da sanção parcial do PL 4.188/21, que ficou conhecida no seio do mercado e na comunidade jurídica como o "Marco Legal das Garantias". Tal dispositivo legal, dentre outros assuntos, traz alterações importantes nas regras aplicáveis às principais garantias praticadas por instituições financeiras e, também, por credores não financeiros - inclusive, e principalmente, a alienação fiduciária em garantia e a hipoteca sobre bens imóveis. O objetivo do Marco Legal das Garantias, segundo o Governo e o Congresso, foi o de conferir maior segurança jurídica, efetividade e facilidade de execução a todas as formas de garantia, além de estimular a utilização de institutos até então subutilizados (caso, por exemplo, da hipoteca). Tudo isso contribuiria para reduzir os juros praticados em operações de crédito e tornar o próprio crédito mais barato e acessível, estimulando o consumo e o investimento em geral - o que é crucial num momento em que a economia nacional segue flertando com um cenário de recessão. Este breve artigo pretende, de um modo geral, avaliar os impactos do Marco Legal das Garantias nos procedimentos destinados ao tratamento da insolvência e da crise empresarial, principalmente a recuperação judicial e a falência, conforme previstas pela lei 11.101/2005 (a "Lei de Recuperação e Falência"). Mas não apenas isso: avaliaremos, também, alguns aspectos do próprio direito da crise empresarial que podem impactar a eficácia das normas e, principalmente, dos objetivos do Marco Legal das Garantias, especialmente no que diz respeito ao estímulo ao uso das garantias reais, tradicionalmente preteridas em favor das garantias fiduciárias desde a introdução destas últimas no direito brasileiro.  O Marco Legal das Garantias: principais medidas No que diz respeito à alteração da disciplina das garantias, podemos dividir as medidas tomadas pelo Marco Legal das Garantias em duas frentes distintas: uma dedicada ao tratamento das garantias fiduciárias, e outra dedicada ao tratamento das garantias reais. Há, ainda, medidas gerais aplicáveis a todas as modalidades de garantia, que serão também mencionadas. Alienação fiduciária em garantia Quanto à alienação fiduciária de bens imóveis, o Marco Legal das Garantias tem por objetivo modernizá-la e torná-la mais versátil. Nesse sentido, o Marco Legal das Garantias passa a autorizar expressamente a constituição de alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente, que consiste em que um mesmo imóvel já alienado fiduciariamente possa ser objeto de nova alienação fiduciária mediante registro imobiliário, ainda que mantendo-se as preferências às alienações anteriores sobre as posteriores. O registro deve ocorrer desde a data da celebração do instrumento de alienação fiduciária, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anterior. Importante ressaltar que alguns cartórios já aceitavam um tipo de garantia similar por meio do registro de instrumentos de alienação fiduciária com condição suspensiva consistente na extinção da alienação fiduciária anterior, de modo que a alienação fiduciária mais recente se tornaria imediatamente eficaz tão logo houvesse a indicação de extinção da alienação fiduciária anterior. De todo modo, esse procedimento nunca foi padronizado, e a admissão legal expressa da alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente certamente traz mais segurança jurídica aos credores e mais opções ao mercado como um todo. Ainda em relação à alienação fiduciária de bens imóveis, o Marco Legal das Garantias passa a exigir um maior detalhamento nos próprios instrumentos de garantia, que devem conter previsões de valor máximo ou estimado da dívida, permissão de uso do imóvel pelo devedor fiduciante (conforme o caso), e detalhes relativos aos procedimentos de excussão, inclusive extrajudicial, da própria garantia fiduciária. Há, ainda, a possibilidade de o credor declarar antecipadamente vencidas todas as demais obrigações garantidas pelo mesmo imóvel que garante a obrigação inadimplida, contanto que isso esteja previsto nos respectivos instrumentos de alienação fiduciária. O Marco Legal das Garantias também acrescenta o art. 27-A à lei 9.514/97, dispondo que, nas operações de crédito garantidas por alienação fiduciária de dois ou mais imóveis, na hipótese de não ser convencionada a vinculação de cada imóvel a uma parcela específica da dívida, o credor poderá promover a excussão das diferentes garantias fiduciárias em ato simultâneo, por meio da consolidação de propriedade e leilão de todos os imóveis em conjunto, ou em atos sucessivos, por meio de consolidação e leilão de cada imóvel em sequência. Sob o ponto de vista das regras da Lei de Recuperação e Falência, em princípio nada muda. A alienação e a cessão fiduciária em garantia seguem sendo tratadas como garantias extraconcursais, nos termos do artigo 49, §3º, da Lei de Recuperação e Falência, o que significa que os credores detentores de tais garantias não se sujeitam ao plano de recuperação judicial ou à falência da empresa devedora, e podem excutir livremente suas garantias, inclusive pela via extrajudicial (quando disponível). É fato que tanto a lei quanto a jurisprudência criaram instrumentos para mitigar de certa forma a liberdade de excussão de garantias por tais credores fiduciários, especialmente quando os bens sobre os quais a garantia recai possam ser considerados essenciais ao desempenho das atividades das empresas devedoras em recuperação judicial. O próprio artigo 49, §3º, da Lei de Recuperação e Falência impede, durante o período de suspensão das ações e execuções contra a recuperanda (stay period), a excussão das garantias fiduciárias que recaiam sobre bens de capital considerados essenciais, mas há precedentes jurisprudenciais que, ou alargam o conceito tradicionalmente vigente de "bens de capital" para abranger os ativos sob discussão específica, ou dispensam a qualificação dos bens como sendo "de capital" como requisito para a incidência da proteção legal, que, nesses casos, acaba recaindo sobre quaisquer bens considerados essenciais pelo juízo da recuperação judicial. De todo modo, por mais que haja instrumentos legais e jurisprudenciais que visam evitar que a excussão de garantias fiduciárias acabe impedindo o soerguimento efetivo de empresas em recuperação judicial, é fato que, conceitualmente, os credores fiduciários seguem "imunes" aos efeitos da recuperação judicial e da falência, conservando seu direito de manter e excutir suas garantias independentemente (ao menos em tese) do destino da empresa devedora e de sua relação com os demais credores. A omissão do Marco Legal das Garantias em relação à disciplina da Lei de Recuperação e Falência criou, no entanto, grave insegurança no que diz respeito à nova possibilidade de instituição de alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente. Nesses casos, vale reforçar, pode haver o estabelecimento de duas ou mais alienações fiduciárias distintas de forma concomitante e sobre um mesmo imóvel, ainda que as mais antigas tenham preferência sobre as mais novas em caso de excussão. A pergunta que se faz é: como fica, em tais hipóteses, a não sujeição dos créditos garantidos aos procedimentos de recuperação judicial e falência - especialmente levando-se em conta que, conforme entendimento já cristalizado na jurisprudência, a extraconcursalidade dos créditos garantidos fiduciariamente vai até o limite do valor do próprio bem dado em garantia? Apenas o credor fiduciário mais antigo deve ser considerado extraconcursal? Ou também os credores fiduciários mais novos? Deve-se manter todos os credores com garantia fiduciária como concursais, aguardando-se a excussão efetiva da garantia para abater os montantes eventualmente recebidos com sua excussão? Ou deve-se manter todos os credores fiduciários como extraconcursais, aguardando-se a excussão da garantia para que sejam habilitados como concursais apenas por eventual saldo, mesmo sabendo-se de antemão que o valor do bem não é suficiente para cobrir todos os créditos garantidos? Nem o Marco Legal das Garantias e nem a Lei de Recuperação e Falência são hoje capazes de responder a tais perguntas, cabendo à jurisprudência, uma vez mais, a tarefa de pacificar tal entendimento de acordo com a finalidade da lei. Hipoteca Se o objetivo do Marco Legal das Garantias quanto à alienação fiduciária foi torná-la mais segura e versátil (por meio, por exemplo, da possibilidade de alienação fiduciária da propriedade superveniente), quanto à hipoteca imobiliária o objetivo foi o de estimular o seu uso e resolver os problemas inerentes à sua excussão - e que, até então, motivavam sua substituição pela alienação fiduciária, cuja excussão sempre foi muito facilitada em relação à hipoteca. Nesse sentido, uma das alterações mais importantes trazidas pelo Marco Legal diz respeito à previsão de um procedimento de excussão extrajudicial da hipoteca, similar ao já aplicável à alienação fiduciária de bens imóveis. Vale observar que, assim como ocorre na alienação fiduciária, também se exige na hipoteca, inclusive como requisito de validade, a previsão expressa desse procedimento de excussão extrajudicial no próprio instrumento de garantia - o que reforça a necessidade de que esses instrumentos sejam redigidos com maior atenção e detalhamento. Do mesmo modo, também foi prevista para a hipoteca a possibilidade de o credor vencer antecipadamente todas as demais obrigações garantidas pelo mesmo imóvel que garante a obrigação inadimplida. Novamente sob o ponto de vista das regras da Lei de Recuperação e Falência, não houve alterações no que diz respeito ao tratamento dos créditos garantidos por garantias reais em geral (hipoteca ou penhor). Ao contrário do que ocorre com as garantias fiduciárias, que permanecem válidas, eficazes e exequíveis (ainda que com algumas limitações já referidas), as garantias reais não tornam o crédito garantido imune aos efeitos da recuperação judicial ou da falência. O credor com garantia real, assim como qualquer outro credor sujeito à recuperação judicial ou falência do devedor, não pode tentar receber o seu crédito de forma independente dos demais credores, ficando sujeito aos termos do plano (no caso da recuperação judicial) ou à ordem legal de preferências (no caso da falência). Importante ressaltar que, em ambos os casos, o credor não necessariamente perde o seu direito real de garantia - apesar de não poder excutir a sua garantia real, que, no entanto, permanece válida e eficaz. A perda do direito de excutir a garantia real é, em ambos os casos, compensada pela atribuição de outros direitos e privilégios aos credores, que diferenciam os credores com garantia real dos demais credores que não possuem garantias (quirografários). Na falência, o bem dado em garantia real será vendido juntamente com todos os demais bens do devedor. O valor arrecadado será utilizado para pagar os credores em geral na ordem de preferência legal, sendo que os credores com garantia real são pagos logo após os créditos concursais trabalhistas limitados a 150 salários-mínimos. Os demais credores sem garantia apenas podem receber qualquer coisa depois que os credores com garantia real tiverem recebido todo o seu crédito, e ainda assim após uma longa fila de espera, que inclui créditos tributários e créditos com determinados privilégios definidos em lei. Já na recuperação judicial, por sua vez, não há ordem de pagamento legal, o que significa que o devedor não está necessariamente obrigado a garantir que os credores com garantia real recebam antes ou em melhores condições do que os demais credores sem garantia. A forma e o tempo em que cada classe será paga serão determinados pelo que constar no plano de recuperação judicial que venha a ser aprovado pelos credores. Nesse sentido, o benefício concedido aos credores com garantia real consiste em seu posicionamento em uma classe de credores específica, que deverá aprovar o plano de recuperação de forma independente das demais classes. Isso resulta na concessão aos credores com garantia real, via de regra, de um maior poder de barganha na negociação das condições do plano e do pagamento de seus créditos, o que em geral resulta em condições de pagamento mais benéficas do que aquelas praticadas em relação aos demais credores sem garantia. Nada disso, repita-se, foi alterado pelo Marco Legal das Garantias. E é exatamente esse um dos pontos que pareceu escapar ao legislador, que aparentemente supôs que a mera simplificação do procedimento de excussão da hipoteca (com a criação da possibilidade de excussão extrajudicial), por si só, seria suficiente para estimular o seu uso e "destronar" a alienação fiduciária como mecanismo primário de garantias imobiliárias. Há, com efeito, vários fatores que contribuem para que credores (especialmente instituições financeiras) optem pela utilização da alienação fiduciária em detrimento da hipoteca. Um deles é, sim, a maior facilidade na excussão das respectivas garantias - o que pode ter sido suprido pela introdução da possibilidade de excussão extrajudicial da hipoteca. O outro, que nos parece absolutamente decisivo, é o tratamento de ambas as modalidades de garantia no âmbito da eventual insolvência do devedor - o que não foi alterado pelo Marco Legal das Garantias. Sob esse viés, enquanto se mantiver a enorme disparidade de tratamento existente entre a alienação fiduciária de bem imóvel e a hipoteca imobiliária no âmbito da insolvência do devedor, a ponto de a alienação fiduciária se manter plenamente eficaz e exequível ao passo que a hipoteca imobiliária segue sendo afetada pela recuperação judicial ou falência do devedor, haverá poucos estímulos às instituições financeiras em geral para que passem a adotar a hipoteca em detrimento da alienação fiduciária. Não se propõe, por óbvio, que a questão seja resolvida pela simples "equalização" do tratamento de ambas as garantias, nem para um lado (tornando, por exemplo, concursal a alienação fiduciária), e nem para outro (tornando, por exemplo, extraconcursal a hipoteca). Ambas as modalidades de garantia têm suas peculiaridades sob o ponto de vista dos direitos que transferem aos credores, e há justificativas técnicas para tal tratamento díspar. Trata-se, tão somente, de uma constatação de fato: enquanto esse quadro se mantiver, não parece haver vantagens em utilizar a hipoteca como mecanismo de garantia, mesmo que sua excussão tenha sido simplificada e, hoje, equivalha à da alienação fiduciária. Medidas gerais No que diz respeito às garantias em geral, o Marco Legal das Garantias também estabelece que qualquer garantia pode ser constituída, levada a registro, gerida e excutida (inclusive por via extrajudicial, quando possível) por um agente de garantia a ser designado pelos credores. Tal agente atuará em nome próprio e em benefício dos credores (tratando-se de dever fiduciário), inclusive em ações judiciais que envolvam discussões sobre existência, validade ou eficácia da garantia. Em caso de execução da garantia levada a efeito pelo agente, o produto da excussão constituirá patrimônio separado do patrimônio geral do próprio agente pelo período de até 180 dias, e deverá ser distribuído aos credores num prazo de até 10 dias úteis após o recebimento dos valores pelo agente de garantia. É fato que, dada a natureza das funções exercidas pelo agente de garantia, caberá aos credores um monitoramento rigoroso dos procedimentos adotados para excussão das garantias, recebimento e, principalmente, distribuição dos valores obtidos. Também deve ser devidamente prevista e acompanhada a atuação do agente de garantia em procedimentos de insolvência, já que, agindo em nome próprio, ele passará a ter legitimidade processual para atuar nesse tipo de procedimento - o que poderá eventualmente conflitar com os interesses individuais dos próprios credores, que podem ser divergentes entre si. Em relação aos títulos registrados com cláusulas resolutivas, o Marco Legal trouxe para os Tabelionatos de Notas a competência de certificar o implemento ou a frustração de tais condições por meio da ata notarial, já utilizada para outros fins na dinâmica dos negócios imobiliários. Houve, também, a instituição de um procedimento de concurso para organizar a excussão extrajudicial de garantias quando houver multiplicidade de credores. Por fim, o Marco Legal das Garantias foi objeto de vetos parciais pelo Presidente da República, relacionados, em linhas gerais, à previsão de autorização de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis dados em alienação fiduciária. Tais vetos ainda pendem de análise pelo Congresso Nacional, que poderá derrubá-los.  Conclusão Como se pôde observar, apesar de ter trazido mudanças relevantes na disciplina das principais garantias utilizadas pelo mercado (principalmente imobiliárias), o Marco Legal das Garantias não pareceu se preocupar a contento com algumas questões importantes inerentes ao âmbito da Lei de Recuperação e Falência. Menciona-se, em especial, a insegurança jurídica quanto ao tratamento da extraconcursalidade (ou concursalidade) de créditos garantidos por alienações fiduciárias supervenientes, bem como a manutenção da enorme discrepância existente entre o tratamento das garantias reais e fiduciárias em procedimentos de insolvência - o que, a nosso ver, contribui para que as garantias reais sigam sendo preteridas em face das garantias fiduciárias. Espera-se que tais questões sejam levadas em conta futuramente, não apenas pelo legislador, mas também pela jurisprudência, que precisará se ocupar de resolver tais problemas de forma mais imediata, sempre em respeito à finalidade da Lei de Recuperação e Falência.
Um dos pontos altos do sistema da lei 11.101/05 fora a abertura do leque de medidas destinadas à reestruturação da empresa em crise, rompendo com o sistema anterior, pelo qual ao comerciante permitia-se tão somente o parcelamento de suas dívidas em limitado prazo previsto na lei. No contexto atual, embora predominem planos de reestruturação baseados em deságios, períodos de carência e prazo alongado para o pagamento de dívidas, também não são raras as propostas para a superação da crise enfrentada apoiadas em medidas previstas nos demais incisos do artigo 50 da LRE, cujo rol não é taxativo. Aqui e em outros países1, a realidade tem mostrado que os devedores pretendem vender parte de seus ativos durante a recuperação, para pagar suas dívidas ou exercer atividades mais lucrativas, além da transferência de controle e, como não poderia deixar de ser, também outras formas de reorganização societária, das quais se destacam a transformação, a fusão, a cisão e a incorporação2. A flexibilidade da lei com relação às medidas de soerguimento é fator que favorece a reestruturação de empresas, permitindo que sejam enfrentados problemas mais graves na estrutura empresarial, trazendo alternativas de soluções que podem ser eficientes na concatenação dos elementos que compõe a sua estrutura. Na recuperação judicial, essas medidas devem ter um norte em comum e não podem representar a liquidação da empresa, justamente porque o fundamento que lhe emprestou o legislador fora a preservação da atividade empresarial e não sua extinção. Em outros sistemas, como o norte-americano, é possível o liquidation plan, mas, ainda assim, deverá ser demonstrado que a medida é mais vantajosa aos credores do que a liquidação regular prevista no Chapter 73. Em regra, o devedor e seus administradores são mantidos na condução da atividade empresarial, o que se faz para conservar as relações comerciais, maximizar a eficiência da direção por quem já conhece o negócio e até mesmo para incentivar a utilização da recuperação judicial4. É evidente, porém, que a vida societária é afetada pela recuperação, impondo-lhes efeitos das mais variadas espécies, colocando nas mãos de sujeitos externos à sociedade o poder de deliberar sobre a atividade da empresa e até mesmo sobre seu patrimônio, o que de certa forma "ofusca o poder do acionista controlador", fazendo com que, em muitos momentos de tensão, sejam compartilhados a direção e o controle da sociedade5, pondo em conflito regras e princípios da LRE e da legislação societária. Se por um lado as possibilidades de reestruturação podem parecer infinitas, por outro, há que se ponderar quanto ao comprometimento do patrimônio do devedor com os negócios que serão realizados, o que, em última análise, constitui a garantia dos credores, tornando evidente a dificuldade para se alcançar o equilíbrio dessas relações. Vejam-se, a exemplo, a fusão ou a incorporação de sociedades. A fusão une duas ou mais empresas, que serão extintas para formar uma nova sociedade, enquanto na incorporação, as empresas incorporadas serão extintas e seus patrimônios serão absorvidos pela sociedade incorporadora. Através dessas operações haverá a união de empresas com seus patrimônios. A incorporação e a fusão revelam sua utilidade para a concentração empresarial, tornando possível ganhos em escala, redução de custos administrativos e economia de estruturas e de produção, ampliação de mercados, etc e essas vantagens podem constituir fatores que convergem para a reorganização de empresas em crise. Contudo, os patrimônios das sociedades a serem unidas não são homogêneos, pelo contrário, são compostos por diferentes elementos ativos e passivos, que mostram ao final diferentes coeficientes de solvência, níveis de endividamento e até mesmo aptidões diversas para produzir lucros e se recuperar. A disparidade entre as situações patrimoniais de cada uma das sociedades exige análise abrangente a ser feita pelo credor, principalmente, para aferir se a união alcançada com a operação societária é necessária, se traz economia de recursos às devedoras, se potencializa a produção e, especialmente, se lhe é vantajosa para o objetivo primordial de recebimento de seu crédito. A análise de conveniência da operação é econômica e não cabe ao Judiciário; mas, no processo de recuperação, cabe a cautela de separar os grupos de votação dos credores de cada sociedade que será objeto de fusão ou incorporação, para que não sejam atingidos os direitos dos credores das sociedades menos endividadas dentre aquelas envolvidas. Veja-se que os credores destas sociedades em melhores condições, por serem em menor número e representarem dívidas de menor valor, podem eventualmente ter seu poder de voto diluído frente aos credores das demais sociedades e, consequentemente, ser-lhes impostas medidas que normalmente não aprovariam. Se ao invés de unir, o objetivo for o de separar duas ou mais partes do patrimônio da empresa, a cisão (art. 229 da lei 6.404/76) pode permitir a transferência integral ou parcial do patrimônio de uma ou mais sociedades para outra com a diminuição do capital social da empresa cindida (cisão parcial), ou mesmo sua extinção, no caso da cisão total. Aqui, interesses que não convivem harmonicamente podem ser segregados, separando-se as atividades econômicas em tantas quanto sejam necessárias à solução de problemas vivenciados pela empresa. A alteração societária será proposta aos credores e a análise de conveniência econômica de tal medida também cabe exclusivamente a eles; não obstante, eventualmente pode ser submetida à apreciação judicial a questão da responsabilidade solidária entre as sociedades pelas obrigações anteriores à cisão, nos termos do artigo 233, caput, da lei 6.404/76. No caso de cisão parcial, ainda, caso estipulada a responsabilidade apenas pelas obrigações que forem transferidas às sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida (art.233, §1º da Lei 6.404/76), a proporcionalidade dessas transferências pode constituir questão jurídica a ser resolvida. Em tese, deve ser transferida a mesma proporção de ativos e passivos da sociedade cindida, eis que, do contrário, estar-se-ia transferindo diferentes parcelas do patrimônio da empresa, alterando-se o coeficiente de solvência das sociedades, o que certamente interferiria no equilíbrio da relação entre devedores e credores. Excluídos os casos em que as operações societárias se dão dentro do contexto de normalidade, inclusive quanto aos seus meios e objetivos, a constituição de nova sociedade ou a extinção de outras, não deve fracionar entidade que continuará substancialmente unitária ou esconder intuito não previsto na lei. Nessas situações, a unidade econômica deve corresponder à unidade jurídica, assim como a diversidade deve refletir-se na pluralidade de sociedades. No caso da transformação de uma sociedade durante a recuperação judicial, a justificativa pode ter o propósito de alcançar recursos financeiros, por meio de oferta pública de ações, quando a alteração do tipo societário transforma a limitada em sociedade anônima. Note-se, contudo, que a solução não pode ser aplicada se a alteração de tipo societário ocorre em prejuízo de credores, pois, nos termos do art. 1.115 do Código Civil, "a transformação não modificará nem prejudicará, em qualquer caso, os direitos dos credores."6 Não se pode qualificar como abusiva a modificação societária, por exemplo, de uma sociedade simples para sociedade empresária, para postular a recuperação judicial, justamente por não haver restrição na LRE, caso sejam atendidos os pressupostos que a legitimariam nos termos da lei7. Por se tratar de norma aberta, o artigo 50 da lei 11.101/05, permite ainda outras espécies de operações, como o Drop Down, também chamado trespasse para subsidiária, pelo qual haverá o acréscimo de elementos do ativo (inclusive intangíveis) e do passivo da sociedade conferente em favor de outra8. Pela operação de trespasse para a subsidiária, que se realiza com base no disposto no art. 50, II, da lei 11.101/05, como a constituição de subsidiária integral9, a sociedade conferente recebe em contraprestação ações ou quotas da sociedade beneficiada, o que tem sido admitido para empresas em recuperação10, especialmente, se o resultado da exploração das atividades e com a venda da unidade for revertido ao pagamento dos créditos11. Outras medidas de reorganização podem ainda interferir de modo sensível na vida societária da empresa, como no caso da conversão de dívida em capital. Por essa operação, parcela da dívida exigível da empresa em crise passa a ser convertida em capital social, promovendo o seu aumento e a respectiva diminuição no montante de suas dívidas. Há verdadeiro saneamento das contas da empresa sem o ingresso de dinheiro novo, representando para o credor aposta no futuro, garantindo a lei que não haverá sucessão ou responsabilidade por dívidas de qualquer natureza ao terceiro credor (§ 3º ao art. 50 da lei 11.101/2005). Normalmente, as propostas12 de medidas de reorganização partem do devedor; mas, com a reforma trazida pela Lei 14.112/2020, podem partir também dos credores em situações específicas e, nesse contexto, se por eles for proposta a conversão de dívida em capital e disso resultar a alteração do controle societário da empresa, poderá haver a chamada "aquisição hostil da sociedade em recuperação judicial". Com efeito, nos termos das disposições do inciso XVII do artigo 50 da lei 11.101/2005, possível a capitalização da dívida da sociedade devedora que pode alterar o seu controle societário E, apesar da possibilidade de conflito entre normas societárias e as disposições da LRE, a solução não fere o direito de livre associação previsto em sede constitucional13, diante do possível direito de retirada do sócio com base na disposição do artigo 56, inciso VII, da LRE ou mesmo pela possibilidade de venda das ações ou quotas da empresa pelos credores dissidentes, conforme já se decidiu14. Cabem aos credores, ao administrador judicial e ao membro do Ministério Público, como também eventualmente aos sócios e acionistas da empresa em recuperação, quando se tratam de minoritários ou de proposta dos credores, apontar as ilegalidades constantes das medidas do plano de recuperação e, para isso, a lei prevê meios pelos quais podem se opor à proposta, como é o caso da objeção prevista no artigo 55 da LRE, a qual, além da insatisfação com relação ao plano proposto, pode ter objeto possíveis ilegalidades das medidas; ou mesmo por meio de oposição, trazida pela Lei 14.112/2020, quando já tenha havido deliberação (§3º, do artigo 56-A, da lei 11.101/05). As operações societárias podem alterar sensivelmente o equilíbrio da relação entre devedores e credores, pelo que devem ser justificadas pela utilidade que possam representar para a reorganização da empresa em crise, não somente para convencer os destinatários das propostas de que estas proporcionarão a recuperação da empresa, como também devem ser objeto de controle judicial15, quando têm o potencial de atingir as esferas jurídicas dos credores sujeitos e não sujeitos à recuperação judicial e até mesmo de integrantes da sociedade. A crise da empresa traz inegáveis restrições aos direitos dos sócios e à vida societária, como também certas operações previstas no plano de reerguimento podem provocar o desequilíbrio das relações entre devedores e credores e, mesmo não havendo subordinação formal entre a Lei de Recuperação de Empresas, a Lei das Sociedades Anônimas e as disposições societárias da Lei Civil, ganham destaque não somente o princípio majoritário como também o princípio da preservação de empresas viáveis para a interpretação dessas normas. __________ 1 Consoante a doutrina norte-americana, muitas empresas se valem do capítulo 11 apenas para vender seus bens e dividir o produto com a segurança necessária (Cf. BAIRD, Douglas G., RASMUNSSEN, Robert K. "The end of Bankruptcy", in Stanford LAW Review 55 (2002-2003). 2 Cf. MUNHOZ, Eduardo Secchi. "Financiamento e investimento na recuperação judicial", in CEREZETTI, Sheila Christina Neder e MAFFIOLETTI, Emanuelle Urbano (Coordenadoras). Dez anos da Lei nº11.101/2005. 1ª edição. São Paulo: Almedina. 2015, pp.270-272. 3 Nos Estados Unidos, é comum o processo de reorganização para a venda rápida e eficaz de ativos ao abrigo da lei e a repartição do produto entre os credores (Cf. BAIRD, Douglas G., RASMUNSSEN, Robert K. "The end of Bankruptcy", in Stanford LAW Review 55 (2002-2003), pp. 37. 4 Cf. BROLLO, Gustavo Deucher e CHAVES, João Leandro Pereira. "A governança na sociedade em recuperação judicial: uma análise empírica da implementação de rearranjos como meio de recuperação", in EBOOK DIREITO SOCIETARIO ESTUDOS DE JURIMETRIA. indb 143. 5 Cf. PIVA, Fernanda Neves e SETOGUTIA. "Governança corporativa das companhias em recuperação judicial", in Revista Brasileira da Advocacia 2016 RBA VOL.2 (JULHO - SETEMBRO 2016). 6 Nesse sentido: (TJSP; Agravo de Instrumento 2286126-40.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 18/03/2021; Data de Registro: 18/03/2021. 7 Nesse sentido: TJMG, Agravo de Instrumento 1.0000.17.026108-5/001 Relator: Des.(a) Alberto Vilas Boas. 1ª Câmara Cível. Data do Julgamento: 14/11/2017 Data da Publicação: 17/11/2017 8 Cf. VERÇOSA, Haroldo M. D.; BARROS, Zanon de Paula. A recepção do "drop down" no direito brasileiro. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, v. 125, a. XLI, p. 41 - 47, jan/mar. 2002, p. 41. Conforme os autores: "O drop down é realizado por meio de aumento de capital que uma sociedade faz em outra. conferindo a esta "bens" de natureza diversa, tais como estabelecimentos comerciais e industriais. carteiras de clientes, "atividades", contratos, atestados, tecnologia, acervo técnico "direitos e obrigações "etc"..." Muitas vezes é transferida a totalidade do objeto social da sociedade subscritora do aumento de capital, do que deveria decorrer a sua extinção, o que não tem acontecido na prática - reconhecendo-se a dificuldade de sua permanência no mundo do Direito, uma vez desaparecida a razão de sua existência"...Quanto aos seus efeitos jurídicos: 1º) atividades iniciadas e concluídas antes da realização da operação: neste caso, por elas responderia exclusivamente a sociedade conferente dos bens; 2º) atividades iniciadas e concluídas após a realização da operação: neste caso, por elas responderia expressamente a sociedado receptora; e 3º) as atividades iniciadas antes da operação e concluídas depois dela: as sociedades conferente e receptora responderiam proporcionalmente ao montante das obrigações, pelo tempo decorrido da operação" (pp.41/47). 9 Cf. TEPEDINO, Ricardo. O Trespasse para a Subsidiária (drop down). In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coords.). Direito Societário e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 63/64. 10 Cf. GUIMARÃES, Raquel Santos Batista e PAULA, Dídimo Inocêncio de. "Drop down como meio de soerguimento de empresas em recuperação judicial", in Migalhas n. 5.699, 31 de agosto de 2023. 11 Nesse sentido: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Ag.Inst. n. 2290263-65.2020.8.26.0000, rel. Des. J. B. Franco de Godoi, julg. 28/10/2021; TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Ag.Inst. n. 2159288-57.2017.8.26.0000, rel. Des. Hamid Bdine, julg. 13/12/20217. 12 Cf. QUADRANTE, Rodrigo. Validade da aquisição hostil da sociedade em recuperação judicial, in Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2023. 13 Em sentido contrário: SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 284. 14 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2133842-23.2015.8.26.0000; Relator (a): Enio Zuliani; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 30/09/2015; Data de Registro: 14/10/2015. 15 Nesse sentido: "...Recuperação judicial. Reorganização societária que, se não especificada no plano, deverá ser submetida ao crivo do juiz e dos credores". (TJSP; Agravo de Instrumento 2296445-67.2020.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Limeira - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/10/2021; Data de Registro: 25/10/2021).
