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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
A reforma promovida pela lei 14.112/2020 não alterou a opção legislativa em relação à exclusão dos créditos tributários do processo de recuperação judicial, nos termos do art. 187 do CTN e do art. 29 da Lei de Execução Fiscal. Todavia, a lei 14.112/2020, ao modificar a lei 10.522/2002, dando nova redação ao art. 10-A e incluindo os arts. 10-B e 10-C, promoveu significativas e relevantes transformações na postura do Fisco no processo de recuperação judicial, ao oferecer à empresa recuperanda instrumentos para regularização do passivo fiscal em condições mais vantajosas e eficientes que a realidade legislativa anterior permitia, como o parcelamento especial e a transação tributária especial. As alternativas de equalização do passivo fiscal criadas pela reforma têm por finalidade viabilizar - ao menos essa é a intenção do legislador - a obtenção da certidão negativa de débitos tributários ou positiva com efeitos de negativa e, com isso, igualmente e em tese, a concessão da recuperação judicial, na forma dos arts. 57 e 58 da lei 11.101/2005. Com efeito, o cenário legislativo anterior praticamente inviabilizava o cumprimento do disposto nos arts. 57 e 58 da lei 11.101/2005, na medida em que a lei não apresentava alternativa viável de equacionamento do passivo fiscal. Durante vários anos, a legislação não oferecia aos devedores em recuperação judicial planos de parcelamento fiscal em condições mais favoráveis quando comparados com os REFIS disponíveis aos devedores em geral. Levando em consideração a ausência de lei específica para regulamentar o parcelamento tributário para as empresas recuperandas, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de dispensar a certidão de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial1. O parcelamento específico de que trata o art. 68 da lei 11.101/2005 foi, na prática, instituído com a edição da lei 13.043/2014, por meio da inclusão do então art. 10-A na lei 10.522/2002. Entretanto, esse parcelamento não atendia às finalidades legais, pois dava às empresas recuperandas tratamento mais rigoroso do que aquele oferecido aos devedores em geral, além de exigir a inclusão no parcelamento específico de todos os débitos tributários da empresa recuperanda, ainda que fossem objeto de discussão judicial ou estivessem com a exigibilidade suspensa. Diante da violação aos princípios da isonomia e da inafastabilidade da jurisdição pelo dispositivo legal acima mencionado, o Superior Tribunal de Justiça permaneceu aplicando o entendimento anteriormente adotado2, não exigindo a apresentação das certidões de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial. No julgamento do REsp n. 1.864.625/SP3, o Superior Tribunal de Justiça reforçou o entendimento anterior, reputando inaplicável o art. 57 da Lei n. 11.101/2005 após ponderação realizada conforme o princípio da proporcionalidade, ante a aparente incompatibilidade entre os arts. 57 e 47 da lei 11.101/2005, concluindo que a exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal não era adequada nem tampouco necessária para a concessão da recuperação judicial. O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a questão no pedido de liminar formulado na Medida Cautelar na Reclamação Constitucional n. 43.169/SP, que teve como objeto a decisão proferida no REsp n. 1.864.625/SP, tendo o Ministro Luiz Fux deferido a liminar para sobrestar os efeitos da decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no referido recurso especial, aplicando-se o contido nos artigos 57 da lei 11.101/2005, e 191-A do CTN, até o julgamento final da referida Reclamação, já que a aplicação do art. 57 da lei 11.101/2005 teria sido afastada com fundamento no princípio da proporcionalidade, por meio do exercício do controle difuso de constitucionalidade, sem que a Corte Especial, que seria a competente, tivesse analisado a questão (cláusula de reserva de plenário). Em acréscimo, registrou que a mora legislativa em relação ao parcelamento específico a que faz menção o art. 68 da lei 11.101/2005 havia sido sanada com a edição da lei 13.043/2014. Contudo, essa Reclamação Constitucional foi redistribuída ao Ministro Dias Toffoli, que acabou negando-lhe seguimento, ao reconhecer inexistente a situação que caracterizaria violação à Súmula Vinculante n. 10 e ao art. 97 da Constituição Federal (cláusula de reserva de plenário), o que acarretou, por consequência, a revogação da liminar inicialmente concedida. A edição da lei 14.112/2020, entretanto, criou as alternativas de equacionamento do passivo fiscal, em tese, proporcionais e adequadas. A reforma aproximou mais o Fisco da recuperação judicial para que lhe seja assegurado um tratamento, na medida do possível, semelhante ao concedido aos demais créditos sujeitos à recuperação judicial. Diante da criação do parcelamento especial e da possibilidade de transação fiscal, surgiram julgados que indicam possível alteração do entendimento jurisprudencial que até então prevalecia4. Em contrapartida, diversas decisões proferidas pelos tribunais pátrios parecem não ter acompanhado a alteração promovida pelo legislador, o que indica que em significativa parte dos julgados ainda se aplica o entendimento de que a regra que exige a apresentação das certidões de regularidade fiscal deve ser flexibilizada para que tais certidões não sejam exigidas para fins de concessão da recuperação judicial. Recentemente, em decisão monocrática proferida no Pedido de Tutela Provisória n. 4113/SP, publicada no DJe em 18/08/2022, o Relator Ministro Paulo de Tarso concedeu efeito suspensivo ao recurso especial para sobrestar os efeitos do acórdão que anulou a decisão de homologação do plano de recuperação judicial, e entendeu que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relativa à questão da exigência de certidões negativas de débito para concessão da recuperação judicial, mesmo com a possibilidade de parcelamento do débito, não foi alterada. Apesar disso, ainda remanesce a dúvida de como a Corte Superior, por meio de suas Turmas e/ou Seção competentes, a quem incumbe uniformizar a interpretação da legislação federal no país, se posicionará, diante do atual cenário legislativo, que disponibilizou novos instrumentos às empresas em recuperação judicial para equalização do seu passivo fiscal, o que, em tese, permitiria a aplicação, na prática, do art. 57 da lei 11.101/2005 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional. Vale destacar, por fim, que a Fazenda Nacional vem regulando a possibilidade de parcelamentos e de transação fiscal, na tentativa de oferecer concretamente aos devedores a possibilidade de fruição desses direitos previstos em lei. A Portaria PGFN n. 6.757, de 29/07/2022 regulamentou a transação na cobrança de créditos da União e do FGTS (já alterada pela Portaria PGFN 6.941, de 04/08/2022, que revogou o inciso II do art. 36) e apresentou regras de utilização dos créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL. Não obstante a louvável iniciativa do Fisco, existem, em princípio, elementos indicativos de ilegalidade por excesso de poder regulamentar, em razão de alteração dos critérios da lei regulamentada (lei 14.375/2022, que alterou a lei 13.988/2020), ao restringir direitos previamente estabelecidos na referida lei. Essas ilegalidades da regulamentação fiscal podem ser corrigidas pela via judicial, enquanto não revistas pelo próprio Fisco. De toda forma, resta claro que se caminha em direção à solução do impasse do crédito fiscal na recuperação judicial, estando cada vez mais próximo o momento em que o Superior Tribunal de Justiça dará a palavra final sobre essa questão de direito federal. __________ 1 O julgamento paradigmático em relação a esse entendimento foi proferido no REsp n. 1.187.404/MT, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 19/6/2013, DJe de 21/8/2013. 2 Nesse sentido: REsp n. 1.173.735/RN, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/4/2014, DJe de 9/5/2014. 3 REsp n. 1.864.625/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/6/2020, DJe de 26/6/2020. 4 Nesse sentido: TJSP;  Agravo de Instrumento 2244665-54.2021.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Americana - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/04/2022; Data de Registro: 11/04/2022. E ainda: TJSP;  Agravo de Instrumento 2035180-77.2022.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 24/05/2022; Data de Registro: 30/05/2022.
Uma das teses com maior acolhida pela literatura jurídica e pela jurisprudência que tratam da matéria de recuperações e de falências é a chamada subcapitalização material. Cuida-se, na verdade, de considerar, sem critério muito preciso, a sociedade empresarial falida ou em recuperação como insuficientemente capitalizada para enfrentar os riscos e as agruras impostas pela atividade constante de seu objeto social. Como consequência, impõe-se a desconsideração da personalidade jurídica e a constrição do patrimônio dos sócios. Tratados jurídicos foram escritos tentando justificar a tese supracitada, que acabou por conseguir razoável espaço na jurisprudência. Mas será que realmente procede a alegação de que dada sociedade pode ter capital insuficiente para seu objeto social? Será que o mundo jurídico ignora a realidade, mais uma vez, ao consagrar teoria sem base econômico-financeira? Este artigo busca analisar essas e outras questões correlatas. Definições - Como a teoria se insere no mundo jurídico A doutrina costuma conceituar duas formas de subcapitalização: a material e a nominal. A primeira (e única que tratamos neste artigo) caracteriza-se pelo nível insuficiente de capital social em conjunção com proporção majoritária de financiamento por capital de terceiros (= passivo). A segunda ocorreria no caso de os sócios realizarem financiamento da sociedade por meio de passivo (p.ex.: utilizando contratos de mútuo) para obterem prioridades de recebimento em eventual falência. A jurisprudência, por seu turno, acolheu a tese em alguns julgados, autorizando a desconsideração da personalidade jurídica por subcapitalização, como se verifica no exemplo seguinte: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA. GRUPO ECONÔMICO CONFIGURADO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ABUSO DE DIREITO. SUBCAPITALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ART. 50 E 187 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO, OMISSÃO OU ERRO MATERIAL. 1. Inexistência de obscuridade, contradição, omissão ou erro material no presente acórdão, uma vez que a parte embargante demonstra, apenas, inconformidade quanto às razões jurídicas e a solução adotada no aresto atacado. 2. A falida acumulou dívidas que alcançavam R$ 700.000,00, desde o ano de 2009 até a data do pedido de autofalência, em fevereiro de 2011. Ocorre que ainda no ano de 2009, em auditoria realizada nas contas da falida, foi indicado o aporte de capitais, o que não foi atendido pelas empresas controladoras, de acordo com o teor do documento de fl. 628 dos autos. 3. Dessa forma, evidente o abuso do direito por parte das empresas sócias controladoras, ante a clara subcapitalização havida pela não manutenção do capital necessário para o pleno cumprimento do objeto social da falida. 4. O Julgador não está obrigado a se manifestar a respeito de todos os fundamentos legais invocados pelas partes, visto que pode decidir a causa de acordo com os motivos jurídicos necessários para sustentar o seu convencimento, a teor do que estabelece o art. 371 da novel lei processual civil. 5. Ausência dos pressupostos insculpidos no art. 1.022 do novo Código de Processo Civil, impondo-se o desacolhimento do recurso. Embargos declaratórios desacolhidos. (TJRS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO QUINTA CÂMARA CÍVEL 70073675118 (CNJ: 0131626-45.2017.8.21.7000) Vejamos, portanto, se a teoria tem fundamentos razoáveis. Capital social - Um marcador de origem e não de garantia A primeira falha da teoria da subcapitalização material está em, de alguma forma, sustentar que o capital social é um garantidor dos direitos dos credores. Essa crença, se não pode ser considerada falsa, é, ao menos, uma meia verdade. A rigor, o capital social é apenas um marcador da origem dos recursos que financiam uma atividade empresarial. Se provém de aportes dos sócios, classifica-se como capital social (ou reserva de capital). Empregando sentido figurado, o capital social caracteriza-se meramente como a identificação da porta de entrada dos recursos sociais. Dessa forma, se o balanço societário indica que há, p.ex., R$ 100 mil de capital social, isso não significa que os credores terão a sua disposição esse valor para satisfazer seus créditos na data em que foram cobrados. Esse valor, no balanço, simplesmente indica que, em determinado momento, os sócios decidiram aportar recursos para financiar a atividade. Se esses recursos estarão disponíveis no ativo, trata-se de outro problema e de algo que o montante de capital social aportado não garante, mesmo que devidamente integralizado. Vejamos um exemplo numérico simples: uma sociedade é capitalizada em seu início com um aporte de R$ 100 mil, em dinheiro. Esse valor, que entrou pela porta de entrada (= origem) do capital social, é aplicado no caixa da sociedade. Portanto, o balanço social (ignorando os passivos), estaria assim:   Se eventuais credores sociais tivessem de satisfazer seus créditos, teriam à disposição, no momento imediatamente posterior à constituição da sociedade, R$ 100 mil de caixa (e não de capital social!). No entanto, vamos imaginar que, alguns anos depois, essa mesma sociedade tivesse apresentado prejuízos acumulados de R$ 150 mil, pagando aos credores com a totalidade do que dispunha de caixa anteriormente (R$ 100 mil). Agora seu balanço hipotético estaria da seguinte forma: Veja-se que: O capital permaneceu o mesmo de antes = R$ 100 mil, mas não mais coincide com o montante de ativos; Restam créditos no montante de R$ 50 mil, que não serão satisfeitos, pois não há mais ativo (caixa) para o respectivo pagamento. Essa breve explanação, com um simples exemplo, leva-nos claramente a concluir que o capital social, ao contrário do que afirma boa parte da literatura jurídica e jurisprudencial, não é fonte de garantia dos direitos dos credores. Na verdade, o que garante o pagamento dos credores é o ativo societário (e não o capital!): os valores de capital social somente indicam a origem do ativo (= recursos próprios / dos sócios), nada indicando sobre a manutenção ou permanência de montantes para a satisfação dos credores. Portanto, constatar-se no contrato social que há "muito" ou "pouco" capital, isoladamente, nada significa em termos de garantia aos credores, uma vez que esses recursos aportados a título de capital podem sequer estar disponíveis no ativo. Aliás, fosse o capital garantia de maior segurança dos credores, não teríamos (ou teríamos menos) exemplos de sociedades empresárias que faliram quando dispunham de grandes quantias de capital social em seus balanços e contratos. Poder-se-ia questionar as conclusões iniciais a que se chega neste ponto, ao indagar: se o capital não é garantia do direito dos credores, por qual motivo a legislação societária exige que os credores anuam previamente a operações de redução de capital social (art. 1081 e seguintes do Código Civil e art. 173 e seguintes da Lei das sociedades por ações)? A pergunta supracitada, que parece contradizer as conclusões a que chegamos até aqui, na verdade, confirma-as. De fato, devemos lembrar que, como regra geral, a redução voluntária de capital é permitida pela legislação societária em duas hipóteses básicas: (1) perdas irreparáveis; (2) capital excessivo. No primeiro caso, não há o que se modificar no ativo: cuida-se de mera operação contábil (em contas de patrimônio líquido) em que se reduz o capital social para amortizar prejuízos acumulados. No segundo caso, há devolução de ativos, uma vez que parte dos recursos que o compunham retornarão ao patrimônio dos sócios. Assim, quando a redução decorre de perdas (= prejuízos), não há modificação no ativo garantidor dos direitos dos credores, não sendo necessário que estes anuam à redução do capital. Por outro lado, quando a redução decorre de devolução de capital (excessivo), os credores devem ser consultados não porque o capital, em si, diminui, mas porque o ativo (que decorreu da aplicação do aporte inicial de capital) deixará de fazer parte dos bens da sociedade, retornando para os sócios. Em suma: é pelas consequências da redução do capital no ativo que se consultam ou não os credores. Mais uma vez, a conclusão está confirmada: para os credores, o que importa é o ativo e não o capital social. A teoria da subcapitalização também conclui que deveria haver certo nível de capital social para fazer frente aos riscos oriundos de dívidas ou passivos. Será que essa conclusão é correta? É o que veremos no tópico seguinte. Proporção capital/passivos - Devemos exigir menores riscos? Uma outra conclusão que a teoria da subcapitalização material advoga é que pode haver abuso de direito quando não há capital suficiente em relação ao total de passivos assumidos pela sociedade. Assim, em havendo uma desproporção acentuada entre capital próprio (= patrimônio líquido do qual o capital faz parte) e capital de terceiros (= passivos), concluir-se-ia pelo nível insuficiente de capital próprio, uma vez que a sociedade estaria assumindo riscos exorbitantes diante do financiamento prioritário por capitais de terceiros. O efeito da subcapitalização, como asseverado anteriormente, estaria na desconsideração da personalidade jurídica. Para analisarmos a veracidade ou não dessas conclusões, devemos verificar quais são as fontes (ou origens) de financiamento de que dispõe uma sociedade empresária, além de seus custos e de seus riscos. A rigor, podemos resumir as fontes de recursos de uma sociedade em dois tipos: Capital próprio: na terminologia da literatura financeira, o capital próprio se identifica com o patrimônio líquido, abrangendo todos os recursos dos sócios empregados no financiamento da sociedade, sejam eles componentes do capital social, de lucros acumulados ou de reservas; Capital de terceiros: os quais corresponderiam aos recursos fornecidos por credores (p.ex.: empréstimos, financiamentos, debêntures, etc.). Portanto, o passivo e o patrimônio líquido (que abrange o capital social) são as duas fontes de recursos das sociedades, constituindo-se, respectivamente, em fontes de recursos próprios (capital próprio) ou fontes advindas de terceiros (capital de terceiros). Por sua vez, o ativo se constitui no total de bens e de direitos em que os recursos aportados pelas fontes foram aplicados. Resumindo, mais uma vez, temos: Fontes/origens de recursos: capital próprio e capital de terceiros, usualmente representadas do lado direito do balanço patrimonial; Aplicações de recursos advindos das fontes/origens: ativo, usualmente representado do lado esquerdo do balanço. Façamos um exemplo numérico/gráfico de um balanço patrimonial para demonstrar como isso ocorre: suponhamos que uma sociedade obtenha em seu início de operação R$ 50 mil dos sócios (aporte de capital) e outros R$ 50 mil de empréstimos de credores, ambos em dinheiro. Seu balanço ficaria organizado assim:   Percebe-se que as origens dos recursos foram duas e iguais (= R$ 50 mil) de capital próprio e de terceiros. Essas origens, somadas, tiveram destino e foram aplicadas no ativo (caixa) da sociedade, que totalizou R$ 100 mil. Explicadas como se formam as origens e como são aplicadas, cabe indagar: (1) qual a diferença de se financiar com capitais próprios ou de terceiros? (2) há alguma proporção ótima ou recomendável entre essas duas fontes de recursos? As diferenças entre o financiamento por capital próprio e por capital de terceiros se situam basicamente em dois pontos: (1) custos; (2) riscos. Regra geral, o financiamento por capital de terceiros (passivos) tende a ser mais barato que o financiamento por capital próprio (recursos dos sócios). Essa afirmação tende a causar certo espanto no meio jurídico, conquanto seja moeda corrente no meio financeiro. Explicaremos seus motivos a seguir. O titular do capital de terceiros (credor) detém uma renda fixa, ou seja, pode antever com razoável segurança, quanto receberá ao final. O titular do capital próprio (sócio/acionista), por sua vez, detém uma renda variável, não dispondo de conhecimento prévio sobre o "se" e o "quanto" irá receber no futuro. Obviamente, o risco do sócio/acionista é maior do que o do credor. Maior risco resulta em exigência de maior retorno, acarretando maiores ônus à sociedade em se financiar por capital próprio. O mundo jurídico, aliás, muitas vezes ignora que o capital próprio tenha custos. Isso ocorre porque o custo do capital próprio não é um custo explícito, mas um custo de oportunidade, ou seja, custo que se materializa pelo valor da melhor alternativa ao investimento. Vamos resumir isso ao leitor numa pergunta: você investiria seu dinheiro em uma ação cuja expectativa de rendimento anual fosse de 12%, quando um título público (com risco mínimo) rendesse 15% no mesmo período? Não? Justamente porque alguém só se dispõe a ser sócio se o investimento superar o custo de oportunidade consistente no valor de outras remunerações que seus recursos poderiam obter. No nosso exemplo, um sócio possivelmente exigiria para investir uma remuneração de 15%, acrescida de um prêmio de risco. Capital próprio, portanto, tem custo. E alto! Outro motivo que faz o capital próprio ser mais caro que o capital de terceiros é a economia tributária. A remuneração do credor (juros) é considerada, como regra, despesa dedutível, reduzindo o lucro líquido e a base de cálculo para os impostos sobre o lucro. Essa economia não ocorre com o capital próprio, uma vez que a remuneração do sócio/acionista (lucros/dividendos) não é considerada despesa contábil, não reduzindo base de cálculo de tributos. Portanto, podemos concluir que a imposição de grandes proporções de capital próprio em relação ao capital de terceiros fará com que a sociedade empresária tenha maiores gastos, em regra, com seu financiamento, o que é um ponto extremamente prejudicial da teoria da subcapitalização. Por outro lado, é bem verdade que uma maior proporção de capital próprio em relação ao capital de terceiros reduz riscos de falência, pois como o capital próprio não é, via de regra, uma obrigação exigível, eventuais prejuízos ou incapacidades de pagamento de remuneração aos sócios não acarretarão pedidos de falência ou constrição de bens. Dessa forma, podemos concluir, grosso modo, que financiamento prioritário por capital próprio é mais caro e menos arriscado que financiamento preponderante por capital de terceiros. Não há, entretanto, uma proporção ótima ou segura para que se possa dizer quanto de cada fonte deve se usar no financiamento da atividade empresarial. Até mesmo na literatura financeira, conquanto haja alguns modelos buscando eficiência, não há recomendação precisa de uma proporção de estrutura de capital. Nesse sentido, Lawrence J. Gitman (Princípios de Administração Financeira, Harbra, 7ª ed., p. 443): De modo prático, não existe maneira para calcular a estrutura ótima de capital [...]