A legislação brasileira é dinâmica e está em constante evolução para se adaptar às mudanças na sociedade e no mercado. Nesse contexto, a lei14.711/231 trouxe inovações ao Código Civil2 ao incluir o artigo 853-A, que estabelece o Contrato de Administração Fiduciária de Garantias como uma nova modalidade contratual. Esta inclusão no Código Civil visa aprimorar o sistema de garantias, proporcionando maior segurança e eficiência na gestão dos ativos garantidores. Trata-se de novíssima modalidade contratual típica incluída pela lei 14.711/23 no Código Civil, de forma que inexistem precedentes suficientes para se embasar um estudo prático sobre o tema. Estas são, portanto, as primeiras impressões sobre o instituto que ainda será colocado à prova pelos operadores do direito nos desafios cotidianos. O cerne do contrato está expresso no caput do artigo 853-A, que dispõe que qualquer garantia pode ser constituída, registrada, gerida e executada por um agente de garantia designado pelos credores da obrigação garantida. Este agente atuará em nome próprio, mas em benefício dos credores, inclusive em litígios relacionados à validade da garantia. É ressaltado que qualquer cláusula que contrarie essa disposição em desfavor do devedor ou do terceiro prestador da garantia é vedada. A introdução do Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, por meio da lei 14.711/23, representa uma significativa inovação no âmbito das relações contratuais ao permitir a criação de um concurso de garantias preexistente, sob a gestão do agente de garantia. Essa modalidade possibilita a inclusão e exclusão de operações com diversos credores, conferindo flexibilidade e dinamismo ao sistema. O agente de garantia, ao atuar como administrador desse concurso, não apenas gerencia as garantias existentes, mas também facilita a entrada de novos credores ou a retirada de antigos, proporcionando uma estrutura adaptável e eficiente que atende às demandas mutáveis do mercado. Essa flexibilidade no gerenciamento do concurso de garantias amplia as opções disponíveis para os participantes, ao mesmo tempo em que fortalece a segurança jurídica das relações creditícias. Esse dispositivo confere agilidade ao processo, alinhando-se com a busca por eficiência no sistema jurídico. Com a previsão do caput de que o agende de garantias tem a possibilidade de pleitear a execução da garantia, verifica-se que essa situação configuraria uma espécie de outorga de poderes, em que o credor autoriza, expressamente o agente a requerer em seu nome a execução. Também existe a previsão de que o agente fará a atuação em nome próprio. Nesse caso o instituto se assemelharia a uma substituição processual, um conceito que envolve a capacidade de uma pessoa ou entidade em atuar em juízo em nome de outra, defendendo direitos alheios como se fossem seus próprios. A substituição processual pode ocorrer quando há previsão legal para tal, permitindo que o substituto exerça as prerrogativas processuais em lugar do substituído. Parte superior do formulário Parte inferior do formulário No parágrafo 1º, o legislador prevê também a possibilidade de execução extrajudicial da garantia pelo agente, desde que haja previsão na legislação especial aplicável. Um bom exemplo dessa aplicação ocorrerá na alienação fiduciária de imóveis. O agente de garantia, conforme estabelecido no parágrafo 2º, assume um dever fiduciário em relação aos credores da obrigação garantida. Essa responsabilidade é reforçada pelo parágrafo 3º, que autoriza a substituição do agente, por decisão do credor único ou da maioria simples dos titulares dos créditos garantidos. A substituição, no entanto, só produz efeitos após a devida publicidade, assegurando a transparência no processo. As assembleias dos titulares dos créditos garantidos, previstas no parágrafo 4º, terão seus requisitos de convocação e instalação estipulados no ato de designação ou contratação do agente de garantia. Essa previsão confere maior flexibilidade às partes envolvidas, permitindo a adaptação do procedimento conforme a necessidade. O parágrafo 5º estabelece que o produto da realização da garantia constitui um patrimônio separado do agente de garantia, inatingível por suas obrigações por até 180 dias. Essa medida visa resguardar a integridade dos recursos até sua transferência aos credores garantidos.  A nova Lei, ao estabelecer nesse dispositivo que o produto da realização da garantia constitui um patrimônio separado do agente de garantia por até 180 dias, traz um conceito que se assemelha ao do "patrimônio de afetação". Verifica-se que ambos visam proteger recursos específicos, no entanto, enquanto o primeiro é temporário e vinculado à realização da garantia, o segundo é uma figura mais permanente, aplicada especialmente em empreendimentos imobiliários, segregando ativos e passivos específicos do empreendimento. Ambas as abordagens buscam assegurar a integridade financeira e a efetiva destinação dos recursos para os fins previstos. O parágrafo 6º estabelece um prazo crucial no Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, determinando que o agente de garantia dispõe de dez dias úteis após a realização da garantia para efetuar o pagamento aos credores. Essa disposição enfatiza a necessidade de celeridade na distribuição dos recursos, contribuindo para a eficácia do processo e garantindo que os titulares dos créditos se beneficiem rapidamente da realização da garantia. Essa medida reforça o compromisso do legislador em proporcionar um ambiente contratual eficiente e ágil. Além disso, o legislador, no parágrafo 7º, permite que o agente de garantia mantenha contratos paralelos com o devedor para diversos serviços, como pesquisa de ofertas de crédito, auxílio na formalização de contratos e intermediação em questões contratuais. Contudo, o agente deve agir com estrita boa-fé perante o devedor, conforme estabelecido no parágrafo 8º. Embora a lei 14.711/23 não preveja expressamente a remuneração do agente de garantia no Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, é razoável inferir que tal ônus será suportado pelos contratantes do serviço, os quais se beneficiam da gestão especializada dos ativos garantidores. A lógica contratual sugere que a remuneração do agente seja objeto de livre estipulação, alinhando-se com o princípio da autonomia da vontade das partes envolvidas. Dessa forma, a ausência de uma definição específica na lei oferece espaço para a negociação e estabelecimento de condições remuneratórias que atendam às necessidades e expectativas dos contratantes, promovendo, assim, uma relação contratual mais flexível e adaptável às peculiaridades de cada transação. Em síntese, o Contrato de Administração Fiduciária de Garantias, introduzido pela lei 14.711/23, representa um avanço no ordenamento jurídico ao oferecer uma alternativa eficiente e segura para a gestão de garantias, promovendo a celeridade e a transparência nas relações contratuais. Essa inovação reflete a constante busca por aprimoramento e modernização do direito civil brasileiro e promove potencial diminuição dos custos de crédito. Ao permitir a gestão eficiente e especializada dos ativos garantidores por parte do agente de garantia, essa modalidade contratual contribui para a redução de riscos e, consequentemente, para a mitigação dos custos associados à concessão de crédito. ---------------- BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2003. Dentre outros assuntos, altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Diário Oficial da União de 31 de outubro de 2023 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139
terça-feira, 10 de outubro de 2023

Fresh start e o crédito tributário

Introdução                O presente artigo trata da extinção das obrigações do falido, com as alterações promovidas pela lei 14.112/2020, que permite o devedor recomeçar sua atividade econômica, livre das restrições que a falência lhe havia imposto. De fato, a lei 14.112/2020 abrandou o excessivo rigor dos requisitos para a extinção das obrigações, adotando um sistema semelhante ao denominado fresh start, que tem por objetivo facilitar a retomada das atividades empresariais do devedor.   Porém, em relação ao crédito tributário, as reformas realizadas pela lei 14.112/2020 não resolvem a questão, porque o art. 146, III da Constituição da República prevê que compete à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria tributária, não cabendo à lei ordinária dispor sobre a extinção das obrigações tributárias. Assim, o desafio aqui será encontrar a solução do problema aplicando-se o Código Tributário Nacional, que trata especificamente da matéria. Os novos critérios para extinção das obrigações do falido Antes de analisar a questão do crédito tributário, cumpre destacar as modificações trazidas pela lei 14.112/2020 que simplificaram substancialmente o procedimento de extinção das obrigações do falido, permitindo o denominado fresh start. Nos mesmos moldes do art. 138 do decreto-lei 7.661/1945 ("DL 7.661/1945"), a lei atual só autoriza o devedor falido a exercer novamente a atividade empresarial após a declaração de extinção de suas obrigações, matéria essa atualmente regida pelo art. 158 da lei 11.101/2005. Na redação original do art. 158 da lei 11.101/2005, encerrada a falência, o devedor poderia requerer a extinção das suas obrigações, nas seguintes hipóteses: i) pagamento de todos os créditos; ii) o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% dos créditos quirografários; iii) o decurso do prazo de cinco anos, contado do encerramento da falência, se o falido não tiver sido condenado por crime falimentar; e iv) o decurso do prazo de dez anos, contado do encerramento da falência, se o falido tiver sido condenado por crime falimentar. Vale notar que o termo inicial dos prazos de cinco ou dez anos era o encerramento da falência. A lei 14.112/2020 representou um enorme avanço, ao simplificar e reduzir os requisitos para a extinção das obrigações. Além de revogar as exigências previstas nos incisos III e IV, que, respectivamente tratavam do decurso do prazo de cinco anos, sem condenação por crime falimentar, e de dez anos se o falido fosse condenado por crime falimentar, em ambos os casos contado o prazo do enceramento da falência, a lei deu nova redação ao inciso II e introduziu os incisos V e VI do art. 158, nos seguintes termos: "II - o pagamento, após realizado todo o ativo, de mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos quirografários, facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir a referida porcentagem se para isso não tiver sido suficiente a integral liquidação do ativo; [...] V - o decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da decretação da falência, ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado; VI - o encerramento da falência nos termos dos arts. 114-A ou 156 desta lei." Ou seja, o termo inicial do prazo para extinção das obrigações do falido não é mais o encerramento da falência, mas sim sua decretação. Por sua vez, o encerramento da falência, que antes era o termo inicial dos prazos de cinco ou dez anos, passa a ser, por si só, fundamento suficiente para extinção das obrigações do falido. Importante destacar que há diferença sobre a aplicação dos incisos V e VI do art. 158, aos processos em curso. Nos termos do art. 5º, § 1º, inc. IV, da lei 14.112/2020, o inciso V aplica-se somente às falências decretadas após o início da vigência da mesma lei 14.112/2020, ou seja, não se aplica aos processos anteriores. Ao contrário, o art. 5º, § 4º, da lei 14.112/2020 estabelece que o inc. VI tem aplicação imediata, inclusive às falências regidas pelo DL 7.661/1945. Também o art. 159 foi alterado, reduzindo o prazo de trinta para cinco dias, para que os credores possam se opor ao pedido de extinção das obrigações formulado pelo falido. Note-se que o legislador reduziu a matéria a ser alegada pelos credores, Ministério Público e o administrador judicial, que só podem se manifestar sobre inconsistências formais e objetivas. Dentre os credores legitimados a contestar o pedido de declaração de extinção das obrigações do falido estão as Fazendas Públicas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que nos termos do inciso XIII do art. 99, acrescentado pela lei 14.112/2020, são intimadas eletronicamente da decretação da quebra. A intenção do legislador em viabilizar o retorno do agente econômico às suas atividades empresariais encontra-se ainda em outros dispositivos da lei 14.112/2020. De um lado, o art. 75 dispõe que a falência visa "fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à sua atividade econômica". Da mesma forma, a nova lei fixou prazo de 180 dias para a realização de todo o ativo, contado da data da lavratura do auto de arrecadação. Salvo por impossibilidade justificada, o descumprimento dessa obrigação acarretará a destituição do administrador judicial (art. 22, alínea j). Ressalta a preocupação do legislador em fixar uma sanção severa para o administrador judicial que descumprir, injustificadamente, essa obrigação de encerrar a liquidação do ativo com celeridade. A extinção das obrigações do falido e o crédito tributário  A finalidade específica desse instituto é a extinção de todas as obrigações na falência, como prevê expressamente o §3º do art. 159, com a nova redação dada pela lei 14.112/2020. Porém, em relação ao crédito tributário, a extinção das obrigações tem uma peculiaridade própria, pois o art. 191 da lei 5.172/1966 ("CTN") é expresso no sentido de exigir a prova da quitação de todos os tributos. O curioso é que essa redação do art. 191 foi introduzida pela LC 118/2005, a mesma que alterou o art. 186 para sujeitar o crédito tributário à falência. Assim, o legislador apresenta sinais trocados, uma vez que ao mesmo tempo em que avança e reconhece a realidade, sujeitando o crédito fiscal à quebra, também retroage, impedindo que a declaração de extinção das obrigações abranja os tributos. Há evidente conflito entre a norma do art. 186, que submete o crédito tributário ao sistema falimentar, e a regra do art. 191. No momento em que o CTN reconhece a sujeição do crédito da Fazenda Pública ao sistema falimentar, o qual tem normas específicas sobre a extinção das obrigações, não faz sentido a regra do art. 191. Esse dispositivo do art. 191 era coerente quando o crédito tributário não se sujeitava ao concurso falimentar - hipótese em que poderia ser declarada a extinção das obrigações na falência, sem abranger o crédito tributário, o qual não se sujeitava ao concurso de credores. O Superior Tribunal de Justiça analisou, em duas oportunidades, a aplicação do art. 191 do CTN na vigência do DL 7.661/1945, em acórdãos da lavra do Ministro Raul Araújo e da Ministra Nancy Andrighi. Como à época o crédito tributário não se sujeitava ao concurso de credores, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que a extinção das obrigações poderia ser declarada, mas o que, obviamente, não abrangeria os tributos.1-2 A interpretação isolada do art. 191 do CTN levaria à conclusão de que o falido estaria impedido de exercer os direitos que a falência restringiu até a liquidação total do passivo tributário, o que de fato seria impossível de ocorrer, ainda mais quando a falência for extinta após a realização de todo o ativo (art. 154 da lei 11.101/2005). Uma alternativa seria adotar a orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, na vigência do DL 7.661/1945, no sentido de que a extinção das obrigações poderia ser declarada, mas não abrangeria as obrigações relativas a tributos, cuja cobrança, à época não se sujeitavam à falência, de modo que, juridicamente, o falido poderia de voltar a exercer a atividade empresária, mas não ficaria livre das obrigações tributárias. Contudo, tais interpretações devem ser repelidas, por incompatíveis com o escopo da extinção das obrigações, de modo a estimular a retomada da atividade produtiva. Por certo, a solução sobre a extinção do crédito tributário na falência deve estar no CTN, e não na lei ordinária. Isso porque cabe à lei complementar - no caso, o CTN - estabelecer normas gerais referentes a obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários, nos termos do art. 146 da Constituição da República. Cumpre frisar que a solução sobre a extinção do crédito tributário na falência é apresentada pelo próprio CTN, o qual no art. 156 inclui entre as hipóteses de extinção do crédito tributário a decisão judicial passada em julgado (inciso X). No caso das obrigações do falido, nos termos do 159 da lei 11.101/2005, a extinção se dá com o trânsito em julgado da sentença que declarar extintas as suas obrigações. Na hipótese, a sentença tem natureza constitutiva e não declaratória. O § 3º do art. 159 da lei 11.101/2005 dispõe que o juiz proferirá sentença que "declare extintas todas as obrigações do falido, inclusive as de natureza trabalhista", sem fazer referência expressa ao crédito tributário. Mas a referência apenas ao crédito trabalhista não é suficiente para concluir que a declaração de extinção das obrigações do falido não abrangeria as de natureza tributária, pois o fundamento para a extinção do crédito tributário estaria caracterizado pela sentença de extinção das obrigações passada em julgado, como prevê o art. 156 inciso X do CTN. Conclusão  A lei 14.112/2020 simplificou significativamente o instituto da extinção das obrigações do falido, não se podendo deixar de reconhecer que o novo regramento tem a mesma preocupação do sistema denominado fresh start, no sentido de facilitar um recomeço para o devedor, que se liberta das restrições impostas pela falência, livre para voltar a empreender. O grande desafio seria a extinção das obrigações tributárias, cuja solução deve passar necessariamente pelos dispositivos do CTN, uma vez que cabe à lei complementar, e não à lei ordinária, dispor sobre normas gerais de direito tributário. Nessa linha de raciocínio, é razoável concluir que a aplicação do art. 156, X, do CTN ao encerramento da falência é a interpretação que melhor harmoniza a lei ordinária à lei complementar. Assim interpretadas sistematicamente as normas do § 3º do art. 159 da lei 11.101/2005, com a redação dada pela lei 14.112/2020 e do art. 156, X, do CTN, conclui-se que a sentença, ao declarar extintas as obrigações do falido, extinguirá todas as suas obrigações, inclusive as de natureza tributária. __________ 1 "RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL. FALÊNCIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DO FALIDO (DL 7.661/45, ART. 135, III). DECURSO DO PRAZO PRESCRICIONAL DE CINCO ANOS. TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE ENCERRAMENTO DA FALÊNCIA. AUSÊNCIA DE PRÁTICA DE CRIME FALIMENTAR. PROVA DE QUITAÇÃO DOS TRIBUTOS FISCAIS (CTN, ARTS. 187 E 191). RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A declaração de extinção das obrigações do falido poderá referir-se somente às obrigações que foram habilitadas ou consideradas no processo falimentar, não tendo, nessa hipótese, o falido a necessidade de apresentar a quitação dos créditos fiscais para conseguir o reconhecimento da extinção daquelas suas obrigações, em menor extensão, sem repercussão no campo tributário. 2. Sendo o art. 187 do Código Tributário Nacional - CTN taxativo ao dispor que a cobrança judicial do crédito tributário não está sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento, e não prevendo o CTN ser a falência uma das causas de suspensão da prescrição do crédito tributário (art. 151), não há como se deixar de inferir que o crédito fiscal não se sujeita aos efeitos da falência. 3. Desse modo, o pedido de extinção das obrigações do falido poderá ser deferido: I) em maior abrangência, quando satisfeitos os requisitos da Lei Falimentar e também os do art. 191 do CTN, mediante a "prova de quitação de todos os tributos"; ou II) em menor extensão, quando atendidos apenas os requisitos da Lei Falimentar, mas sem a prova de quitação de todos os tributos, caso em que as obrigações tributárias não serão alcançadas pelo deferimento do pedido de extinção. 4. Recurso especial parcialmente provido para julgar procedente o pedido de extinção das obrigações do falido, em menor extensão, sem repercussão no campo tributário. (STJ - REsp: 834932 MG 2006/0053594-4, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 25/08/2015, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/10/2015)" e "RECURSO ESPECIAL. FALÊNCIA. DL 7.661/1945. EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DO FALIDO. DECURSO DO PRAZO DE CINCO ANOS. PROVA DA QUITAÇÃO DE TRIBUTOS. DESNECESSIDADE. 1- Extinção das obrigações do falido requerida em 16/8/2012. Recurso especial interposto em 19/8/2016 e atribuído à Relatora em 26/8/2016. 2- Controvérsia que se cinge em definir se a decretação da extinção das obrigações do falido prescinde da apresentação de prova da quitação de tributos. 3- No regime do DL 7.661/1945, os créditos tributários não se sujeitam ao concurso de credores instaurado por ocasião da decretação da quebra do devedor (art. 187), de modo que, por decorrência lógica, não apresentam qualquer relevância na fase final do encerramento da falência, na medida em que as obrigações do falido que serão extintas cingem-se unicamente àquelas submetidas ao juízo falimentar. 4- Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1426422 RJ 2013/0414746-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/03/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/03/2017). Também nesse sentido é a lição de João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea aos examinarem essa questão do crédito tributário e o encerramento da falência (Recuperação de Empresas e Falência. 3ª ed. São Paulo: Almedina, 2018, pp. 996/997). 2 A regra do art. 191 do CTN aplica-se somente aos tributos, e não às multas tributárias, que são obrigações acessórias excluídas do conceito de tributo, conforme dispõe o art. 3º. do CTN: "Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada". (grifo nosso). Aliás, o CTN (art. 186, III) e a Lei nº 11.101/2005 (art. 83, VII), também fazem essa distinção entre tributo e sanção de ato ilícito (multas e penalidades), que têm classificações distintas na falência.