. Devido ao fato de ser impossível determinar o ponto [...] exato da estrutura ótima de capital e fixar-se nele, as empresas geralmente tentam operar num intervalo que as aproxima do que elas acreditam ser a estrutura ótima de capital. O fato de que os lucros retidos e outros novos financiamentos farão com que a estrutura de capital atual da empresa mude mais tarde justifica o enfoque em um intervalo de estrutura de capital, ao invés de um único ponto. Como se verifica da abordagem do autor supracitado, outro problema de se impor proporções de capital próprio e capital de terceiros é que a estrutura de financiamento é extremamente mutável na vida de uma sociedade empresária: há momentos em que somente algumas fontes estarão disponíveis, além de outros em que os custos podem limitar a escolha. Veja-se, aliás, como a aplicação da teoria da subcapitalização material poderia implicar sérios riscos a alguns tipos de negócios: imaginemos as chamadas aquisições alavancadas (leveraged byouts). Trata-se de modelo negocial em que a aquisição de uma determinada empresa é financiada por meio de baixo capital próprio e elevado capital de terceiros (por vezes em razões de 30% - 70%), apoiando-se na perspectiva de forte geração de caixa futuro. Aplicando a teoria da subcapitalização material, deveríamos desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade diante de abuso de direito? A resposta parece obviamente negativa. Mas os problemas não param por aqui. Veremos mais um no tópico seguinte. Fluxo e estoque - Confundindo as variáveis Para finalizar o artigo, precisamos fazer outra observação: como já se disse, uma das assunções implícitas da teoria da subcapitalização material é que o capital represente, de certa forma, garantia aos credores. Vimos que isso não é necessariamente verdadeiro, mas ainda há um outro problema que precisa ser apontado nesse tipo de raciocínio: o problema de confundir variáveis de fluxo e de estoque. Uma variável de estoque, como o nome retrata, traz uma mensuração momentânea. É como se tirássemos uma foto de um dado em um instante único no tempo. Assim, quando falamos de variáveis de estoque usualmente tratamos de fenômenos como número de objetos guardados em certo dia, nível da água num reservatório em dado momento, valor total de patrimônio/riqueza ao final do ano, etc. Por seu turno, variáveis de fluxo tratam de fenômenos continuados, repetidos ou em movimento. Não se trata de uma foto de um instante, mas de um vídeo que retrata como determinados acontecimentos se passaram em um período. Assim, poderíamos falar de vazão de água por tempo, receitas ou despesas por exercício financeiro, etc. O problema da teoria da subcapitalização material é que, propondo maiores garantias e menores riscos por intermédio de montantes ou proporções de capital social, confunde os tipos de variáveis e sugere que uma variável de estoque (capital) faça frente a um problema de variável de fluxo (despesas continuadas de remuneração de passivos). Com efeito, a vida financeira de uma sociedade não é algo que se possa resumir num instante único. Cuida-se de extremas variações sucessivas. Passivos, por outro lado, não são representados apenas por seu valor inicial (nominal), mas são acompanhados por um fluxo de remuneração (juros). Como estrutura/variável de fluxo que são, os passivos e os demais fenômenos societários não devem ser confrontados com variáveis de estoque, como o capital social (que representa o estoque de aportes dos sócios em data específica), mas com outras variáveis de fluxo (como receitas ou lucros do período). Pensar que dado aporte passado e único de capital social (variável de estoque) deva fazer frente a despesas perenes e repetíveis (variável de fluxo) é fazer plena confusão entre conceitos econômicos. Isso ocorreu várias vezes quando de discussão de fenômenos como a reforma da Previdência Social, em que se objetava que, se a Previdência cobrasse seus créditos, as reformas não seriam necessárias. Trata-se, mais uma vez, de confundir créditos (variável estoque) com pagamentos de benefícios previdenciários (variável de fluxo). Em suma: variáveis de fluxo devem ter contraponto em outras variáveis de fluxo e não em variáveis de estoque. Tem-se nesse ponto mais uma falha da teoria da subcapitalização material. Conclusões Verificam-se, portanto, os diversos problemas da teoria da subcapitalização material: Pressupõe que o capital social seja garantia dos credores, quando tal garantia se encontra no ativo social, que normalmente não coincide com o capital no decorrer da existência da sociedade; Impõe uso de fontes mais caras de financiamento, sem apontar razões econômicas que justifiquem sua utilização; Acarreta séria insegurança jurídica, ao exigir razões entre capital próprio e de terceiros as quais não são objetivamente definidas sequer na literatura financeira; Inibe, pelos possíveis efeitos de desconsideração, que os sócios assumam riscos que podem ser necessários à atividade empresarial; Confunde variáveis de estoque e de fluxo, ao contrapor capital e despesas.
O tratamento sobre habilitações e impugnações de crédito ainda não possui o amadurecimento necessário na doutrina e jurisprudência. Faço essa afirmação com base nos mais variados entendimentos sobre o tema e a profusão de situações que são vistas na prática forense. Por habilitação de crédito se entende a pretensão de ver seu crédito incluído no quadro geral de credores em processo de recuperação judicial ou de falência. Já os incidentes de impugnação ou divergência de crédito visam a correção de determinado crédito incluído, seja para modificar a classificação dada ao valor ou natureza do crédito, ou até mesmo para que se proporcione a exclusão de determinado crédito incluído pelo devedor ou pelo administrador judicial. Entretanto, o tema assume profundo relevo uma vez que são tais incidentes que ocasionam o grande volume de processos a serem julgados nas competências de falências e recuperações judiciais na justiça brasileira. Só na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, existe em tramitação o número de 18.792 processos, entre feitos principais e incidentes a eles relacionados. Além dos impactos na gestão judicial, a se considerar a otimização das rotinas judiciais e cartorárias para o cumprimento da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), o grande volume dos processos nos quais tais questões são discutidas trazem implicações de ordem processual e tributária, na medida em que algumas legislações estaduais preveem o recolhimento de taxa judiciária para as habilitações retardatárias. Um primeiro problema enfrentado é que os incidentes de habilitação ou impugnação de créditos são resolvidos por decisões de mérito e não por sentenças. Tal circunstância ocasiona uma falsa percepção de produtividade judiciária em varas judiciais, pois, mesmo decidindo centenas ou milhares de processos, pela incompreensão dessa realidade diante do baixo número de sentenças prolatadas em feitos ligados à recuperação judicial ou falência, há a incorreta percepção de pouca produção das magistradas ou magistrados que atuam em tal competência. A situação, antes de 2018, no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, era ainda pior, pois a distribuição de um processo de habilitação ou divergência de crédito sequer era computada, para fins de contagem do número de processos da vara judicial, o que mudou após a edição do Comunicado CG 219/2018, o qual determinou que tais incidentes fossem distribuídos como ações judiciais autônomas, de modo a refletir a realidade das varas de falências e recuperações judiciais. Por mais que a jurisprudência venha se firmando no sentido de que as decisões em incidentes de habilitação ou impugnação de créditos assemelhem-se a sentenças judiciais, a medição da produtividade em nível de competência de falências e recuperações judiciais ainda precisa de um melhor olhar, computando-se também as decisões de mérito e não somente sentenças judiciais. Já em relação aos aspectos processuais e tributários relacionados a tais feitos, o primeiro ponto é saber se há diferenciação entre os incidentes. Há certo consenso na doutrina e na jurisprudência acerca da inexistência de diferença processual entre ambas as espécies, seja pelo texto do art. 7º, § 1º, da lei 11.101/2005, seja por força do § 5º do art. 10 do aludido diploma legal, que preceitua ser aplicado o procedimento das impugnações de crédito para as habilitações retardatárias. E o que são habilitações retardatárias? Pela leitura do art. 10, caput, da lei 11.101/2005, serão retardatárias as habilitações não propostas no prazo de 15 dias junto ao administrador judicial, conforme mandamento do art. 7º, § 1º, da lei de regência. Entretanto, nem sempre surgirá o interesse processual do credor em promover sua habilitação de crédito após a publicação do edital da lista da recuperanda/falida. Um exemplo seria a supressão do crédito pelo administrador judicial na lista do art. 7º, § 2º, da lei 11.101/2005, momento a partir do qual teria o credor o interesse processual de buscar eventual correção na lista de credores do processo de recuperação judicial ou de falência.  O entendimento que tem sido adotado na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, até o presente momento, é o de que as habilitações e impugnações de crédito (diante da similitude dos procedimentos) serão consideradas retardatárias quando, a parte, com interesse de agir, não tiver observado: - O prazo de 15 dias previsto no art. 7, §1º, da Lei n. 11.101/05 ou, - O prazo de 10 dias previsto no art. 8º da Lei n. 11.101/05. E por serem retardatárias, os processos de habilitação e impugnação de crédito estão sujeitas ao recolhimento das custas nos termos do art. 4º, parágrafo 8º, da lei estadual 11.608/03, exceto no caso de pedido de gratuidade da justiça, que será analisado nos termos dos arts. 98 e ss. do CPC. Por tal razão é que se faz a distinção acima mencionada, malgrada a existência de doutrina que desconsidera a previsão do art. 10 da lei 11.101/2005, sem apresentar a devida justificativa para sustentar tal posicionamento. Há, ainda, outra controvérsia a ser dirimida, que reside em ser o prazo de 10 dias do art. 8º da lei 11.101/2005 peremptório ou não. No julgamento do REsp 1.704.201-RS, o voto vencido do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino foi no sentido de se admitir a interposição de impugnações de crédito após o prazo do art. 8º da Lei 11.101/2005, observando-se o rito processual previsto nos arts. 13 a 15 do mencionado diploma legal, com necessidade de recolhimento de custas. Cito o seguinte o excerto: Possível, pois, concluir que a homologação do quadro geral consolidado é o marco fatal para impugnações embasadas em fatos conhecidos pelos credores, mas não suscitados em momento oportuno. A apresentação de impugnação extemporânea, mas antes da homologação do quadro de credores, poderá, assim, ser conhecida, exigindo-se, apenas, do impugnante o pagamento das custas respectivas. Todavia, no mencionado Recurso Especial, o voto vencedor foi da lavra da Ministra Nancy Andrighi, que considerou como peremptório o prazo do art. 8º para o credor-impugnante, verbis: A norma do artigo retro citado contém regra de aplicação cogente, que revela, sem margem para dúvida acerca de seu alcance, a opção legislativa a incidir na hipótese concreta. Trata-se de prazo peremptório específico, estipulado expressamente na lei de regência. O dispositivo, assim, é ele próprio o resultado da ponderação, levada a cabo pelo legislador, entre quaisquer princípios potencialmente colidentes (isonomia versus celeridade processual, p.ex.), não havendo espaço, nessa medida, a se proceder a interpretações que lhe tirem por completo seus efeitos, sob pena de se fazer letra morta da escolha parlamentar. Enquanto não consolidado o tema pela jurisprudência, para evitar maiores controvérsias sobre o tema e permitir o acesso à jurisdição, existem muitos precedentes no sentido de se admitir habilitações e impugnações retardatárias, até a consolidação do quadro geral de credores, cujo rito observará o previsto nos arts. 13 a 15 da lei 11.101/2005. Como critério de tempestividade, todavia, ainda não há consenso, ora se aplicando os prazos constantes ou do art. 7º, parágrafo 1º ou do art. 8º, da legislação de regência, somado ao nascimento do interesse processual para intervenção da parte, ora somente se aplicando o prazo do art. 8º da lei 11.101/2005. Como dito acima, no tocante às impugnações retardatárias, há entendimento de que a elas a lei 11.101/05 atribuiu as mesmas características e ritos das habilitações retardatárias (art. 10, §5º da lei 11.101/05), o que, por corolário lógico, implicaria, também, o recolhimento de custas (art. 10, §3º e §5º da lei 11.101/05). Cito como precedente utilizado sobre o tema, o Agravo de Instrumento autos nº 2173513-77.2020.8.26.0000, da relatoria do Desembargador Grava Brazil, data do julgamento: 08/04/2021, verbis: Agravo de instrumento - Incidente de impugnação de crédito - Decisão agravada que acolheu a alteração da classificação do crédito - Inconformismo das recuperandas - Não acolhimento - Pretensão do credor de alteração da classificação do crédito que possui conteúdo de impugnação de crédito (art. 8º, da Lei n. 11.101/05) - Impugnação de crédito retardatária que passou a ser expressamente reconhecida com a inclusão dos §§ 7º e 8º no art. 10 da Lei n. 11.101/05, com a reforma feita pela Lei n. 14.112/20 - Natureza alimentar do crédito discutido que ficou comprovada pelo teor da Confissão de Dívida, o qual é expresso a respeito da dívida ser originada de honorários advocatícios - Crédito relativo a honorários advocatícios que é equiparado ao crédito trabalhista - Crédito que fica mantido na Classe Trabalhista - Impugnação de crédito retardatária que se assemelha à habilitação de crédito retardatária no tocante ao recolhimento das custas iniciais (arts. 8º e 10 da Lei nº 11.101/05 e art. 4º, § 8º, da Lei Estadual nº 11.608/2003) - Contudo, o recolhimento de custas pelo credor, neste momento processual, não é necessário, tendo em vista a sucumbência das recuperandas e o disposto no art. 82, do CPC - Decisão mantida - Recurso desprovido.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2173513-77.2020.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mairiporã - 2ª Vara; Data do Julgamento: 08/04/2021; Data de Registro: 08/04/2021)  Importante registrar que se tem imposto maior rigor na apreciação de questão relativa ao recolhimento de custas em São Paulo, mediante a edição do Provimento CG 01/2020, que alterou o art. 102, § 6º do artigo 1.093, "caput" do art. 1.098 e §1º do artigo 1.275 das NSCGJ, adequando-os ao disposto no artigo 1.007 do Código de Processo Civil, determinando mais acuidade com a verificação de recolhimento das taxas judiciárias pelos Juízos de primeira instância. Litigar no Brasil é barato. Em razão de uma visão de irrestrito acesso à jurisdição, tanto a concessão de justiça gratuita como a aplicação das taxas judiciárias têm sido um tema tratado de maneira lateral e insuficiente. Empiricamente é possível afirmar que a morosidade do sistema de justiça, nos dias atuais, está atrelada ao alto número de processos, ausência de filtro para o ajuizamento de demandas e recursos e uma cultura beligerante ainda ensinada nos bancos universitários. Diante dos índices de alta produtividade do Poder Judiciário1, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, por mais que juízas, juízes e servidores se dediquem ao cumprimento de seu dever, não haverá a devida satisfação esperada pela população brasileira. É preciso que modifiquemos nossa cultura jurídica com o fomento a métodos alternativos de resolução de conflitos, os quais devem prevalecer antes da fase judicial. Mas, se recorrer ao Judiciário for inevitável, é preciso maior acuidade com a concessão de benefícios processual, justamente para evitar a massificação de discussões judiciais, as quais, em matéria de falências e recuperações judiciais, funciona como meio de alavancagem processual na ilícita defesa de interesses não ligados aos fins dos procedimentos do sistema de insolvência. É imprescindível, nessa toada, que o tratamento dos processos de habilitações e divergências de crédito, que ocupam volume de relevo no cotidiano forense, tenha um olhar mais assertivo da comunidade jurídica, para melhor fluidez em sua tramitação e resolução de conflitos em tempo adequado e sem que o processo seja utilizado para acorbertar interesses divorciados das finalidades da recuperação judicial e da falência, ao prolongar discussões como forma de evitar o pagamento de créditos ou, ainda, como maneira de pressionar determinada parte, para conseguir melhor poder de negociação. __________ 1 No ano de 2022, a 01ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo promoveu a baixa de 6.754 processos, um número maior do que de distribuição de novos feitos, para o mesmo período, que ficou em 5.184 processos (números de janeiro a julho de 2022)
Introdução O direito das empresas em dificuldade tem por função responder ao risco inerente à atividade empresária. Inúmeros fatores econômicos, sociais, financeiros, jurídicos, sociais, dentre outros, podem levar o empresário (ou a sociedade empresária) ao enfrentamento de uma crise, de maior ou menor proporção. Diante de cada caso, o diagnóstico pode levar ao seu encerramento, com a falência, ou seu reerguimento, com a recuperação judicial ou extrajudicial. Entretanto, o manejo de tais institutos não acarretará, em regra, na incidência da desconsideração da personalidade jurídica, alcançando sócios e administradores, os quais não se confundem com a sociedade. I. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica Mesmo passados muitos anos da previsão legal dos institutos de responsabilização, verifica-se ainda certa dificuldade em diferenciar o instituto da responsabilização dos sócios (a) e administradores de uma sociedade empresária (b), da desconsideração da personalidade jurídica. Ainda que ambos tenham como objetivo final a responsabilidade patrimonial de determinados agentes, cada um possui técnicas e pressupostos legais distintos. A. Os mecanismos de responsabilização dos sócios e administradores Há mais de cem anos, o Código Civil de 1916, estabeleceu expressamente no direito brasileiro o princípio da autonomia patrimonial. De acordo com o art. 20 daquele diploma1, a pessoa jurídica possui existência distinta da de seus membros, sendo capaz de deveres e direitos próprios, ostentando responsabilidade patrimonial própria. Nesse sentido, Pontes de Miranda2 já lecionava que: Ser pessoa é ser capaz de direitos e deveres. Ser pessoa jurídica é ser capaz de direitos e deveres, separadamente; isto é, distinguidos o seu patrimônio e os patrimônios dos que a compõe, ou dirigem. A previsão de autonomia patrimonial da pessoa jurídica foi um grande avanço para a atratividade dos investimentos, com a alocação de risco previsível. O sócio passou a ter noção perfeita do limite do risco do seu investimento, sabedor de que o máximo de perda (valor investido) é delimitado. Mesmo um século após o advento do Código Civil de 1916, e quase duas décadas da vigência no Código Civil de 2002, ainda foi necessária nova intervenção legislativa para explicitar o comando de 1916, o que se verificou com o novo art. 49-A do Código Civil, surgido com a Lei de Liberdade Econômica3. Assim, a sociedade é uma pessoa jurídica de direito privado e possui personalidade jurídica própria, com aptidão para responder pelos atos que pratica, diretamente com o seu patrimônio; preceito secular, mas de tão difícil compreensão prática, como já defendemos4: A pessoa jurídica é, assim, um instrumento indispensável para os incentivos empresariais dos agentes econômicos, dado que a sua criação proporcionou a limitação das eventuais perdas dos seus fundadores e a aglutinação de recursos dos sócios, permitindo a constituição de diversas sociedades que, se não fosse por sua criação jurídica (ficção jurídica), não existiriam. Em decorrência de seu significativo papel de incentivo aos agentes econômicos, a recente reforma da lei 11.101/05, pela lei 14.112/20, também reiterou o postulado da autonomia patrimonial, como se depreende do seu art. 6º-C: Art. 6º-C. É vedada atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reguladas por esta lei. Nesse contexto, a sociedade é uma ficção jurídica, com existência limitada ao plano meramente jurídico, mas com personalidade, patrimônio e vontade distintas das dos sócios. Quanto à formação e manifestação de vontade das sociedades, nos sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, adotou-se, comumente, a teoria organicista, em oposição à teoria da representação5. Assim, entende-se que a sociedade, por ser desprovida materialmente de meios próprios para manifestar sua vontade e realizar negócios jurídicos válidos de maneira autônoma, vale-se dos seus diversos órgãos para tanto. Estes podem ser divididos em órgãos de deliberação - assembleia geral, no caso das sociedades anônimas, conforme o art. 121 da lei 6.404/766; ou reunião de sócios, no caso das sociedades limitadas, na forma do art. 1.072 do Código Civil7 -, de controle (conselho fiscal) ou de execução (administração, direção) sendo certo que o administrador ou diretor apenas expressa a vontade da sociedade e não a sua própria, executando e pondo em prática aquilo que foi deliberado no órgão próprio de deliberação social da pessoa jurídica, desde que instaurados de acordo com as previsões legais e estatutárias aplicáveis. Nem sempre, entretanto, estes gestores atuam de acordo com os deveres e limites impostos pela lei e pelo objeto social. Podem atuar orientados por interesses diversos do interesse social, em benefício próprio, de terceiros ou mesmo de maneira contrária à lei. Desta forma, uma vez comprovada a extrapolação dos objetivos da sociedade ou a prática de atos abusivos por parte dos administradores, estes respondem pessoalmente pelos prejuízos causados. Contudo, não se quer dizer que estamos diante do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. A responsabilidade do administrador de sociedades anônimas está indicada no art. 158 da lei 6.404/76: Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;II - com violação da lei ou do estatuto. No mesmo sentido, o art. 1.016 do Código Civil determina que os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções. Há ainda a possibilidade de aplicação supletiva das regras previstas na lei 6.404/76 às sociedades limitadas, na forma do parágrafo único do art. 1.053 do Código Civil, hipótese em que se autoriza a aplicação do já citado art. 158 daquele diploma para fins de responsabilização dos administradores pelo descumprimento de seus deveres. Essas são as matrizes da responsabilidade dos administradores de sociedades empresárias. Por outro lado, não se pode olvidar que, em determinados casos, prejuízos causados por condutas dos administradores estão abrangidos pelo próprio risco da atividade empresarial. A título de exemplo, o art. 159 da lei 6.404/76 prevê a possibilidade de exclusão da responsabilidade do administrador nos casos em que se comprove que agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia. Trata-se de regra inspirada na denominada teoria da Business Judgement Rule, criada no direito norte-americano com o objetivo de orientar a análise da regularidade das decisões tomadas pelos administradores de sociedades anônimas, visando diferenciar uma decisão de gestão equivocada de eventuais abusos. A diretriz determina que o administrador não será responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de determinada medida quando, agindo de boa-fé, tenha tomado a decisão de forma refletida, fundamentada e informada8. Depreende-se, portanto, que a análise da responsabilização dos administradores não se confunde com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do Código Civil. Da mesma maneira, a lei prevê a possibilidade de responsabilização dos sócios controladores pelos prejuízos causados à sociedade e a terceiros, desde que presentes determinados pressupostos. Quando detentores de participação suficiente para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia - o que a lei denomina de poder de controle - podem ser responsabilizados em caso de abuso de poder, na forma do art. 117 da lei 6.404/769, aplicável subsidiariamente às sociedades regulamentadas pelo Código Civil. O regramento de conduta do acionista ou sócio controlador está prevista no art. 116, parágrafo único, da lei 6.404/76, norma que reflete a necessidade de proteção do denominado tríplice interesse transindividual societário10, ao dispor que a companhia deve atender aos direitos e interesses (i) do capital; (ii) do trabalho e (iii) da sociedade: Art. 116. P.ú. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Assim, o abuso do poder de controle não é causa para a desconsideração da personalidade jurídica, mas de responsabilização do sócio controlador. O enunciado 48 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal bem exprime a assertiva, diferenciando a apuração da responsabilidade dos sócios, controladores e administradores da desconsideração da personalidade jurídica11: A apuração da responsabilidade pessoal dos sócios, controladores e administradores feita independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, prevista no art. 82 da Lei n. 11.101/2005, não se refere aos casos de desconsideração da personalidade jurídica. Diante do caso concreto, deve ser verificado se  a hipótese é de abuso de poder de controle, na forma prevista na lei 6.404/76, ou de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, com base no art. 50 do Código Civil, por se tratar de institutos diversos e com seus próprios requisitos legais. Leia a íntegra do artigo.  _____ 1 Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros. 2 Como tivemos a oportunidade de escrever: "Os dispositivos do Código Comercial (1850) referentes às sociedades davam margem à dúvida sobre a consideração da personalidade jurídica, ao asseverar que dentre os sócios, ao menos um deveria ser comerciante, nos termos dos artigos 311; 315 e 317. Em 1916, o Código Civil dirimiu qualquer controvérsia ao indicar o nascimento da personalidade jurídica (artigo 18), bem como ao asseverar que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros (artigo 20). O mesmo caminho foi percorrido pelo Novo Código Civil, nos artigos 45 e 985." GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos Modernos da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: Revista da EMERJ. V. 7. N. 25. Rio de Janeiro: EMERJ, 2004, p. 231. 3 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 288. 4 Art. 49-A A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. 5 GUIMARÃES, Márcio Souza. Redirecionamento da execução fiscal: novos contornos da jurisprudência. In: ARAÚJO FILHO, Raul; MARCONI, Cid e ASFOR ROCHA, Tiago. (coord.) Temas Atuais e Polêmicos na JUSTIÇA FEDERAL. Editora JusPodivm, 2018, p. 2. 6 Assim esclarece José Edwaldo Tavares Borba: "Os órgãos administrativos são os que dão vida à sociedade, fazendo-a funcionar. São dois esses órgãos: o conselho de administração e a diretoria. (...). Os administradores têm vários deveres para com a sociedade, podendo-se afirmar que o primeiro de todos esses deveres é o de bem administrá-la; deve o administrador agir com a competência, eficiência e honestidade que seriam de esperar de um homem 'ativo e probo' que estivesse a cuidar de seu próprio negócio." BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 307-405. Corroborando a teoria organicista, o TJSP já decidiu que "a agravante é sociedade empresária, constituída como sociedade anônima, que não tem representante legal, mas sim, presentante legal, na correta terminologia de Pontes de Miranda. A sociedade se faz presente na Assembleia de Credores e em qualquer outro ato ou negócio jurídico por seus diretores ou administradores, observada a aplicação da teoria organicista e não a teoria da representação." Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.  Seção de Direito Privado. Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais. Agravo de Instrumento 429.581.4/3-00. Relator: Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças. Data do Julgamento: 15.03.2006. p. 5. 7 Art. 121. A assembleia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento. 8 Art. 1.072. As deliberações dos sócios, obedecido o disposto no art. 1.010, serão tomadas em reunião ou em assembleia, conforme previsto no contrato social, devendo ser convocadas pelos administradores nos casos previstos em lei ou no contrato. 9 Sobre o tema, Alfredo de Assis Gonçalves Neto assevera que: "Por isso, na determinação da culpa, em qualquer de suas manifestações (in elegendo, in vigilando, por imprudência, negligência ou imperícia), com ou sem dolo, é preciso muita cautela para não inviabilizar o exercício dessa nobre profissão. É indispensável, na verificação da conduta do administrador, analisar sua postura profissional no cumprimento das suas obrigações, comparando-a com aquela que outra pessoa em igual posição normalmente faria se estivesse em seu lugar." NETO, Alfredo de Assis Gonçalves. Direito de Empresa - Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 262-263. No mesmo sentido, Nelson Eizirik esclarece que: "Como o dever de diligência não possui um conteúdo delimitado e não está codificado de maneira uniforme, foi desenvolvida, nos Estados Unidos, a partir do julgamento de ações de responsabilidade contra administradores, a chamada business judgement rule, para verificar se estes cumpriram o duty of care. A business judgement rule constitui um standard of judicial review, isto é, corporifica uma regra de controle judiciário sobre as decisões dos administradores, estabelecendo a presunção de que estes agiram de forma independente e desinteressada, com conhecimento e informações adequados, com boa-fé e acreditando que seus atos visaram a atender aos melhores interesses da companhia." EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B; PARENTE, Flávia e HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais - Regime Jurídico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2019. P, 567-581. 10 Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. 11 SOUZA GUIMARÃES, Márcio. O Controle Difuso das Sociedades Anônimas pelo Ministério Público. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 22. 12 No mesmo sentido, o STJ bem delineou a distinção entre estes institutos: "Não há como confundir a ação de responsabilidade dos sócios e administradores da sociedade falida (art. 6º do decreto-lei 7.661/45 e art. 82 da lei 11.101/05) com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa. Na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente identificável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres de sócio/administrador, ao passo que na segunda, supera-se a personalidade jurídica sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente para evidenciá-la como verdadeira beneficiária dos atos fraudulentos. Ou seja, a ação de responsabilização societária, em regra, é medida que visa ao ressarcimento da sociedade por atos próprios dos sócios/administradores, ao passo que a desconsideração visa ao ressarcimento de credores por atos da sociedade, em benefício da pessoa oculta". STJ. 4ª turma. REsp 1.180.191 - RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Data do Julgamento: 05.04.2011. DJe: 09.06.2011. p. 2. 
terça-feira, 12 de julho de 2022

A hora e a vez da SAF

Introdução  Estamos em um momento de profundas transformações na insolvência brasileira. Não à toa, Thomas Felsberg me chamou de lado na semana passada e, em mais uma das suas profecias, cravou direto ao gol: nosso tradicional departamento de insolvência agora passa a ser o departamento de Transformação, Reestruturação e Insolvência. A profecia é a tradução inteligente em palavras de algo que vimos observando há mais de dois anos. A evolução da jurisprudência e a reforma da lei de insolvência promovida pela lei 14.112/20 ("LRF") alteraram o pêndulo entre devedores e credores, privilegiando os últimos, e trouxeram maior segurança jurídica aos investidores. Grandes beneficiados pela última reforma da LRF, que almeja a manutenção ou reinserção eficiente de ativos na economia, os investidores vêm tomando confiança para desbravar o mercado de distressed, até então incipiente no Brasil. Isso se dá especialmente porque: (i) agora a cessão ou promessa de cessão de crédito tem que ser comunicada nos autos da recuperação judicial (§7º art. 39 LRF), garantindo maior transparência às transações nesse ambiente; (ii) há norma expressa na lei garantindo que os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação (§3º, art. 83); (iii) não haverá sucessão do investidor ou novo administrador em decorrência da conversão de dívida em capital, aporte de novos recursos ou substituição dos administradores atuais dos devedores (§3º art. 50 LRF); (iv) as regras sobre as UPIs e a não sucessão do adquirente desses ativos estão mais claras e contundentes (arts. 60, 60-A, 142 LRF); (v) o financiamento a empresas em recuperação ("DIP") está mais seguro e garante privilégios e proteção eficiente ao financiador (art. 69 A-F). O resultado é que nunca se viu tantas operações estruturadas de alta complexidade em casos de insolvência. Na crise surgem as oportunidades. Credores vêm promovendo leilões regulares de seus créditos no mercado; fundos investidores se aproveitam do momento para investir em operações com alta rentabilidade e um risco (agora) controlado para quem souber dançar conforme a música. DIPs, apresentação de plano alternativo pelos credores, capitalização de créditos na devedora e implementação de nova gestão são alguns exemplos recentes deste território recém desbravado. Nesse contexto de transformações surge a SAF, por meio da lei 14.193 de agosto de 2021 ("Lei da SAF"), que promete revolucionar o meio futebolístico no curto prazo, ao criar a sociedade anônima do futebol, que aproveita diversos conceitos já testados pela LRF. Como se verá, a SAF trouxe um ambiente mais favorável aos negócios para o futebol brasileiro, ao segregar as atividades relacionadas ao futebol para uma nova estrutura, sem contaminação imediata com as dívidas atuais do clube. Essa nova estrutura necessariamente tem um sistema de governança exigido por lei, gestão profissionalizada e mecanismos societários que garantem transparência e segurança jurídica para atrair investimentos na área. Implementa, ainda, regimes fiscais mais benéficos aos clubes e abre novas possibilidades de reestruturação das dívidas. O momento é mais do que pertinente. Tradicionalmente os clubes de futebol pedalam para equilibrar suas contas. Com a pandemia, a crise se aprofundou a níveis alarmantes, impactando-os profundamente. No mundo polarizado de hoje, a torcida se divide de forma acirrada: alguns sedentos pela SAF, que traria uma mudança de patamar do futebol brasileiro com a entrada de recursos para investimento; outros avessos a ouvir a respeito, já que a SAF representaria a redenção do amado clube associativo, onde os torcedores associados têm voz e voto, às forças do capital. Fato é que, aos poucos, alguns clubes vêm aderindo à SAF e buscando a reestruturação de suas dívidas. No meio desse fla-flu, muitos investidores ainda observam desconfiados. Por enquanto. A tendência é que a SAF se consagre. E isso por um simples motivo: ela funciona bem. Apesar de alguns pontos de atenção na lei, que mereceriam ajustes, muitos dos seus conceitos estão alinhados com a LRF e com a jurisprudência dos tribunais.      De toda forma, com base nessas novas regras, é possível adotar uma série de soluções estruturantes que conciliem os interesses de parte a parte, tornem a atividade lucrativa, e ainda tragam benefícios sensíveis ao esporte e ao espectador. Mas é necessário achar o equilíbrio ótimo. Como a Lei da SAF importou diversos conceitos da LRF e inclusive abriu as portas para os clubes entrarem com pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial, é imprescindível que esses dois mundos - futebol e reestruturação - unam suas forças para gerar negócios que atinjam esses objetivos. Mas, afinal, o que é a SAF?  No Brasil, tradicionalmente a atividade futebolística é explorada por meio dos clubes, que podem ser estruturados tanto sob a forma de sociedades mercantis quanto de associações civis, modelo que prevalece na grande maioria deles. Com a promulgação da Lei 14.193/2021, agora o esporte poderá também ser explorado por meio da Sociedade Anônima do Futebol ("SAF").     O objeto social da SAF é o desenvolvimento da atividade relacionada ao futebol; a formação de atletas e a obtenção de receitas decorrentes das transações de seus direitos desportivos; a exploração de direitos de propriedade intelectual do clube; outras atividades conexas ao futebol (participação em sociedades, organização de eventos)1. A SAF poderá ser constituída de três formas: pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original, com o drop down de ativos relacionados à atividade futebol para essa nova estrutura; e pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento. Especificamente no que tange à constituição da SAF via drop down de ativos, que mais se assemelha ao conceito de constituição de uma unidade produtiva isolada ("UPI") numa recuperação judicial, as atividades relacionadas ao futebol desenvolvidas pelos clubes são segregadas e cedidas para a SAF, que passa a deter os direitos e obrigações decorrentes dessas atividades. São, assim, obrigatoriamente transferidos à SAF todo esse conjunto de ativos, inclusive contratos de trabalho, contratos de direito imagem e uso, direitos e deveres relacionados a competições. Poderão ainda ser transferidos imóveis (instalações desportivas), móveis e outros tipos de ativo relacionados à atividade. Em troca, o clube receberá da SAF 20% da sua receita corrente líquida obtida com a exploração dos ativos, e ainda 10% ou mais das ações ordinárias da SAF (o clube ou pessoa jurídica original poderá integralizar a sua parcela ao capital social na SAF por meio da transferência dos seus ativos a ela). Como acionista, o clube terá alguns direitos especiais, como o direito de veto sobre as seguintes matérias sensíveis: (i) alteração da denominação; (ii) modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional; (iii) mudança da sede para outro Município. Enquanto o clube mantiver participação de ao menos 10% do capital social votante ou total, também terá direito de veto sobre (iv) alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de bens imobiliários ou direito de propriedade intelectual; (v) atos de reorganização societária; (vi) dissolução, liquidação e extinção; (vii) participação em ligas de clubes. Como já antecipado, obrigatoriamente a SAF terá uma estrutura de governança mínima constituída por Conselho de Administração, Conselho Fiscal, e diretores com dedicação exclusiva. Em mais uma similaridade com a UPI na recuperação judicial, a SAF não responde pelas obrigações e dívidas dos clubes anteriores ou posteriores à sua constituição, desde que cumpra suas obrigações financeiras para com os clubes. Ou seja, o clube permanecerá responsável pelas dívidas atuais, e deverá quitá-las com a destinação dos 20% das receitas mensais que receberá da SAF, ou 50% dos dividendos ou outras remunerações na condição de acionista da SAF, se optar por reestruturá-las por meio do RCE (vide abaixo). Caso opte por outras formas de quitação da dívida, em princípio essa remuneração poderá ser livremente utilizada pelo clube. Desde que a SAF cumpra com essas obrigações de pagamento perante o clube, seu patrimônio estará livre de qualquer sucessão nas dívidas preexistentes. Ressalte-se, no entanto, que a SAF poderá responder subsidiariamente pelas dívidas do clube, se este se tornar inadimplente com suas obrigações perante os credores. Este ponto, portanto, é extremamente sensível aos investidores, que idealmente deverão já estipular nos contratos de investimento com o clube a forma com que este deverá quitar seus credores, o que deve ser uma condição suspensiva ou resolutiva do negócio. De toda forma, essa nova estrutura promete proteger os interesses do investidor que, seguindo os termos da lei, em princípio encontrará um ambiente seguro para aportar recursos via equity ou dívida numa estrutura societária que protege o ativo futebolístico das dívidas anteriores, contraídas pelos clubes. Sob este regime, o investidor poderá receber dividendos, se a SAF der lucros, e participar efetivamente da gestão do negócio. Formas de Reestruturação do Endividamento dos Clubes  A Lei da SAF dá duas opções ao clube para reestruturar suas dívidas com a coletividade de credores: o Regime Centralizado de Execuções, ou a recuperação judicial ou extrajudicial, previstas na LRF. Essas opções, claro, não são taxativas, já que estamos no campo dos direitos disponíveis e passíveis de transação entre as partes.    Regime Centralizado de Execuções (RCE) Concentração das dívidas Por meio do RCE, todas as dívidas trabalhistas e cíveis dos clubes objeto de execução judicial serão concentradas num juízo centralizador, que será responsável por arrecadar os ativos e receitas e distribui-las entre os credores, organizando os pagamentos de forma alongada, segundo os critérios estabelecidos em lei. O clube terá o prazo inicial de 6 (seis) anos para pagamento da dívida e, se tiver pago pelo menos 60% das dívidas nesse período, poderá ter uma extensão de mais 4 (quatro) anos para sua quitação. A dívida é corrigida pela taxa SELIC durante o período. Embora não esteja clara a possibilidade de se impor um deságio coletivo aos credores sujeitos ao RCE2, a lei dispõe que o clube poderá realizar a negociação coletiva ou individual com seus credores para pagamento das dívidas. E credores que concordarem com a redução de pelo menos 30% do valor de face dos seus créditos poderão receber seus créditos de forma privilegiada. A lei infelizmente não regula a forma de aprovação de eventual acordo coletivo, nem prevê quórum de aprovação específico no RCE para que uma maioria de credores possa concordar com um possível deságio ou outra forma de pagamento dos seus créditos, diferente da originalmente contratada (prazos, valores, alterações nas ordens de prioridade, fontes de pagamento etc). Isso pode gerar questionamentos aos intérpretes da lei. Por exemplo, pode o clube impor deságio aos credores sem a anuência da unanimidade? Ou ainda, poderá estabelecer logo no início do RCE as regras para um acordo coletivo perante o juízo competente, estabelecendo quorum de aprovação para medidas de reestruturação/pagamento, desde que seja dada ciência e oportunidade de manifestação aos credores? Há bons argumentos para ambos os lados, mas particularmente não vejo óbice aos clubes e aos credores, sob a supervisão do juiz, estabelecerem a priori um mecanismo de aprovação de acordos coletivos, com o intuito de privilegiar a decisão de uma maioria. A jurisprudência deverá se encarregar do assunto.      