O moderno sistema de insolvência empresarial brasileiro, baseado na negociação entre credores e devedores, com o objetivo de encontrar uma solução de mercado para a superação da crise da empresa, foi inaugurado pela lei 11.101/05, num momento histórico em que a economia brasileira experimentava um período de crescimento. Nesse sentido, as novidades desse novo modelo não foram efetivamente testadas por quase uma década, época em que as empresas, como regra geral, enfrentavam um momento favorável ao desenvolvimento de suas atividades. Entretanto, a partir de 2015, o cenário econômico começou a mudar radicalmente. O Brasil passou a enfrentar a pior crise de sua história recente. O PIB caiu praticamente 7% nos anos de 2015 e 2016, demonstrando uma retração na atividade econômica comparável à década de 1930 com a quebra da Bolsa de Nova Iorque e a grande depressão. A partir de então, o sistema de insolvência brasileiro foi efetivamente colocado sob um teste de estresse, com os índices de distribuição de pedidos de recuperação de empresas e falências atingindo suas máximas históricas. Percebeu-se, então, a necessidade de aprimoramentos no nosso sistema diante da constatação de que faltavam algumas ferramentas necessárias ao enfrentamento eficaz da crise da empresa, bem como de que outras ferramentas mereciam modificações e aprimoramentos para que pudessem gerar melhores resultados. A reforma do sistema de insolvência empresarial se tornou, portanto, uma preocupação do Estado brasileiro, como pressuposto para que o País pudesse se recuperar da crise de 15/16. Nesse contexto, o MF, sob o comando do Ministro Henrique Meirelles, criou no final do ano de 2016 um grupo de trabalho para a elaboração de um anteprojeto de nova lei de recuperação de empresas e falências (portaria MF 467/16). Os trabalhos desse grupo - que contaram com a participação de diversos profissionais, inclusive deste autor - resultaram na apresentação do PL 10.220/18. Entretanto, essa primeira tentativa de reforma da lei não encontrou espaço favorável para desenvolvimento, diante do conturbado momento político. Mas não só em razão disso. O texto do anteprojeto não refletia em grande parte as necessidades de mudanças necessárias para a busca da eficiência do sistema de insolvência, razão pela qual perdeu o apoio de importantes setores da sociedade brasileira. Em 2019, o ME, já sob o comando do Ministro Paulo Guedes, retomou a ideia de prosseguir com a reforma do sistema de insolvência brasileiro. A estratégia utilizada foi a criação de um grupo reduzido de juristas para auxiliar o Deputado Hugo Leal na elaboração de um substitutivo ao PL 10.220/18. O trabalho político do Deputado Hugo Leal, auxiliado tecnicamente pelo grupo de juristas formado por Ivo Waisberg, Pedro Teixeira, Márcio Guimarães e Daniel Carnio Costa, resultou na coleta de sugestões de diversos segmentos da sociedade civil organizada, de Tribunais de Justiça, do STJ e de entidades representativas dos interesses envolvidos nos processos de insolvência. Foi elaborado o texto do substitutivo - que substituiria todos os projetos em andamento na Câmara dos Deputados e que tivessem objetivo de alterar a lei de recuperação de empresas e falências - que tramitou sob o número 6.229/05 (identificação do projeto de lei mais antigo que pretendia alterar a lei 11.101/05). O projeto substitutivo foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado, por onde tramitou sob relatoria do Senador Rodrigo Pacheco sob o número 4558/20. O projeto foi aprovado no Senado - com algumas alterações de redação - e foi sancionado pelo Presidente da República em 24 de dezembro de 2020, com alguns vetos que foram, posteriormente, superados pelo CN. Nasceu, então, o novo marco legal do sistema de insolvência brasileiro, a lei 14.112/20, que deu nova redação à lei 11.01/05. A reforma da lei de recuperação de empresas e falências aprimorou algumas das ferramentas já existentes e criou outras ferramentas novas. Nesse sentido, a título de exemplo, foram aprimorados o processo de falência, a reabilitação do falido e a recuperação extrajudicial. Por outro lado, foram criados o sistema de pré-insolvência empresarial (mediação e conciliação antecedentes), a constatação prévia, o financiamento DIP, a regulação da consolidação substancial e processual e o sistema de insolvência transnacional. Mas a reforma do sistema de insolvência não se faz apenas com a reforma do marco legal. Evidentemente, é importante que se tenha uma lei boa e completa para o bom enfrentamento da crise da empresa. Mas para que o sistema seja eficiente, é necessário criar condições para que essa lei seja efetivamente aplicada na prática, podendo-se extrair da regulação legal todo o seu potencial. Nesse sentido, se faz necessário também a realização de uma reforma de aprimoramento do ambiente institucional. Importante destacar que o Brasil realizou - e continua realizando - uma profunda reforma para aprimoramento do ambiente institucional a fim de propiciar uma adequada aplicação do novo marco legal de recuperação de empresas e falência. Paralelamente ao movimento de reforma da lei, ainda em 2018, o CNJ, sob a presidência do Ministro Dias Toffoli, criou o Grupo de Trabalho de Falências e Recuperação de Empresas (portaria CNJ 162, de 19 de dezembro de 2018). Esse grupo foi responsável pela apresentação de diversos atos normativos aprovados pelo Plenário do CNJ com o propósito de melhorar a atuação dos magistrados na condução de processos de insolvência, a estrutura do Poder Judiciário para o tratamento dessas causas e a atuação dos administradores judiciais. A título de exemplo, foram resultados desse GT do CNJ a recomendação 56/19, que estimulou a criação de Varas Especializadas em recuperação judicial, falências e direito empresarial de competência regional; a recomendação 58/19, que estimulou o uso da mediação e conciliação em processos de insolvência; a recomendação 63/20, que orientou os magistrados na condução de processos de insolvência durante a pandemia; a recomendação n. 71/20, que orientou a criação de CEJUSCs empresariais pelos Tribunais de Justiça; a recomendação n. 72/20, que orientou a melhor atuação dos administradores judiciais; e a recomendação 10/21, que padronizou e organizou os trâmites para a realização de AGCs virtuais e híbridas. Esse mesmo GT editou a resolução 393/21, que determinou a criação do cadastro de administradores judiciais pelos Tribunais de Justiça, e a resolução 393/21, que estabeleceu regras para a comunicação direta e cooperação entre juízos brasileiros e estrangeiros em processos de insolvência transnacional (adotando as boas práticas estabelecidas pelo Judicial Insolvency Network - JIN). Em 2022, esse GT foi transformado em fórum permanente do CNJ. A resolução CNJ 466/22 instituiu o FONAREF - Fórum Nacional de Recuperação de Empresas e Falências no âmbito do Conselho Nacional de Justiça com o propósito de aprimorar o ambiente institucional de aplicação do sistema de insolvência empresarial brasileiro. O FONAREF editou, por exemplo, a recomendação 141/23, que orienta os magistrados ao atendimento das melhores práticas na fixação dos honorários do administrador judicial. Em maio de 2023, o FONAREF publicou diversos enunciados doutrinários para orientar os Tribunais na aplicação do novo sistema de pré-insolvência empresarial (mediação e conciliação antecedentes). No âmbito do MP, o CNMP criou um grupo de trabalho para estudar as melhores práticas de atuação dos promotores e procuradores de justiça em processos de recuperação de empresas e falências. Os trabalhos desse GT resultaram na aprovação da recomendação 102/23 do CNMP, que orienta a atuação do MP em processos de insolvência empresarial. Percebe-se, portanto, que o movimento de reforma do sistema de insolvência no Brasil preocupou-se não só com o aprimoramento da lei (marco legal), mas também com a melhoria do ambiente institucional de aplicação da lei. A eficiência do sistema de insolvência pressupõe que os Tribunais tenham estrutura adequada para aplicação da lei, com varas especializadas e juízes bem treinados e orientados à melhor condução dos processos de insolvência; da mesma forma, há necessidade de que os administradores judiciais sejam eficientes e bem orientados para atuação nos processos de insolvência; também o MP deve ser capacitado para atuar nesse tipo de demanda, com promotores e procuradores bem treinados e com estrutura especializada. Esse movimento de aprimoramento institucional, que acontece de maneira simultânea à reforma da lei, tem sido fundamental para o sucesso que o Brasil tem conseguido na gestão mais eficiente dos processos de falência e recuperação de empresas.
terça-feira, 19 de setembro de 2023

Deixe falir...

O advento da lei 11.101/05 (Lei de Recuperações e de Falências - LRF) trouxe consigo não apenas um novo princípio, mas uma nova mentalidade no mundo jurídico-falimentar: a preservação da empresa. Ele encontrou campo fértil de acolhimento, sobretudo entre operadores que se habituaram a sobrepor princípios a regras específicas, angariando especial simpatia entre aqueles que entendem que o norte absoluto do Direito é a realização da justiça social, a qual deveria prevalecer sobre questões econômicas de caráter individualista. Arriscaríamos dizer a esse respeito que quase dez entre dez obras doutrinárias receberam com grande felicidade o art. 47 da LRF, que traz os princípios e objetivos gerais da recuperação judicial, consistentes em viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, manter a fonte produtora, o emprego dos trabalhadores, promovendo, assim, a preservação da empresa e sua função social.1 A recepção do art. 47 pela jurisprudência não foi diferente:  imbuídas de excelentes intenções e nobres propósitos, decisões esposaram teses e interpretações inovadoras para preservar a empresa (facilitando a recuperação e dificultando a falência), dentre as quais citamos algumas tendências: (1) prorrogação de prazo de recuperação judicial, ainda que contrariamente ao texto inicial da lei; (2) dispensa de certidões tributárias; (3) criação, praeter legem, sem critérios objetivos e previsíveis, de hipóteses de superação de voto de credores em oposição à recuperação em assembleia; (4) utilização, ainda que em alguns casos, de teorias de (in)adimplemento substancial para impedir ou suspender a convolação de recuperação em falência. Importante notar que, tanto a lição doutrinária quanto as decisões jurisprudenciais aludidas têm um alicerce comum, no sentido de que a preservação da atividade empresarial não é um fim em si mesmo. Preserva-se a empresa não por seus fundamentos econômicos, mas para manter vivos seus efeitos sociais. A essência do pensamento jurídico nessa matéria segue quase um brocardo aplicável ao direito administrativo: preservar empresa visa a sobrepor os efeitos inerentes ao interesse público (representados precipuamente pela continuidade do emprego e da tributação) sobre o interesse privado (pretensões dos credores e questões puramente econômicas). A revelação do raciocínio anteriormente citado não parece, em primeira análise, trazer nada de novo ou injustificável. Mas é justamente aí que repousa o grande risco: ao facilitar sobremaneira a interpretação normativa favorável à concessão/manutenção da recuperação (em detrimento da falência) lastreando-se prioritariamente em aspectos sociais outros que não a análise rigorosa de viabilidade econômica do empreendimento, cria-se um conjunto importante de incentivos (ou desincentivos) e de consequências, dentre as quais as discutidas no tópico seguinte. Incentivos e consequências importam Economistas ressaltam reiteradamente que incentivos importam, no sentido de que comportamentos humanos são encorajados ou desencorajados em virtude de estímulos (considerados aqui os de natureza econômica). Por sua vez, o ordenamento jurídico, sobretudo na visão da Análise Econômica do Direito, constitui-se, mais do que em meras normas derivadas da ciência moral ou filosófica, em um conjunto de incentivos. Como bem ressalta Bullard, que citamos no original:2 El derecho, más allá de disquisiciones filosóficas, es un sistema de regulación de conducta humana. Toda regla jurídica tiene un supuesto de hecho y una consecuencia jurídica: «el que causa un daño a otro con culpa debe indemnizarlo». Causar un daño con culpa es el supuesto de hecho. Pagar la indemnización es la consecuencia jurídica. Pero si usted mira con cuidado las cosas, pagar la indemnización es un precio, el costo de hacer algo. Por ello si se obliga a pagar a los culpables, habrá menos actos culposos. En otras palabras, la lógica del sistema de precios puede ser aplicada, como veremos, a virtualmente toda norma jurídica. Finalmente, las normas tratan de crear incentivos de conducta del tipo que los economistas estudian. Cabe agora indagar: quais consequências decorrem do raciocínio jurídico interpretativo do art. 47 da LRF, conforme citado no tópico anterior? Quando se considera que a atividade empresarial deve ser preservada mais em virtude de seus efeitos sociais (notadamente emprego e tributação), e menos em consideração de sua essência, acaba-se por relegar a segundo plano o requisito essencial da eficiência econômica como condição indispensável ao soerguimento empresarial. Nessa linha, decisões judiciais que, em interpretação benevolente do art. 47 da LRF, evitam ao extremo a decretação da falência e facilitam demasiadamente recuperações a devedores que não têm condições de operar de modo economicamente eficiente, acabam por gerar um resultado econômico pernicioso: mantêm em sobrevida atividades de alto custo e de baixo valor agregado, jogando o ônus econômico daí decorrente sobre toda a sociedade. Note-se que a proteção trabalhista derivada de tais situações é bastante ilusória: usualmente, protege-se um grupo restrito de empregados, supondo sua vulnerabilidade econômica, obtendo como contrapartida a manutenção de empregos caros e ineficientes, cuja conta, repita-se, é paga por toda a sociedade. Esses escassos recursos sociais, diga-se, poderiam ser mais bem utilizados na criação de empregos de eficiência superior, beneficiando toda a coletividade. Por outras palavras, poderíamos assim resumir: o que se preserva de empregos ineficientes com tais recuperações, corresponde à perda de outros empregos eficientes no mesmo setor ou em setores distintos da economia. Tal situação é deveras semelhante ao que ocorre quando se adotam políticas públicas que preconizam reservas de mercado, cerceamento de comércio exterior ou exigências de conteúdo nacional mínimo em mercadorias. Nesses casos, de modo similar, os empregos preservados em território nacional são mantidos à custa de recursos econômicos que poderiam ser utilizados na criação de outros empregos de maior grau de eficiência. Note-se também que se trata de uma ilusão de preservação trabalhista feita por meio de uma troca intertemporal de recursos desvantajosa para a sociedade: subsidiam-se hoje empregos ineficientes, usando recursos que criariam atividades de maior valor econômico e social em futuro próximo. Podem-se até entender as causas dessa linha de pensamento, conhecido economicamente como desconto hiperbólico: as demandas presentes acabam por ter prioridade em relação às futuras, é dizer, preferimos, muitas vezes, preservar empregos hoje (ainda que ineficientes) a usar recursos de forma mais eficiente no futuro, criando então empregos de melhor qualidade e produtividade. Sobre esse assunto, ensina Gianetti com grande maestria:3 Como entender essa aparente anomalia? O que explicaria essa tendência a subestimar na prática o futuro, ainda que reconhecendo a desejabilidade prática de não fazê-lo? [...] A fórmula que melhor descreve e elucida esse tipo de comportamento é o desconto hiperbólico. A ação resulta de uma combinação instável entre preferências inconsistentes. De um lado, a preferência pela gratificação imediata no presente (desfrute) e, de outro, a preferência pela espera paciente e a conduta calculada de longo prazo (previdência) [...]. A lonjura no tempo favorece a prudência e o cálculo frio; a proximidade subverte. Na sóbria serenidade da distância, a perspectiva neutra prevalece: a formiga pré-frontal dá o tom e rege o ensaio da orquestra cerebral. Mas, quando o momento e a oportunidade de agir se avizinham, a relação de forças se altera. A cantoria da cigarra límbica embala a mente com o antegozo de iminentes delícias e as boas intenções perdem temporariamente sua força motivadora [...]. A resultante disso é que a propensão a descontar o futuro - "viver agora, pagar depois" - aumenta de forma acentuada conforme a oportunidade concreta de agir se aproxima [...]. Daí que nossa capacidade de espera, como uma pomba caprichosa, tende a ser dócil e domesticável no conforto das escolhas pensadas à distância, mas arisca e traiçoeira no calor da hora. Enquanto a tentação (ou ameaça) anda longe, não há dificuldade em lidar com ela. É simples como escolher musse ou quindim de sobremesa: cada um prefere o que é melhor para si. Basta acertar o despertador, ao deitar-se, para acordar bem cedo na manhã seguinte; ou pensar na dieta com o estômago cheio; ou abraçar a temperança sob o efeito da última ressaca; ou parar de fumar e começar a ginástica no mês que vem; ou comprar camisinhas a caminho do motel; ou jurar fidelidade eterna no primeiro mês de casado; ou dispensar os anestésicos meses antes do parto; ou se imaginar capaz de feitos heroicos na falta de oportunidades; ou rejeitar o pecado e sentir-se um santo logo após a comunhão; ou ser contra os excessos da UTI no trato de doentes terminais quando se tem ótima saúde; ou desprezar a morte enquanto se é jovem ou não há perigo. Os exemplos pululam - cada um sabe de si. A tentação revela melhor o autocontrole; o perigo revela melhor a bravura e firmeza de caráter. Semelhante ilusão protetiva ocorre no campo tributário: quando se preservam empresas ineficientes, o resultado econômico por elas gerado remanesce necessariamente aquém do que se poderia obter caso os mesmos fatores de produção (capital, mão-de-obra etc.) fossem utilizados em outras atividades eficientes. Logo, a tributação (incidente sobre faturamento ou sobre o lucro) também permanece aquém do potencial que poderia atingir se os recursos fossem transferidos por efeito da decretação da falência. Mais uma vez, a sociedade paga a conta na forma de baixa arrecadação. Resumindo, temos que, embora imbuído de nobres propósitos, o efeito econômico da preservação de empresas ineficientes é justamente o contrário do que se imagina no meio jurídico: (1) preservam-se poucos empregos ineficientes à custa de recursos econômicos escassos de toda a sociedade, em detrimento da criação de outros empregos eficientes, no mesmo ou em outros setores da economia; (2) preserva-se (quando muito) baixa arrecadação, em prejuízo de potencial de arrecadação maior advindo do uso eficiente dos mesmos recursos em outras atividades. Poder-se-ia questionar se o Poder Judiciário deve buscar eficiência ou se outros valores, como "justiça social", equidade e congêneres deveriam prevalecer ao decidir sobre a preservação ou não de uma atividade empresarial. O pensamento subjacente a esse questionamento é que existiria uma contradição entre valores sociais (justiça social, equidade etc.) e individuais (fundamentos econômicos), devendo o juiz dar prioridade aos primeiros sobre os segundos. Pelo que já se viu até aqui, porém, a resposta é razoavelmente simples: não há contradição entre valores de eficiência e outros como "justiça social" e equidade. Diga-se, inicialmente, que, diante de uma realidade de recursos econômicos escassos, não há como fazer "justiça social" ou preservar equidade se houver desperdício de recursos, ou seja, a sociedade não é tratada de modo justo quando, mediante decisão judicial, permite-se a continuidade de atividades ineficientes e dispendiosas, à custa de alocação ineficiente de fatores de produção. Nesse sentido, mais uma vez, cabe citar Bullard:4 En todos los cursos de derecho los profesores se centran en qué es la justicia y qué es equitativo. Buena parte de la discusión es qué es justo y qué no lo es. Pero la verdad, al menos en mi experiencia, es que la mayoría de abogados no puede definir qué es realmente la justicia y qué es equitativo. Más allá de repetir la definición griega («la justicia es dar a cada quien lo suyo») lo cierto es que no es sencillo encontrar una fórmula que nos arroje respuestas sobre qué es justo y qué no. Dar a cada quien lo suyo puede tener interpretaciones muy diferentes, dependiendo de qué es «suyo» y de qué es «dar». Tan diversas que todos los abogados dicen que defienden la justicia de los dos lados de la misma controversia. En cambio, los economistas han sido bastante más precisos (y técnicos) en definir qué es la eficiencia y cómo esta nos guía hacia soluciones correctas. El AED ha intentado aprovechar ello para construir un derecho más eficiente, pero, como era de esperarse (y lo veremos más adelante) ello ha despertado críticas y reacciones de todo tipo. Muchas personas no entienden bien ni los postulados ni la utilidad del AED. Como el AED se basa en un análisis costo-beneficio, se tiende mucho a pensar que es un análisis deshumanizante: qué tendría que ver con la justicia, con la conducta humana y con los valores convertir en números el derecho. Pero eso no es lo que persigue el AED. No se busca sustituir la justicia por la eficiencia. Uno puede (y debe) bajo el AED, buscar las soluciones justas a los problemas jurídicos. Pero si uno quiere ser responsable, parte de la solución justa es saber cuánto cuesta alcanzarla. Como bien dice Calabresi, en una sociedad donde los recursos son escasos, desperdiciar es injusto (Calabresi, 1992). La eficiencia tiene que ver con evitar el desperdicio y así mejorar el bienestar de las personas. Lo que se busca es, por tanto, un derecho que, sin olvidar otros aspectos o valores a los cuales se deba, sea un derecho eficiente, es decir un derecho que evite el desperdicio creando incentivos de conducta adecuados para lograr sus fines. Lo que se persigue es evitar que los sistemas jurídicos generen desperdicios. A eficiência econômica, portanto, embora seja frequentemente vista no meio jurídico como fruto de pensamento individualista, é um valor social tão relevante quanto os demais supracitados (justiça social, equidade, dignidade etc.) e somente por meio dela que se obtém a justa alocação de recursos escassos da sociedade como um todo (e sobretudo das parcelas menos favorecidas da população). Essa contradição (aparente), aliás, não é privativa das recuperações e das falências, fazendo-se presente nas decisões de alocação de recursos públicos orçamentários (estatais): equivale, mutatis mutandis, à mesma situação em que governos, ao pretenderem proteger camadas mais pobres da população, incorrem em desequilíbrios orçamentários geradores de déficits permanentes e inflação, os quais prejudicam principalmente as classes populares a que os programas governamentais visavam a beneficiar.  Em breve conclusão Do que aqui se disse, podemos concluir claramente que é impossível ao Poder Judiciário realizar "justiça social" ou outros valores de equidade ou de dignidade da pessoa humana, preservando atividades empresariais em detrimento da verificação do requisito da viabilidade/eficiência econômica, sob pena de criar ilusória proteção social, com sacrifício de recursos econômicos escassos, sobretudo no longo prazo. É preciso, portanto, ter a coragem de enfrentar o tema e analisar, caso a caso, a eficiência econômica ao decidir. Em não estando presente essa condição, é preciso deixar o empreendimento falir, pois somente dessa forma os recursos econômicos terão alocação mais eficiente em outras atividades, em benefício de toda a sociedade. Sobre quais fundamentos econômico-financeiros utilizar para tomar esse tipo de decisão, deixaremos a discussão do tema para um próximo artigo. __________ 1 É verdade que o artigo citado também traz como princípio a manutenção do interesse dos credores. Mas esse ponto, podemos dizer, é o menos invocado pela doutrina e pela jurisprudência para justificar a preservação da empresa, uma vez que costuma soar como algo de caráter mais individualista. 2 Bullard, Alfredo. Análisis económico del derecho (Colección Lo Esencial del Derecho nº 35) (Spanish Edition) (p. 11). Fondo Editorial de la PUCP. Edição do Kindle. 3 Gianetti, Eduardo. 2005. O valor do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 177-178. 4 Op. cit. p. 23.