Enquanto os pagamentos estiverem sendo cumpridos, é proibida a penhora ou qualquer constrição de bens do clube, num stay period similar ao que se observa na recuperação judicial e extrajudicial, só que de 10 anos (ao invés dos 180 dias prorrogáveis por mais 180 previstos na LRF). Essencial lembrar que se o clube não pagar a dívida nesse prazo, a SAF responderá subsidiariamente pelo pagamento das dívidas. Recuperação Judicial e Extrajudicial  Sem pretender entrar nos detalhes da recuperação judicial e extrajudicial, basta-nos relembrar que ambas as medidas têm por objetivo reorganizar a atividade empresarial e reestruturar as dívidas da empresa devedora, por meio de um plano de recuperação que vincula credores dissidentes. O plano de pagamento em ambos os procedimentos precisa ser aprovado por uma maioria dos credores, e depois homologado pelo juiz. Sabidamente, e como já introduzido neste artigo, hoje tanto a LRF quanto a jurisprudência caminharam para um ambiente de maior proteção, previsibilidade e segurança jurídica para os investidores. Logo, a recuperação judicial ou extrajudicial pode representar inúmeras vantagens, se comparadas ao RCE. Em primeiro lugar, a certeira aplicação da regra da maioria, obedecidos os quóruns específicos de cada procedimento, permitindo a adoção de amplas medidas de reestruturação (como aplicação de deságio, conversão de dívida em capital, financiamentos DIP, constituição de UPI, venda do CNPJ) sem que uma minoria insatisfeita possa impedi-las. Some-se a isso as regras protetivas ao investidor na compra de ativos, na aquisição de créditos na recuperação, no financiamento DIP, na conversão de créditos em capital. Nestes casos, a lei lhes garante a superprioridade de recebimento em caso de falência do devedor, a imutabilidade das garantias e do negócio com o desembolso dos recursos, e ainda a não contaminação dos credores e investidores nas dívidas do devedor, conforme aplicável.  Soluções Estruturantes  Fato é que ambas as alternativas para equacionamento da dívida dos clubes - RCE e recuperação judicial/extrajudicial - não são excludentes entre si. As duas, em conjunto ou sucessivamente, poderiam ser adotadas, ou ainda outras. Afinal, como a própria lei reforça, o direito de crédito das partes envolvidas é disponível, podendo o credor anuir, "a seu critério exclusivo", a deságio sobre o valor do crédito (art. 21 da Lei da SAF). Se pode anuir com o deságio, poderá também anuir com outras medidas de reestruturação.  A Lei da SAF, nesse sentido, veio para ajudar. Não só traz algumas formas de reestruturação do passivo dos clubes, como também melhora o ambiente de investimentos. E, ao absorver diversas inspirações da LRF, a Lei da SAF já nasce com certa segurança jurídica. Sabemos que a blindagem da SAF perante as dívidas dos clubes tem boas chances de funcionar, já que inspirada na UPI da recuperação judicial. A proteção dos credores que optarem por converter seus créditos em participação acionária na SAF também parece reforçada pela LRF e a jurisprudência. Portanto, nesse cenário de transformação, a criatividade deve imperar. Abre-se um caminho para a adoção de uma série de medidas conjugadas para a reestruturação saldável do clube e estabelecimento de uma atividade lucrativa. Por exemplo, com a possibilidade de cessão dos créditos no âmbito RCE (art. 22 da Lei da SAF), investidores poderiam adquirir créditos suficientes para em seguida participar de uma solução mais ampla de reestruturação do clube e da atividade futebolística, coordenada em conjunto com o clube e/ou SAF. Entram na mesa opções como a apresentação de um plano de RJ contemplando a conversão de créditos em capital na SAF, e a sub-rogação da SAF como credora do clube, ou a emissão de títulos de dívida pela SAF, ou ainda um DIP ao clube com garantia da SAF. A lei ainda prevê a possibilidade de emissão de debentures-fut para pagamento de parte da dívida do clube, tendo como garantia de pagamento as receitas a serem obtidas da SAF com a exploração das atividades. Nesse ponto, não há dúvida de que tivemos progresso palpável com a Lei da SAF. E o momento de investir nessas soluções é propício.   Conclusão  A Lei da SAF é mais um elemento que reforça o período de profunda transformação que estamos vivendo. Há, sem dúvida, um grande incentivo nas novas normas para profissionalizar o futebol brasileiro, numa estrutura mais amigável ao mercado, com governança própria e transparência. Isso ajuda a fomentar os negócios e permite melhor circulação de riquezas e investimentos no setor. Nessa toada, a lei incentiva a adoção de soluções criativas e combinadas, alinhadas entre as principais partes envolvidas: credores, investidores, SAF e clube. Para atingir e maximizar esses resultados, na esteira do que ocorre no ambiente da LRF, há um estímulo ao consenso e à autocomposição entre as partes, o que traz à tona um complexo trabalho transacional por detrás com a implementação de possíveis soluções estruturadas que redimensionem a dívida do clube à sua capacidade financeira, e ao mesmo tempo permitam o desenvolvimento de uma atividade que proporcione lucro aos acionistas/investidores. Nesse ambiente, é essencial que as partes cheguem num alinhamento prévio e amplo sobre as premissas básicas do negócio, que podem inclusive envolver temas sensíveis como percentuais de reinventimento mínimo na SAF, eventuais limites à distribuição de dividendos e outros limites ponderáveis que atendam aos anseios do clube, dos torcedores e investidores. Afinal, já restou demonstrado que, nesse jogo, o consenso é mais valioso que qualquer radicalidade.    Bibliografia  CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de. Coordenador. Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol. 1ª Ed. São Paulo: Quartier Latin, 2021.  PEDRO, Paulo Roberto Bastos. A Recuperação dos Clubes de Futebol. In Lei de Recuperação e Falência. Coordenação  Paulo Furtado de Oliveira Filho. 1ª Ed. São Paulo: Foco, 2022. __________ 1 Art. 1º, §2º, da Lei da SAF.   2 A questão é que o artigo 21 da Lei da SAF diz que o credor poderá anuir, "a seu critério exclusivo", a deságio sobre o valor do débito, o que pode levar à interpretação de que a aprovação do deságio é sempre individual, não havendo meio de sujeitar o credor dissidente.
A execução fiscal e a falência têm em comum o fato de constituírem formas de execução, a primeira de índole individual, a ser proposta pelo credor fiscal, e a segunda, verdadeira execução concursal à qual concorrem os credores do devedor comum. Cada uma dessas espécies de processo tem regras próprias que lhes delimitam a competência, o objetivo precípuo e a forma de proceder, que se voltam, em última análise, à satisfação do crédito de forma individual, na primeira, e coletiva ou mais propriamente concursal, na segunda. Como todo e qualquer processo, ambas as formas de execução têm que ser aparelhadas com instrumentos hábeis ao exercício dos direitos de ação e de ampla defesa, para que possam levar à efetividade dos direitos. A lei das execuções fiscais (lei 6.830/80), em seu art. 5º, estabelece que: "A competência para processar e julgar a execução da dívida ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário". Mesmo antes da reforma da lei falimentar, implementada pela lei 14.112/20, não obstante desvinculada a execução fiscal do juízo universal, não poderia prosseguir normalmente até a satisfação da Fazenda Pública, sob pena de afrontar as regras referentes à preferência dos créditos, pelo que eventuais valores auferidos  naquele juízo deveriam ser entregues ao juízo da falência1; agora, pelo que dispõe a lei falimentar, "as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis" (art.7º-A, §4º, inciso V, da lei 11.101/05). De forma clara e direta, o inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, dispõe que: "a decisão sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, observado o disposto no inciso II do caput do art. 9º desta Lei e as demais regras do processo de falência, bem como sobre o eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis, competirá ao juízo da execução fiscal". A prescrição e decadência2 são matérias relacionadas à exigibilidade dos créditos e que, portanto, pelo novo texto, não mais deveriam ser apreciadas pelo juízo da falência a teor do que consta do mencionado inciso. Até então, não havia qualquer dispositivo que tratasse especificamente da competência para dirimir questões relacionadas à prescrição ou decadência do crédito fiscal ou de outras espécies de créditos submetidos à falência antes das alterações trazidas pela lei 14.112/20; por sua vez, a jurisprudência era unânime no sentido de reconhecer a competência do juízo falimentar para apreciar essas matérias, inclusive, em relação ao crédito tributário3. E esse posicionamento jurisprudencial estava consonância com as disposições da Constituição, porque, por exemplo, com relação à competência da Justiça Federal e das execuções fiscais no geral, a própria lei Maior (art.109, inciso I) determina que compete aos juízes federais processar e julgar "as causas de interesses da União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho" (grifei) e também não há outro dispositivo constitucional que discipline a competência dos juízos das execuções fiscais de modo a implicar limitação à competência do juízo da quebra. Assim, as questões relativas à matéria falimentar no geral, mormente a verificação dos créditos e demais atos atinentes à apuração do ativo e pagamento do passivo da massa falida não competem à Justiça Federal ou aos juízos estaduais das execuções fiscais, ainda que se trate de créditos tributários, como também não se pode dizer que a nova regra do inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, corresponde a qualquer determinação constitucional. Assim, com a introdução do mencionado dispositivo, é preciso indagar sobre a sua aplicabilidade aos créditos fiscais para os quais se pretende a habilitação na falência da devedora e, diga-se, a aplicabilidade de norma em vigor somente pode ser excepcionada diante de sua inconstitucionalidade, quando contraria princípios e garantias previstos na Constituição, ou no caso de conflito com outras regras do ordenamento, situação que leva a não aplicação da regra incoerente com o sistema, porque contradiz a finalidade, os objetivos, de determinado conjunto de normas. Nesse sentido, impende indagar logo de início se a norma contida no mencionado inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, destoa do princípio da igualdade dos credores na falência. Veja-se que a lei determina que o credor, ao proceder a habilitação, deve indicar "...o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação" (inciso II, do artigo 9º, da lei 11.101/05). Contudo, essa regra é contrariada pelo novo dispositivo (art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF), pelo qual a higidez do crédito sequer teria que ser comprovada pelo credor fiscal no juízo em que tramita a falência da devedora, levando não somente ao conflito de regras como veremos, mas, ainda, conduzindo à verdadeira violação do tratamento isonômico, destoando injustificavelmente do que é determinado aos demais credores da falência. Por coerência, conclui-se que a referida regra privilegia o credor fiscal, tratando-o diferentemente dos demais, que têm que comprovar a exigibilidade dos seus créditos, violando o princípio da igualdade dos credores, que, em última análise, deriva do princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, da CF/88). O dispositivo trazido com a reforma fere também o princípio da ampla defesa conferido às partes do processo de falência, consoante previsto na Constituição Federal, conforme disposto no art. 5º, LV, da CF/88. Com efeito, o art. 8º da lei 11.101/05 dispõe que: "...o Comitê, qualquer credor, o devedor ou seus sócios ou o Ministério Público podem apresentar ao juiz impugnação contra a relação de credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimidade, importância ou classificação de crédito relacionado". Considere-se, desta maneira, que os demais credores que concorrem na falência podem ter legítimo interesse em se opor à pretensão do fisco quanto à questão da exigibilidade do crédito fiscal na falência. Na execução fiscal, dado seu caráter individual, figuram como partes apenas o credor fazendário, a devedora e eventuais corresponsáveis; nesse processo, os demais credores da falência não estarão no cenário da execução concursal, podendo ser questionada a legitimidade da defesa de seus interesses, para que possam se insurgir contra a higidez do crédito fiscal nessa seara, fechando-lhes a via de impugnação, negando-lhes a ampla defesa4. Algumas normas, instituídas em benefício ou para regular o direito de ação (como é o caso daquelas que, dentre outras, regulam a competência), como advertem Marinoni, Arenhart e Mitidiero, "...inegavelmente limitam o direito de defesa. Essas normas, embora possam afetar uma posição jurídica situada no âmbito de proteção do direito fundamental, não podem violar o seu núcleo fundamental"5 e é exatamente isso o que ocorre com o dispositivo aqui abordado, que obsta a defesa dos interesses dos credores concursais, por submeter a questão de higidez do crédito fazendário somente ao juízo da execução individual. Some-se ainda o prejuízo à razoável duração do processo que causaria a aplicação da nova regra, levando toda a discussão sobre a higidez do crédito tributário para outro juízo, que mormente não caminha no mesmo compasso que o juízo falimentar e pode até estar localizado em outro foro, dificultando sobremaneira o rápido desenvolvimento da defesa dos interesses da massa, isso sem falar naqueles casos em que não houver sido ajuizada a respectiva execução fiscal, obrigando o administrador judicial à propositura de específica ação para ver declarada a prescrição ou a decadência do crédito fiscal. Pondere-se que a razoável duração do processo6 é garantia prevista em sede constitucional (art. 5º, LXXVIII)7 e que deve ser sopesada juntamente com a eficiência, os custos do processo, as consequências negativas do congestionamento judicial e, principalmente, os prejuízos causados ao devedor e aos credores pela demora da solução à crise da empresa. A aplicação do referido dispositivo do art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF, portanto, cria situação excepcional que não se aplica aos demais credores, instituindo privilégio que não se justifica diante da par conditio creditorum, burlando a análise sobre a exigibilidade do crédito no processo de falência, que é absolutamente essencial à natureza concursal desse procedimento, ferindo os princípios da isonomia, da ampla defesa e da razoável duração do processo, previstos na Constituição. Tomemos em conta que a natureza, a função e o conteúdo jurídico, formal e material dos princípios, sejam eles expressos ou implícitos, demonstram os valores hermenêuticos superiores construídos pela sociedade, ínsitos na estrutura e na unidade do sistema jurídico, constituindo suas normas fundamentais8. Além de inconstitucional, a mencionada regra contraria frontalmente outras regras da lei falimentar. E, nesse sentido, é preciso dizer que, a partir do momento em que o devedor tem a quebra decretada, forma-se o juízo universal da falência, responsável pela deliberação acerca de todos os créditos e demais discussões atreladas à massa falida, incluindo-se aí possíveis digressões sobre o tema da exigibilidade, com a verificação da decadência ou prescrição dos créditos. A limitação de recursos na falência é evidente e leva, na grande maioria das situações, à necessidade de se recorrer ao rateio dos limitados ativos realizados e, nesse contexto, o inciso I do art. 5º da LRF dispõe que são inexigíveis ao devedor, na recuperação judicial ou na falência, as obrigações a título gratuito. Observar o disposto na regra contida no art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF, fatalmente implicará o reconhecimento do direito de compor o quadro geral de credores da falência com créditos que podem ter perdido a exigibilidade, seja pela prescrição ou pela decadência, o que corresponde ao cumprimento de obrigações a título gratuito. Nessa hipótese, há evidente contradição do disposto no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF, com o disposto no art. 5º, inciso I, da mesma lei. Lembremos que conflito entre regras fatalmente leva à necessidade de não aplicação de uma delas e, no presente caso, há que se eleger aquela que se amolda perfeitamente ao sistema concursal criado pela lei 11.101/05, que certamente não será a norma disposta no art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF. A alternativa para evitar o pagamento desses créditos indevidos seria a suspenção das habilitações de créditos impugnados com fundamento na eventual prescrição ou decadência, para a discussão na seara da execução fiscal, se ajuizada, ou em ação própria, se não ajuizada, o que, como abordado, comprometeria a razoável duração do processo e a ampla defesa dos interesses pelos demais credores da massa. Em suma, as questões atinentes à prescrição ou à decadência são matérias de ordem pública e podem ser alegadas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, não havendo qualquer tipo de restrição quanto ao reconhecimento desta matéria pelo juízo que seja competente para o processo de falência da devedora, parecendo-nos inaplicável o disposto no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF, seja pela evidente inconstitucionalidade, seja pela incongruência com outras disposições da lei falimentar. No contexto de toda essa discussão, nos poucos casos que chegaram aos nossos tribunais após a última reforma da lei falimentar, ainda longe de se encontrar posição pacífica, tem se mostrado dividida a jurisprudência, ora reconhecendo a aplicabilidade da regra contida no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF9, ora reconhecendo que o juízo da quebra continua competente para pronunciar a prescrição ou decadência do crédito tributário submetido ao processo de falência10. Aguardemos, então, a evolução da doutrina e a posição dos nossos tribunais sobre essa relevante questão, até mesmo porque se refere à competência absoluta, instituída em razão da matéria, constituindo questão fundamental e de suma importância para o concurso de credores. _____ 1 Cf. THEODORO JUNIOR, Humberto. Lei de Execução Fiscal. Comentários e Jurisprudência. 12ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2011, pp.94-95; ALVES, Renato de Oliveira. EXECUÇÃO FISCAL. Comentários à Lei 6.830/80. 1ª edição. Belo Horizonte: Del Rey. 2008, p.44. 2 O desenvolvimento das relações jurídicas, consoante aponta a doutrina, "não se põe imune aos efeitos inexoráveis do tempo. O pensamento jurídico concebe, assim, institutos que, vinculados a um certo intervalo temporal, criam, modificam ou extinguem direitos para os sujeitos do negócio jurídico, em nome de um elemento axiológico de maior relevo, qual seja, a segurança jurídica (cf. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 12ª edição. São Paulo: Saraiva. 2020, pp.995-996). 3 Nesse sentido: TJSP - Ap 1005334-92.2000.8.26.0100, Rel. Fábio Podestá, j: 22/8/16, 5ª câmara de Direito Privado, DJe: 22/8/16; TJ/SP Apelação 0073102-95.2013.8.26.0100   Rel. Des.  J.L. Mônaco da Silva. Comarca:  São Paulo Órgão julgador:  5ª câmara de Direito Privado. Data do julgamento:  16/3/16; TJ/SP. Apelação 1031494-52.2003.8.26.0100. Rel. Des. Vito Guglielmi Comarca:  São Paulo. Órgão julgador: 6ª câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 2/6/16. 4 Sob perspectiva abrangente, a ampla defesa implica necessidade de informação sobre a existência do processo, o direito ao prazo adequado para resposta, a liberdade de levar ao conhecimento do juiz todos os elementos úteis e principalmente a possibilidade de se opor à pretensão da parte contrária nos pontos em que contrariam as suas pretensões (Cf. COUCHEZ, Gérard. Procédure Civile. 15ª edição. Paris: Dalloz. 2008. p.246-249). 5 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. O novo Processo Civil. 1ª edição. São Paulo: Editora revista dos tribunais. 2015, p.155. 6 Como bem adverte a doutrina: "De nada adianta o belo discurso que se faz em torno da garantia constitucional de um processo com duração razoável se, na prática, sequer há instrumentos efetivos para permitir a concretização desse direito" (cf. BONÍCIO, Marcelo José Magalhães. Princípios do Processo no novo Código de Processo Civil. 1ª edição. São Paulo: Saraiva. 2106, p.173). 7 Art. 5º, LXXVIII, da CF: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". 8 Cf. HESPANHA, Benedito. "O Direito Processual e a Constituição. A relevância hermenêutica dos princípios constitucionais do processo", in Revista de Direito Constitucional e Internacional. N.48, julho-setembro de 2004, p.23. 9 Nesse sentido: AI. 2136344-22.2021.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Christiano Jorge, v.u., j. 1º/6/22; AI. 2228277-76.2021.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 1ª câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Alexandre Lazzarini, v.u., j. 10/12/21. 10 Nesse sentido: Apelação 1054632-86.2019.8.26.0100, Comarca de São Paulo, TJSP, 7ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Miguel Brandi, v.u., j. 19/8/21. Ementa: "HABILITAÇÃO DE CRÉDITO - Falência - Improcedência - Insurgência da União Federal - Descabimento - Apelação que é o recurso adequado para impugnar a decisão proferida em habilitação de crédito - Falência que é anterior à nova Lei de Falências e Recuperações - Inteligência do art. 192 da Lei nº 11.101/05 - Preliminar do Ministério Público afastada - Mérito - No caso, compete ao juízo universal da falência deliberar sobre a prescrição do crédito tributário - Prescrição intercorrente caracterizada - Inaplicabilidade do art. 7º-A, § 4º, inciso II, da lei 11.101/05 - Execução fiscal arquivada, ante a falta de andamento há mais de seis anos e qualquer ato constritivo há quase duas décadas - União que optou por habilitar o crédito, submetendo-se ao juízo universal da falência - Desistência manifestada durante o trâmite desta habilitação que também deve ser considerada - RECURSO IMPROVIDO".
terça-feira, 10 de maio de 2022

Insolvência e arbitragem

1) Introdução. A consolidação da arbitragem no Brasil teve alguns marcos relevantes, dentre os quais: (i) a edição da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 ("Lei nº 9.307/1996" ou "Lei de Arbitragem"); (ii) a declaração incidental da sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ("STF") no julgamento da SE 5.206; (iii) a posterior ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque pelo Decreto nº 4.311, de 23 de julho de 20021; e (iv) o reconhecimento da natureza jurisdicional da arbitragem, a essa altura uniforme na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça2 ("STJ"). A partir da assunção do entendimento de que a arbitragem tem natureza jurisdicional surgiu a possibilidade, em tese, de ocorrerem conflitos de competência entre os juízos estatal e arbitral, possibilidade essa admitida, sem maiores controvérsias, no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, cuja normativa constitucional, confere competência para apreciar e julgar tais conflitos3. O objetivo deste artigo é analisar os reflexos dos princípios da kompetenz-kompetenz, positivado no art. 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem4, e o da preservação da empresa, consagrado no art. 47 da lei 11.101/055 ("LFR"), na identificação do juízo competente em casos de conflito de competência entre tribunal arbitral e juízo da recuperação judicial.   2) O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA E A COMPETÊNCIA PARA A PRÁTICA DE ATOS QUE AFETEM O PATRIMÔNIO DO DEVEDOR EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. A lei 11.101/05 disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. O art. 3º da LFR estabelece que é "competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil"6. Portanto, o juízo do principal estabelecimento do devedor é o competente para processar a recuperação judicial do devedor.  O STJ tem inúmeros precedentes em que esclarece que nem todas as ações contra a empresa em recuperação são processadas no juízo da recuperação judicial. No REsp 1.236.664/SP, por exemplo, o STJ afirmou que "as ações em que a empresa em recuperação judicial, como autora e credora, busca cobrar créditos seus contra terceiros não se encontram abrangidas pela indivisibilidade e universabilidade do juízo da falência, devendo a parte observar as regras de competência legais e constitucionais existentes"[7]. Na recuperação judicial a regra é que as ações, na fase de conhecimento, tramitem normalmente nos seus respectivos juízos até a quantificação dos créditos. Nesse sentido, o art. 6º, §1º da LFR[8] estabelece que terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida. A finalidade do dispositivo legal é no sentido de que as fases de conhecimento e liquidação (verificação da existência e a quantificação do crédito) sejam julgadas pelo juízo ordinariamente competente para apreciar a demanda como um todo. No entanto, o referido dispositivo legal transfere a competência de execução - que ordinariamente seria do juízo de conhecimento - ao juízo da recuperação judicial, passando este, por força de lei específica, a ser o competente para a prestação jurisdicional de medidas executórias. Essa finalidade se fundamenta, tanto no necessário tratamento isonômico entre os credores, conforme a sua classe, quanto - e principalmente - nos impactos que eventuais decisões executivas proferidas pelos juízos de conhecimento poderiam causar no processo de recuperação judicial, cujo bem jurídico tutelado é a atividade empresária. Além da disposição legal prevista no §1º do art. 6º, os incisos II e III e §4º do mesmo artigo, preveem que deferido o processamento da recuperação judicial, as execuções contra o devedor são suspensas, bem como são proibidos atos de constrição sobre seus bens, pelo prazo de 180 dias. Contudo, os créditos não sujeitos à recuperação judicial, como o tributário, não têm a sua execução suspensa pelo deferimento do processamento da recuperação judicial. Não obstante a regra geral acima exposta, a jurisprudência orienta-se no sentido de que compete exclusivamente ao juízo da recuperação judicial adotar as medidas necessárias para garantir o sucesso do processo de soerguimento, bem como para decidir sobre as questões que envolvam interesses das empresas recuperandas. Essa orientação tem fundamento no princípio da preservação da empresa, positivado no art. 47 da LFR, o qual, tal como os objetivos que representa, têm fundamento no princípio constitucional da livre iniciativa e traduzem, na ordem infraconstitucional, os objetivos fundamentais da Constituição da República Federativa do Brasil ("CRFB") previstos no art. 3º, designadamente nos incisos I a III. Por isso, constituem diretriz a ser seguida sempre que há risco de inviabilização do plano de soerguimento da atividade empresária, com frustração da finalidade da recuperação judicial. Nesse sentido, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que compete ao juízo da recuperação judicial, com exclusividade, adotar as medidas necessárias para resguardar os bens e interesses das recuperandas: "AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL. 1. O juízo onde se processa a recuperação judicial é o competente para julgar as causas em que estejam envolvidos interesses e bens de empresas recuperandas. 2. O deferimento da recuperação judicial não suspende a execução fiscal, mas os atos de execução devem-se submeter ao juízo universal. 3. A Lei n. 11.101/2005 visa a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, a teor de seu art. 47. 4. Agravo regimental a que se nega provimento."(grifou-se)9. *** "AGRAVO INTERNO NO CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. MEDIDAS DE CONSTRIÇÃO DE BENS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO DA EMPRESA. DECISÃO AGRAVADA QUE DEFERIU A LIMINAR PARA SUSPENDER A AÇÃO DE EXECUÇÃO CONTRA A SUSCITANTE. PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS (FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA). QUESTÕES TRAZIDAS PELA AGRAVANTE QUE SERÃO ANALISADAS POR OCASIÃO DO JULGAMENTO DE MÉRITO. AGRAVO DESPROVIDO. 1. O entendimento da Segunda Seção desta Corte é no sentido de ser o Juízo onde se processa a recuperação judicial o competente para julgar as causas em que estejam envolvidos interesses e bens da empresa recuperanda, inclusive para o prosseguimento dos atos de execução que envolvam créditos apurados em outros órgãos judiciais. 2. As questões suscitadas pela agravante serão analisadas por ocasião do julgamento de mérito do presente conflito, devendo ser mantida, assim, a decisão agravada que deferiu a liminar para suspender os atos executórios em relação à empresa em recuperação judicial. 3. Agravo interno desprovido." (grifou-se)10. *** "AGRAVO INTERNO NO CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA SUSCITADO POR EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL EM FACE DE JUÍZO DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO FALIMENTAR. 1. A execução individual trabalhista e a recuperação judicial apresentam nítida incompatibilidade concreta, porque uma não pode ser executada sem prejuízo da outra. 2. O Juízo universal é o competente para julgar as causas em que estejam envolvidos interesses e bens da empresa recuperanda, inclusive para o prosseguimento dos atos de execução, ainda que o crédito seja anterior ao deferimento da recuperação judicial, devendo, portanto, se submeter ao plano, sob pena de inviabilizar a recuperação. Precedentes do STJ. 3. Competência do Juízo de Direito da 1.ª Vara Cível de Santa Helena de Goiás/GO, para o prosseguimento de execuções trabalhistas. 4. Agravo interno desprovido."(grifou-se)11. Assim, a jurisprudência do e. Superior Tribunal de Justiça é uníssona no sentido de que incumbe, com exclusividade, ao juízo onde se processa a recuperação judicial deliberar e decidir acerca das questões sensíveis às empresas em recuperação judicial. Portanto, o STJ vem entendendo que compete ao juízo recuperacional decidir determinadas matérias quando estas puderem comprometer profundamente a recuperação da empresa. Essa construção pretoriana que resultou na ampliação da competência do juízo da recuperação judicial se verifica em cada caso concreto quando a recuperação judicial estiver em risco. Assim, esse alargamento de competência tem inspiração no poder geral de cautela do magistrado, isto é, compete ao juízo decidir as questões que assegurem o resultado útil do processo. No caso específico do processo de recuperação judicial, compete ao juiz decidir as questões que possam comprometer a recuperação da empresa em crise. A doutrina de Fábio Ulhoa Coelho reforça esse entendimento: "Concluindo, o juízo recuperacional tem competência para zelar para que os objetivos do processo de recuperação judicial não sejam comprometidos por conta do aproveitamento oportunístico da vulnerabilidade momentânea da empresa do devedor. Mas não existe uma regra geral de invariável aplicação acerca da matéria, até mesmo porque a alta complexidade e dinâmica da matéria não permitem a sua elaboração. Para que a recuperação judicial não seja instrumento de ganhos indevidos nas mãos de credores, concorrentes ou mesmo sócios minoritários, em detrimento da superação da crise da empresa, o juízo recuperacional deve intervir, analisando os meios e alcances da intervenção casuisticamente"12. 3) O PRINCÍPIO DA KOMPETENZ-KOMPETENZ. O princípio da kompetenz-kompetenz (competência-competência) consagra que o árbitro é competente para decidir acerca da própria competência para analisar e decidir sobre a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do próprio contrato em que consta a cláusula arbitral13. O princípio confere ao árbitro poderes para declarar que tem competência para julgar uma demanda arbitral ou declarar-se incompetente. Nesta segunda hipótese, será atribuição do Poder Judiciário a apreciação da demanda. Sua finalidade é proteger a eleição da arbitragem como método de resolução de litígio. Nesse sentido, por todos, a lição de Carlos Alberto Carmona14: "Agora o parágrafo único do art. 8º não deixa margem alguma a dúvidas, atribuindo ao árbitro o poder de decidir sobre a existência, validade e eficácia da cláusula de compromisso, bem como do próprio contrato que contenha a cláusula compromissória. Consagrou-se, em outras palavras, a autonomia da cláusula compromissória: ainda que o contrato em que esta esteja inserida seja viciado, a mesma sorte não terá - necessariamente - a cláusula. E diz-se necessariamente porque, em algumas hipóteses, será inevitável a falência da cláusula compromissória diante da destruição do contrato em que estiver inserida: basta imaginar que o contratante seja incapaz, que a assinatura aposta no instrumento seja falsa etc. Caberá portanto, ao árbitro decidir se o ato das partes que estabelece sua própria competência tem ou não eficácia. Se o árbitro decidir pela nulidade da convenção de arbitragem, proferirá sentença terminativa (o laudo, portanto, terá conteúdo meramente processual)". O alcance do princípio da kompetenz-kompetenz foi discutido pela Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.355.831/SP15, interposto por Massa Falida, com alegação de invalidade da cláusula arbitral e de incompetência do juízo arbitral. Por unanimidade a Turma desproveu o recurso especial. O voto do Relator, e. Ministro Sidnei Beneti, afastou a alegação de invalidade da cláusula arbitral e de incompetência do juízo arbitral, mediante o argumento de que "a matéria relativa a validade da cláusula arbitral deve ser apreciada, primeiramente, pelo próprio árbitro nos termos do artigo 8º da Lei de  Arbitragem, sendo ilegal a pretensão da parte do de ver declarada a nulidade da convenção de arbitragem pela jurisdição estatal antes da instituição procedimento arbitral, vindo ao Poder Judicial sustentar defeitos de cláusula livremente pactuada pela qual se comprometeu a aceitar a via arbitral, de modo que inadmissível a prematura judicialização estatal da questão." Em seu voto, o e. Ministro Sidnei Beneti, cita o acórdão de sua relatoria, no REsp 1.302.900/MG16, que inadmitiu a judicialização prematura da alegação de nulidade da cláusula arbitral com fundamento no art. 8º, parágrafo único da Lei de Arbitragem. Foi, portanto, definido que a existência, validade e eficácia da cláusula compromissória não está sujeita a prévio controle pelo Poder Judiciário, por caber ao árbitro decidir primeiramente sobre toda competência. Considero importante também destacar trecho do voto-vista da e. Ministra Nancy Andrighi neste acórdão, voto esse que adentra temas relevantes para situações em que a discussão a respeito da ratio do princípio da kompetenz-kompetenz e o conflito de competência ocorre entre o juízo arbitral e o juízo da insolvência: "Todavia, a incidência simultânea das regras dos arts. 6º, 76 e 117 da Lei nº 11.101/05 à hipótese dos autos, em razão da quebra da empresa compromissada, que fora decretada antes da instalação do juízo arbitral, acrescenta dúvidas razoáveis acerca da força vinculativa da referida cláusula. Isso porque, a partir da leitura dos referidos artigos da nova Lei de Falências, infere-se: i) a vis attractiva do juízo universal da falência; ii) a suspensão, em regra, de todas as ações e execuções em trâmite perante outros juízos que não o falimentar; e iii) a necessidade de o administrador judicial decidir acerca do interesse no cumprimento dos contratos vigentes quando da decretação da quebra. (...) Por fim, conjugando-se essas considerações à interpretação do art. 76 da Lei nº 11.101/05, que excepciona da vis attractiva do juízo falimentar as causas, não disciplinadas por esta lei, em que o falido figure como autor, é de se concluir que o juízo arbitral, instaurado para apuração de crédito em favor do falido, não sofrerá os efeitos da decretação da falência, devendo, observar contudo, a representação judicial do falido pelo síndico da massa falida, nos termos do parágrafo único do art. 76 da Lei nº 11.101/05. (...) Assim, não cabe ao Poder Judiciário brasileiro suspender a instituição, initio litis, de uma arbitragem. Isso não significa, por outro lado, que as contratantes estejam impedidas de levar a matéria relativa à validade da referida cláusula arbitral ao Judiciário pátrio, haja vista tratar-se de direito constitucionalmente garantido; bem como não as impede de requerer, futuramente, a nulidade desse procedimento arbitral. Todavia, essas discussões não se darão, originariamente, no âmbito do Poder Judiciário, que apenas detém competência para execução ou homologação da futura sentença arbitral, conforme a hipótese concreta." (grifou-se). Em síntese, o princípio kompetenz-kompetenz significa que cabe ao próprio árbitro manifestar-se em primeiro lugar sobre a própria competência, mas não impede a posterior discussão da validade da cláusula compromissória perante a jurisdição estatal, em ação de declaração de nulidade da sentença arbitral, (art. 33 da Lei de Arbitragem) ou em impugnação ao cumprimento da sentença arbitral (§3º do art. 33 da Lei de Arbitragem). O §9º do art. 6º da LFR17, incluído pela lei 14.112/20, incorporou ao direito positivo a orientação fixada no Enunciado nº 6 da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho da Justiça Federal: "O processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impede a instauração do procedimento arbitral, nem o suspende"18. Dessa forma, não há impedimento absoluto para a arbitragem, mas apenas restrições aos poderes do árbitro em determinadas hipóteses. Essa norma deve ser interpretada sistematicamente com o caput e os §§1º e 2º do art. 6º da LFR, dos quais decorre que as ações de que demandem quantia ilíquida não são suspensas pela decisão que defere o processamento da recuperação judicial. Logo, se o processo arbitral tem por objeto crédito controvertido decorrente de fato anterior ao ajuizamento da recuperação judicial, tal como ocorre nas ações em curso perante a jurisdição estatal, a arbitragem prosseguirá até a definição do valor devido, que deverá ser habilitado para ser pago na forma do plano de recuperação judicial. Trata-se de inovação salutar, no sentido de esclarecer que o empresário em recuperação judicial e a massa falida têm capacidade de ser parte em processo arbitral.19 Entretanto, o §9º do 6º da LFR não trata da arbitrabilidade objetiva, que decorre de algumas restrições no caso de devedores em recuperação judicial. 4) CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE JUÍZO ARBITRAL E JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL - ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ. Os princípios da preservação da empresa e da competência-competência não são inconciliáveis, porque as competências expressas e implícitas do juízo da recuperação judicial são privativas e absolutas. Já os poderes conferidos ao árbitro, os quais decorrem do princípio da competência-competência, lhe asseguram a prerrogativa de se manifestar em primeiro lugar sobre a própria competência para decidir sobre a existência, validade e eficácia da cláusula compromissória. Mas o árbitro não tem poderes absolutos e privativos, de sorte que a última palavra caberá sempre ao juiz estatal, inclusive em razão da garantia constitucional da proteção jurisdicional. Da análise dos acórdãos da Segunda Seção do STJ e dos votos proferidos no Conflito de Competência 111.230/DF20 e no AgInt no Conflito de Competência 153.498/RJ21 em que os juízos conflitados foram arbitral e da recuperação judicial é possível concluir, em raciocínio indutivo, que o princípio da kompetenz-kompetenz ganha relevo antes do pronunciamento do tribunal arbitral a respeito da própria competência. Efetivamente, no CC 111.230/DF, da relatoria da e. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 08/05/2013, DJe 03/04/2014, no qual figuram como suscitados o Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil - Canadá e o Juízo de Direito da 2ª vara Empresarial do Rio de Janeiro/RJ, permitiu-se o prosseguimento das arbitragens, por competir ao árbitro conhecer em primeiro lugar da própria competência. O conflito foi suscitado antes de pronunciamento do tribunal arbitral sobre a existência, validade e eficácia da cláusula compromissória e a própria competência. Por outro lado, se há pronunciamento do tribunal arbitral o conflito se dá em razão da existência de decisões excludentes entre si, situação enfrentada no julgamento do caso do CC 153.498/RJ, ganha relevo a questão dos limites da jurisdição arbitral e da competência estatal. No conflito de competência aqui referido, foi reconhecida a competência do juízo estatal, em razão de (i) faltar ao árbitro o poder de coerção, que fundamenta o poder executório e (ii) a ordem de natureza coercitiva comprometer o soerguimento da empresa recuperanda. Em seu relatório, o e. Ministro Moura Ribeiro, destacou que:  "A questão relacionada à existência de cláusula compromissória válida para fundamentar a instauração do Juízo arbitral deve ser resolvida, com primazia, por ele, e não pelo Poder Judiciário. No caso sob análise não há discussão sobre a interpretação do contrato e da convenção de arbitragem que embasaram o procedimento, limitando-se a quaestio juris a definir qual é o juízo competente para deliberar sobre atos de constrição que venham a atingir a empresa recuperanda. (...) Na hipótese dos autos os Juízos suscitados proferiram decisões incompatíveis entre si, pois, enquanto a CÂMARA FGV determinou a apresentação de garantia bancária pela empresa recuperanda, o JUÍZO DA RECUPERAÇÃO se manifestou no sentido de que qualquer ato constritivo ao patrimônio da recuperanda deveria ser a ele submetido." (...) A determinação para emitir garantia bancária da suposta dívida, sem que a CÂMARA FGV tenha reconhecido o crédito pode, inegavelmente, afetar o patrimônio da recuperanda, devendo tal decisão ser submetida ao crivo do JUÍZO DA RECUPERAÇÃO. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que é do juízo em que se processa a recuperação judicial a competência para promover os atos de execução do patrimônio da empresa. À luz do art. 47 da Lei n.º 11.101/2005 e considerando o objetivo da recuperação judicial, que é a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, a atribuição de exclusividade ao juízo universal evita que medidas expropriatórias possam prejudicar o cumprimento do plano de recuperação. Apesar da determinação do juízo arbitral não se referir a ato constritivo em sentido estrito, inegável que a exigência de apresentação de carta de fiança para garantia de dívida refletirá no patrimônio da sociedade recuperanda, tendo repercussão direta no seu processo de soerguimento. Com efeito, a competência do juízo recuperacional para deliberar sobre atos de constrição ou alienação de bens da sociedade em recuperação não se dá somente pela natureza do crédito, mas também por uma razão prática: o processo de soerguimento apenas é viável se o juízo universal for o único responsável pelas deliberações que envolvam o patrimônio da recuperanda, evitando, assim, que medidas constritivas impostas por diversos juízos interfiram no processamento da recuperação. (...) Por outro lado, ainda que o crédito pretendido pela HORNBECK não tenha sido constituído, é certo que as ações ilíquidas tramitarão regularmente nos demais juízos, inclusive nos Tribunais Arbitrais. Contudo, não será possível nenhum ato de constrição ao patrimônio da empresa em recuperação." (grifou-se). E concluiu: "Em suma, os atos de constrição realizados antes ou após o deferimento da recuperação judicial, bem como os demais créditos que não estão submetidos ao plano, sujeitam-se à análise do juízo recuperacional, ainda que, conforme o caso, apenas para avaliar a essencialidade do bem sujeito à constrição para que a recuperação perseguida logre o sucesso almejado".