Em outra oportunidade nesta coluna, já tive a oportunidade de tratar acerca do papel do Ministério Público nos processos de insolvência. Naquela oportunidade ressaltei a importância da instituição como função essencial à justiça, ao lhe ser atribuída a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127 de nossa Carta Magna, o que lhe permitiu o alcance da prelazia de autonomia funcional e administrativa, além de conferir aos seus membros predicamentos dos membros do Poder Judiciário, para garantir a independência na atuação funcional. Especificamente em relação aos institutos da lei 11.101/05, mencionei o veto ao art. 4º do aludido diploma legal que assim dispunha: "Art. 4º O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência. Parágrafo único. Além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta." e que muitas eram as razões (e teses) do veto, mas todas buscavam explicar que isso não seria uma proposta para diminuir a importância do Ministério Público no sistema de insolvência brasileiro. Ao contrário, ao lado das atribuições legais expressas (exemplificativamente - arts. 52, V; art. 99, VIII; 142, § 7º; 154, § 3º), defendi que a atuação do Ministério Público no âmbito do processo civil e de microssistemas como o do sistema de insolvência deveria ser pautada pela defesa de interesses públicos que atinjam ou influenciem a esfera pessoal e patrimonial de uma coletividade de indivíduos. Isso está em harmonia com o que preceitua o Código de Processo Civil, nos seus arts. 176 a 178, especialmente, nos temas de insolvência, quando se vislumbrar interesse público ou social. Ainda assim, não havia uma uniformidade de atuação dos mais diversos órgãos ministeriais em processos de insolvência, sobretudo em comarcas nas quais não haviam órgãos com atribuições específicas voltadas à lei 11.101/05. Em 2022, sob a liderança do Conselheiro Daniel Carnio Costa, o Conselho Nacional do Ministério Público criou um grupo de trabalho voltado a otimizar a atuação dos órgãos ministeriais que atuam com processos da lei 11.101/05. Tal grupo foi composto por diversos integrantes de diversos Ministérios Públicos existentes além de desembargadores, juízes, advogados, acadêmicos e administradores judiciais. Durante os debates sobre enunciados que poderiam ser criados para auxiliar na uniformização e orientação da atuação de promotores em processos de insolvência, ficou evidente a existência de uma corrente mais institucional, que defendia uma participação ampla do Ministério Público em todos os pontos da lei 11.101/05 e outra corrente que buscava temperar o âmbito dessa atuação, uma vez que as questões que envolvem o direito das empresas em crise, sem embargo à importância socioeconômica do tema, são compostos por direitos e litígios que abrangem direitos disponíveis e pessoas maiores e capazes. A síntese desse trabalho foi a criação da Recomendação 102, de 8 de agosto de 2023, que dispõe sobre o aprimoramento da atuação do Ministério Público nos casos de recuperação judicial e falência de empresas e dá outras providências. Em tal recomendação foram previstas orientações nas quais o Ministério Público, ao oficiar em processos da lei 11.101/05, deve se atentar aos objetivos elencados nos considerandos do texto normativo. Uma observação deve ser feita ao leitor: a recomendação, embora reflita a síntese de discussões entre os membros do grupo de trabalho, deve ser vista como um texto de consenso, ou seja, nem todas as suas proposições são unanimidade entre os componentes, mas resultado de uma votação que exprimiu a vontade de uma maioria. Isso em nada desmerece o trabalho e sua importância, mas serve como informação para evitar eventuais incorretas interpretações ou atribuições que de sua utilização possam recair sobre os membros do grupo. Reputo que o trabalho realizado tenha sido um avanço para o aprimoramento da atuação do Ministério Público em processos de insolvência. A uma, para buscar, sem prejuízo da independência funcional de seus órgãos e membros, uma homogeneidade de atuação que proporcionará segurança jurídica na aplicação da lei 11.101/05. A duas, porque servirá como valiosa orientação para promotores que não possuam especialização na matéria, mas, por circunstâncias comuns da carreira, devam oficiar em processos de falência, recuperação judicial e extrajudicial. Mesmo diante dessa conquista para a comunidade jurídica e, ao final, para o jurisdicionado, não podemos cair na armadilha de se utilizar o texto da recomendação para conferir uma atuação universal do Ministério Público, desvirtuando sua própria essência, em desprezo a limites legais existentes. Digo isso porque há um argumento sedutor, de caráter puramente deontológico (e, por isso mesmo, insuficiente para funcionar como exclusivo critério hermenêutico), em se associar a necessária intervenção do Ministério Público em processos de insolvência, diante da repercussão econômica e social destes na sociedade. Mas será mesmo que o interesse social dos institutos da lei 11.101/05 sempre justificariam a intervenção do Ministério Público? Temos outros critérios que nos permitiriam depurar e otimizar a atuação ministerial nos processos de insolvência? A reflexão é importante porque além do Ministério Público não possuir infraestrutura para atuar em todas as situações previstas na lei 11.101/05, em processos de caráter econômico como os de recuperação judicial, extrajudicial e falência, qualquer intervenção estatal deve ser proporcional e equilibrada, para permitir maior eficiência na solução de problemas. O fato é que nem sempre há interesse público direto e imediato decorrente da função social da empresa que demande a intervenção do Ministério Público nos processos da lei 11.101/05. É obrigação do órgão ministerial, quando sua atribuição não estiver expressamente prevista em lei, demonstrar a pertinência concreta de sua intervenção, numa exposição que transcenda a retórica deontológica de que o interesse social está contido na função social da empresa. Para tanto, como bem acentua Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil, Volume I, Malheiros, 2016, páginas 881 e 882): O interesse público que essa Instituição tem o dever de resguardar não é o puro e simples interesse da sociedade no correto exercício da jurisdição como tal - que também é uma função pública -, porque dessa atenção estão encarregados os juízes, também agentes estatais eles próprios. O Ministério Público tem o encargo de cuidar para que, mediante o processo e o exercício da jurisdição pelos juízes, recebam o tratamento adequado certos conflitos e valores a eles inerentes, particularmente mediante o zelo por direitos e interesses indisponíveis, como está na Constituição Federal. Indo além, temos os preceitos da lei 13.655, de 25/4/18, a qual promoveu a inserção de diversos dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para buscar garantir o alcance de maior segurança jurídica por poderes e órgãos estatais, quando da aplicação da lei ao caso concreto, de modo que a atuação ministerial deve ter acuidade na compatibilização de sua visão instituição com a situação do caso concreto, num juízo de subsunção que explicite sua necessária atuação em prol do interesse público, sem se valer de argumentos genéricos ou de construções que não tenham estofo nos elementos dos autos. De acordo com a exposição de motivos do PL 7.448, DE 2017, que resultou na lei 13.655/18: A proposta pretende tornar expressos alguns princípios e regras de interpretação e decisão que, segundo a doutrina atual, devem ser observados pelas autoridades administrativas ao aplicar a lei. Vale dizer que algumas destas iniciativas já foram incorporadas ao novo código de processo civil. Assim, a proposta sugere parâmetros a serem observados quando autoridades administrativas tomam decisões fundadas em cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados. Busca também conferir aos administrados o direito a normas de transição proporcionais e adequadas, bem como estabelece um regime para que negociações entre autoridades públicas e particulares ocorram de forma transparente e eficiente. Sobre o âmbito de alcance das introduções trazidas pela lei 13.655/18, Odete Medauar (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - Anotada - Volume II, Quartier Latin, 2019, páginas 63/64) assim leciona: A ementa da referida Lei identifica o âmbito material específico de aplicação dos seus preceitos: criação e aplicação do direito público, visando à eficiência e segurança jurídica nessas situações. Em tese, incide nas decisões relativas a assuntos tratados em disciplinas do direito público, por exemplo: direito constitucional, direito administrativo, direito tributário, direito financeiro, direito processual, direito urbanístico, direito ambiental. Quanto às autoridades públicas que decidem, o art. 20 utiliza a expressão "esferas administrativa, controladora e judicial". Esfera administrativa mostra-se de sentido largo, para abranger todos agentes que decidem nos órgãos e entes da Administração direta e indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Esfera controladora diz respeito aos órgãos ou entes que exercem controle interno e externo sobre atuações da Administração Pública direta e indireta. Podem ser exemplificados, no controle interno, os órgãos contábeis e financeiros do próprio órgão ou ente público, as controladorias, as ouvidorias, as corregedorias; no controle externo, os tribunais de contas, o ministério público. Esfera judicial abarca os juízes e os membros dos tribunais do Poder Judiciário. Embora o Poder Judiciário se enquadre na condição de "esfera controladora" da Administração Pública, o dispositivo indicou explicitamente tal esfera, talvez por clareza. Como se pode observar, é obrigatória a observância dos preceitos da lei 13.655/18 pelo Ministério Público quando de sua atuação nos processos de insolvência. Isso porque o sistema de insolvência é de evidente interesse público, na medida em que sua eficiência proporcionará maior atração de investidores e, consequentemente, proporcionará o fortalecimento da economia brasileira. A própria lei reconhece o seu caráter de interesse público na medida em que determina a intervenção do Ministério Público, segundo suas próprias atribuições constitucionais. Logo, a aplicação da Recomendação 102 ao Ministério Público não afasta a obrigatoriedade da aplicação das regras constantes da LINDB, para que em suas manifestações sempre demonstre e comprove as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB) Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB). Outro diploma normativo de observância obrigatória ao Ministério Público (bem como aos demais participantes dos processos da Lei 11.101/2005), é a lei 13.874/19, que trata da Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica. Aqui, merece destaque a previsão do art. 2º, I, do aludido diploma legal (Art. 2º  São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;), que traz em seu bojo o princípio do in dubio, pro libertatem, segundo o qual devemos abandonar uma posição restritiva e formalista em demasia, sob a falsa premissa de respeito a valor de ordem pública, muitas vezes interpretado subjetivamente pelo sujeito aplicador da lei, para que se passe a entender que a liberdade de iniciativa envolve o prestígio à escolha de objetivos particulares, de modo a tornar o direito privado cada vez mais privado, com prestígio à boa-fé, à função social da propriedade e à liberdade de contratar e empreender. Tomemos como exemplo o art. 14 da recomendação 102 que assim está disposto: Art. 14. O Ministério Público avaliará a idoneidade e a eficiência do administrador judicial durante todo o processo, na forma do art. 22 da lei 11.101/05, pleiteando a sua substituição quando necessário. Claramente o âmbito de atuação aqui deve respeitar a observância das obrigações legais previstas no art. 22 da lei 11.101/05, não podendo o órgão ministerial querer se substituir ao juiz na avaliação sobre o ato de nomeação, bem como deve apontar as situações do caso concreto que evidenciem, de maneira objetiva, a ineficiência do auxiliar do Juízo, segundo os critérios legais de desempenho de tal função. Outra situação é a impossibilidade do Ministério Público se imiscuir em questões econômicas do plano de recuperação judicial (art. 28 da Recomendação), não sendo sua atribuição buscar a modificação de cláusulas que envolvam direitos disponíveis de pessoas maiores e capazes. Como exemplo, eventual deságio proposto não comportaria questionamento, porque inserido na esfera de transação das partes, além de possuir razão econômica voltada à composição do caixa para suportar as obrigações ordinárias da operação empresarial e da capacidade de pagamento da devedora, que não poderia assumir estipêndios em patamar superior à sua condição financeira. Sem a apresentação de elementos concretos que evidenciassem abuso por parte da devedora, não haveria espaço para que o Ministério Público questionasse cláusulas do plano, colocando em risco a preservação da atividade e as finalidades previstas no art. 47 da lei 11.101/05. Concluindo, deve ser louvado o trabalho do Conselho Nacional do Ministério Público na edição da Recomendação 102, conferindo uma maior homogeneidade na atuação ministerial e auxiliando na orientação de promotores que não possuem conhecimento especializado na matéria. Acrescento que a aplicação do texto da Recomendação deve observar o critério estrito de legalidade, sobretudo os arts. 20 e 21 da LINDB, bem como a Lei de Liberdade Econômica, a fim de que o Ministério Público demonstre, com elementos do caso concreto e avaliando as consequências de suas manifestações, a necessidade de sua intervenção para a defesa real de interesse público nas demandas que envolvam a aplicação da lei 11.101/05.
Introdução  Desde o advento do decreto-lei 7.661/1945, a matéria atinente aos então denominados crimes falimentares é tratada integralmente nos diplomas da legislação pertinente, isto é, os tipos penais e suas respectivas penas são definidos na própria lei de insolvência. Abandonou-se, desde então, a anterior tendência legislativa que se limitava a prever determinadas condutas, as quais, praticadas no âmbito de uma falência tida como culposa ou fraudulenta1, configurariam crimes, cujas penas, no entanto, eram dispostas em legislação criminal comum. A edição da lei 11.101/2005 reafirmou a lógica da legislação revogada ao prever os tipos penais relacionados com a insolvência e as sanções cominadas para essas condutas2, e por outro lado, inovou ao estabelecer a aplicação das regras de prescrição contidas no Código Penal3 e prever novas condutas relacionadas com a recuperação judicial ou extrajudicial, o que nos conduz à necessária mudança de nomenclatura: crimes de insolvência4. De fato, na vigência da legislação em vigor, foram tipificadas ações delituosas que podem ser praticadas antes ou depois da falência, da sentença de concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial, portanto, entendemos que essa nova denominação é mais adequada ao cenário atual.  Evidentemente, a substituição da legislação de 1945 pela lei 11.101/2005 trouxe outros desafios relacionados à incidência das demais regras do Código Penal. Nesse sentido, devemos destacar o tema relativo ao concurso de crimes que está disciplinado nos artigos 69 a 71 do Código Penal, cujas disposições tratam dos concursos, material e formal (perfeito e imperfeito)5, e do crime continuado. Essa questão é bastante relevante, principalmente se considerarmos que a legislação vigente não reproduziu a regra contida no art. 192 do decreto-lei 7.661/1945, cujo teor determinava, em caso de concurso de crimes falimentares, a incidência dos efeitos do concurso formal, aplicando-se, por consequência, a pena do crime de maior gravidade, aumentando-a, em qualquer caso, de um sexto até metade. No contexto da legislação de 1945, como veremos adiante, essa hipótese de política criminal ficou conhecida como a unicidade (ou unidade) dos crimes falimentares. É conveniente recordar, ainda, que já naquela época havia uma interessante discussão sobre a abrangência desse princípio, em particular, quando identificado o concurso de crimes falimentares praticados antes e depois da sentença falimentar e, ainda, na hipótese de existência de crimes tipificados no Código Penal ou em outra lei extravagante.  Diante desse cenário, este texto irá realizar um exame crítico sobre a pertinência de ser aplicado o princípio da unicidade no contexto da lei 11.101/2005, considerando o silêncio da norma vigente sobre qual espécie de regra de concurso de crimes deverá ser aplicada, caso o agente realize uma pluralidade de condutas que estejam subsumidas aos tipos penais da legislação de insolvência e também em outras normas de direito penal.    Princípio da Unicidade  O princípio da unicidade, unidade ou unitariedade6 do crime falimentar corresponde a uma construção de parte da doutrina à época que antecede a vigência da lei 11.101/2005, com fundamento na tese de que tais delitos possuem uma estrutura complexa e, portanto, ainda que sejam constatadas a pluralidade de infrações penais que antecedem a decretação da falência, o que se pune é a violação do direito dos credores pela superveniente insolvência do devedor7. Dessa forma, esses atos delituosos contra tal direito dos credores deveriam ser considerados como um todo único8. Ademais, essa conclusão seria reforçada pela redação do art. 192 do decreto-lei 7.661/1945, cujo teor nos remete ao concurso formal9 de crimes, ensejando, assim, a aplicação pelo juiz da pena cominada a essas infrações que seja considerada mais gravosa10. Diante desse cenário identificado à luz da legislação de 1945, é necessário refletir se esse entendimento doutrinário majoritário, devidamente referendado pela jurisprudência daquela época, pode continuar sendo adotado na vigência da lei 11.101/2005, ou, em sentido contrário, diante da identificação de diversas infrações falimentares isoladas, o julgador deveria analisar as circunstâncias do caso concreto com a finalidade de aplicar a regra do concurso de crimes prevista nos artigos 69 a 71 do Código Penal, cujas especificidades serão abordadas em seguida. O concurso de crimes no Código Penal  Pela sistemática atualmente existente no Código Penal, tem-se três espécies de concurso de crimes: material, formal e continuidade delitiva. O concurso material será reconhecido quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, hipótese em que as penas são aplicadas cumulativamente (art. 69, caput, do Código Penal11). No primeiro caso, quando da ocorrência de crimes idênticos, diz-se que o concurso é homogêneo; no segundo, tem-se o caso de concurso heterogêneo, uma vez que diversos são os crimes12. No concurso formal, o agente, mediante uma única conduta (por ação ou omissão), acaba praticando dois ou mais crimes. Reconhecido o concurso formal, aplica-se a mais grave das penas cabíveis, ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até a metade (art. 70, caput, do Código Penal13 - primeira parte). Nesse caso, temos o que se conhece por concurso formal próprio. No entanto, excepcionalmente, aplica-se ao concurso formal a regra do material, quando os vários crimes praticados, embora decorrentes de uma única ação, resultam de desígnios autônomos, isto é, quando o agente quer praticar, mediante uma ação, os vários crimes, e não um só (art. 70, caput, do Código Penal - segunda parte). A doutrina classifica esta última hipótese de concurso formal impróprio14. Finalmente, tem-se a prática de continuidade delitiva15 quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, prática dois ou mais crimes da mesma espécie e, tendo-se em conta as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplicando-se a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços (art. 71, caput, do Código Penal16). Diante das previsões acima destacadas e, levando-se em consideração a aparente distinção entre os regimes jurídicos adotados pela legislação revogada e a lei 11.101/2005 sobre o concurso de crimes, o momento da aplicação do princípio ora em comento também deve ser analisado, para efeito de incidência dos benefícios penais existentes em nosso ordenamento jurídico: transação penal, acordo de não persecução penal e suspensão condicional do processo. Por essa razão, em continuação devemos analisar a possibilidade de ser considerada a unicidade dos crimes de insolvência antes da decretação da sentença penal condenatória, com vistas ao oferecimento de medidas despenalizadoras previstas em nosso ordenamento jurídico. Momento da aplicação do princípio da unicidade  É relevante saber se é admitida a incidência do princípio da unicidade no concurso de crimes de insolvência antes da decretação da sentença penal condenatória, com o propósito de serem oferecidos ao agente os benefícios penais da transação penal17, do ANPP18 e da suspensão condicional do processo19. Sobre esse tema, interessa observar que parte da doutrina e a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça rechaçam a possibilidade de utilização do princípio para deferimento das referidas benesses. Nesses casos, portanto, não se considera o crime único, para fins de concessão dos indigitados benefícios, antes da prolação de sentença penal condenatória, de modo que, se aplicadas as regras de concurso de crimes, a pena superar os limites impostos pelo legislador, não deverão ser concedidos essas medidas despenalizadoras ao agente20. Essa não é, todavia, a única restrição à aplicação do princípio da unicidade nos crimes de insolvência, pois também devemos verificar se tal unidade também seria aplicável diante do concurso de crimes de insolvência e os comuns, previstos no Código Penal ou em qualquer outra norma penal extravagante.  Inaplicabilidade da unicidade no concurso de crimes de insolvência e comuns O reconhecimento do princípio da unicidade, mesmo durante a vigência do decreto-lei 7.661/1945, encontrava algumas limitações apontadas pela doutrina quando, por exemplo, houvesse o concurso de crimes de insolvência anteriores e posteriores à decretação da falência21. Além disso, na hipótese de concurso de crime de insolvência com crime comum, não seria aplicável o princípio da unicidade. A observação é importante eis que pode ser verificada a ocorrência de concurso de crime falimentar com o crime de quadrilha (atual associação criminosa prevista no art. 288 do Código Penal), crimes de lavagem de dinheiro (da Lei 9.613/1998), estelionato, entre outros. Com efeito, o princípio da unicidade restringia-se aos casos específicos de pluralidade dos outrora denominados crimes falimentares, orientando-se nesse sentido, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: HABEAS CORPUS. PENAL. LEI DE FALÊNCIAS. CRIMES FALIMENTARES. PRESCRIÇÃO. ESTELIONATO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. CONCURSO MATERIAL DE CRIMES. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA UNICIDADE. DELITOS AUTÔNOMOS. 1. A jurisprudência consagrada no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal orienta que o prazo prescricional de 2 (dois) anos para os crimes falimentares deve correr a partir do trânsito em julgado da sentença que encerra a falência, ou da data em que esta deveria estar encerrada. Inteligência do art. 132, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 7.661/45, e da Súmula 147/STF. 2. Decretada a falência da empresa na data de 05.08.1999, a denúncia só foi oferecida em 21.03.2005, havendo o transcurso de mais de três anos e meio após a data em que deveria ter se encerrado a falência, razão pela qual torna-se imperioso o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva do Estado, no que tange ao crime falimentar imputado ao ora paciente. 3. O princípio da unicidade estabelece que, havendo o concurso de diversas condutas voltadas ao cometimento de fraudes aos credores da empresa em processo de falência, considera-se a prática de apenas um único tipo penal, para o qual deve ser aplicada a pena do mais grave deles. 4. Tal princípio não se aplica no caso de concurso de crimes falimentares e delitos comuns elencados no Código Penal brasileiro, que devem ser apurados e punidos separadamente, segundo as regras do concurso material de crimes, conforme previa expressamente o art. 192 do decreto-lei 7.661/45, revogado pela nova Lei de Falências. 5. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida, tão somente para declarar prescrita a pretensão punitiva do Estado com relação ao crime falimentar que se imputou ao ora paciente, devendo prosseguir a ação penal para a apuração dos outros delitos comuns pelos quais foi denunciado.22  Após a edição da lei 11.101/2005, o entendimento esposado pela Corte Superior mantém-se hígido no mesmo sentido da aplicação da regra do concurso de crimes na hipótese em que um dos fatos delituosos praticados configure crime comum. A equivocada aplicação do princípio da unicidade na vigência da lei 11.101/2005 Diante da dinâmica acima exposta, forçoso reconhecer que carece de análise mais detida dos Tribunais23, em especial, do Superior Tribunal de Justiça24, a continuidade da aplicação do princípio nos crimes cometidos após a promulgação da atual legislação da crise da empresa (lei 11.101/2005), a fim de uniformizar o tema e trazer mais clareza e correção na aplicação das regras acima mencionadas do concurso de crimes. A ratio da lei 11.101/2005 não abre mais espaço para o acolhimento do postulado, inclusive diante da adoção de um regime penal mais gravoso na vigente norma. O seu fundamento, desenvolvido na égide da legislação passada, é superado pelo texto legislativo atual, ao não dispor sobre a unidade dos crimes falimentares e, ademais, determinar a aplicação das regras constantes do Código Penal25. Assim, as condutas praticadas devem ser consideradas individualmente, com subsunção dos respectivos tipos delituosos existentes, sem que se considere todas as praticadas como um único evento delitivo. Fazendo coro à superação da incidência ao princípio da unicidade aos delitos de insolvência, Marlon Tomazette, citando ainda Arthur Migliari Junior, Alexandre Demetrius Pereira, Jane Silva e Nilo Batista como autores que compartilham do mesmo entendimento, sustenta que o novo regime falimentar não abraça mais o princípio antes aplicado, sendo imperiosa a incidência das regras dos concursos de crimes, previstas no Código Penal.  Nesse sentido, pontua que: "nada justifica a existência desse princípio. Em primeiro lugar, não se cogita mais da ideia da falência como crime, havendo a punição de crimes para a recuperação de empresas também. Em segundo lugar, não há qualquer dispositivo na legislação, do qual se possa inferir a inexistência de concurso entre crimes falimentares. Em terceiro lugar, não há mais um prazo prescricional unificado, o que reforça a ideia da ausência de unidade. Por fim, não há qualquer motivo que justifique um privilégio para o agente que cometeu esses crimes. Ele deverá ser punido por todas as suas condutas e não apenas por uma delas"26. A perpetuação do referido princípio na atual sistemática de direito das empresas em dificuldade autoriza inadvertidamente um benefício que já não encontra mais previsão em nosso ordenamento jurídico ao agente que, em um mesmo contexto, pratica diversas condutas, as quais, isoladamente, amoldam-se a crimes distintos. O raciocínio fazia sentido, em especial, na lei anterior, pela existência de tipos mistos alternativos, os quais caracterizam-se quando a lei estabelece diversos núcleos que, se praticados no mesmo contexto fático, importam o cometimento de apenas um delito27. No entanto, sob a perspectiva da legislação atualmente em vigor, a definição dos crimes de insolvência é completamente distinta, existindo tipos penais que compreendem condutas praticadas após a falência e mesmo aquelas praticadas no curso de uma recuperação judicial ou extrajudicial, sem que haja necessariamente um decreto de quebra28. Ademais, a pormenorização mais detalhada das condutas delituosas em tipos penais autônomos é resultado do maior rigor que a lei 11.101/2005 impôs à repreensão dos crimes nela previstos, afastando-se da ideia antes existente - e que dava respaldo à unicidade - no sentido de que todas as condutas poderiam ser reputadas como um único comportamento delitivo. A manutenção do princípio autorizada pela jurisprudência (atual) vai de encontro a tal objetivo, na medida em que a unicidade acaba por anular a chance de destrincharmos as ações individualmente praticadas e conferir punição estreita, correta e legal (isto é, de acordo com as regras vigentes sobre concurso de crimes), a cada conduta delituosa praticada no âmbito da fraude falimentar. Conclusão É nesse contexto que a aplicação da unicidade não mais se coaduna com o espírito da legislação em vigor, demandando necessária revisão dos precedentes que, no entanto, ainda são vastamente encontrados ao se pesquisar o tema. A partir da publicação da Recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público nº 102, de 08 de agosto de 2023, que dispõe sobre o aprimoramento da atuação do Ministério Público nos casos de recuperação judicial e falência de empresas, o membro do Ministério Público deverá observar a possibilidade de aplicação dos benefícios legais aos agentes que tenham praticado crimes de insolvência (art. 9º), sempre com a perspectiva da não incidência do princípio da unicidade29. De igual forma, deverá o membro do Ministério Público zelar pelo afastamento desse benefício na sentença penal condenatória e, sobretudo, quando estivermos diante do concurso de crimes de insolvência praticados antes e depois da sentença falimentar, de concessão da recuperação judicial e de homologação do plano de recuperação extrajudicial, assim como se houver concurso de crimes de insolvência e comuns e, por fim, nos casos em que os sujeitos passivos sejam distintos. No estudo em comento, conclui-se que a lei 11.101/2005 inaugura uma nova lógica normativa, na qual o postulado da unicidade dos crimes de insolvência não encontra mais amparo legal, demandando atenção imediata de revisão jurisprudencial para que não se perpetuem decisões desconexas com a lei e com os ensinamentos doutrinários mais relevantes sobre o tema. __________ 1 O art. 798 do Código Comercial previa que "a quebra ou falência pode ser casual, com a culpa ou fraudulenta". A falência era considerada casual quando a insolvência procedia "de acidentes de casos fortuitos ou força maior" (art. 799). Seria culposa quando ocorresse uma das hipóteses dos incisos do art. 800: (1) "Excesso de despesas no tratamento pessoal do falido, em relação ao seu cabedal e número de pessoas de sua família"; (2) "Perdas avultadas a jogos, ou especulação de aposta ou agiotagem"; (3) "Venda por menos do preço corrente de efeitos que falido comprara nos seis meses anteriores a quebra, e se ache ainda devendo"; e (4) "Acontecendo que os falido, entre a data do seu último balanço (art. 10 n. 4) e a da falência (art. 806), se achasse devendo por obrigações diretas o dobro do ser cabedal apurado nesse balanço". Por fim, o art. 802 previa as hipóteses em que a falência era considerada fraudulenta: (1) "Despesas ou perdas fictícias, ou falta de justificação do emprego de todas as receitas do falido"; (2) "Ocultação no balanço de qualquer soma de dinheiro, ou de quaisquer bens ou títulos (art. 805)"; (3) "Desvio ou aplicação de fundos ou valores de que o falido tivesse sido depositário ou mandatário"; (4) "Vendas, negociações e doações feitas, ou dívidas contraídas com simulação ou fingimento"; (5) "Compra de bens em nome de terceira pessoa; e (6) Não tendo o falido os livros que deve ter (art. 11), ou se os apresentar truncados ou falsificados". 2 Comentando o tema, Alexandre Demetrius Pereira pontua que "a matéria referente aos crimes falimentares esteve em princípio disciplinada parcialmente nos diplomas falenciais e penais, sendo transportada posteriormente em sua integralidade para a legislação falimentar - tendência esta mantida no Decreto-lei 7.661/1945 e na Lei 11.1011/2005." PEREIRA, Alexandre Demetrius. Crimes Falimentares: Teoria, Prática e Questões de Concurso Comentadas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Malheiros Editores Ltda., 2010, p. 60. 3 Com respeito ao início da contagem do prazo prescricional, o art. 182 da Lei 11.101/2005 apenas ressalvou que a prescrição começaria a correr do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial. Deve-se ter atenção para o fato de essa ressalva ser aplicável apenas para os crimes que sejam praticados antes desses marcos indicados no referido dispositivo. No caso de crimes cujas condutas sejam realizadas em momento posterior, aplica-se o Código Penal. Nesse sentido: SACRAMONE, Marcelo B. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627727. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553627727/. Acesso em: 16 ago. 2023.: "Se o crime for pós-falimentar ou recuperacional, o marco inicial da prescrição deverá respeitar as regras gerais do Código Penal. A prescrição da pretensão punitiva deve se iniciar do dia em que houve a consumação do delito ou, no caso de tentativa, do dia em que cessaram os atos de execução (art. 111 do CP)." 4 Há doutrina no sentido de que não é necessária essa mudança. Veja: SCALZILLI, João P.; SPINELLI, Luis F.; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência: Teoria e Prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Grupo Almedina (Portugal), 2023. E-book. ISBN 9786556277950. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 5 De acordo com a lição de Cleber Masson: "...Perfeito, ou próprio, é a espécie de concurso formal em que o agente realiza a conduta típica, que produz dois ou mais resultados, sem atuar com desígnios autônomos. Desígnio autônomo, ou pluralidade de desígnios, é o propósito de produzir, com uma única conduta, mais de um crime. É fácil concluir, portanto, que o concurso formal perfeito ou próprio ocorre entre os crimes culposos, ou então entre um crime doloso e um crime culposo. Imperfeito, ou impróprio, é a modalidade de concurso formal que se verifica quando a conduta dolosa do agente e os crimes concorrentes derivam de desígnios autônomos. Existem, portanto, dois crimes dolosos." (MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 7ª ed. São Paulo: Método, 2019. p. 426-427. 6 Oscar Stevenson, ao escrever sobre o tema, antes da vigência do Decreto Lei 7.661/1945, utilizava a denominação "princípio da unitariedade", em relação aos crimes ocorridos antes da sentença falimentar. STEVENSON, Oscar. Do crime falimentar. Editora Saraiva, São Paulo, número 8, 1939, página 154. 7 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. São Paulo, Editora Saraiva, Volume II, 14ª Edição, p. 160. 8 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro, Editora Forense, 4ª Edição, Volume VII, p. 219-221: "...assentou a doutrina no sentido de que 'em matéria de bancarrota, há unidade no crime, não obstante a multiplicidade de fatos que a caracterizem. O fato criminoso que., em última análise, se pune é a violação do direito dos credores pela superveniente insolvência do comerciante. Todos os atos, portanto, contra tal direito devem ser considerados como um todo único. Por esse evento lesivo, isto é, o prejuízo efetivo ou potencial, dos credores, é punido o devedor, e tão-somente por causa dele; assim, é lógico atingir com a pena somente aquilo que esse evento representa. Não cada um dos atos que contribuíram para ele, mas a totalidade deles, como uma unidade incindível. Não há razão para o cumulo material ou jurídico de penas... O evento lesivo é um só, uma só é a violação do interesse penal protegido" 9 SALVADOR FRONTINI, Paulo. Crime Falimentar. Revista de Direito Mercantil 1978, pp.27-55, 10 MIRANDA VALVERDE, Trajano de. Comentários à Lei de Falências. Editora Forense, Rio de Janeiro, 4ª Edição, 1999, página 69. 11 Art. 69. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. 12 NUCCI, Guilherme de S. Curso de Direito Penal: Parte Geral: arts. 1º a 120. v.1. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559646852. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 13 Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior. 14 DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; JUNIOR, Roberto D.; et al. Código penal comentado. Saraiva: Editora Saraiva, 2021. E-book. ISBN 9786555593914. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 15 Em verdade, o crime continuado constitui uma forma de concurso material já que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, prática dois ou mais crimes, situação que, no entanto, por razões de conveniência político-criminal, é reputada como se todos constituíssem um só crime. Trata-se de uma ficção legal (unidade jurídica de ação). Nesse sentido: BITENCOURT, Cezar R. Código penal comentado. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. E-book. ISBN 9788553615704. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 16 Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, prática dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.   17 Art. 76, Lei 9.099/1995. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. 18 Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;   19 Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). 20 Alexandre Demetrius conclui que se "a unicidade do crime falimentar não é aplicável antes da sentença para viabilizar benefícios penais como a suspensão condicional do processo, pela mesma razão entendemos inaplicável referido instituto para possibilitar, também antes da sentença, a proposta de acordo de não persecução penal. Dessa forma, se o concurso de crimes falimentares resultar em pena mínima igual ou superior a quatro anos, incabível será a proposta de acordo de não persecução penal". Veja-se: PEREIRA, Alexandre Demetrius. O acordo de não persecução penal e os crimes falimentares: algumas particularidades. Migalhas, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 12 de agosto de 2023 "HABEAS CORPUS. CRIMES FALIMENTARES. CONCURSO MATERIAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA UNICIDADE. INAPLICABILIDADE ANTES DA SENTENÇA. APLICAÇÃO DA SÚMULA N.º 243 DO STJ. PRECEDENTES. 1. O concurso material de crimes falimentares (art. 186, inciso VI, e 187, do Decreto-lei n.º 7.661/1945) - cujas penas mínimas cominadas em abstrato são, respectivamente, de 06 (seis) meses e 01 (um) ano, perfazendo um somatório acima da restrição legal, que é de 1 (um) ano - constitui óbice à propositura ministerial da suspensão condicional do processo. Aplicação, in casu, do enunciado da Súmula n.º 243 do Superior Tribunal de Justiça. 2. A unidade dos crimes falimentares, ressalte-se, fictícia, de criação doutrinária, e altamente questionável, já caracterizaria uma benesse ao agente, aplicável somente ao final da instrução criminal, por ocasião da prolação da sentença. Não pode servir, também, para, contornando o comando legal (art. 89 da Lei n.º 9.099/95), vencer uma restrição objetiva à suspensão condicional do processo, outro benefício instituído pela lei. Precedentes do STJ. 3. Ordem denegada. (HC n. 23.922/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 23/11/2004)" No mesmo sentido: HC n. 26.126/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 18/11/2003; EDcl no AgRg no Ag n. 698.820/RJ, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 2/2/2006 21 De acordo com Ricardo Negrão: "No concurso de crimes antefalimentares, contudo, com pós­-falimentares, como, por exemplo, desvio de bens da massa (art. 189, I) e todos os previstos nos arts. 189 e 190 do Decreto­-Lei n. 7.661/45, Paulo Salvador Frontini (1980:109-111) atentava para o fato de existirem duas ou mais ações, com dois ou mais resultados, caracterizando, segundo seu entendimento, o concurso material, e, nesse caso, sujeitando­-se o agente à soma das penas incidentes, nos termos do art. 69 do Código Penal". Veja em: NEGRÃO, Ricardo. Curso de direito comercial e de empresa: recuperação de empresas, falência e procedimentos concursais administrativos. v.3. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627512. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553627512/. Acesso em: 16 ago. 2023. 22 HC n. 56.368/SP, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 24/10/2006, DJ de 20/11/2006, p. 347. No mesmo sentido, confira-se: RHC n. 11.918/SP, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 13/8/2002, DJ de 16/9/2002, p. 202; HC n. 85.148/SP, relatora Ministra Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), Quinta Turma, julgado em 6/9/2007, DJ de 1/10/2007, p. 351. 23 No âmbito do TJSP, destaca-se decisão que somente reconheceu a aplicação do princípio da unicidade quando o sujeito passivo do delito e insolvência é o mesmo (por exemplo, os credores). Veja-se: Brasil - TJSP - TJSP;  Apelação Criminal 1500018-85.2019.8.26.0549; Relator (a): Klaus Marouelli Arroyo; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Santa Rosa de Viterbo - Vara Única; Data do Julgamento: 08/03/2023; Data de Registro: 08/03/2023: "Nulidade - Inépcia da denúncia - Não caracterizada - Qualificação dos acusados, descrição fática e individualização da conduta satisfatórias - Requisitos do artigo 41 do Código de Processo Penal observados - Preliminar rejeitada. Crime Falimentar - Absolvição - Materialidade e autorias devidamente comprovadas - Condenações mantidas. Princípio da Unicidade - Crimes falimentares - Ainda que com desígnios autônimos, mas contra credores, se reconhece como crime único, valendo-se da pena do maior ilícito - Reconhecida a unicidade quanto aos delitos previstos no artigo 168 e 173 da Lei de Falências, eis que sujeito passivo é o mesmo, isto é, o credor - Mantido o concurso material em relação ao delito previsto no artigo 171 da Lei em comento, eis que sujeito passivo distinto, no caso, o Juízo, a Administração Pública. Redução das penas-base - Circunstâncias judiciais desfavoráveis - Consequência e gravidade do delito que extrapolaram às inerentes ao tipo penal em apreço justificam a majoração da reprimenda. Regime semiaberto - Primariedade - Total das reprimendas - Circunstâncias judiciais desfavoráveis - Inteligência do artigo 33, § 2º, alínea "b" do Código Penal. Recursos parcialmente providos." 24 Como mencionado, a jurisprudência do STJ ainda aplica amplamente o princípio da unicidade no caso de concurso de crimes exclusivamente falimentares (v. REsp n. 1.644.237, Ministro Relator Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 05/09/2017. REsp n. 1.617.129/RS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 21/11/2017; AgRg no AREsp n. 986.276/RS, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 7/8/2018, DJe de 17/8/2018). 25 Acerca da superação do princípio, abalizada doutrina estatui que "No regime anterior era pacífico que o crime falimentar deveria ser único, i.e., em ocorrendo mais de um crime falimentar, somente se puniria aquele dotado de pena mais grave, restando impuníveis os demais (princípio da unicidade ou unidade). (...). Na vigência da Lei 11.101/05, a definição dos crimes falimentares é completamente diferente daquela empregada na legislação anterior. A LREF não admite expressamente o princípio da unidade ou unicidade, razão pela qual se pode sustentar que a interpretação anterior não prevaleceria no atual regime. Além disso, seriam aplicáveis as normas do Código Penal, e aí estão incluídas as regras do concurso de crimes (CP, art. 69-71)" SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência - Teoria e prática na Lei 11.101/2005. 3ª edição. São Paulo: Almedina, 2018. p. 1010. Nota de Rodapé nº 3746 26 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 247. 27 CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal (Parte Geral) - Volume Único. 12ª Edição. São Paulo: Ed. Juspodivm, 2023. p. 358-360. 28 MIGLIARI JÚNIOR, Arthur. Crimes de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo: Quartier Latin, pp. 106/107, 2006.  29 Disponível aqui. Veja, ainda, o Seminário realizado no âmbito do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro sobre a Recomendação 102/2023 do CNMP.  
Introdução  Ninguém precisa ser jurista ou filósofo para compreender que direito e realidade social caminham em certo grau de harmonia e, ao mesmo tempo, de descompasso. E essa "harmonia descompassada" é, talvez, o maior fator justificante da existência e do modo de funcionamento do próprio direito enquanto mecanismo de influência de comportamentos sociais. Direito e sociedade, tais quais o bêbado e a equilibrista, caminham lado a lado, se passando e ultrapassando, se puxando e se empurrando, "pra noite do Brasil", como dizia a poeta. É da natureza da atividade jurídica, independentemente da forma pela qual é exercida, orquestrar a música e conduzir a valsa (ou, quiçá melhor, a bossa nova) dialética entre esses dois dançarinos inebriados. Advogados, juízes, estudantes, professores, acadêmicos ou operadores do direito em geral, consciente ou inconscientemente, contribuem com sua atividade para que o direito faça a sociedade avançar, ou para que "seja avançado" por ela, com o perdão do coloquialismo. E seja qual for a atividade sob referência, esse delicado equilíbrio entre normas e valores sociais vigentes apenas pode ser alcançado, como tudo na ciência, com reflexão. Saber onde estamos e para onde queremos ir, o que fazemos e porque fazemos, despidos de preconceitos e vícios de prática, é essencial tanto para a compreensão abstrata quanto para a orientação concreta das normas jurídicas. O que aqui tentamos propor é exatamente isso: um momento de reflexão sobre a consolidação substancial, um tema de suma importância para o tratamento da insolvência empresarial no Brasil. O que estamos a propor com este artigo não são respostas prontas, fórmulas ou formas de condução práticas e engessadas - mas, sim, elementos que podem (e, a nosso ver, devem) ser levados em consideração tanto por legisladores, ao criarem as normas, quanto por juízes e advogados, ao aplicá-las. Como não pretendemos oferecer respostas, podemos nos dar ao luxo de não pretender "estar certos". Trata-se, apenas, de uma tentativa de provocar reflexões mais profundas sobre o que fazemos, porque fazemos, e se deveríamos (ou como deveríamos) seguir fazendo. É nesse tom que teceremos, abaixo, algumas considerações sobre a consolidação substancial de grupos societários, da forma como atualmente prevista e aplicada no direito brasileiro dedicado ao tratamento da crise empresarial - mais especificamente, no âmbito da lei 11.101/2005, e após a reforma levada a efeito pela lei 14.112/2020. Clique aqui para conferir a coluna na íntegra.
Imaginemos a situação em que o credor não sujeito aos efeitos da recuperação judicial pleiteia em execução a penhora de determinados bens e valores pertencentes ao devedor ou, caso mais extremo, pleiteia o bloqueio dos recursos obtidos com a venda de determinado ativo da devedora, realizada em cumprimento às disposições do plano de recuperação, e que deveria servir para o pagamento de credores concursais. Esses casos são mais comuns do que se pode imaginar e corriqueiramente nossos tribunais são chamados a decidir se devem ou não prevalecer os interesses do credor não submetido à recuperação judicial da devedora sobre aqueles dos credores concursais ou ainda com mais frequência sobre os interesses do devedor. O que pode parecer claro ao se analisar essas situações, pode não ser tão evidente se considerarmos que não há na lei disposições sobre a prevalência de interesses (dos credores concursais e extraconcursais) e que há disputas frequentes sobre o patrimônio do devedor, levando o interprete muitas vezes à necessária solução do conflito entre as regras contidas na lei 11.101/05 com as disposições do Código de Processo Civil e também das leis especiais, como é o caso da tão combatida Lei de Execuções Fiscais, ou até mesmo possa ser necessária a ponderação entre princípios constitucionais, para que suas garantias sejam sacrificadas em menor medida possível ao se escolher entre uma ou outra solução. A análise sobre a essencialidade dos bens do devedor decorre justamente de um sistema que exclui muitos credores do processo concursal, o que parece representar um dos grandes problemas a serem enfrentados em favor da eficiência do processo de recuperação judicial, porque, quanto maior o número de excluídos, menor a abrangência da solução da crise do devedor pelo evidente motivo de serem enfrentados somente parte dos problemas com o equacionamento apenas dos créditos concursais. A exclusão de parte dos credores do processo traz assim a necessidade de se aferir quais bens são essenciais ao devedor, vale dizer, quais são indispensáveis à realização dos objetivos previstos na Lei de Recuperação de Empresas, especialmente, o de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora (art.47). Nesse sentido, fundamental para a solução desses problemas foi a especificação da competência do juízo da recuperação judicial para análise da questão da essencialidade de bens, já antes reconhecida em nossa doutrina1, na jurisprudência2 e posteriormente agregada à LRE pela reforma empreendida pela lei 14.112/2020 (art.6º, §§ 7º-A e 7º-B, da lei 11.101/05). Considere-se, todavia, que a competência do juízo da recuperação judicial para a análise dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial é limitada no tempo, restringindo-se ao chamado stay period, para os créditos mencionados nos §§ 3º e 4º do art. 49 da lei 11.101/05, e, para os créditos fiscais, até o encerramento da recuperação judicial, notando-se, ainda, que neste caso deve a competência ser exercida mediante a cooperação jurisdicional3, na forma do art. 69 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código, consoante dispõe o artigo 6º, §7º-B, da LRE. Passados esses períodos, ainda que sejam efetivamente essenciais à atividade do devedor, não haverá competência do juízo recuperacional para aferir se tais bens são ou não essenciais4 ou mesmo a proteção legal que possa impedir que determinado ativo será atingido por constrição e expropriação em virtude de dívidas, independentemente do fato de serem os créditos extraconcursais ou mesmo concursais, se estes não foram adimplidas nos termos do plano proposto5. Se há termo final para a proteção aos bens ditos essenciais e a necessária competência do juízo recuperacional para a aferição da essencialidade, há também termo inicial, que se dá com o deferimento do processamento da recuperação judicial, porque é neste momento em que se determina a suspensão das execuções individuais e se restringe a retirada de bens essenciais do estabelecimento do devedor. E essa conclusão leva à indagação se o juízo recuperacional exerceria controle sobre situação processual consolidada anteriormente. Em outros termos: poderiam ser atingidas aquelas constrições realizadas em favor de créditos concursais e extraconcursais antes do deferimento do processamento da recuperação judicial? Se o credor é concursal, não há sentido para a manutenção das constrições, porque este deverá se submeter à recuperação judicial do devedor e receber o seu crédito na forma prevista no plano. Em se tratando de credor extraconcursal, ainda que a constrição de bens represente situação transitória, porque se trata de ato processual que serve tão somente de meio para a satisfação do credor, deve-se reconhecer sua estabilidade6, remanescendo a penhora ou arresto, embora não possa ser expropriado ou desapossado o devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial durante o stay period (art. 49, §3º, da lei 11.101/05).  Veja-se que, até mesmo nessa situação, em se tratando de bem já anteriormente penhorado por credor extraconcursal antes do ajuizamento da recuperação judicial, eventual previsão do plano que venha posteriormente contemplar a venda desse ativo, deve respeitar a prioridade da penhora, para que seja esse credor satisfeito primeiramente, direcionando-se o remanescente para o pagamento de credores concursais, ou substituindo-se o bem penhorado sem que haja prejuízo ao credor individual, sob pena de ser ineficaz a transferência do domínio diante do credor não submetido à recuperação7. Nesse mesmo contexto, se o bem penhorado, por exemplo, em execução fiscal for vendido na recuperação, a alienação não será eficaz em relação aos créditos tributários8, a menos que seja indicada a substituição de bens suficientes para penhora na execução9. Ainda que limitada no tempo, como vimos, a proteção de determinados bens do devedor tidos como essenciais tem se mostrado fundamental, justamente porquanto se dá em momento crítico no qual é traçado o futuro da empresa em crise, em que se realizam as negociações sobre o seu passivo, destacando-se que a paralização das atividades pode trazer consequências irreversíveis ao devedor, podendo levá-lo inclusive à falência, ainda que viável a sua continuidade, o que certamente não seria um resultado desejável. Mas, o que são bens essenciais ao devedor sob recuperação judicial? Todos os bens essenciais estariam protegidos durante o stay period? A recuperação judicial tem lugar diante da crise econômico-financeira do devedor, que comumente vem atrelada à crise de liquidez, porque falta capital de giro ao empresário, isso quando não constitui situação mais crônica, representada pela escassez dos meios de produção empregados na atividade empresarial, o que faz compreender que não somente os recursos financeiros como também determinados bens se mostram essenciais ao soerguimento da empresa em crise. Contudo, mesmo que se considere que deve a análise ser feita no caso concreto10, parece ser mais restrita a ideia de essencialidade que se pode extrair da lei do que efetivamente realmente seria essencial ao devedor em crise. Em verdade, não há coincidência de terminologia entre bens de capital e elementos essenciais à empresa, posto que há bens de capital essenciais e não essenciais, ao passo que há elementos essenciais, como os recursos financeiros, que não se confundem com os bens de capital. O Superior Tribunal de Justiça, enfrentando a questão relativa à essencialidade de bens do devedor para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, tem adotado uma noção objetiva de bens essenciais, restringindo-a aos bens de capital que se encontrem em mãos do devedor e que sejam utilizados no processo produtivo da empresa, já que necessários ao exercício da atividade econômica exercida pelo empresário11. Assim, conforme entendimento do STJ, a proteção recairia tão somente sobre o bem de capital, ou seja, aquele "utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível"12. Dentro dessa estreita definição não se amoldam os direitos creditícios e nem mesmo os recursos financeiros13. Apesar desses recursos se mostrarem indispensáveis ao reerguimento da empresa, por constituírem bens incorpóreos e fungíveis, não se enquadram no conceito de bem de capital14-15. Alguns entendimentos, contudo, sensíveis à importância de determinados recursos para o enfretamento da crise, têm sido construídos pela jurisprudência e doutrina16, mirando o objetivo da lei quanto à preservação de empresas viáveis. Alguns casos, por exemplo, durante a Pandemia reconheceram excepcionalmente a essencialidade de ativos financeiros desde que necessários para custeio de despesas primordiais à manutenção da atividade empresária17. Nesse sentido, ainda, recebíveis de empresa em recuperação, que tenham sido objeto de cessão fiduciária e ainda não performados até a data do ajuizamento da recuperação, não podem ter seu produto apropriado pelo credor sob o entendimento de que, à luz do que dispõe o art. 49, § 3°, da lei 11.101/2005, a existência da propriedade fiduciária deve ser aferida na data do pedido de recuperação18. Em sua grande parte, as decisões tomam em consideração a situação concreta para verificar se determinado bem de capital é essencial ou não à atividade empresarial, consoante o objeto social desenvolvido pelo devedor, com base em análise que normalmente vem sendo realizada pelos administradores judiciais, dada a sua independência em relação à posição das partes e a posição de auxiliar do juízo, bem como acesso à contabilidade da empresa e o conhecimento dos negócios realizados19. Manuel Justino, adotando concepção mais ampla de bem essencial, deixa registrado que "qualquer bem objeto de alienação fiduciária, arrendamento mercantil ou de reserva de domínio deve ser entendido como essencial à atividade empresarial, até porque adquirido pela sociedade empresária somente pode ser destinado à atividade exercida pela empresa"20. A aferição da essencialidade, assim, deve ser feita com base no caso concreto, como, v. g., para a atividade de produtor rural, os bens de capital essenciais seriam aqueles que se voltem ao cultivo, colheita, armazenamento ou transporte da produção, como maquinários, silos, colheitadeiras, tratores, veículos etc. Mas, por outro lado, o resultado da produção, a safra, não constitui bem de capital e, portanto, dentro daquela apertada definição, não tem sua essencialidade reconhecida para a atividade empresarial rural, consoante entendimento jurisprudencial dominante21. Não obstante, alguns julgados já reconheceram que o diferimento da execução do penhor para safras futuras não se confunde com substituição ou supressão da garantia22. Como se pode ver, há ainda um grande descompasso entre os resultados das recuperações judiciais enquanto meio de reerguimento e reorganização da empresa em crise e os objetivos estabelecidos pela lei que rege a matéria e, em que pese a construção jurisprudencial e mesmo doutrinária, elementos essenciais à atividade do devedor, dentre eles os recebíveis, insumos e produtos finais nem sempre podem permanecer à disposição do empresário pelas determinações contidas na lei ou, sob aspecto de maior amplitude, pelo próprio sistema de reorganização, que exclui muitos credores da recuperação judicial23. Há certamente muito a ser feito para garantir a plenitude da busca pela superação da crise empresarial. __________ 1 Dentre outros, especialmente, refiro-me à tese de Renata Mota Maciel Madeira DEZEM: A universalidade do juízo da recuperação judicial. 1ª edição. São Paulo: Quartier Latin. 2017. 2 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2027014-22.2023.8.26.0000; Relator (a): Heraldo de Oliveira; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 13ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/06/2023; Data de Registro: 06/06/2023. 3 Sobre a cooperação judiciária, esclarece Fredie Didier: "a lei nova apenas impôs uma modalidade de resolução de conflito entre o juízo recuperatório e o juízo da execução fiscal. Basicamente, estabeleceu que a cooperação judiciária será o método por excelência para resolução do choque entre a pretensão executiva do fisco e a pretensão da recuperanda ao soerguimento quando envolver bens de capital essenciais à recuperação judicial. Mas sempre haverá necessidade de se acorrer ao juízo da recuperação, até para saber se aqueles bens são de capital e se são essenciais.29 É o juízo da recuperação quem tem o domínio sobre a essencialidade, ou não, dos bens para os destinos proveitosos dessa recuperação judicial; ele quem os qualificará assim. É dele também a capacidade de verificar se os bens são de capital ou não" (Cf. DIDIER JR., Fredie. Recuperação judicial, execução fiscal, stay period, cooperação judiciária e preservação da empresa: compreendendo o § 7º-b do art. 6º da Lei 11.101/2005, in Revista de Processo | vol. 323/2022 | p. 277 - 303 | Jan / 2022). 4 Nesse sentido: STJ - REsp 1991103 - 3ª Turma - j. 11/4/2023 - julgado por Marco Aurélio Bellizze Oliveira - DJe13/4/2023; AI. n. 2065351-51.2021.8.26.0000, TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Araldo Telles, julgado aos 26/10/2021, publicado aos 28/10/2021. 5 Nesse sentido: Enunciado III do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Escoado o prazo de suspensão de que trata o § 4º, do art. 6º da Lei nº 11.101/05 (stay period), as medidas de expropriação pelo credor titular de propriedade fiduciária de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor, poderão ser retomadas, ainda que os bens a serem excutidos sejam essenciais à atividade empresarial. 6 Nesse sentido: RECUPERAÇÃO JUDICIAL - ESSENCIALIDADE DOS BENS - Decisão judicial que deferiu o pleito das Recuperandas pela alienação de bens relacionados à sua atividade e onerados por decisão judicial, ressalvados aqueles atingidos pelo regime de afetação e os constritados em executivos fiscais - Pretensão de reforma que sob a alegação de que as penhoras anteriores não são atingidas pelo ajuizamento superveniente do pedido de recuperação judicial - Pertinência - Suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor que se limita processualmente aos casos em que a disponibilidade dos bens a favor do exequente ainda não foi alcançada (art. 6º, III, LREF) - Decurso do prazo do stay period e de sua prorrogação deferida na origem - Enunciado n. III do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP - Hipótese na qual, possível a retomada de atos de constrição sobre bens da devedora no curso da execução de título extrajudicial promovida pelos credores - Decisão reformada determinar a manutenção da penhora sobre bem imóvel efetivada nos autos do processo n. 1011287-31.2017.8.26.0071 e a vedação à alienação deste pelas Recuperandas - Agravo de instrumento provido. Dispositivo: Deram provimento ao recurso.  (TJSP; Agravo de Instrumento 2258845-41.2022.8.26.0000; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Bauru - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/06/2023; Data de Registro: 21/06/2023) 7 Nesse sentido: LOBO Jorge. In TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de ABRÃO, Carlos Henrique (coordenadores). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência, cit., 4ª ed., 2010, p. 234 8 Nesse sentido: AI. 0227587-33.2011.8.26.0000, Comarca de Boituva, TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Francisco Loureiro, v.u. j. 30.10.2012 9 Cf. MUNHOZ, Eduardo, in SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro e Antônio Sérgio Pitombo. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências - Lei 11.101/05, cit., 2ª ed., 2007, p. 301. Não é o caso de sucessão, mas tão somente de ineficácia da alienação, pois, do contrário, na insuficiência do bem penhorado, o credor fiscal poderia voltar-se à integralidade dos bens do adquirente (p.301) 10 Cf. SOUZA, Beatriz Faneca Leite de e SERAFIM, Tatiana Flores Gaspar Serafim. Recuperação de empresas e falência: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Daniel Carnio Costa, Flávio Tartuce, Luís Felipe Salomão (coordenadores). Barueri: Atlas, 2021. p. 138 11 Nesse sentido: "Para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, "bem de capital", ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period." (REsp 1.758.746/GO, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze). 12 (REsp 1.758.746/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018). Consta da ementa: "A conceituação de "bem de capital", referido na parte final do § 3º do art. 49 da LRF, inclusive como pressuposto lógico ao subsequente juízo de essencialidade, há de ser objetiva... 3. A partir da própria natureza do direito creditício sobre o qual recai a garantia fiduciária - bem incorpóreo e fungível, por excelência -, não há como compreendê-lo como bem de capital, utilizado materialmente no processo produtivo da empresa... 13 No dizer de Sacramone: "Recursos financeiros, como o crédito cedido fiduciariamente, ainda que importante para a manutenção da atividade, não podem ser considerados bem capital também, pois consumíveis com o desenvolvimento da atividade" (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 263) 14 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2003091-64.2023.8.26.0000; Relator (a): Natan Zelinschi de Arruda; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Itu - 1ª.Vara Cível; Data do Julgamento: 25/04/2023; Data de Registro: 26/04/2023. 15 Consoante observa a doutrina: "Os bens de capital essenciais para a atividade empresarial compreendem o maquinário, equipamentos, instalações e outros bens empregados na atividade produtiva e, sem os quais, se tornaria inviável o exercício da atividade empresarial. Apesar de não haver consenso doutrinário sobre o tema, parece correto entendimento de parte da doutrina de que "recursos financeiros, ainda que importantes para a manutenção da atividade, não podem ser considerados bem de capital" (Cf. SHIMURA, Sérgio S.. A constrição de bens do devedor em recuperação judicial para a satisfação de créditos extraconcursais, in Revista de Processo | vol. 304/2020 | p. 203 - 218 | Jun / 2020). 16 Observa Assione Santos: A agressão indiscriminada às garantias pode comprometer o cumprimento do plano de recuperação judicial. Algumas travas bancárias recaem sobre a totalidade do faturamento da devedora em crise, tornando praticamente inviável qualquer soerguimento. (cf. SANTOS, Assione e FLORENTIN, Luis Miguel Roa. Recuperação judicial e créditos garantidos por cessão fiduciária: uma interpretação sob à luz do art. 47 da lei 11.101/2005 e da jurisprudência do STJ, in Revista dos Tribunais | vol. 1019/2020 | p. 219 - 236 | Set / 2020). 17 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2159261-69.2020.8.26.0000; Relator (a):Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de José Bonifácio - 1ª. Vara; Datado Julgamento: 04/11/2020; Data de Registro:06/11/2020. 18 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2067927-80.2022.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 14/06/2022; Data de Registro: 01/07/2022. 19 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento2270806-76.2022.8.26.0000; Relator (a): Jane Franco Martins; Órgão Julgador: 1ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 3ª. Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento:28/03/2023; Data de Registro: 28/03/2023. 20 Cf. BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falências - Lei nº. 11.101/2005 - Comentada artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 229. 21 Nesse sentido: STJ. STJ - REsp 1.991.989 - 3ª Turma - j. 3/5/2022 - julgado por Nancy Andrighi - DJe 5/5/2022. 22 Nesse sentido: REsp 1.388.948, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 1º.4.2014; TJ-SP - AGR: 20348708120168260000 SP 2034870- 81.2016.8.26.0000, Relator: Hamid Bdine, Data de Julgamento: 13/07/2016, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 14/07/2016. 23 Consoante tem argumentado a doutrina: "Daí a grande dificuldade que as empresas enfrentam para superar suas crises com utilização da recuperação judicial: alguns dos seus principais credores não se sentam à mesa para negociar, restando inviabilizada a reestruturação global de suas dívidas" (Cf. Daniel Carnio Costa.  Teoria da essencialidade de bens e as travas bancárias na recuperação judicial de empresas, in Migalhas 5.606 - publ. 18.12.2018).