(grifou-se.) Da análise dos fundamentos e conclusões do julgado em destaque, observa-se com nitidez que o Superior Tribunal de Justiça tem posicionamento firme no sentido de que (i) há conflito de competência quando juízos distintos proferem decisões conflitantes e (ii) qualquer ato de execução que decorra de decisão arbitral em que esteja envolvido devedor empresário em recuperação judicial deverá ser submetido ao crivo do juízo onde se processa a recuperação judicial, para se verificar se este afeta ou não o soerguimento empresarial, sob pena de se usurpar a competência absoluta deste sobre atos que comprometam o soerguimento do bem jurídico tutelado, isto é, a atividade empresária. Ainda que, como visto, o princípio da competência-competência tenha sido positivado no ordenamento jurídico brasileiro, observa-se que a decisão arbitral acerca de sua própria competência não é inimpugnável: o árbitro decide em primeiro lugar sobre a sua competência (art. 8º, § único, da lei 9.307/96) e, posteriormente, a questão da competência pode ser revista pelo Poder Judiciário (art. 32, II e IV, da Lei 9.307/1996). A decisão final acerca dessa competência, por previsão constitucional22, sempre será do Poder Judiciário. O STJ se pronunciou sobre a matéria quando do julgamento do REsp 1.278.85223, sob relatoria do e. Ministro Luis Felipe Salomão, oportunidade na qual restou consignado haver "coexistência das competências dos juízos arbitral e togado relativamente às questões inerentes à existência, validade, extensão e eficácia da convenção de arbitragem" e "alternância de competência entre os referidos órgãos, porquanto a ostentam em momentos procedimentais distintos, ou seja, a possibilidade de atuação do Poder Judiciário é possível tão somente após a prolação da sentença arbitral". Pode-se cogitar também de conflito pela existência de decisões excludentes entre si inferida de decisão judicial em confronto com decisão arbitral concessiva ou mantenedora de tutela cautelar ou de urgência, conforme autorizam o art. 22-B e seu parágrafo único da Lei de Arbitragem. Observa-se, portanto, que a despeito da norma que positivou o princípio da competência-competência, a apreciação pelo Poder Judiciário, na hipótese pelo STJ24, não pode ser afastada, sob pena de, na prática, caso árbitro e juiz togado declararem-se simultaneamente competentes, haver dois órgãos jurisdicionais proferindo decisões eventualmente divergentes e, consequentemente, com potencial conflito entre elas. No entanto, a apreciação pelo Poder Judiciário não significa a redução ou a relativização desse princípio; na realidade, caracteriza deferência a tal princípio, de modo a perceber o juízo arbitral como legítimo órgão de prestação jurisdicional, permitindo, assim, cogitar-se do conflito deste com o juízo estatal. A doutrina de Arnoldo Wald, nesse sentido, assume o Conflito de Competência como a via processual adequada para se discutir a questão25:   "Cabe salientar que, no caso, não se discute, e ao contrário, reconhece-se plenamente o princípio da kompetenz-kompetenz, assegurando a prevalência cronológica da decisão arbitral. Mas, quando, assim mesmo, surge o conflito e há decisão judicial (mesmo estando sujeita a recursos) conflitando com a decisão arbitral, sem que os árbitros possam convencer o Poder Judiciário pelos seus argumentos, o que se discute é qual a via recursal que deve ser utilizada. Podemos optar pela decisão judiciária de primeira instância, com todos os seus incidentes e, em seguida, a apelação, com ou sem embargos, e finalmente, o recurso especial, quiçá o extraordinário de um lado: e de outro o conflito de competência no qual se decide, desde logo, definitivamente, a matéria. A decisão pragmática nos parece a escolha do caminho mais curto e eficiente porque já prevista pela Constituição para situações análogas senão idênticas, nas quais não parecia anteriormente existir qualquer solução." (grifou-se.).   5) CONCLUSÃO. Desse modo, entendo ser possível a existência de conflito de competência entre juízo arbitral e juízo estatal, sem que haja desrespeito ao princípio da competência-competência, bem como ser a via processual adequada para sua apreciação e julgamento aquela prevista na alínea "d" do inc. I do art. 105 da CRFB. ____________ 1 Em estudo sobre o tratamento legislativo e julgamentos sobre arbitragem no Brasil desde a proclamação da independência e até a edição da Lei nº 9.307/2002, Carlos Augusto Silveira Lobo, cita artigo de Arnoldo Wald, publicado na Revista de Direito Bancário, do Mercado e Capitais e da Arbitragem, nº 16, pág. 325, e destaca "a arbitragem no Brasil tem seus alicerces em três pilares: a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, o julgamento do Supremo Tribunal Federal na SE 5206, que reconheceu a sua constitucionalidade em 12 de dezembro de 2001, e a ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque, promulgada pelo Decreto nº 4.311, de 23 de julho de 2002. (....)" (Advocacia de Empresas, Renovar, Rio.São Paulo, 2012, pág. 191). 2 Nesse sentido: PROCESSO CIVIL. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA FRENTE A JUÍZO ESTATAL. POSSIBILIDADE. MEDIDA CAUTELAR DE ARROLAMENTO. COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL. 1. A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral. (CC 111.230/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/05/2013, DJe 03/04/2014 - grifou-se). 3 Leia-se sobre o tema, com muito proveito, o artigo ""Breves palavras sobre o conflito de competência entre juízos arbitral e judicial" de Gustavo Favero Vaughn e Matheus Soubhia Sanches, publicado em 25/10/2017 e disponível aqui. 4 "Art. 8º  - A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória. Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória." 5 ""Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica." 6 "Art. 3º É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil." 7 STJ, REsp 1.236.664/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 18/11/2014. 8 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: (...) II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência. § 1º Terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida. (...) § 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal. 9 STJ, AgRg. no CC 119.203/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, 2ª Seção, julgado em 26/03/2014, DJe 03/04/2014 10 STJ, AgInt. no CC 149.736/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 2ª Seção, julgado em 08/03/2017, DJe 13/03/2017 11 STJ, AgInt no CC 148.536/GO, Rel. Ministro MARCO BUZZI, 2ª Seção, julgado em 08/03/2017, DJe 15/03/2017 12 COELHO, Fábio Ulhoa. Temas de direito da insolvência - estudos em homenagem ao professor Manoel Justino Bezerra Filho - Limitação ao Exercício de Direitos Societários na Companhia em Recuperação Judicial. Editora IASP. São Paulo, 2017. p 252. 13 Nesse sentido é o enunciado n.º 3, da Edição n.º 122 da Jurisprudência em Teses do e. STJ. Verbis: "A previsão contratual de convenção de arbitragem enseja o reconhecimento da competência do Juízo Arbitral para decidir com primazia sobre o Poder Judiciário, de ofício ou por provocação das partes, as questões relativas à existência à validade e à eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória." Contudo, tal entendimento não é absoluto sendo flexibilizado o próprio e. STJ em situações excepcionais, de flagrante ilegalidade. Veja-se o enunciado n.º 4, da mesma edição n.º 122: "O Poder Judiciário pode, em situações excepcionais, declarar a nulidade de cláusula compromissória arbitral, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral, quando aposta em compromisso claramente ilegal." 14 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3 ed., revista atualizada e ampliada. São Paulo, Editora Atlas S.A., 2009, pp. 18-19. 15 STJ - REsp: 1355831 SP 2012/0174382-7, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 19/03/2013, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/04/2013. 16 STJ - REsp: 1302900 MG 2012/0006413-5, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 09/10/2012, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/10/2012 17 "Art. 6º (...) § 9º O processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral. 18 Disponível aqui. Acesso em 02/05/2021. 19 Ressalve-se a imprecisão do texto legal, porque na recuperação judicial, os administradores da empresa em recuperação judicial são mantidos na condução da atividade empresária, sob a fiscalização do administrador judicial (art. 64 c/c art. 22, II, da LFR); a massa falida é que é representada pelo administrador judicial (art. 22, III, n), porque com a decretação da falência o devedor perde o direito de administrar os seus bens. 20 STJ - CC: 111230, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Publicação: DJe 02/08/2010 21 STJ - AgInt no CC: 153498 RJ 2017/0181737-7, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 23/05/2018, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 14/06/2018 22 Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República. 23 PROCESSO CIVIL. CONVENÇÃO ARBITRAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. ANÁLISE DA VALIDADE DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA "CHEIA". COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO JUÍZO CONVENCIONAL NA FASE INICIAL DO PROCEDIMENTO ARBITRAL. POSSIBILIDADE DE EXAME PELO JUDICIÁRIO SOMENTE APÓS A SENTENÇA ARBITRAL. (.....) 2. A cláusula compromissória "cheia", ou seja, aquela que contém, como elemento mínimo a eleição do órgão convencional de solução de conflitos, tem o condão de afastar a competência estatal para apreciar a questão relativa à validade da cláusula arbitral na fase inicial do procedimento (parágrafo único do art. 8º, c/c o art. 20 da LArb). 3. De fato, é certa a coexistência das competências dos juízos arbitral e togado relativamente às questões inerentes à existência, validade, extensão e eficácia da convenção de arbitragem. Em verdade - excluindo-se a hipótese de cláusula compromissória patológica ("em branco") -, o que se nota é uma alternância de competência entre os referidos órgãos, porquanto a ostentam em momentos procedimentais distintos, ou seja, a possibilidade de atuação do Poder Judiciário é possível tão somente após a prolação da sentença arbitral, nos termos dos arts. 32, I e 33 da Lei de Arbitragem. 4. No caso dos autos, desponta inconteste a eleição da Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil (CAMARB) como tribunal arbitral para dirimir as questões oriundas do acordo celebrado, o que aponta forçosamente para a competência exclusiva desse órgão relativamente à análise da validade da cláusula arbitral, impondo-se ao Poder Judiciário a extinção do processo sem resolução de mérito, consoante implementado de forma escorreita pelo magistrado de piso. Precedentes da Terceira Turma do STJ. 5. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1278852 MG 2011/0159821-0, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 21/05/2013, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/06/2013 - grifou-se). 24 Art. 150, inciso I, alínea d, da Constituição da República. 25 Wald, Arnoldo. Conflito de competência entre o Poder Judiciário e o Tribunal Arbitral. Cabimento. Competência constitucional (art. 105, I, d, da CF/1988) e legal (art. 115, I, do CPC) do STJ para resolvê-lo. Decisão majoritária que consolida a jurisprudência na matéria. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 40, São Paulo, Editora RT, 2014 p. 383. No mesmo sentido, Caio Cesar Vieira Rocha: "Afasta-se o argumento de que o conflito que aqui se cuida não poderia ser conhecido pelo STJ, já que não constaria expressamente do rol de competência daquela corte superior indicada na Constituição Federal. A interpretação sistemática, não literal e não restritiva, da alínea d do inc. I do art. 105 da Constituição Federal, conduz à conclusão de que o árbitro deve ser considerado espécie de juiz 'vinculado a tribunal diverso'. Ao referir-se a juízes, a Constituição previu o processamento perante o STJ de conflitos de competência entre autoridades com poder jurisdicional e não necessariamente inseridas no âmbito do Poder Judiciário estatal" (ROCHA, Caio Cesar Vieira. Conflito positivo de competência entre árbitro e magistrado, Doutrinas Essenciais de Arbitragem e Mediação, v. 2, São Paulo, Editora RT, 2014, p. 658).
A reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falência buscou dar respostas a um sério problema de origem do modelo brasileiro de insolvência empresarial: a não sujeição do crédito fiscal e dos créditos garantidos fiduciariamente aos efeitos da recuperação judicial. Muito embora a preservação de credores hold outs - não sujeitos aos efeitos de uma recuperação empresarial - contrarie a lógica do sistema de insolvência, uma vez que esse pressupõe que todos os credores sejam impedidos de avançar contra o patrimônio da devedora durante a negociação coletiva como condição para criação de ambiente adequado e estimulado de construção de consensos, o legislador brasileiro optou por excluir da recuperação judicial os créditos fiscais, bem como aqueles garantidos fiduciariamente (notadamente os créditos titularizados por instituições financeiras). Essa opção política gerou graves incongruências sistêmicas. Como equacionar a situação em que um bem essencial de uma empresa em recuperação judicial acaba sendo atingido por atos de constrições provenientes de execuções de créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial? Nessa hipótese, cria-se um conflito entre o interesse do credor não sujeito e os interesses públicos e sociais envolvidos na recuperação da empresa, como a própria preservação da atividade e a função social da empresa. Vale dizer que muitas vezes a expropriação do ativo pertencente à empresa em recuperação judicial nos autos da execução do crédito não sujeito implicará na convolação em falência de uma empresa geradora de empregos, tributos, serviços ou produtos relevantes, com grande impacto social e em prejuízo à comunidade de credores atendida no processo recuperacional. Em razão desse conflito de interesses, a jurisprudência do STJ evoluiu para reconhecer que, nas hipóteses do art. 49, parágrafo terceiro, bem como no caso dos créditos fiscais, cabe ao juízo da recuperação judicial decidir sobre a destinação dos ativos de empresa recuperanda que são objeto de constrição em execuções em curso por outros juízos fiscais ou cíveis. Em outras palavras, o juízo da recuperação judicial será competente para aferir a essencialidade do ativo constrito na execução do crédito não sujeito aos efeitos concursais, autorizando ou não a sua expropriação naqueles autos, como forma de tutela do interesse prevalente nesse conflito, qual seja, o interesse público e social decorrente da preservação da empresa. Assim, considerando que é o juízo da recuperação judicial quem tem uma visão mais completa da atuação da empresa e da importância daquele ativo específico na manutenção de suas atividades, deverá ele decidir sobre a possibilidade ou não de prosseguimento da execução fiscal ou cível extraconcursal. Em razão disso, as devedoras passaram a utilizar o conflito de competência como ferramenta para buscar o reconhecimento judicial da competência do juízo recuperacional, bem como para obter uma determinação superior de suspensão da execução individual com preservação dos interesses maiores tutelados pela recuperação judicial. Mas como compatibilizar o direito dos credores não sujeitos ao processo concursal de receber o que lhes é devido com o direito da sociedade em preservar a atividade da empresa em recuperação judicial? Não seria também razoável que o fisco ou os credores com garantia fiduciária ficassem impedidos de prosseguir nas suas execuções por tempo indeterminado, em afronta ao direito legalmente estabelecido de não se sujeitarem aos efeitos do processo recuperacional. Foi em razão desse problema que a reforma estabeleceu que, no caso dos credores garantidos fiduciariamente, caberá ao juízo da recuperação determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de stay (180 dias, prorrogáveis por mais 180 dias), suspensão essa que deve ser implementada mediante cooperação. No caso das execuções fiscais, a lei passou a dizer que o juízo da recuperação judicial tem a competência para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada também mediante cooperação jurisdicional. Perceba-se que tanto a suspensão dos atos de constrição, como sua substituição, deverá ser implementada mediante cooperação jurisdicional. Diante dessa nova regulação legal, o entendimento do STJ evoluiu para reconhecer que seriam cabíveis conflitos de competência apenas quando houvesse concretamente uma divergência entre os juízos com relação à suspensão ou substituição dos atos de constrição sobre bens essenciais da devedora em recuperação judicial. Tal entendimento é correto, vez que o simples deferimento do processamento da recuperação judicial não pode ser utilizado como motivo bastante para o conhecimento do conflito de competência. Deverá haver uma decisão concreta do juízo da execução, determinando a constrição ou expropriação do bem, e uma decisão concreta do juízo da recuperação reconhecendo a essencialidade do mesmo bem. Não há necessidade, todavia, de que já se tenha tentado a cooperação jurisdicional. Isso porque, a suspensão da execução ou da constrição do bem é medida essencial para que a própria cooperação jurisdicional ocorra. É a suspensão da execução fiscal ou cível, onde se deu a constrição ou se pretende a expropriação do bem essencial para a recuperanda, que criará o ambiente adequado e estimulado para que a cooperação efetivamente aconteça. É evidente que, podendo o juízo fiscal ou cível prosseguir na expropriação do bem, não haverá qualquer estímulo para que sejam envidados esforços para suspensão ou substituição dos atos de constrição. Essa situação, por óbvio, violará a competência legal do juízo da recuperação para determinar essa suspensão ou substituição do ato de constrição. Por isso é que se afirma que o conflito de competência, desde que demonstrada a existência de decisões concretas e conflitantes entre os juízos sobre a destinação de ativos da recuperanda, deve ser conhecido pelo Tribunal competente (STJ nos casos de sua competência constitucional), mesmo que ainda não se tenha tentado a cooperação jurisdicional. O próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu nesse sentido, afirmando que tem cabimento o conflito de competência com suspensão da execução individual como medida essencial para que ema implementada a cooperação jurisdicional. Nesse sentido, confira-se: Evidentemente, cabe ao Juízo da recuperação judicial definir a qualidade do bem de capital constrito na execução fiscal como essencial, bem como cabe àquele Juízo determinar a sua substituição por outro ativo da devedora em recuperação judicial, em atividade cooperativa com o Juízo da execução fiscal. Assim, até que seja definida a qualidade do bem constrito e implementada a referida cooperação jurisdicional para sua substituição, deve a execução fiscal permanecer suspensa. Verifica-se, portanto, a presença do fumus boni iuris relativo ao pedido de suspensão da execução fiscal. O periculum in mora, por sua vez, está demonstrado por meio da decisão do Juízo suscitado, que determinou o prosseguimento da execução movida contra a empresa suscitante (fls. 33-35). (Min. Humberto Martins; Conflito de Competência 181.190 - AC; 2021/0221593-7) Conclui-se, portanto, que a cooperação jurisdicional é a ferramenta adequada para que o juízo da recuperação exerça concretamente sua competência legal de determinar a suspensão ou substituição dos atos de constrição sobre bem essencial da empresa recuperanda, mas que a determinação da suspensão da execução individual é a medida essencial para que se crie o ambiente adequado para a efetiva realização da cooperação, o que poderá ser determinado pelo Tribunal superior competente no bojo de conflitos de competência, desde que haja demonstração concreta da existência de decisões conflitantes entre os juízos sobre a destinação do bem objeto da constrição.
Tivemos oportunidade de observar, nas últimas semanas, uma decisão inédita do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendendo que, em caso de utilização do processo de recuperação judicial como meio de fraudar credores, caberia a inclusão dos sócios como devedores solidários. Essa polêmica decisão analisou a questão sob a perspectiva cível. Cabe indagar, entretanto, as consequências da conduta no campo penal: a utilização do processo de recuperação judicial como meio para fraudar credores configuraria crime falimentar? A questão, que pode parecer simples num primeiro momento, enseja diversos pontos problemáticos a serem resolvidos, o que tentaremos fazer a seguir. Primeiramente, é preciso saber em qual tipo penal, em tese, poderia recair a conduta do devedor em recuperação que faz uso do processo de recuperação judicial para fins fraudulentos, em prejuízo aos seus credores. Essa pergunta inicial apresenta resposta aparentemente simples: a conduta parece se subsumir ao tipo penal do art. 168, caput, da Lei de Recuperações e Falências (LREF), com a seguinte redação: Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem. No entanto, a simplicidade aparente da tipificação é ilusória. Como se sabe, conquanto possua distinções importantes, o tipo penal do art. 168 da LREF é delito falimentar semelhante ao crime de estelionato (art. 171 do CP), dele retirando o cerne de sua redação. Assim, o problema em tipificar no art. 168 da LREF a utilização do processo de recuperação como meio de fraude esbarra na tradição da jurisprudência brasileira, que considera atípico o estelionato quanto realizado por meio de processo judicial (o chamado "estelionato judiciário"), ressalvada a punição pelo crime (meio) de falsidade (se e quando existente) que não reste absorvido pelo estelionato. Nesse sentido, aliás, é quase unânime o entendimento dos tribunais: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. "ESTELIONATO JUDICIÁRIO". ATIPICIDADE. DETECÇÃO DA FRAUDE PELO JUÍZO NO CURSO DA AÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL PARCIALMENTE CARACTERIZADO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. RECURSO PROVIDO. I - O posicionamento doutrinário e jurisprudencial, inclusive desta Corte Superior de Justiça, não admite a prática do delito de estelionato por meio do ajuizamento de ações judiciais. II - Notadamente no caso dos autos, porquanto o Juiz do feito, ciente da apuração de suposta conduta criminosa em tese praticada pelo paciente em outros processos, determinou a realização de perícia na documentação acostada, bem como encaminhou representação contra o ora recorrente ao Ministério Público Estadual e à OAB/RJ. III - Sendo a fraude passível de conhecimento e de fato apurada pelas vias ordinárias no curso do processo, é de se reconhecer a atipicidade da conduta atribuída ao recorrente em relação ao delito previsto no art. 171, § 3º, c/c art. 14, II, ambos do Código Penal, para trancamento da ação penal. Recurso ordinário provido. (RHC 81.174/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 10/08/2017) APELAÇÃO CRIMINAL - Condenação pela prática do crime de estelionato tentado (art. 171, "caput", c.c. o art. 14, II, ambos do CP) - Irresignação defensiva - Alegação de atipicidade da conduta reconhecida como sendo delito de "estelionato judiciário" - Acolhimento - Possibilidade, ainda que em tese, de se desvendar a fraude no curso da ação judicial em que foi praticada a conduta que afasta a tipificação expressa no art. 171 do CP - Precedentes - Insurgência ministerial visando a majoração da pena-base - Análise prejudicada, haja vista o provimento do apelo da Defesa - Recurso defensivo provido e ministerial prejudicado. (TJSP; Apelação Criminal 0027249-22.2015.8.26.0576; Relator (a): Cláudio Marques; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro de São José do Rio Preto - 4ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 12/12/2019; Data de Registro: 13/12/2019) Diante desse óbice, poder-se-ia argumentar que, atípico no Brasil o "estelionato judiciário", também atípica, por analogia, seria a conduta do devedor que usa o processo de recuperação judicial para fraudar seus credores. No entanto, a conclusão da atipicidade nos parece equivocada. Primeiro porque, conquanto parecidos, existem diferenças substanciais entre o delito do art. 168 da LREF e o crime do art. 171 do CP, como já ressaltamos em obra sobre o tema:1 [O] delito em questão não se confunde com o estelionato definido no Código Penal, como se verá mais adiante, dado terem vítimas distintas (no crime falimentar, a comunidade de credores; no estelionato, pessoa(s) determinada(s)), não admitir o estelionato o mero prejuízo potencial (como se admite no crime falimentar), além da distinção de ânimo do agente. Enquanto o delito de estelionato afeta usualmente vítimas individualizadas, o crime falimentar do art. 168 da LREF pode trazer prejuízo (efetivo ou potencial) a uma comunidade (por vezes indeterminada) de credores, além de atentar contra a administração da justiça. Outrossim, cumpre salientar que os crimes falimentares definidos na LREF têm um importante papel de guardiões da lisura e da transparência dos processos de recuperação e de falência e, por consequência, das regras e balizas do sistema de mercado em que as entidades empresariais realizam seus negócios. A potencial punição criminal para seus autores visa garantir um efeito de dissuasão (deterrence effect) sobre condutas potencialmente danosas ao mercado. Proclamar a impunidade em relação à conduta em estudo, portanto, é equivalente a sujeitar o mercado a mais riscos e ao preço daí derivado (= aumento de custos de transação). Mas não é só. A tendência de países mais desenvolvidos nessa matéria é a tipificação de delitos cujas condutas envolvam a utilização de processos de recuperação como meio de fraude. Como também já salientamos em obra própria, na legislação norte-americana, a utilização do processo falimentar ou de reorganização como meio para um resultado fraudulento em prejuízo aos credores é expressamente tipificada em lei como crime (Bankruptcy fraud - U.S. Code, Chapter 19, Title 18, § 157), cujo teor pedimos vênia para citar nos termos e na linguagem original: A person who, having devised or intending to devise a scheme or artifice to defraud and for the purpose of executing or concealing such a scheme or artifice or attempting to do so- (1) files a petition under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title; (2) files a document in a proceeding under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title; or (3) makes a false or fraudulent representation, claim, or promise concerning or in relation to a proceeding under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title, at any time before or after the filing of the petition, or in relation to a proceeding falsely asserted to be pending under such title, shall be fined under this title, imprisoned not more than 5 years, or both." Nesse mesmo sentido, argumentamos alhures que, na doutrina norte-americana,2 aponta-se alguns exemplos de utilização fraudulenta do processo, tais como: (1) o devedor que intencionalmente ganha a confiança de seus credores por determinado período de tempo, para conseguir o fornecimento de grandes quantidades de estoque a crédito, sem pagamento imediato, vendendo o estoque a vista a terceiros e ingressando com processo de recuperação para forçar a concessão de maiores prazos de pagamento, acordos para não pagar juros ou abatimento de valores (fraude conhecida como "bustout"); (2) O devedor que desvia os valores de empréstimo obtido com garantia hipotecária para outra pessoa jurídica, controlada pelo primeiro ou por pessoa a ele ligada, evitando a execução hipotecária pelo ingresso de processo de recuperação sem qualquer fundamento, beneficiando-se da suspensão de execuções ("automatic stay period"), em prejuízo do credor hipotecário (fraude conhecida como "skimming"). Em conclusão, temos que não se pode concordar, no campo dos crimes falimentares, com a mera aplicação da jurisprudência brasileira sobre a atipicidade do "estelionato judiciário", isso porque: (1) o crime do art. 168 da LREF é mais grave que o tipificado no art. 171 do CP, afeta maior número de vítimas e viola a própria credibilidade do Poder Judiciário; (2) eventual impunidade de fraudes em processos de recuperação podem representar severos riscos às expectativas de lisura em tais procedimentos, aumentando os riscos de mercado e os custos de transação inerentes; (3) a tendência de países mais desenvolvidos nessa matéria é tipificar a conduta em estudo. __________ 1 PEREIRA, Alexandre. Crimes Falimentares, Teoria, prática e questões de concursos comentadas. São Paulo: Malheiros, 2010. 2 WICKOUSKI, Stephanie. Bankruptcy crimes. Washington: Beard Books, 2007.
Equilíbrio é tudo! Certamente haverá consenso em qualquer discussão ao se propor que deva haver equilíbrio na busca de soluções para quaisquer questões nas mais variadas relações, sejam elas de ordem social, econômica, jurídica etc. O grande desafio é conquistar esse equilíbrio. O processo para atingi-lo é árduo e sem regras definidas. Na recuperação judicial não é diferente. Este é um processo coletivo com vários interesses contrapostos, no qual o devedor busca melhores condições para o soerguimento da atividade empresarial e a reestruturação de suas dívidas e os credores perseguem as melhores condições para reaverem seus investimentos e interesses, seja em face do devedor, seja em face dos demais credores com os quais concorre. Segundo Eduardo Lemos1: As partes interessadas têm diferentes objetivos e prioridades. Para socorrer a empresa, essas intenções díspares têm de ser conciliadas e a confiança dos credores tem de ser restabelecida. O elemento central dessa conciliação é instituir um processo de comunicação aberto, com o fornecimento de informações confiáveis. A previsibilidade deve ser restaura e más surpresas evitadas de toda forma. Esse papel exige tanto uma imparcialidade em relação aos fatos quanto uma forte lealdade à empresa. O sucesso depende de conseguir que as partes interessadas reconheçam e aceitem a realidade da posição da empresa e cooperem umas com as outras para solução dos reais problemas. Com base nisso, o gestor da recuperação pode começar uma avaliação preliminar das posições das partes relacionadas e identificar logo no início o nível de apoio com que poderá contar da parte de cada uma delas para realizar o plano de recuperação, pois, dependendo das condições de reestruturação da dívida no plano, pode ser mais interessante para elas a venda ou a falência da empresa, lembrando que na falência a venda dos ativos da massa falida pode incluir a inteira unidade produtiva. Especialmente durante os primeiros estágios da recuperação, e durante todo o processo de implementação do plano, será necessário ter uma constante comunicação das posições de curto prazo do caixa, das vendas e dos indicadores de performance. Nota-se que a questão com os credores deve ser abordada tendo como foco o efetivo turnaround da empresa, e não o meandro processual da recuperação judicial para "levar vantagem em tudo, certo?" como cinicamente inferia uma velha propaganda de cigarro. Embora a lei exista para facilitar o turnaround, é praxe das estratégias advocatícias na recuperação ganhar fôlego na circunscrição da lei ficando de olho no placar (o de individualmente "levar vantagem" nas dívidas ou nos espólios), mas perdendo de vista a bola (a efetiva recuperação do valor e da performance aos benefícios de todas as partes relacionadas). A recuperação judicial é um processo de negociação compulsória. Isso dificilmente pode ser negado, seja pelos objetivos estatuídos no art. 47 da lei 11.101/05, que prevê os vetores voltados à preservação da empresa, seja pela nova previsão de que os credores devem votar no seu interesse, sem perder de vista eventual exercício abusivo desse direito (art. 39, § 6, lei 11.101/2005). A supervisão judicial sobre o cumprimento do plano de recuperação judicial, nos termos do art. 61 da lei 11.101/05, foi um instrumento voltado a garantir um enforcement eficaz, ao prever a convolação da recuperação judicial em falência, caso houvesse inadimplemento do devedor dentro do prazo de dois anos. Todavia, com o passar do tempo, os planos de recuperação judicial acabaram por prever o cumprimento de obrigações em prazos longos, muito além do biênio legal, sobretudo prazos de carência que muitas vezes se findavam após o período previsto em lei. Diante da nova redação do artigo 61 da lei 11.101/05, dada pela lei 14.112/20, foi dada a possibilidade de se pronunciar o encerramento da recuperação judicial sem a necessidade do biênio de supervisão judicial. Isso porque, na prática, poucos foram os benefícios do período de supervisão judicial. A possibilidade de convolação direta da recuperação judicial em falência durante o período de supervisão judicial, como dito acima, foi invocada como benefício legal a conferir maior segurança para os credores em relação à expectativa de recebimento de seus créditos. Todavia, muitos planos de recuperação judicial previram prestações a serem adimplidas em período superior ao marco bienal previsto na lei. Após o seu transcurso, eventual inadimplemento poderá ser objeto de execução específica ou de pedido de decretação de quebra, nos termos previstos no artigo 62 da LRF. Assim, muitas obrigações não são alcançadas pelo instrumento previsto no artigo 73, inciso IV, da lei 11.101/05. E não se pode negar que os meios de recuperação judicial possuem caráter eminentemente econômico devendo haver intervenção mínima do Poder Judiciário tão somente nos casos de evidente ilegalidade na cláusula analisada. Mesmo assim, a jurisprudência tem reconhecido que meios de pagamento, deságios e prazos de carência acabam por se circunscrever a aspectos econômicos do plano, o que deve ser bem pensado e discutido entre devedor e seus credores. Mas mesmo a convolação direta da recuperação judicial em falência pode não se mostrar um instrumento efetivo para segurança e recebimento do credor. Isso porque seu crédito pode assumir uma posição desfavorável num processo falimentar, a depender de sua natureza e do volume de créditos que lhe antecedam, de acordo com o rol dos arts. 83 e 84 da lei 11.101/05. Desse modo, uma execução específica pode se apresentar mais vantajosa, uma vez que o credor não concorrerá com uma universalidade de créditos, havendo melhores possibilidades de recuperação do valor que investiu na atividade em crise. Outro fator que deve ser levado em consideração é o próprio racional econômico da supervisão judicial e os efeitos da manutenção do trâmite de uma recuperação judicial. Ao votarem pela aprovação do plano, os credores exteriorizam a confiança no soerguimento da atividade e que a manutenção da empresa poderá ser mais benéfica na recuperação de seus créditos. Logo, é mais interessante que a recuperanda obtenha reais condições de mercado favoráveis à retomada da atividade, devendo a legislação de insolvência, nesse particular, funcionar como um facilitador de desenvolvimento econômico e social, criando estímulos ao empreendedorismo e à reabilitação da empresa em crise econômica-financeira. Uma das maiores dificuldades enfrentadas no âmbito do exercício da atividade empresarial em nosso país é a obtenção de crédito, seja em um quadro de normalidade do empreendimento, seja na situação de crise econômico-financeira da atividade, hoje ainda com métodos muito burocráticos e limitados, cuja concentração de mercado de fornecedores reside nas instituições financeiras, factorings e FIDCs de custo muito elevado aos tomadores. Como bem explica Leonardo Adriano Ribeiro Dias2: A resolução 2.682/99 do BACEN estabeleceu critérios para as instituições financeiras classificarem suas operações de crédito em função do risco que apresentam, além de estabelecer regras de provisão para créditos de liquidação duvidosa. Por força do art. 44 da ICVM 356/01, a resolução 2.682/99 se aplica aos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios. Neste particular, Leonardo Adriano Ribeiro Dias bem esclarece a realidade da aplicação de tais normativos à empresas em recuperação judicial: "Normalmente, quando a empresa recorre ao procedimento recuperacional, ela já está inadimplente perante bancos por período superior a cento e oitenta dias, ou sua operação já foi até mesmo lançada a prejuízo. Na prática, isso inibe a concessão de novos créditos pelas instituições financeiras, pois eles também serão classificados com rating H, na medida em que as operações de um mesmo devedor ou grupo econômico possuem uma única classificação que, como regra, é a que apresenta maior risco. Assim, seria necessário provisionar 100% do valor do novo crédito, o que tornaria a operação bastante onerosa e poderia diminuir consideravelmente o lucro da instituição financeira. O chamado efeito 'arrasto' ou 'contaminação' foi criticada em pesquisa empreendida com profissionais dessas instituições, sob o argumento de que a norma desconsidera as diferentes estruturas de operação e garantiase, portanto, a perda da inadimplência. Logo, caso o banco decida conceder créditos a empresas em recuperação judicial, deverá, em regra, cobrar taxas de juros proibitivas para compensar a provisão ou socializar seus efeitos em outras operações de crédito com juros majorados". De outro lado, o escopo da recuperação judicial é a retomada da normalidade da atividade empresarial, através da superação de sua crise econômico-financeira, servindo o plano não só como forma de recuperação dos créditos de seus credores e parceiros comerciais, mas para proporcionar uma readequação da própria operação para reconstrução de sua competitividade e capacidade de enfrentamento do ambiente de riscos que é o mercado empresarial. E para que isso se torne realidade existe a necessidade da empresa gozar de boa reputação para obtenção de crédito e da confiança dos seus parceiros comerciais. Nesse passo, o encerramento do processo de recuperação judicial funciona como um importante fator de fresh start da atividade, pois permitirá que ela possa ter avaliada sua situação de crédito sem ostentar a condição de recuperanda e os efeitos deletérios decorrentes dessa situação no mercado financeiro, além de reposicioná-la em condições de normalidade no ambiente empresarial, reconquistando a confiança daqueles que com ela podem estabelecer relações comerciais. De mais a mais, o prolongamento do trâmite da recuperação judicial com o período de supervisão judicial impõe incremento dos custos do processo, pois haverá alongamento de pagamento dos honorários do administrador judicial e de advogados, além de encarecer o próprio sistema de justiça, pela necessidade de destinação de recursos materiais e humanos do Poder Judiciário e de outros órgãos, sem que se tenha certeza de efetividade da jurisdição no processo de soerguimento e de recuperação dos créditos. Embora nosso sistema processual civil tenha adotado a teoria dos negócios jurídicos processuais, segundo a qual as partes podem convencionar sobre seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, há limitação de ordem pública sobre eventual convenção aos poderes processuais do juiz. Assim, impor ao Poder Judiciário a tramitação de um processo sem qualquer demonstração de utilidade de tal calendarização, viola-se o devido processo legal na perspectiva de interesse processual e do direito fundamental à razoável duração do processo. Essa visão, entretanto, não impede que o Juízo presida alguns atos necessários ao bom termo da recuperação judicial, tais como a alienação de ativos e o julgamento das habilitações ainda pendentes ao tempo da sentença de concessão e encerramento do procedimento, os quais podem ser ultimados em razão da amplitude do alcance do art. 59, § 1º da lei 11.101/05. Portanto, sob o prisma do consequencialismo jurídico constante dos arts. 20 e 21 da LINDB, inegável que o período de supervisão judicial traduz poucos efeitos benéficos ao instituto da recuperação judicial e à sua capacidade de funcionar como meio de recolocação da atividade no comércio com a superação de sua crise econômico-financeira, merecendo acolhimento a proposta de encerramento desta recuperação judicial, devidamente aprovada pelos credores. Assim, é importante que devedor e seus credores discutam a importância da manutenção do período de supervisão judicial, com a demonstração de seu racional econômico, a fim de que o Poder Judiciário possa analisar seus aspectos de legalidade, inclusive sob os fundamentos do negócio jurídico processual, uma vez que haverá irradiação de efeitos ao processo, com a manutenção do procedimento e todos os custos a ele inerentes. Mesmo no caso de aproveitamento de benefícios fiscais introduzidos pela Lei 14.112/2020, não deixa de ser um ônus da devedora a demonstração da necessidade de eventual existência do período de supervisão judicial, mediante a apresentação dos atos praticados na busca de readequação do passivo fiscal e a perspectiva, se possível, da realização da pretensão, para modulação do período em que o processo de recuperação judicial deva ficar ativo. Enfim, equilíbrio é tudo! ___________ 1 LEMOS, Eduardo. Direito da Empresas em Crise. Coordenação: Paulo Fernando Campos Salles de Toledo e Francisco Sátiro. São Paulo. Quartier Latin. 2012. Página 91. 2 DIAS, Leonardo Adriano Ribeiro. Financiamento na Recuperação Judicial e na Falência. São Paulo. Quartier Latin, 2014. Página 272.  