terça-feira, 11 de julho de 2023

Recuperação judicial e fraude

A fraude é a eterna inimiga do direito. Superada a fase da execução sobre a pessoa do devedor (iniciada aproximadamente 326 anos antes de Cristo), passou o patrimônio a ser o responsável pelas dívidas. O ser humano, entretanto, logo caiu na tentação de subtrair elementos do patrimônio aptos a suportar a cobrança dos credores. O Digesto contém diversos relatos de comportamentos em que o devedor procura diminuir o seu patrimônio, como a renúncia a direitos, extinção de garantias, abandono de coisa, entre outros1. Naturalmente, o direito reage, como pode, à fraude, com a criação de tipos jurídicos para tanto. O mais conhecido, certamente, é a ação pauliana, a fraude contra credores; além da pauliana, temos a fraude à execução e a fraude à lei. A simulação envolve fraude, que pode ser praticada de muitas maneiras, mais ou menos engendradas, mas sempre com a audácia do fraudador. Nas pessoas jurídicas, o contrato pode ser e é o principal instrumento de fraude; a contabilidade pode auxiliar na formação de contratos, e, por isso, ela também pode ser objeto de fraude. Exposição de motivos do código comercial de 1850 lamentava que "a impossibilidade de extremar por uma maneira precisa o comerciante falido de boa-fé do falido fraudulento, faz a dificuldade desta matéria". Registro alguns casos antigos. Grosseira foi a fraude de uma empresa falida (Gallus) que havia criado demonstrações financeiras completamente destoantes dos documentos contábeis, sem registro no livro diário, e as publicou no extinto jornal Gazeta Mercantil. Essa empresa captava dinheiro junto ao público. E o sócio dessa empresa ainda foi considerado o empresário do ano por esse mesmo jornal. Outro empresário laureado pela mídia era sócio de empresa cujas demonstrações financeiras estavam recheadas de falsidades. Trata-se do caso Boi Gordo. Entre tantos outros problemas, a empresa falida emprestou dinheiro para a empresa coligada. O empréstimo foi pago por meio de dação em pagamento. Posteriormente, a falida comprou e pagou os mesmos imóveis que já eram de sua propriedade. Enquanto isso, o contrato de mútuo continuava no balanço, distorcendo os resultados da companhia. No caso do Banco Santos S/A. a fraude partiu do mercado financeiro. Vários mecanismos fraudulentos foram criados dentro da instituição financeira. Um deles dizia respeito a contabilização de despesas em nome de outras empresas (empresas de papel, diga-se), e, com isso, nas palavras da administração, "se essas despesas fossem lançadas no balanço do banco (...) teríamos, com certeza, um péssimo índice de eficiência". Embora de capital fechado, o banco captava dinheiro do público, a quem enganava, enganando também a autoridade monetária. Não há limites para a fraude a não ser a imaginação humana e o desejo de proceder de má-fé. A fraude acompanha a história do homem. Carvalho de Mendonça, no final do século XIX, já reclamava de "balanço rico em cifras e pobre de verdade". Warren Buffet, no último relatório de sua célebre companhia, afirmou sobre manipulação contábil:  "Essa atividade é nojenta. Não é necessário nenhum talento para manipular números: é preciso apenas um profundo desejo de enganar. A "contabilidade criativa ousada", como um CEO certa vez me descreveu, tornou-se uma das vergonhas do capitalismo"2. Não basta, é importante dizer, a mera alegação de fraude; não basta a mera suspeita de fraude. Suspeitar é conjecturar (Antonio de Moraes Silva), e esse ato unilateral não é suficiente para que se possa falar em fraude. O Código de Processo Penal exige a fundada suspeita para a prática de certos atos pela autoridade policial. Para o Supremo Tribunal Federal, a fundada suspeita do artigo 244 do CPP "não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos"3. O Superior Tribunal de Justiça, de igual modo, decide que: "Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) - baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto - de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência"4. Indícios são objetividades, e eles são necessários para que providências relativas à repressão à fraude sejam encetadas; a mera suspeita não satisfaz, minimamente, o padrão exigido pelo artigo 300 do CPC. Cabe ao juiz, a um só tempo, ser severo com as fraudes e prudente com a violência verbal de quem alega fraude, seja autor ou réu. Certa vez ouvi alguém dizer que "sinto cheiro de fraude", o que não quer dizer rigorosamente nada. É preciso sempre descer aos fatos; não basta gritar fraude em primeiro lugar, e gritar mais alto. A fraude é um problema técnico-jurídico, ainda que a moral seja também considerada por certo setor da teoria do direito. No campo da ética, diz-se que "quando a boa-fé não está presente, a promessa perde o seu papel de constituir relevantes obrigações morais. Se a intenção do promitente em comprometer-se não é manter a promessa, mas obter lucro unilateral pela quebra da promessa, o conceito que descreve o ato é fraude"5. O magistrado (que acessa o google e pela pesquisa se influencia) também deve ter cuidado com a mídia, pois os assessores de imprensa (importantes), a serviço do credor ou do devedor, trabalham, no Brasil e no exterior, e com muita habilidade e sutileza. A lei 11.101/05 reprime, no campo criminal, a fraude praticada pelos administradores da empresa cujo plano de recuperação foi aprovado, pois o artigo 168, que contém o tipo da fraude a credores, alcança a figura da recuperação judicial. Segundo o artigo 180, a decisão de concessão da recuperação judicial é condição objetiva de punibilidade. No campo penal, portanto, a responsabilidade é a posteriori ao debate entre os credores e o devedor, e posterior à aprovação do plano de recuperação, pois sem a concessão da recuperação judicial não nasce o direito de o Estado proceder ao devido processo penal. A responsabilidade penal é importante; porém, não é ela o centro da atenção desta breve coluna, que não tem a finalidade de proceder a uma sistematização do assunto nem de esgotar tema tão difícil. Enquanto, na falência, o tema esteja mais assentado, com os institutos da ineficácia objetiva e da ação revocatória, além da ação do artigo 82 da lei 11.101/05, na recuperação judicial o assunto ainda está em elaboração. A disciplina legal é escassa. Uma previsão relevante é a do artigo 64 da lei 11.101/056. Diz a lei que o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial. Quem conduz a atividade empresarial são os administradores, eleitos pelos sócios. A doutrina identifica na palavra devedor, contida no caput do artigo 64, o acionista controlador, que, portanto, ficaria compreendido na cláusula salvo se qualquer deles, contida no dispositivo, isto é, ele pode ter suspenso o seu poder sobre a companhia. Enquanto o parágrafo único do artigo 64 diz que o administrador será substituído na forma prevista nos atos constitutivos do devedor, ou do plano de recuperação judicial, o artigo 65 diz que o devedor (o acionista controlador, segundo certo setor da doutrina) será afastado pelo juiz, que convocará assembleia de credores para deliberar sobre o nome do gestor judicial. Essa interpretação doutrinária, que enxerga no devedor do artigo 64 a pessoa do acionista controlador, não é unânime, é importante enfatizar isso. Pois bem. Os administradores da sociedade empresária são mantidos à frente do negócio. A manutenção do administrador pode ser boa ou não. A vantagem da manutenção reside no conhecimento da operação. A substituição de todos os administradores poderia representar um grande custo de aprendizado. A manutenção, por outro lado, pode ter a desvantagem de manter pessoas com eventuais vícios que levaram à crise da empresa. Há previsão de afastamento dos administradores por fraude contra os interesses dos credores, conforme preceitua o inciso III do artigo 64 da lei 11.101/05. A fraude referida no dispositivo pode ter sido praticada antes da distribuição do processo de recuperação judicial ou na sua pendência. Essa fraude contra os interesses dos credores não é a mesma fraude contra credores prevista no Código Civil; ela diz respeito a qualquer espécie de fraude detrimentosa dos credores e da companhia, e não à ação pauliana, especificamente. Embora as hipóteses do artigo 64 não tenham caráter exemplificativo, cada hipótese nele arrolada por receber interpretação extensiva. Trata-se de repressão à fraude e ao fraudador; reprime-se o causador do ilícito antes da aprovação do plano de recuperação judicial, o que pode ser uma vantagem para os credores, pois afasta o mau administrador dos negócios. Essa previsão normativa, todavia, embora possa ter a sua utilidade, pois, em tese, estanca a fraude praticada na pendência do processo ou reprime a fraude antes praticada, não repercute na esfera patrimonial. Esse parece ser o ponto decisivo, pois o dano causado pela fraude não é recomposto com a substituição do administrador. É completamente omissa a lei 11.101/05 sobre a recomposição patrimonial da entidade em recuperação judicial. Claro que o problema da fraude não envolve apenas o dano causado à própria empresa em recuperação judicial, como o desvio de bens, por exemplo. Pode ocorrer de terceiros terem experimentado prejuízo em razão de fraude praticada por meio da pessoa jurídica em recuperação judicial. Também nessa hipótese a lei 11.101/05 é omissa. Nesta coluna identifico a omissão normativa, seja para a defesa do patrimônio da empresa em recuperação e que foi vítima de fraude, seja para a defesa do patrimônio de terceiros, que foi vítima de fraude por parte da pessoa jurídica em recuperação judicial. Ao falar em omissão normativa, não ignoro o uso da desconsideração da personalidade jurídica no processo de recuperação judicial, nem o uso da perícia prévia com a finalidade de averiguar fraude7. Talvez uma das primeiras decisões a fazer uso da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da recuperação judicial tenha sido o AI 2043438-91.2013.8.26.0000, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, com relatoria do saudoso Desembargador Araldo Telles. Os bens de uma empresa eram levados a leilões em processos expropriatórios, incluindo execução fiscal; participava do leilão, e arrematava o bem, uma empresa cujos recursos provinham da empresa expropriada, e cujos sócios eram os mesmos. A fraude estava bem comprovada, e os bens estavam na posse da devedora. Entendeu o TJ/SP que os problemas de ordem processual suscitados pela recorrente não mereciam acolhimento, pois a decisão de primeiro grau não declarou a nulidade dos atos de arrematação, limitando-se a declarar a confusão patrimonial. Essa decisão, é importante acentuar, não trouxe terceiros ao polo ativo do processo de recuperação judicial; essa decisão não formou litisconsórcio necessário no polo ativo, não criou a consolidação processual, muito menos a consolidação substancial. Ela limitou-se a dizer que é possível reconhecer que certos ativos, desviados da empresa em recuperação, podem ser declarados como sendo de sua propriedade em razão da confusão patrimonial. O juízo da recuperação pode decidir sobre o patrimônio da empresa em recuperação, ainda que sob a ótica da desconsideração da personalidade jurídica, como o fez a decisão referida, que, diante das circunstâncias do caso, teve o condão de reconstituir o patrimônio da empresa em recuperação. A repercussão dessa consequência no plano de recuperação judicial é clara, seja no plano a ser ainda apreciado pelos credores, seja em plano já apreciado e aprovado, mercê da possibilidade de aditamento ao plano de recuperação, e, agora, com a apresentação de plano pelos próprios credores. Assunto bem distinto é decidir sobre responsabilidade civil patrimonial de terceiros, como administradores e sócios. Existem importantes limites cognitivos no processo de recuperação judicial que não admitem tão larga discussão. Por isso, a discussão de tais temas vão para as vias ordinárias. Nem o arco procedimental do processo de recuperação judicial permite tal discussão, nem o juízo é competente para tanto. Por mais que a fraude seja escancarada, e provada in limine, a discussão depende da instauração de ação própria, no foro competente. O processo de recuperação judicial sem alegação de fraude, de ordinário, já é atribulado, e inserir a discussão sobre fraude dificultaria muito mais o encontro de uma solução para a dívida da empresa. É frequente e legítima a opção legislativa, em processos judiciais, pela celeridade, cortando o âmbito de cognição sobre determinadas matérias, para agilizar a solução da controvérsia. Isso nada tem de inconstitucional, e representa uma perfeita opção do legislador. Embora ciente de que a fraude tem de ser reprimida, a lei limitou-se a disciplinar a reestruturação do passivo. Com isso, pretendeu agilizar a solução da dívida que aperta o devedor. Por certo, a jurisprudência terá de estabelecer a discriminação sobre os assuntos de fraude que podem ser examinados pelo juiz do processo de recuperação e aqueles que serão remetidos às vias ordinárias. A fraude endoprocessual, interna ao processo de recuperação, não pode ser admitida em hipótese alguma, e a competência do juiz do processo é funcional e absoluta para decidir assunto dessa natureza, que pode minar a credibilidade do processo. A lei norte americana permite a anulação do plano de recuperação obtido mediante fraude, e permite a conversão em falência ou a rejeição do processo se ele foi apresentado sem observância da boa-fé. No mês de janeiro de 2023, a Corte de Apelação do Terceiro Circuito rejeitou o processo de uma empresa criada para ir à recuperação judicial com os passivos decorrentes de demandas judiciais (demandas por danos decorrentes de uso de talco fabricado pela Johnson & Johnson). Consta da conclusão: "Our decision dismisses the bankruptcy filing of a company created to file for bankruptcy". Fruto de operações societárias, a Corte considerou que a empresa que ajuizou o processo de reorganização não estava em situação de "financial distress". A crise financeira é um elemento da boa-fé, entendeu a decisão. Noutro caso, a Suprema Corte (Bartenwerfer v. Buckley), no final do mês de fevereiro de 2023, reconheceu fraude para rejeitar a extinção da dívida (discharge). Um casal reformou uma casa para vendê-la; o marido cuidou do projeto, e a mulher não se envolveu na obra. Para a venda, declararam, ambos, que a casa estava em boas condições. Porém, tinha defeitos, que levaram o comprador a ajuizar e vencer demanda de indenização. Os vendedores, então, pediram a autofalência, e pretendiam a extinção das obrigações. Discutiu-se a situação da mulher, se ela sabia ou devia saber da fraude que teria sido praticada pelo marido para fins de extinguir suas obrigações; se a fraude praticada por um poderia ser imputada a outro integrante da partnership. A decisão invoca o seguinte precedente: "In Strang v. Bradner, 114 U. S. 555, the Court held that the fraud of one partner should be imputed to the other partners, who "received and appropri­ated the fruits of the fraudulent conduct.". Importa como o dinheiro foi obtido e distribuído, não quem cometeu o ato material da fraude.  A corte de falências reconheceu a fraude da esposa porque ela formava uma partnership com o marido no negócio envolvendo a reforma da casa para venda. A responsabilidade pela fraude não é exclusiva do fraudador. Os frutos da fraude importam8. Nos dois casos, um de reestruturação de dívida e outro de liquidação, parece existir uma interpretação econômica da fraude que sobreleva a atuação do agente, individualmente considerada. Na definição de um autor que estudou a insolvência sob a ótica filosófica, "está envolvido em fraude a pessoa que procura a falência (e a recuperação judicial) para melhorar sua expectativa na medida em que a insolvência parece uma alternativa mais compensadora que a solvent life"9. Na ausência de previsão expressa na lei 11.101/05, o juiz brasileiro serve-se das normas de cobertura geral do sistema repressivo de comportamentos inadequados, ou ilícitos atípicos (Manuel Atienza), que contêm os institutos do abuso de direito, boa-fé objetiva, simulação, fraude à lei etc. Em razão da competência, o juiz da recuperação atua na verificação da legalidade do plano de recuperação, no controle do patrimônio do devedor, no controle de legitimidade dos votos oferecidos por ocasião da assembleia de credores e, por certo, no controle da legitimidade do próprio postulante da recuperação judicial e da regularidade dos credores. ___________ 1. Vide, a propósito, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, p. 29. 2 https://pipelinevalor.globo.com/mercado/noticia/socio-do-3g-buffett-diz-que-contabilidades-criativas-sao-nojentas-e-vergonha-do-capitalismo.ghtml. Acesso em 26/02/2023. 3 1ª Turma, HC 81.305-4, j. 13/11/2001, rel. Min. Ilmar Galvão. Do corpo do acórdão colhe-se o seguinte: "Ocorre, contudo, que a dita suspeita não pode basear-se em parâmetros unicamente subjetivos, discricionários do policial, exigindo, ao revés, elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, mormente quando notório o constrangimento dela decorrente" 4 Sexta Turma, RHC 158.580,. j. 19/04/22, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. 5 Jukka Kilpi, The ethics of bankruptcy. London, Routledge, 1998, p. 107. 6 Bons comentários a esse dispositivo são apresentados por Leonardo Adriano Ribeiro Dias, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. Coord. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo. São Paulo: IBR e RT, 2021, p. 439-446. 7 A perícia prévia é destinada a casos extremos, em que o Magistrado, pela documentação aportada, verifica que a empresa pode não estar em atividade. Na antiga concordata, o Ministério Público pedia a constatação nas instalações da devedora. Esse ato processual, na maior parte das vezes, é completamente desnecessário, embora possa ter alguma utilidade. Todavia, não parece ter sido concebida para averiguação de fraude, a menos que se considere fraude o fato de se pedir recuperação judicial sem exercício de atividade empresarial. 8 "The fraud of one partner, we ex­plained, is the fraud of all because "[e]ach partner was the agent and representative of the firm with reference to all business within the scope of the partnership." Ibid. And the reason for this rule was particularly easy to see because"the partners, who were not themselves guilty of wrong, re­ceived and appropriated the fruits of the fraudulent conduct of their associate in business." 9 Jukka Kilpi, ob.cit., p. 108, trad. livre.
O objetivo deste artigo é verificar, à vista do disposto na parte final do inciso II do art. 6º da lei 11.101/2005 ("LFR"), se o sócio que tem responsabilidade solidária por dívida do falido ou do devedor em recuperação judicial, em razão da concessão de garantia real ou fidejussória, é alcançado pelos efeitos do stay period. No texto original, o art. 6º, caput, da LFR, tratou dos efeitos automáticos decorrentes da decretação da falência ou do deferimento do processamento da recuperação judicial, entre os quais a suspensão "de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário." A lei 14.112/2020, ao incorporar ao direito positivo a orientação pretoriana, enumerou nos incisos I a III os efeitos da decretação da falência ou deferimento da recuperação judicial. O inciso II tratou da suspensão das execuções. Com a alteração legislativa foi suprimida a menção à suspensão das "ações", anteriormente prevista no caput, sendo mantida a previsão da suspensão das "execuções". Positivou-se, assim, o entendimento da jurisprudência do e. Superior Tribunal de Justiça ("STJ") que, à luz do §1º do art. 6º da LFR, consolidou-se no sentido de que as ações que demandarem quantia ilíquida devem prosseguir no juízo de origem até a apuração do quantum debeatur. No que interessa para este artigo: o inciso II do art. 6º da LFR, na redação dada pela lei 14.112/2020, estabelece que a decretação da falência e o deferimento da recuperação judicial implicam a "suspensão das execuções inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência". Por "sócio solidário", a norma refere-se especificamente aos sócios de responsabilidade ilimitada da sociedade falida ou que teve deferido o pedido de recuperação judicial, que são aqueles que respondem pelas dívidas da sociedade de forma pessoal e integral1 (não limitada à sua participação social), em razão do vínculo societário existente. Nesses casos, a responsabilidade ilimitada dos sócios pelas dívidas sociais pode resultar da lei - tal como ocorre nas hipóteses de sociedades em comum, sociedade em nome coletivo e sociedade em comandita, simples ou por ações (arts. 990, 1.039, 1.045, 1.091, todos do Código Civil)2 - ou de expressa previsão no estatuto ou contrato social. A opção do legislador por estabelecer a suspensão das execuções em face dos "sócios solidários" se deve ao fato de que os efeitos da decretação de falência se estenderem ao sócio de responsabilidade ilimitada, nos termos do art. 81 da LFR, hipótese na qual os credores particulares dos sócios terão que se submeter à ordem de pagamento do regime falimentar. O objetivo da extensão da suspensão das execuções promovidas em face do sócio de responsabilidade ilimitada é conferir tratamento isonômico entre os credores da sociedade recuperanda e os credores do sócio de responsabilidade ilimitada, o que tem fundamento no princípio do par condicio creditorum. Por sua vez, a suspensão das execuções em face do devedor em recuperação judicial, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias - que de acordo como o §4º do art. 6º da LFR, com a redação dada pela lei 14.112/2002, seria prorrogável uma única vez, por igual período - tem por objetivo viabilizar a negociação do plano de recuperação judicial entre o devedor e seus credores, cujo resultado, caso aprovado, definirá as novas condições de pagamento dos créditos sujeitos3. A extensão dos efeitos conferida pelo II do art. 6º da LRF não pode ser confundida com aquela disciplinada pelo art. 49, §1º, da mesma lei. Isso porque a disposição contida no art. 49, §1º, da LFR diz respeito aos coobrigados em geral, sócios (de responsabilidade limitada) ou não sócios, que oferecem garantias, reais ou fidejussórias - hipoteca, penhor, aval, fiança,  entre outras - da dívida do devedor principal no âmbito de relação contratual. É a hipótese, por exemplo, da prestação de garantias cruzadas entre sociedades do mesmo grupo econômico, prática comum no mercado, cujos ativos de uma garantem o pagamento dos credores da outra no âmbito de relações contratuais envolvendo a emissão de títulos de dívida e/ou de crédito (notas promissórias, cédulas de crédito, debêntures, etc.), como forma de viabilizar operações de financiamento, investimento e capitalização. Na hipótese tratada pelo art. 49, §1º, da LFR, a responsabilidade do terceiro solidário ou do coobrigado não advém de uma relação societária estabelecida - como ocorre na hipótese do art. 6º, II, da LFR, em relação aos sócios de responsabilidade ilimitada -, mas de uma relação de natureza contratual, de caráter obrigacional, por deliberado consentimento daquele que figura como garantidor da dívida. Os coobrigados a que se refere o art. 49, §1º da LFR não se submetem aos efeitos de eventual decretação de falência da sociedade. Solvida a dívida pelo terceiro garantidor, este sub-roga-se na posição do credor primitivo, podendo exercer o direito de regresso em face da devedora em recuperação ou da falida (art. 346, III, c/c art. 350, ambos do Código Civil). Em razão da concessão de garantia, ditos coobrigados também não são atingidos pelos efeitos da novação sui generis, decorrentes da concessão da recuperação judicial, como esclarece o art. 59 do mesmo diploma legal - cujo próprio caput ressalta que isto se dará "sem prejuízo das garantias" -, na hipótese de aprovação do plano de recuperação judicial da devedora principal, de sorte que o credor pode executar os devedores solidários nos termos da obrigação originalmente assumida4. Diante dessa ordem de ideias, parece que a interpretação do art. 49, §1º, da LFR que melhor se compatibiliza com a sistemática da lei 11.101/2005 é a que autoriza o prosseguimento das execuções pelos credores em face dos coobrigados - excluídos os sócios de responsabilidade ilimitada - mesmo com o deferimento do processamento da recuperação judicial da devedora principal. Na jurisprudência, verifica-se que os tribunais estaduais já tiveram a oportunidade de enfrentar a matéria para ratificar a interpretação literal do art. 49, §1º, da LFR, destacando-se aqui, para fins de ilustração, os precedentes dos eg. Tribunais de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul5. Nesse sentido, o Conselho da Justiça Federal - CJF, na 1ª Jornada de Direito Comercial, realizada em 2012, editou o enunciado n. 43  sobre o tema: "A suspensão das ações e execuções previstas no art. 6º da lei 11.101/2005 não se estende aos coobrigados do devedor." Em 2014, o eg. STJ pacificou a questão ao analisar o REsp. 1.333.349/SP6, julgado sob os ritos dos recursos repetitivos representativos da controvérsia, oportunidade em que decidiu que aos terceiros solidários ou coobrigados em geral não se aplicam "a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput": "RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N. 8/2008. DIREITO EMPRESARIAL E CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSAMENTO E CONCESSÃO. GARANTIAS PRESTADAS POR TERCEIROS. MANUTENÇÃO. SUSPENSÃO OU EXTINÇÃO DE AÇÕES AJUIZADAS CONTRA DEVEDORES SOLIDÁRIOS E COOBRIGADOS EM GERAL. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 6º, CAPUT, 49, § 1º, 52, INCISO III, E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005.1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005". 2. Recurso especial não provido." Ainda analisando o tema, em 2016 a Corte Superior editou o verbete sumular n.º 581, com a seguinte redação: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória."  Nos termos do art. 927, III e IV, do CPC, o entendimento sumulado e fixado em sede de recurso repetitivo é de observância obrigatória por todos os órgãos jurisdicionais, e que permanece hígido mesmo com as alterações promovidas pela lei 14.112/2020 Desse modo, a exegese pacífica da norma é de que os efeitos do stay period e de eventual novação dos créditos aproveitam exclusivamente aos sócios de responsabilidade ilimitada, sujeitos aos efeitos de eventual quebra da devedora, nos termos do art. 81 da LFR, não beneficiando os demais coobrigados em geral, em face dos quais os credores do devedor principal em recuperação judicial conservam seus direitos nos moldes da obrigação primitiva, salvo na excepcional hipótese de expressamente anuírem com a extinção das garantias - reais ou fidejussórias - prestadas. __________ 1 "Desse conjunto resulta existirem no Direito brasileiro sete tipos ordinários de responsabilidade de sócios perante os credores: (...) f) responsabilidade ilimitada e solidária entre os sócios, de forma subsidiária ao patrimônio social, atribuída: a todos os sócios de na sociedade em nome coletivo (...)" (NEGRÃO, Ricardo. "Manual de direito comercial e de empresa. v. 1 - 9ª ed.- São Paulo, Saraiva, p. 294/295")  2 "Os tipos societários (raros) que contemplam sócios ilimitadamente responsáveis são a sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita, tanto a simples como a comandita por ações (ambas, somente em relação aos sócios comanditados). Tem-se, portanto, de plano, que o dispositivo não é endereçado aos sócios de sociedade anônima nem aos sócios de sociedade limitada. Por elementar regra de hermenêutica, nem o caput nem os parágrafos são aplicáveis às sociedades limitadas e às anônimas" (CAMIÑA, Alberto. - "Comentários à Lei de Recuperação de Empresas" - coord. Paulo Fernandes Campos Salles Toledo" - São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 579).  3 Não obstante a intenção do legislador de limitar a prorrogação do stay period, considero que a interpretação do §4º do art. 6º da LRF não pode ser dissociada do objetivo da recuperação judicial, que é a de viabilizar a superação da crise pela empresa viável.  4 Nesse sentido, confira-se a ementa do Resp. 1.326.888/RS, de relatoria do e. Ministro Luis Felipe Salomão, j. 08/04/2014: "DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO DO PLANO. NOVAÇÃO SUI GENERIS. EFEITOS SOBRE TERCEIROS COOBRIGADOS. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO. DESCABIMENTO. MANUTENÇÃO DAS GARANTIAS. ARTS. 49, § 1º E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005. 1. A novação prevista na lei civil é bem diversa daquela disciplinada na Lei n. 11.101/2005. Se a novação civil faz, como regra, extinguir as garantias da dívida, inclusive as reais prestadas por terceiros estranhos ao pacto (art. 364 do Código Civil), a novação decorrente do plano de recuperação traz como regra, ao reverso, a manutenção das garantias (art. 59, caput, da Lei n. 11.101/2005), sobretudo as reais, as quais só serão suprimidas ou substituídas "mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia", por ocasião da alienação do bem gravado (art. 50, § 1º). Assim, o plano de recuperação judicial opera uma novação sui generis e sempre sujeita a uma condição resolutiva, que é o eventual descumprimento do que ficou acertado no plano (art. 61, § 2º, da Lei n. 11.101/2005). 2. Portanto, muito embora o plano de recuperação judicial opere novação das dívidas a ele submetidas, as garantias reais ou fidejussórias, de regra, são preservadas, circunstância que possibilita ao credor exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impõe a manutenção das ações e execuções aforadas em face de fiadores, avalistas ou coobrigados em geral. 3. Deveras, não haveria lógica no sistema se a conservação dos direitos e privilégios dos credores contra coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005) dissesse respeito apenas ao interregno temporal que medeia o deferimento da recuperação e a aprovação do plano, cessando tais direitos após a concessão definitiva com a homologação judicial. 4. Recurso especial não provido."  5 "EXECUÇÃO. TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AVALISTAS. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO.INADMISSIBILIDADE. (...) O art. 6º da Lei 11.101/05 não se aplica ao caso concreto. O citado artigo refere-se a suspensão de todas as ações e execuções em face do devedor, e o devedor que está em recuperação judicial é a Arantes Alimentos Ltda., e não os avalistas, pessoas físicas. Mantida a decisão agravada, haveria, também, violação ao art. 52, inciso III, da Lei 11.101/05, e pela mesma razão adunada anteriormente, pois o inciso III se refere ao devedor em recuperação. E mais, o § 1º do art. 49 da Lei 11.101/05, preserva o direito dos credores do devedor em relação aos coobrigados, como o são os avalistas, qualidade afeta aos Agravados. O pagamento a ser feito pelos Agravados virá, ao contrário do que se alega, auxiliar o processo de recuperação, pois retirará um ônus da recuperanda, favorecendo o objetivo preconizado no art. 47 da Lei 11.101/05 Recurso provido, nos termos do voto do Desembargador Relator." (TJRJ, AGRAVO DE INSTRUMENTO N.º 0008897-66.2010.8.19.0000, RICARDO RODRIGUES CARDOZO, 15ª CÂMARA CÍVEL, J. EM 8/6/2010).  "Agravo interno. Decisão monocrática em agravo de instrumento. Pode o Relator, com base nas disposições do art. 557, do Código de Processo Civil, negar seguimento ou dar provimento a recurso. Afastamento da preliminar. Recuperação judicial. Os créditos oriundos de adiantamento de contrato de câmbio são extraconcursais e, portanto, excluídos da recuperação judicial. Afastada a determinação de suspensão ou cancelamento de protesto na hipótese de credores extraconcursais. A recuperação judicial não afeta os direitos creditórios detidos em face de coobrigados, avalistas, e obrigados de regresso em geral, podendo o respectivo titular exercê-los em sua plenitude, sem qualquer limitação acarretada pelo estado. O plano de recuperação judicial não pode prever a extinção das execuções contra os avalistas e coobrigados, porque eles são terceiros e o plano de recuperação deve produzir efeitos somente com relação à empresa recuperanda. A suspensão atinge tão somente a pessoa jurídica devedora, restando afastados de tal benefício os eventuais coobrigados. Suspensão dos procedimentos extrajudiciais de consolidação de propriedade que deve ser limitada ao prazo legalmente previsto. Não trazendo a parte agravante qualquer argumento novo capaz de modificar o entendimento adotado na decisão monocrática hostilizada, apenas reeditando a tese anterior, improcede o recurso interposto. Agravo interno não provido." (TJRS, Agravo Interno no Agravo de Instrumento n.º 0475337-32.2014.8.21.7000, Relator Desembargador Ney Wiedmann Neto, 6ª Câmara Cível, j. em 11/12/2014). 6 Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, j. em 26/11/2014.
O noticiário recente, em função de grandes processos de recuperação judicial de grupos econômicos distribuídos nos primeiros meses de 2023, trouxe à baila a discussão sobre a utilização de medidas de urgência pelas devedoras deferidas e implementadas mesmo antes do ajuizamento do processo de recuperação judicial propriamente dito. Nesse sentido, faz-se necessária uma explicação sistemática das possibilidades legais de utilização das medidas de urgência em processos de recuperação judicial: as típicas e as atípicas. Medidas de urgência atípicas são aquelas deferidas pelo magistrado com base no Poder Geral de Cautela previsto no art. 300 do Código de Processo Civil. Nesse sentido, o magistrado poderá determinar qualquer medida suficiente e necessária para garantir o resultado útil do processo, sempre que a parte demonstrar a plausibilidade do seu direito (fumus boni juris) e a existência de risco de dano irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora). Medidas de urgência típicas, por outro lado, são aquelas expressamente previstas e reguladas em lei. Nesse sentido, a lei define o conteúdo da medida, bem como o que seria exigido para a comprovação do fumus boni juris e/ou periculum in mora. Em relação aos processos de recuperação empresarial, há duas medidas de urgência típicas, previstas e reguladas pela lei 11.101/05. São elas a medida prevista no art. 6º, parágrafo 12 e a medida prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro. O art. 6º, parágrafo 12, da Lei n. 11.101/05 previu e regulou a tutela antecipada de urgência em processos recuperacionais. Importante destacar que o cabimento dessa medida pressupõe necessariamente o prévio ajuizamento do pedido de recuperação. Trata-se de medida que visa antecipar, total ou parcialmente, os efeitos do deferimento do processamento de uma recuperação judicial. No sistema de insolvência brasileiro, o deferimento do processamento de uma recuperação judicial é o marco inicial da incidência do conhecido stay period, ou seja, da suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor e da proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial, conforme art. 6º da lei 11.101/05. Entretanto, frequentemente há o transcurso de um tempo relevante entre a data da distribuição do pedido recuperacional e a data do deferimento do seu processamento, em razão da necessidade de detida análise judicial da presença dos requisitos legais ou mesmo em razão da determinação de uma constatação prévia, com fundamento no art. 51-A da Lei n. 11.101/05. Durante esses dias ou meses de espera do deferimento do processamento da recuperação judicial, a devedora fica sem a proteção do stay contra os seus credores. Daí podem resultar situações que coloquem em risco o resultado útil do processo de recuperação, com prejuízos irreparáveis à devedora e aos interesses maiores tutelados pelo sistema de insolvência, de natureza pública e social. A lei não definiu para o caso dessa medida típica (antecipação total ou parcial do stay period) exigências específicas de comprovação do fumus boni juris e do periculum in mora, fazendo apenas remissão ao art. 300 do CPC, de modo que a devedora tem liberdade para demonstrar por qualquer meio a plausibilidade do seu direito e a presença do risco de dano irreparável ou de difícil reparação ao resultado útil do processo. Nesse sentido, havendo a necessidade de proteção de ativos objeto de constrição judicial ou extrajudicial ou de atos de excussão por credores sujeitos à recuperação judicial, poderá a devedora requerer que o juiz antecipe para esse momento anterior ao deferimento do processamento da recuperação judicial, os efeitos do stay period, a fim de neutralizar o risco de dano irreparável decorrente do prosseguimento das referidas medidas executivas. Há casos, por exemplo, em que no momento do ajuizamento da recuperação judicial já existe um pré-aviso de corte do fornecimento de energia elétrica para a devedora, em razão de dívidas relativas ao não pagamento das faturas de consumo, a exigir que o juiz antecipe a impossibilidade de interrupção do serviço mesmo antes do deferimento do processamento da recuperação judicial. Esses são, portanto, exemplos de tutela antecipada de urgência cabíveis de forma incidente no processo de recuperação judicial, com fundamento no art. 6º, parágrafo 12, da lei 11.101/05. A segunda tutela de urgência típica em processos recuperacionais está regulada pelo art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Trata-se de medida que traduz a essência do novo modelo de pré-insolvência criado pela reforma de 2020. O legislador reformista criou uma ferramenta legal para que a devedora tente reestruturar suas atividades sem a necessidade do ajuizamento de medidas judiciais invasivas, custosas e que tragam dano reputacional relevante. Nesse sentido, a devedora poderá iniciar um procedimento de mediação ou conciliação extrajudicial, em caráter antecedente ao ajuizamento da recuperação judicial, com o objetivo de realizar acordos com seus credores e, ao fim e ao cabo, não ter a necessidade de lançar mão de remédios legais de reestruturação mais amargos, como a recuperação judicial ou extrajudicial. Entretanto, confiar apenas na boa vontade de credores para empregar eficiência ao instituto da mediação ou conciliação antecedentes seria, no mínimo, ingênuo. Por essa razão, o legislador - inspirado no modelo francês e nos modelos asiáticos de pré-insolvência - criou uma medida de urgência que mimetiza o stay, determinando a suspensão das execuções e atos de constrição dos credores envolvidos na negociação durante o prazo de 60 dias. Essa medida tem por objetivo criar estímulos para que os credores se sentem à mesa para negociar, estabelecendo um ambiente mais propício à realização dos acordos. O Fórum Nacional de Recuperação de Empresas e Falências - FONAREF do Conselho Nacional de Justiça editou diversos enunciados para orientar a boa aplicação dessa tutela de urgência. Observa-se que é medida de urgência com conteúdo definido por lei, qual seja, a suspensão das execuções por 60 dias. Da mesma forma, a lei estabelece o que deve ser demonstrado pela devedora para comprovação do fumus boni juris: a) a devedora deve preencher os requisitos legais para requerer recuperação judicial (art. 48 da lei 11.101/05); b) a devedora já deve ter iniciado um procedimento de mediação ou conciliação numa câmara privada ou num Cejusc do tribunal competente. O periculum in mora, no caso, é in re ipsa, ou seja, a lei já presume que se não houver a suspensão das execuções o procedimento de mediação ou conciliação sofre risco de não ser eficiente, prejudicando os interesses tutelados pelo sistema de insolvência empresarial. Mas, além dessas duas tutelas de urgências típicas, também há a possibilidade de utilização da tutela de urgência atípica em processos recuperacionais. Trata-se da utilização do procedimento de tutela cautelar requerida em caráter antecedente ao ajuizamento da recuperação judicial, com fundamento nos artigos 305 e seguintes do CPC. O Código de Processo Civil autoriza que a parte pleiteie tutela cautelar inominada em caráter antecedente ao ajuizamento do processo no qual discutirá sua pretensão de direito material. Nesse sentido, a devedora ajuíza essa medida cautelar buscando alguma proteção e, no prazo de 30 dias, deve ajuizar a ação principal (emendar a petição inicial da cautelar). Já houve casos em que a devedora ajuizou pedido de tutela de urgência consistente na suspensão das execuções de seus credores, a fim de ajuizar no prazo de 30 dias o pedido de recuperação judicial. Tratando-se de medida cautelar inominada, não há definição legal do conteúdo da tutela a ser deferida pelo magistrado, nem tampouco definição específica do que configuraria o fumus boni juris e o periculum in mora. Assim, pode a devedora requerer qualquer medida de proteção, desde que convença o magistrado de que existe fumaça do seu bom direito e de que a não concessão da cautela colocaria em risco o resultado útil do futuro processo de recuperação judicial. O fundamento da utilização dos procedimentos de tutela cautelar requeridas em caráter antecedente é o art. 189 da lei 11.101/05, segundo o qual se aplicam aos procedimentos de insolvência empresarial as disposições do Código de Processo Civil, desde que não sejam incompatíveis com os princípios da lei de recuperação empresarial e falências. Interessante notar que há grandes diferenças entre essa tutela inominada e a medida do art. 20-B da lei 11.101/05. Na tutela cautelar requerida em caráter antecedente, a devedora poderá requerer qualquer medida de proteção que terá duração de, no máximo, 30 dias quando, então, deverá ser ajuizada a ação de recuperação judicial; além disso, não há exigências legais prévias para a demonstração do fumus boni juris e do periculum in mora. Na medida do art. 20-B (pré-insolvência), por outro lado, a devedora poderá pleitear apenas a suspensão das execuções pelo prazo de 60 dias e desde que preencha os requisitos para requerer recuperação judicial (art. 48) e já tenha iniciado um procedimento de mediação ou conciliação extrajudiciais. Essas são, portanto, as três possibilidades de utilização de medidas de urgência aplicáveis ao processo de recuperação empresarial, sendo imperioso o bom manejo dessas ferramentas para resguardar o resultado útil das reestruturações empresariais, com proteção dos empregos, da geração de riquezas, de tributos e da produção de produtos e serviços em prol da comunidade.
Introdução A concessão do benefício de gratuidade de justiça depende da demonstração pela parte, pessoa natural ou jurídica, da insuficiência para pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, nos termos do que prevê o art. 98 do Código de Processo Civil1. No âmbito da insolvência empresarial, sedimentou-se na jurisprudência o entendimento de que não se presume a existência de dificuldade financeira em razão da decretação de falência - confirmando, portanto, a exigência legal de comprovação cabal, por parte da massa falida, da incapacidade de arcar com as custas processuais para se beneficiar da gratuidade de justiça. Com efeito, o fato de se tratar de massa falida não implica na conclusão automática sobre a inexistência de recursos para pagamento destes encargos, uma vez que o critério adotado pela lei 11.101/2005 é estritamente jurídico: o estado de insolvência decorre diretamente da lei, diante da constatação de determinados fatos relacionados à sociedade empresária, listados no art. 94 do referido diploma. Ainda assim, na prática, é recorrente a concessão automática do benefício para massas falidas, sem que haja uma análise pormenorizada de sua real situação financeira - acabando por configurar uma situação que contraria a própria lógica da garantia fundamental, encorajando o comportamento aventureiro para o ajuizamento de demandas desprovidas de fundamentos jurídicos mínimos que, não onerando a massa falida, acabam, por outro lado, causando prejuízos a terceiros que com ela contendem. O tema ganha especial relevo se analisado sob a perspectiva da persecução da fraude pelas massas falidas que, não raramente, promovem ações judiciais a fim de obter reparação pelos prejuízos experimentados. O presente ensaio busca refletir sobre a necessidade de revisão do critério - ou ausência dele - utilizado por muitos juízos para a concessão do benefício de gratuidade, questionando se a isenção - quase que automática - do pagamento de custas e verbas sucumbenciais não estaria estimulando disputas judiciais temerárias diante da perspectiva de ganho sem qualquer ônus em contraparte, gerando desproporcional prejuízo aos demandados. O critério legal para a configuração da insolvência empresarial Na legislação brasileira, o estado de insolvência empresarial é presumido diante da constatação de determinados fatos relacionados ao empresário ou à sociedade empresária, todos eles indicados no art. 94 da lei 11.101/2005: impontualidade nos pagamentos (art. 94, I) ou a prática de algum dos atos taxativamente listados naquele diploma (art. 94, incisos II e III). Trata-se do denominado critério jurídico para a caracterização da insolvência - que se afasta do critério estritamente financeiro, adotado, por exemplo, no sistema de insolvência civil do Código de Processo Civil. A diferenciação entre ambos já foi objeto de análise do Superior Tribunal de Justiça,  quando do julgamento do Resp nº 1.433.652/RJ, em caso que o devedor (Lojas Americanas S.A.) buscou evitar a decretação de sua falência sob a justificativa de que teria notória solidez financeira: DIREITO EMPRESARIAL. FALÊNCIA. IMPONTUALIDADE INJUSTIFICADA. ART.94, INCISO I, DA LEI N. 11.101/2005. INSOLVÊNCIA ECONÔMICA. DEMONSTRAÇÃO. DESNECESSIDADE. PARÂMETRO: INSOLVÊNCIA JURÍDICA. DEPÓSITO ELISIVO. EXTINÇÃO DO FEITO. DESCABIMENTO. ATALHAMENTO DAS VIAS ORDINÁRIAS PELO PROCESSO DE FALÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Os dois sistemas de execução por concurso universal existentes no direito pátrio - insolvência civil e falência -, entre outras diferenças, distanciam-se um do outro no tocante à concepção do que seja estado de insolvência, necessário em ambos. O sistema falimentar, ao contrário da insolvência civil (art. 748 do CPC), não tem alicerce na insolvência econômica. 2. O pressuposto para a instauração de processo de falência é a insolvência jurídica, que é caracterizada a partir de situações objetivamente apontadas pelo ordenamento jurídico. No caso do direito brasileiro, caracteriza a insolvência jurídica, nos termos do art. 94 da Lei n. 11.101/2005, a impontualidade injustificada (inciso I), execução frustrada (inciso II) e a prática de atos de falência (inciso III). 3. Com efeito, para o propósito buscado no presente recurso - que é a extinção do feito sem resolução de mérito -, é de todo irrelevante a argumentação da recorrente, no sentido de ser uma das maiores empresas do ramo e de ter notória solidez financeira. Há uma presunção legal de insolvência que beneficia o credor, cabendo ao devedor elidir tal presunção no curso da ação, e não ao credor fazer prova do estado de insolvência, que é caracterizado ex lege. (...) (grifamos). Na sistemática da lei 11.101/2005, é possível até mesmo imaginar uma situação em que haja a "quebra jurídica" sem que haja a "quebra financeira", e vice-versa. É o caso, por exemplo, do devedor que simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de prejudicar um determinado credor: na hipótese, o art. 94, III, 'd' daquele diploma autoriza a decretação da falência, ainda que o devedor comprove que seu ativo é superior ao seu passivo. Em sentido diverso, o passivo de uma sociedade empresária pode ser infinitamente superior ao seu ativo, sem que isso leve à decretação de sua quebra, caso não se verifique a prática de quaisquer dos atos listados no art. 94 da lei 11.101/2005. Tem-se, portanto, que a insolvência como pressuposto para a decretação da falência não pode ser entendida em sua acepção exclusivamente financeira, ou seja, como um estado patrimonial de insuficiência de bens para a quitação das obrigações contraídas. A errônea presunção da massa falida como beneficiária da justiça gratuita Nesse contexto, tem-se que a simples condição de falida não é e nem deveria ser premissa suficiente a autorizar a concessão do benefício processual sem a necessária análise da situação econômico-financeira da falência no caso concreto. Isto porque considerando o já mencionado critério estritamente jurídico para a decretação da falência,  deve-se reconhecer que apesar da existência de um sem-número de hipóteses em que massas falidas realmente não possuem caixa suficiente a honrar sequer as despesas ordinárias para sua manutenção, deparamo-nos com situações diversas em que a falida, gerida por seu Administrador Judicial, apresenta regular receita financeira e está apta a arcar com os gastos hodiernamente impostos para o acesso ao Judiciário. Em outras palavras: a condição de falida não lhe atribui automaticamente a condição de deficitária, isto é, a massa não está impossibilitada, em todo e qualquer caso, a dispender do mínimo necessário a fazer frente às suas despesas, dentre as quais, as custas e verbas sucumbenciais a que eventualmente seja responsabilizada ao pagamento, como demandante ou demandada. Ao revés, o objetivo da falência é exatamente a liquidação dos ativos do devedor, viabilizando tanto a sua realocação na cadeia produtiva, bem como a obtenção do máximo de recursos para o atendimento, em rateio e observadas as preferências legais, de todos os credores reunidos perante o juízo falimentar - sendo perfeitamente possível, portanto, que o ativo liquidado supere o passivo concursal. Tanto é assim que a própria lei contempla a possibilidade de a massa falida lograr êxito em promover o pagamento da totalidade de seu passivo, garantindo a obtenção, por conseguinte, da extinção de suas obrigações por sentença (art. 158, inciso I da lei 11.101/20052). Assim é que se afigura perfeitamente concebível que uma massa falida seja detentora de recursos suficientes para, notadamente, arcar com as custas e verbas sucumbenciais de um processo judicial e, assim, a importância da desconstrução do pensamento automatizado de que toda massa falida é imune ao princípio da sucumbência e, portanto, beneficiária da gratuidade de justiça. Da necessária revisão do critério de concessão da gratuidade de justiça à massa falida na persecução de fraude A questão da gratuidade de justiça toma especial relevo no que diz respeito à persecução de fraudes eventualmente praticadas contra a massa falida. O sistema legislativo delineado na lei 11.101/2005, no âmbito do procedimento falimentar, autoriza a persecução de fraudes e a revisão de determinados atos praticados antes da decretação da falência e durante o período suspeito, como se depreende dos arts. 813 (extensão dos efeitos da falência a sócios de sociedades cuja responsabilidade é ilimitada), 824 (responsabilização dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores) e 82-A5 e desconsideração da personalidade jurídica), e arts. 129 e 1306 (ineficácia e da revogação de atos praticados antes da falência). Todos os mecanismos legais postos à disposição da massa falida propiciam, é certo, chance de reparação e ressarcimento pelos prejuízos eventualmente experimentados a partir de expedientes fraudulentos direcionados contra o agente econômico falido, quando ainda ativo. Nesse sentido, o benefício da gratuidade de justiça surge como importante aliado no ajuizamento de ações judiciais que visam, em última análise e em benefício do concurso de credores, o reingresso de ativos à massa que fora esvaziada economicamente e, portanto, não detém capacidade financeira para fazer frente às despesas processuais impostas a todo demandante. Todavia, o deferimento irrestrito do benefício nestes casos, sem que seja realizada uma análise prévia e séria do real estado financeiro da falida, cria um cenário perigoso: sem qualquer receio de consequências negativas à massa falida ou a eles próprios - eis que blindada a devedora do pagamento de verbas sucumbenciais -, a concessão da gratuidade de justiça sem uma análise pormenorizada da situação financeira da devedora pode encorajar condutas temerárias por parte dos Administradores Judiciais que, intentando toda sorte de demanda judicial sob a justificativa da necessidade de perseguir ressarcimento em favor dos credores da massa falida, iniciem uma busca desenfreada por recursos em litígios sem fundamento jurídico, gerando, na prática, um ônus tremendo ao demandado, que se vê praticamente forçado a realizar um acordo para encerrar o litígio, por uma suposta fraude, a qual não cometeu. O fato de que o Administrador Judicial é frequentemente remunerado com um percentual dos ativos arrecadados e alienados, na forma do art. 25, §1º da lei 11.101/2005, cria ainda mais um incentivo para a situação descrita; necessário é o contrapeso advindo do risco do insucesso da demanda. O interesse dos credores é também apontado, muitas das vezes, como a justificativa maior da imperiosa concessão de justiça gratuita sob o argumento falseado de que todos os recursos disponíveis são destinados à satisfação do passivo concursal e que qualquer dispêndio expressivo poderia vir a ser irremediável para consecução desse objetivo. Trata-se de falsa premissa calcada no intuito, ainda que legítimo, de maximizar o ativo arrecadado em favor da massa subjetiva, mas que, se desassociada de uma pesquisa criteriosa da situação financeira efetiva da falida, estimula pretensões vazias que, além de não gerarem qualquer perspectiva de ganho, prejudicam terceiros que precisam mover toda a sorte de esforços para refutá-las, com dispêndio financeiro, reputacional e desgaste pessoal imensuráveis. O fato de ser possível a imputação de sucumbência à massa falida, gerando consequências negativas sobre seu patrimônio, não pode justificar a concessão da gratuidade de justiça. Tal benesse só deve ser concedida caso comprovada a impossibilidade absoluta de pagamento das custas judiciais, como exige precisamente o mencionado art. 98 do CPC. Admitir este raciocínio significaria conceder à devedora uma "carta branca", autorizando-a a simplesmente a não mais quitar quaisquer de seus débitos, sob o argumento genérico de que tais recursos poderiam, ainda que hipoteticamente, ser vertidos em benefício da coletividade de credores. Decerto que a escolha racional da massa falida em intentar ações judiciais deve envolver avaliação ponderada das possíveis consequências econômicas justamente para desestimular o ingresso no Judiciário a qualquer custo. A condenação em sucumbência e honorários é medida que se impõe, e, caso gerem prejuízo à massa (e, consequentemente, à coletividade de credores), notória será a responsabilidade do Administrador Judicial, que deverá ser buscada nas vias próprias. Os Tribunais seguem o mesmo caminho A jurisprudência combate o raciocínio automatizado de deferimento da justiça gratuita com base em suposta hipossuficiência presumida da massa falida, sem análise da situação real do caso concreto e respectiva comprovação nos autos, ainda que se trate de ação intentada pela massa na busca de ressarcimento pelas fraudes eventualmente contra ela cometidas. O Superior Tribunal de Justiça já definiu que a hipossuficiência da massa falida não é presumida, sendo certo que o benefício da gratuidade só deve ser concedido àquela se comprovado que dele necessita. Assim verifica-se em julgado da sua Terceira Turma, que a condição de falida, por si só, não é suficiente para a concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita, prevista na lei 1.060/50. A Relatora Ministra Nancy Andrighi consignou, na ocasião, precedente da 1ª Seção do Tribunal, segundo o qual não é possível presumir a hipossuficiência da massa falida (EREsp 855.020)7. Em outro julgado relevante, o STJ já afirmou expressamente a submissão da massa falida ao princípio da sucumbência, concluindo não ser "presumível a existência de dificuldade financeira da empresa em face de sua insolvabilidade pela decretação da falência para justificar a concessão dos benefícios da justiça gratuita", razão pela qual "a massa falida, quando demandante ou demandada, sujeita-se ao princípio da sucumbência (Precedentes: REsp 148.296/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel, Segunda Turma, DJ 07.12.1998; REsp 8.353/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, DJ 17.05.1993; STF - RE 95.146/RS, Rel. Min. Sydney Sanches, Primeira Turma, DJ 03.05.1985) Agravo regimental desprovido" (AgRg no Ag 1292537/MG, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 05.08.2010, DJ 18.08.2010). Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se depara frequentemente com o tema. Em recente decisão envolvendo cumprimento de sentença promovido por massa falida requerente da gratuidade de justiça, o juízo de primeiro grau fundamentou que a massa vinha obtendo sucesso em várias demandas judiciais, o que tornava possível o suporte aos encargos decorrentes das despesas do processo. O E. Tribunal manteve o indeferimento do benefício ressaltando que "o fato da empresa encontra-se (sic) no estado de massa falida, não lhe conferia direito automático ao benefício da justiça gratuita, que continuava dependendo de adequada comprovação de hipossuficiência financeira"8. Em outra oportunidade, ainda que adotando posição intermediária, conferindo a oportunidade de diferimento do recolhimento do preparo recursal ao final, o mesmo E. Tribunal ressaltou que o "estado de insolvência não induz de forma automática a concessão integral dos benefícios da Assistência Judiciária, sendo certo que a parte tem o ônus de demonstrar a vulnerabilidade econômica para arcar com os ônus processuais"9. A Justiça Especializada do Trabalho, por sua vez, já teve oportunidade de rechaçar a tese de insuficiência financeira pelo simples decreto de falência, ressaltando-se, na oportunidade, que a quebra não significa que a devedora se encontra em estado de miserabilidade jurídica10. Nesse sentido, garantiu-se a incidência do verbete sumular nº 86 do Tribunal Superior do Trabalho11, assegurando-se ampla defesa ao permitir que a massa falida devedora interpusesse recurso sem recolher as custas processuais e realizar o depósito recursal, em virtude de seus bens se encontrarem indisponíveis. A isenção total do recolhimento de custas, no entanto, foi negada diante da ausência de comprovação de direito ao benefício. Resta claro, portanto, que a jurisprudência é pacífica no sentido de que é necessária uma análise criteriosa sobre a incapacidade financeira da massa falida para a obtenção do benefício da gratuidade de justiça - o que se coaduna também com a segurança jurídica conferida pelo princípio da sucumbência, que, como exposto, é um importante instrumento de contenção contra demandas aventureiras e desprovidas de fundamento jurídico, frequentemente constatadas nos casos de persecução contra supostas fraudes cometidas contra massas falidas. Conclusão Nesse contexto, não se desconsidera a imprescindibilidade que o benefício da gratuidade de justiça pode representar às falências, sobretudo, àquelas marcadas por práticas fraudulentas que, em muitos casos, determinaram a quebra ou agravaram a condição de crise em que já se encontrava o empresário (individual ou sociedade empresária) antes do seu decreto, o que pode vir a se estender durante a execução concursal diante da ausência ou insuficiência de recursos. Em casos tais, a concessão da justiça gratuita faz-se necessária, real e justa. A experiência permite-nos concluir, no entanto, que o exame dos pressupostos para o deferimento da benesse processual não deve vir desassociado de uma análise pormenorizada do caso concreto, tampouco, tomado pela conclusão açodada da tese de insuficiência financeira pela simples condição de falida das massas litigantes. Deve ser incentivada, ademais, solução intermediária, diferindo o recolhimento das verbas sucumbenciais, em caso de insucesso da demanda, ao final. Raciocínio diferente incita comportamentos que, descompromissados com o resultado da demanda, invoquem toda sorte de fundamentos em ações aventureiras que desafiam a segurança jurídica e o devido processo legal, impondo pesado e desproporcional ônus à uma das partes. __________ 1 Art. 98: A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. 2 Art. 158: Extingue as obrigações do falido: I - o pagamento de todos os créditos; 3 Art. 81: A decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida e, por isso, deverão ser citados para apresentar contestação, se assim o desejarem. 4 Art. 82: A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil. 5 Art. 82-A: É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. (Incluído pela lei 14.112, de 2020) Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). (Incluído pela lei 14.112, de 2020)  6 Art. 129: São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: I - o pagamento de dívidas não vencidas realizado pelo devedor dentro do termo legal, por qualquer meio extintivo do direito de crédito, ainda que pelo desconto do próprio título; II - o pagamento de dívidas vencidas e exigíveis realizado dentro do termo legal, por qualquer forma que não seja a prevista pelo contrato; III - a constituição de direito real de garantia, inclusive a retenção, dentro do termo legal, tratando-se de dívida contraída anteriormente; se os bens dados em hipoteca forem objeto de outras posteriores, a massa falida receberá a parte que devia caber ao credor da hipoteca revogada; IV - a prática de atos a título gratuito, desde 2 (dois) anos antes da decretação da falência; V - a renúncia à herança ou a legado, até 2 (dois) anos antes da decretação da falência; VI - a venda ou transferência de estabelecimento feita sem o consentimento expresso ou o pagamento de todos os credores, a esse tempo existentes, não tendo restado ao devedor bens suficientes para solver o seu passivo, salvo se, no prazo de 30 (trinta) dias, não houver oposição dos credores, após serem devidamente notificados, judicialmente ou pelo oficial do registro de títulos e documentos; VII - os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior. Parágrafo único. A ineficácia poderá ser declarada de ofício pelo juiz, alegada em defesa ou pleiteada mediante ação própria ou incidentalmente no curso do processo. Art. 130: São revogáveis os atos praticados com a intenção de prejudicar credores, provando-se o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro que com ele contratar e o efetivo prejuízo sofrido pela massa falida. 7 Naquele caso, concluiu a Relatora que "a recorrente não demonstrou lhe faltarem recursos para arcar com as custas processuais, razão suficiente para o indeferimento do seu pedido. A aplicação do direito à espécie pelo TJ/SP está em consonância com a legislação infraconstitucional e deve ser integralmente mantida." Também restou destacado que o entendimento foi seguido de maneira pacífica pelas Turmas que integram a Primeira Seção daquela Corte. Ilustrativamente: AgRg no Ag 1292537/MG, Primeira Turma, DJe 18/8/2010; EDcl no REsp 1136707/PR, Primeira Turma, DJe 17/10/2014; AgRg no REsp 1111103/SP, Primeira Turma, DJe 24/09/2014; AgRg no REsp 1.488.508/RS, Segunda Turma, DJe 10/12/2014; AgRg no AREsp 580.930/SC, Segunda Turma, DJe 05/12/2014, AgRg no AREsp 860.182/SP, Segunda Turma, DJe 09/05/2016; REsp 1.075.767/MG, Segunda Turma, DJe 18.12.2008." (REsp n. 1.648.861/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 6/4/2017, DJe de 10/4/2017) 8 TJSP. Agravo de Instrumento 2274750-86.2022.8.26.0000; Relator (a): Alexandre David Malfatti; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro de Lins - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/11/2022; Data de Registro: 21/11/2022 9 TJSP. Apelação Cível 0043514-48.2010.8.26.0100; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 26/05/2022; Data de Registro: 26/05/2022 10 TRT da 3ª Região. Processo: 0000384-85.2011.5.03.0060 RO; Data de Publicação: 09/02/2012; Disponibilização: 08/02/2012, DEJT, Página 97; Órgão Julgador: Sétima Turma; Relator: Maristela Iris S. Malheiros; Revisor: Taisa Maria M. de Lima. 11 Enunciado nº 86 da súmula de jurisprudência do TST: "Não ocorre deserção de recurso da massa falida por falta de pagamento de custas ou de depósito do valor da condenação. Esse privilégio, todavia, não se aplica à empresa em liquidação extrajudicial."
Recentemente fui instigada pela querida e super competente Juliana Biolchi a contribuir com um artigo para sua obra coletiva que será lançada em breve sobre recuperação extrajudicial, projeto que conduz com Alexandre Nasser de Melo junto ao Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial. O tema escolhido - financiamento DIP para os devedores em recuperação extrajudicial -, não poderia ser mais oportuno e instigante. Compartilho aqui algumas percepções que teci neste artigo a respeito do assunto. Com a nova onda de ajuizamentos de processos de insolvência, impulsionada pela ressaca econômica em que nos encontramos, é a hora de testar para valer a recuperação extrajudicial. Apesar de ser um uma simplificação da recuperação judicial, inspirada no prepacked insolvency procedure previsto no Bankruptcy Code norte-americano, e conceitualmente se lançar como um meio de recuperação menos traumático para a empresa em crise se comparado à recuperação judicial, até agora a recuperação extrajudicial ficou meio opaca.    Uma das razões declaradas para isso era a falta de segurança jurídica que rondava os seus partícipes, que ficavam inseguros quanto à aplicação de certos benefícios legais típicos da recuperação judicial também para a recuperação extrajudicial. Exemplos clássicos eram a aplicação do stay period em benefício dos devedores durante a tramitação do processo, a garantia de não sucessão do investidor na aquisição de ativos, e a falta de regulamentação do financiamento DIP na extrajudicial. Diante da omissão da lei quanto a tais pontos, e na dúvida, devedores e investidores optavam pela recuperação judicial, que acabou consolidando uma jurisprudencia mais firme sobre estes temas.    O cenário agora começa a mudar. A recente reforma implementada pela  lei 14.112 com o fim de atualizar e aprimorar a lei 11.101/05 ("LFRE") facilitou o acesso do devedor à recuperação extrajudicial, por meio de diversos estímulos. Dentre eles, a lei agora facultou ao devedor ingressar com o pedido contando com apenas 1/3 dos créditos sujeitos à recuperação extrajudicial, e concedeu-lhe um prazo de até 90 dias para chegar à anuência ao plano de uma maioria simples por valor de crédito. Nesse sentido, a reforma veio em boa hora, apesar de ainda ser tímida para a recuperação extrajudicial. Isso porque, sem se ater muito à técnica legislativa, muitas das alterações cirúrgicas feitas em artigos esparsos da LFRE buscaram abranger também a recuperação extrajudicial, ainda que em normas constantes em capítulos específicos sobre a recuperação judicial, o que causou uma certa confusão em termos de sistemática legal. Algumas dessas normas permanecem "escondidas" na lei e podem passar desapercebidas pelo intérprete mais afoito. É o caso do financiamento DIP na recuperação extrajudicial. Assim é que a recuperação extrajudicial vem tratada no Capítulo VI da LFRE, que segue silente quanto ao financiamento DIP para as empresas que optam por esse caminho. O DIP hoje, por sua vez, vem tratado nos artigos 66-A e 67 e na Seção IV-A (artigos 69-A a F), todos do Capítulo III, da LFRE, que em princípio trata exclusivamente da Recuperação Judicial. Apesar dessa aparente segregação, o artigo 69-A abre as portas para uma interpretação sistemática da lei que conduz à aplicação do DIP também para a recuperação extrajudicial. Isso porque tal artigo prevê expressamente que "nos termos dos arts. 66 e 67 desta lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comite de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor (...)".      Ocorre que o novo artigo 66-A, também incluído na reforma da lei, expressamente dispõe que a garantia outorgada ao financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio com o recebimento dos recursos ao devedor1. Lincando um artigo com o outro, conclui-se que o legislador estendeu o DIP à recuperação extrajudicial. E, afinal, quais as vantagens do DIP para a recuperação extrajudicial? São muitas. Empresas em crise sofrem limitação de acesso ao crédito no mercado, notadamente após o ajuizamento de um pedido recuperacional.  O financiamento é um dos fatores de maior relevância quando o objetivo é soerguer a companhia devedora, já que é uma das únicas fontes disponíveis  para bem equacionar a estrutura de capital da empresa. Entretanto, trata-se de negócio de risco para os investidores, que para colocarem recursos novos numa empresa tecnicamente insolvente precisarão de estímulos extras para proteção do seu crédito, associados à maior remuneração pela concessão de crédito. A recente reforma da LFRE trouxe uma série deles, que terão o condão de estimular soluções financeiras mais estruturadas por meio da recuperação extrajudicial. Foquemos no DIP previsto na nova Seção IV-A do Capítulo III da lei2. A principal proteção ao investidor é ver tutelado o seu direito ao crédito e às garantias atreladas ao crédito ao realizar o aporte mediante autorização judicial (exigência do art. 69-A), mesmo se houver posterior reconsideração da decisão de primeiro grau em sede recursal3. Ou seja, uma vez desembolsados os recursos ao devedor, mesmo que posteriormente o DIP seja anulado pelo poder judiciário, o investidor conserva sua garantia, mitigando o risco jurídico da operação. Isto significa que, ao submeter um plano de recuperação extrajudicial à apreciação do poder judiciário para posterior homologação, o devedor terá que obter autorização judicial para o aporte de capital na companhia, que deverá ser garantido por ativos não circulantes do devedor ou de terceiros, e ser regulado pelas normas da Seção IV-A do Capítulo III da LFRE. Assim fazendo, o investidor terá a proteção da imutabilidade da garantia que lhe foi outorgada, ao desembolçar os recursos ainda que o plano de recuperação extrajudicial não seja homologado posteriormente pelo juiz. Seguindo o objetivo de estimular este tipo de operação, a lei também fez constar que o investidor poderá receber garantia adicional e subordinada ao empréstimo, dispensando a anuência do detentor da garantia original. Antes da reforma, havia dúvida se isso poderia representar supressão de garantia ao credor originário, nos termos do artigo 50, §1º da LFRE4. Hoje, acionistas ou partes relacionadas poderão financiar a empresa em recuperação com os mesmos benefícios e proteções concedidos a terceiros, sem temer que seu crédito seja considerado subordinado em caso de falência (artigos 69-E e F). Por fim, o credor DIP na recuperação judicial recebe com superprioridade seu crédito em caso de falência do devedor, logo na segunda ordem de prioridade prevista no art. 84, I-B5. Ou seja, o financiador DIP receberá de forma muito mais vantajosa do que a até então prevista antes da reforma legislativa, estando atrás apenas e tão somente dos pagamentos decorrentes das despesas relacionadas à administração da massa falida e dos créditos trabalhistas vencidos nos três meses anteriores à quebra da empresa, até o limite de cinco salários mínimos por trabalhador, conforme arts. 150 e 151 da LFRE6. Questiona-se, apesar da aplicação do DIP à recuperação extrajudicial aqui defendida, se em caso de falência do devedor os investidores seriam também beneficiados pela ordem de prioridade prevista no artigo 84, I-B. Ou seja, caso a empresa em recuperação extrajudicial tenha sua falência decretada no meio do caminho, os créditos dos financiadores serão pagos como extraconcursais, seguindo a nova prioridade estabelecida na lei? Uma interpretação sistemática da lei, aplicando o gênero recuperacional a ambas as especies tratadas na LFRE (recuperação judicial e extrajudicial) nos leva à conclusão de que essa proteção também se aplica à recuperação extrajudicial, como indica a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)7, que disciplina os critérios para a correta aplicação das normas jurídicas, e estabelece, dentre outros princípios, o do diálogo das fontes8. Seu art. 4º  também determina que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito", a fim de que seja conferida eficácia normativa à lei. Ora, nada mais coerente do que a norma protetiva prevista para a recuperação judicial também se aplicar para a extrajudicial. Entretanto, o tema é controverso, e o fato é que uma leitura restritiva da norma poderá levar à conclusão de que essa prioridade especial não se aplica para o financiador no caso da recuperação extrajudicial. Afinal, além de o art. 84, I-B ser expresso ao citar hipótese de recuperação judicial, a não homologação do plano de recuperação extrajudicial pelo juiz não acarreta automaticamente a falência do devedor, como se dá na recuperação judicial. Ao contrário, a qualquer momento fica facultada ao devedor a possibilidade de conversão da extrajudicial em recuperação judicial9. Mais do que isso, na hipótese de não homologação do plano, o devedor poderá apresentar novo pedido de homologação de plano de recuperação extrajudicial10. Não havendo a convolação em falência nessas hipóteses, e diante da menção expressa no inciso I-B do artigo 84 apenas à recuperação judicial, essas normas podem ainda ser tidas como restritas à recuperação judicial. O intérprete, nesse sentido, poderia partir do princípio que, sendo a recuperação extrajudicial menos amarga ao devedor, não necessariamente acarretando a sua falência em caso de fracasso, o risco do investidor seria menor nessa operação, se comparado à recuperação judicial. Portanto, não se justificaria o benefício da prioridade de pagamento na falência. Justamente por ser questionável, nos parece que o investidor cauteloso não deverá considerar esse benefício em seus cálculos de risco para concessão do empréstimo.  No entanto, essa circunstância por si só não remove o brilho e a novidade do DIP na recuperação extrajudicial, com as novas proteções conferidas pela lei. Isso porque, na hipótese do DIP previsto na Seção IV-A, garantido pela alienação fiduciária de bens do ativo não circulante do devedor ou de terceiros (art. 69-A e seguintes), o credor na falência conservará seu direito à excussão da garantia fiduciária, que deixa de pertencer à esfera de propriedade do devedor e nem é passível de arrecadação pelo administrador judicial. Ou seja, o financiador DIP ainda assim será pago de forma superprivilegiada até o limite da sua garantia, que em geral cobre mais que a totalidade do crédito, sem sequer concorrer com outros credores, por mais privilegiados que sejam no concurso da falência. Portanto, embora recomende-se ainda cautela ao investidor na recuperação extrajudicial, é certo que poderá optar por conceder financiamentos no curso do processo, agora contando com maiores proteções e incentivos. Além da imutabilidade da garantia, em caso de desembolso dos recursos, se o DIP ocorrer segundo os ditames da Seção IV-A do Capítulo III da LFRE, o investidor sequer participará do concurso de credores em caso de falência, podendo satisfazer seu crédito com a consolidação da propriedade fiduciária. __________ 1 "Art. 66. A alienação de bens ou a garantia outorgada pelo devedor a adquirente ou a financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor". 2 Além deste, há o mútuo pós concursal regulado pelo artigo 67 da lei, sobre o qual não trataremos aqui. 3 Art. 69-B. A modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado. 4 Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: § 1º Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia. 5 Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, aqueles relativos: I - (revogado); I-A - às quantias referidas nos arts. 150 e 151 desta Lei; I-B - ao valor efetivamente entregue ao devedor em recuperação judicial pelo financiador, em conformidade com o disposto na Seção IV-A do Capítulo III desta Lei; I-C - aos créditos em dinheiro objeto de restituição, conforme previsto no art. 86 desta Lei; I-D - às remunerações devidas ao administrador judicial e aos seus auxiliares, aos reembolsos devidos a membros do Comitê de Credores, e aos créditos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência; I-E - às obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência; 6 Art. 150. As despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência, inclusive na hipótese de continuação provisória das atividades previstas no inciso XI do caput do art. 99 desta Lei, serão pagas pelo administrador judicial com os recursos disponíveis em caixa. Art. 151. Os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, serão pagos tão logo haja disponibilidade em caixa. 7 Decreto 4657 de 4 de setembro de 1942 8 Teoria de que deve ser aplicada a melhor regra para tutelar o direito ao caso, como meio de preservação da hermenêutica jurídica e da coerência do sistema normativo. Neste sentido: "O uso da expressão do mestre, "diálogo das fontes", é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, coexistentes no sistema. É a denominada "coerência derivada ou restaurada" (cohérencedérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e a microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a "antinomia", a "incompatibilidade" ou a "não coerência" (MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo das fontes. In: BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013) 9 §7º do artigo 163 da LFRE. 10 §8º do art. 164 da LFRE.