Introdução Os regimes de insolvência empresarial sempre foram considerados benefícios concedidos ao comerciante, consubstanciando verdadeira contrapartida aos riscos por ele assumidos e à importante função social desempenhada. Atualmente, os institutos previstos na lei 11.101/2005 - recuperação judicial, extrajudicial e falência - são destinados apenas ao empresário e às sociedades empresárias, conforme a previsão de seu art. 1º, dispositivo que deve ser interpretado em conjunto com o art. 966 do Código Civil, que, por sua vez, considera empresário aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Debate de relevância atual diz respeito à possibilidade de submissão das sociedades de propósito específico (SPEs), com patrimônio de afetação, aos regimes de insolvência empresarial previstos na lei 11.101/2005 - mais especificamente, à recuperação judicial. Isso porque ainda que o patrimônio segregado seja destinado à atividade empresária, o art. 119, IX da lei 11.101/20051 dispõe que os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação especial, não se sujeitando à falência. Em sentido similar, o art. 31-F da lei 4.591/642 estipula que os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, gerando questionamentos sobre o acesso das SPEs, com patrimônio segregado, à recuperação judicial, eis que, em tese, pode acarretar em falência. A SPE e o patrimônio de afetação A sociedade de propósito específico (SPE) não é um modelo societário, mas uma forma (um veículo) de alocação de riscos para o desempenho de determinada atividade, a partir da constituição de uma sociedade com qualquer modelo legal (limitada, anônima, etc) e personalidade jurídica, gestão e objeto próprios. A criação de um patrimônio da afetação, disciplinada no art. 31-A da lei 4.591/643, é um regime de segregação patrimonial suplementar à SPE, que permite que o incorporador destaque um conjunto de ativos e passivos do restante de seu patrimônio, vinculando-os à determinada incorporação imobiliária, delimitando, portanto, os riscos assumidos pelos adquirentes das unidades imobiliárias e da própria incorporadora4. Trata-se de ficção jurídica que excepciona a regra geral de que o patrimônio do devedor é garantia geral de seus credores. Assim sendo, a SPE destinará alguns bens ao denominado patrimônio de afetação, os quais restarão vinculados à consecução do empreendimento imobiliário. Em que pese a situação pareça ser, na prática, similar à existência de duas pessoas jurídicas distintas, com patrimônios distintos, trata-se de uma única sociedade, que possui a particularidade de possuir parcela de seu patrimônio segregada para a consecução de determinada finalidade. De igual modo, a instituição do patrimônio segregado não implica na classificação do objeto de uma sociedade empresária (simples ou empresarial), de propósito específico ou não, nos termos do art. 966 do Código Civil5 - regra legal de relevância para fins de submissão à lei 11.101/2005. Como consequência, torna-se perfeitamente possível a recuperação judicial de uma sociedade de propósito específico com patrimônio de afetação, desde que (i) esta desenvolva atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços e (ii) seja respeitada a segregação patrimonial. O disposto no art. 119, IX da lei 11.101/2005 e art. 31-F da lei 4.591/64 não alteram esta conclusão. Quando a lei 11.101/2005 pretendeu excluir determinados agentes econômicos do regime especial de insolvência empresarial, classificados como empresários, nos termos do art. 1º da lei 11.101/2005, assim o fez de forma expressa na regra excepcional de seu art. 2º6-7. Mesmo nestes casos, a interpretação estritamente literal do dispositivo em comento é equivocada, eis que alguns dos agentes ali listados estão sim submetidos à lei 11.101/2005, ainda que de forma parcial: sua falência pode perfeitamente ser decretada, mas está condicionada à submissão a regimes administrativos regulatórios prévios e especiais (a exemplo da liquidação extrajudicial; como reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça8), destinados a atividades específicas cuja paralização pode gerar risco sistêmico ao mercado.  A leitura do referido art. 2º demonstra não haver qualquer impedimento à submissão das sociedades de propósito específico (com ou sem patrimônio afetado) aos regimes de insolvência empresarial. A delimitação estipulada no art. 31-F da lei 4.591/64 refere-se apenas ao alcance do patrimônio segregado, não havendo qualquer proibição da decretação da falência do incorporador na hipótese de afetação de seu patrimônio. Na mesma linha de raciocínio, o art. 119, IX da lei 11.101/2005, em redação clara, reforça a necessidade de respeito à segregação patrimonial no caso de a incorporadora ter sua falência decretada - o que não impede, naturalmente, e com o perdão da redundância, a decretação da falência da própria SPE com patrimônio afetado. Apenas determina que os bens afetados ao patrimônio não serão, em tese, destinados à alienação para saldar o passivo; ao contrário, terão o destino decidido pela "continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação" (art. 31-F, § 1º, da lei 4.591/1964)9-10. No caso da recuperação judicial, a incomunicabilidade do patrimônio de afetação também será preservada - o que não impede, repita-se, o acesso das SPEs com patrimônio segregado ao instituto, como ressalta Melhim Namen Chalhub11: Recorde-se que os patrimônios de afetação são incomunicáveis por definição legal e só por lei a incomunicabilidade pode ser excepcionada, o que não ocorre em relação à recuperação judicial. E, na medida em que a empresa recuperanda deve continuar em atividade, seus diretores prosseguirão o recebimento dos recursos provenientes das vendas e, bem assim, de financiamento, se houver, e os aplicarão na execução da obra e na liquidação do passivo da incorporação; nessa atividade, esses mesmos administradores (...) continuarão a praticar os demais atos típicos da administração dos patrimônios de afetação, definidos no art. 31-D da Lei 4.591/1964.  A análise da viabilidade econômica das empresas em dificuldade é matéria atinente aos credores e às devedoras, reunidos em assembleia geral de credores para votação do plano de recuperação judicial. Em razão da incomunicabilidade do patrimônio de afetação, haverá, nestas hipóteses, o diferencial de que não se pode admitir a consolidação substancial (art. 69-J da lei 11.101/200512). Nesse caso, as SPEs com patrimônio segregado não poderão se valer dos bens afetados como mecanismo de recuperação, uma vez que estes estão vinculados à consecução da incorporação. Isso não impede, entretanto, que outras formas de reestruturação (exemplificadas no rol do art. 50 da lei 11.101/2005) - diversas da utilização do patrimônio afetado - sejam buscadas no âmbito da negociação coletiva, restando evidente que a existência de patrimônio de afetação é apenas um dos itens a ser considerado no plano de reestruturação, mas jamais como empecilho peremptório de acesso ao instituto da recuperação judicial. Nestes casos, apenas os credores do patrimônio afetado, em conjunto com os adquirentes das unidades autônomas, poderão deliberar sobre a utilização dos bens segregados para fins de superação da crise, viabilizando a reestruturação das SPEs com patrimônio afetado. Os demais bens existentes no patrimônio "geral" do incorporador, por outro lado, estão livres e poderão ser utilizados no plano de reestruturação a ser negociado entre as devedoras e seus credores. Com efeito, a assembleia de adquirentes das unidades autônomas pode deliberar de forma distinta, de modo a destinar os bens afetados à superação da crise da empresa, como forma de liquidação do patrimônio de afetação13, sendo este o foro próprio para tal decisão, não se confundindo com a assembleia geral de credores, prevista na lei 11.101/2005. Para melhor compreensão, vejamos que o patrimônio total de uma SPE pode ser equivalente a X, e apenas 20% de X estar afetado para determinada incorporação. Assim sendo, é perfeitamente possível a recuperação judicial da SPE com patrimônio afetado: enquanto os 20% de X ficarão vinculados às obrigações relacionadas ao empreendimento segregado, os demais 80% serão destinados aos demais credores da incorporadora, na forma do plano aprovado. Qualquer solução diversa necessita da deliberação da assembleia de adquirentes. A jurisprudência vai se consolidando O tema já foi objeto de análise pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em dois casos emblemáticos: o do Grupo Viver e o do Grupo PDG, duas grandes incorporadoras brasileiras. Em 12 de junho de 2017, quando do julgamento de agravo de instrumento interposto na recuperação judicial do Grupo Viver14, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial considerou incompatível com a recuperação a situação de SPEs dotadas de patrimônio de afetação. Posteriormente, em 10 de setembro de 2018, ao analisar agravo de instrumento interposto no caso do Grupo PDG15, aquele mesmo órgão colegiado reviu o seu entendimento e admitiu a recuperação judicial das SPEs (com e sem patrimônio de afetação), excluindo do feito recuperatório, todavia, os patrimônios segregados, não sujeitos ao plano de reestruturação. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, adotando tese que parece-nos mais acertada, reputou plenamente possível a harmonização entre o patrimônio de afetação e a recuperação judicial, desde que respeitado o regime de segregação patrimonial, destacando que "[a submissão das SPEs com patrimônio segregado à recuperação judicial] não coloca em risco o chamado patrimônio de afetação vinculado aos referidos empreendimentos, ao contrário, confere a incomunicabilidade e autonomia do patrimônio afetado"16. O Superior Tribunal de Justiça, até o presente momento, não teve a oportunidade de fixar posição definitiva sobre a matéria, havendo decisão monocrática liminar no sentido de suspender decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual havia indeferido, em grau recursal, o pedido de recuperação judicial de SPE com patrimônio de afetação, no caso do Grupo João Fortes Engenharia17. Conclusão Nesse contexto, impedir o acesso das SPEs com patrimônio de afetação ao instituto da recuperação judicial, direito conferido a todos aqueles que desenvolvem atividade empresária, vai de encontro não apenas ao espírito da lei 11.101/2005, cuja pedra de toque é a preservação da empresa, mas às previsões expressas contidas em seus arts. 2º e 119, IX, além de violar os arts. 31-A e 31-F da lei 4.591/1964. Não se pode afirmar, assim, categoricamente, que a existência de um patrimônio de afetação enseja, por si só, a impossibilidade da submissão da sociedade à recuperação judicial, sendo certo, tão somente, que deverá ser respeitada a segregação patrimonial engendrada, deixando à cargo da recuperanda, em razão de cada caso concreto, demonstrar aos seus credores sua capacidade de reerguimento, ultrapassando as dificuldades momentâneas por esta amargadas.   __________ 1 Art. 119. Nas relações contratuais a seguir mencionadas prevalecerão as seguintes regras: IX - os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer. 2 Art. 31-F. Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação. 3 Art. 31-A. "A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes." No mesmo sentido, o parágrafo 1º do referido dispositivo legal esclarece que o patrimônio afetado não se comunica com o patrimônio geral do incorporador ou outros patrimônios de afetação por ele constituídos, respondendo apenas por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva: "§ 1o O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva." 4 Nesse sentido: "É nesse plano das garantias que se compreende o patrimônio de afetação, que consiste, em suma, na adoção de um patrimônio próprio para cada empreendimento. Operacionalmente, terá a sua própria contabilidade, separada das operações da incorporada e (ou) construtora, o que confere segurança aos adquirentes quanto à destinação dos recursos. Não resta dúvida quanto à natureza do patrimônio: é garantia constituída em favor dos adquirentes." GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 345-347. 5 Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. 6 Art. 2º Esta Lei não se aplica a: I - empresa pública e sociedade de economia mista; II - instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores. 7 Eduardo Takemi Kataoka comenta a possibilidade de submissão dos incorporadores imobiliários, não mencionados no rol taxativo do art. 2º da lei 11.101/2005: "Assim como acontece com empresas de diversos setores da economia, é possível que um incorporador imobiliário pretenda pleitear a recuperação judicial ou requerer a falência, na forma dos art. 1º e 2º da Lei de Falências. O art. 1º prevê as entidades que estão sujeitas ao regramento recuperacional e falimentar da lei: (i) a pessoa jurídica de direito privado constituída na forma de sociedade empresária e (ii) a pessoa física empresária. Por sua vez, o art. 2º apresenta as entidades às quais não se aplica o regime da Lei de Falências, sem qualquer menção ao incorporador imobiliário." KATAOKA, Eduardo Takemi. A recuperação judicial e o patrimônio de afetação in: Revista dos Tribunais. Vol. 6. Jul-Ago, 2014. 8 STJ, REsp 1878653 / RS, Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Julg.: 14/12/2021. DJe: 17/12/2021. 9 Art. 31-F, § 1º -  Nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua falta, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembléia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora.   10 Sobre a possibilidade de declaração de falência das SPE com patrimônio afetado, Daniel Carnio Costa e Alexandre Correa Nasser de Melo asseveram: "Recorde-se que os patrimônios de afetação são incomunicáveis por definição legal e só por lei a incomunicabilidade pode ser excepcionada, o que não ocorre em relação à recuperação judicial. E, na medida em que a empresa recuperanda deve continuar em atividade, seus diretores prosseguirão o recebimento dos recursos provenientes das vendas e, bem assim, de financiamento, se houver, e os aplicarão na execução da obra e na liquidação do passivo da incorporação; nessa atividade, esses mesmos administradores (...) continuarão a praticar os demais atos típicos da administração dos patrimônios de afetação, definidos no art. 31-D da Lei 4.591/1964." COSTA, Daniel Carnio; MELO, Alexandre Correa Nasser de. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. Curitiba: Juruá. 2021, p. 268. 11 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação Imobiliária. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 141. 12 Art. 69-J. O juiz poderá, de forma excepcional, independentemente da realização de assembleia-geral, autorizar a consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores integrantes do mesmo grupo econômico que estejam em recuperação judicial sob consolidação processual, apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, 2 (duas) das seguintes hipóteses: 13 Art. 31-F, § 1o Nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua falta, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembléia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora. 14 TJSP; Agravo de Instrumento 2236772-85.2016.8.26.0000; Relator (a): Fabio Tabosa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 12/06/2017; Data de Registro: 20/06/2017. 15 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de Instrumento nº 2023264-85.2018.8.26.0000. Declaração de voto convergente: Desembargador Grava Brazil. Data do Julgamento: 10.09.2018. DJe: 14.09.2018.  16 TJ-DF 07050749520188070000 DF 0705074-95.2018.8.07.0000, Relator: Fátima Rafael, Data de Julgamento: 20/09/2018, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe : 26/09/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada. Naquele caso, o Tribunal destacou que houve o cuidado de resguardar o patrimônio afetado (e, consequentemente, os interesses dos adquirentes das unidades imobiliárias), que responderia apenas pelas obrigações vinculadas à incorporação específica, como determina a legislação federal: "Da análise dos autos, verifica-se que o MM. Juiz a quo, ao proferir a r. decisão agravada, cuidou de resguardar o patrimônio afetado para responder apenas pelas obrigações vinculadas à própria incorporação. Como se sabe, nos moldes do artigo 31-A da Lei n° 4.591/64, com redação determinada pela Lei n° 10.931/04, o patrimônio de afetação justifica-se em razão da vulnerabilidade dos adquirentes das unidades imobiliárias frente às mudanças do negócio incorporativo. Assim, reconhecida à existência do patrimônio segregado, ele passa a responder somente pelas dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação". 17 Decisão monocrática proferida pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva nos autos do Pedido de Tutela Provisória nº 3752-RJ (2021/0265210-4), em 19 de agosto de 2021.
terça-feira, 8 de março de 2022

Quando as exceções ameaçam virar a regra

1. Introdução Pouco mais de um ano após a entrada em vigor da reforma à lei 11.101/05 ("LRF"), instituída pela lei 14.122/20, observamos alterações palpáveis ao sistema de insolvência do país, hoje cada vez mais visíveis. Vários exemplos foram abordados nesta coluna nos últimos meses, e incluem a possibilidade de credores apresentarem um plano de recuperação judicial  ("RJ"), a limitação às prorrogações sem-fim do stay period na RJ que eram habituais, a simplificação do sistema de alienação de ativos, o incentivo ao fresh start do falido e regras mais claras em benefício do investidor no financiamento aos devedores em RJ ("DIP Financing"). Há consenso no sentido de que essas alterações pontuais na LRF tiveram como mote facilitar a recuperação das empresas insolventes e viáveis, e a retirada do mercado daquelas inviáveis, que ao longo dos anos prorrogavam sua situação de insolvência sem propriamente falir, tornando-se zumbis na cadeia produtiva. A nova LRF, nessas situações, incentiva que ativos troquem de mãos de maneira mais célere e eficiente, sendo reempregados na economia produtiva. Com isso, procura estimular um maior equilíbrio à economia do país, ainda mais num cenário de crises profundas fomentado pela pandemia, e agora pela guerra de proporções globalizadas.  Apesar desses claros avanços, que têm permitido que a LRF atinja melhor os seus objetivos, percebe-se ainda a adoção de certas posições antagônicas e pontuais ao sistema idealizado na LRF, que afetam o frágil equilíbrio dos pesos e contrapesos entre as partes num cenário de insolvência. Em geral, como se verá, essas posições vêm à tona quando buscam fortalecer o sistema de exceções na RJ, permitindo que credores sejam excluídos dos seus efeitos, blindando-os do concurso e da negociação de um plano de pagamento aprovado pela maioria, que afete toda a coletividade. Ou então quando se limita a competência do juízo da RJ para julgar matérias afeitas ao concurso de credores e ao direito recuperacional, transferindo essa competência para outros julgadores que desconhecem os meandros da insolvência, a essencialidade de certos bens para o soerguimento da empresa e os mecanismos aprovados pela coletividade por meio do plano de recuperação judicial. Essas posições pontuais, que buscam legitimar a fuga de alguns ao sistema da LRF, deveriam ser revisitadas sob a ótica do direito concursal e econômico. Afinal, um ou outro credor pode considerar um êxito momentâneo a sua blindagem da RJ. Entretanto, no médio prazo, se a empresa for inviabilizada por não conseguir reorganizar sua estrutura de capital, dificilmente os credores recuperarão seus créditos nessa corrida desenfreada por ativos, que muitas vezes é limitada pela própria essencialidade dos bens. Outros credores, legalmente excluídos da RJ antes da reforma, já perceberam esta circunstância, e hoje participam voluntariamente da regra do jogo concursal, ao negociarem planos de RJ e participarem como "credores extraconcursais aderentes" ou concordarem com transações que cabem no bolso da devedora, como é o caso do fisco. Resta saber qual será a postura desses novos credores "excluídos" ou dos que buscam a interpretação dos negócios jurídicos travados com os recuperandos sob uma ótica dissociada do direito concursal, como se a insolvência passasse ao largo das suas relações. A intuição baseada no comportamento humano, que no direito concursal se manifesta pelo "dilema do prisioneiro", diz que a médio prazo eles perceberão que a melhor alternativa será acompanhar os demais credores concursais. Até a ficha cair, no entanto, muitas empresas viáveis poderão vir a falir. Para evitar esse resultado, no atual cenário de grandes desafios políticos, sociais e econômicos, é aconselhável que tanto o poder legislativo quanto os operadores do direito apliquem com sabedoria as regras do direito concursal estabelecidas pela LRF. Assim será possível estabelecer um jogo mais equilibrado, em que todos mitigam suas perdas: credores, a economia e até mesmo os devedores.     2. Os resultados da reforma da LRF em casos concretos Como já abordei em outros artigos, os objetivos maiores da RJ são permitir que os devedores reorganizem sua estrutura de capital e superem seus problemas de liquidez. Ao mesmo tempo, busca-se poupar os credores de uma corrida pantagruélica e destrutiva por bens do devedor, que em regra será infrutífera, já que a empresa insolvente não possui bens suficientes para pagar todas as dívidas. Ocorre que a LRF sofreu diversas críticas ao longo dos anos, e a sua eficiência foi empiricamente medida por baixos índices de recuperação de créditos e pelo fracasso da falência. Desde que entrou em vigor, em janeiro de 2021, alguns efeitos da nova LRF foram imediatamente sentidos por todos. O mais emblemático deles é que hoje, em casos paradigmáticos, os planos de recuperação são frutos de um intenso e profícuo processo de negociação com os credores, ao invés de serem impostos pelos devedores, que não raras vezes empurravam os credores a um plano menos ruim do que a falência representaria aos seus créditos, mas ainda assim insuficiente para recuperar atividades econômicas viáveis. Em casos recentes mais representativos, esses planos vêm sendo redigidos em conjunto por credores, devedores e investidores em longas horas, dias e meses de negociação. Em duas RJ recentes nas quais representamos os devedores, o resultado final desses planos redigidos a diversas mãos foi a sua aprovação maciça em AGC e a sua rápida homologação judicial em primeira instância, diante da existência de divergências mínimas, em geral apresentadas por credores vocais com baixíssima representatividade frente à coletividade. Esses planos contaram com o apoio ostensivo dos credores, inclusive dos extraconcursais e investidores nos autos, blindando a RJ de ataques infundados. Além da convergência de interesses obtida por meio da intensa negociação entre as partes, os DIP financing foram outro destaque da reforma da LRF. Se antes eram artigo raro, hoje viraram a coqueluche do mercado, e são disputados por investidores que competem pela oportunidade de investimento lucrativo, em benefício de todos -credores, fornecedores correntes, devedores e demais agentes econômicos envolvidos direta e indiretamente na atividade produtiva. Hoje é comum ver investidores DIP e potenciais adquirentes de bens e UPIs participando ativamente das negociações e redação dos planos de RJ. Não se pretende aqui dizer que a reforma resolveu todos os problemas dos que se veem às voltas com situações de insolvência, mas os avanços foram importantes. Mais do que isso, demonstram que o sistema de insolvência e do direito concursal funcionam, bastando ajustes aqui e acolá. Também é imprescindível que as normas sejam interpretadas de forma sistemática, à luz dos princípios e objetivos maiores previstos na LRF. Isso melhora o ambiente de negócios, e todos saem felizes com a certeza de que as transações se revestem da segurança jurídica necessária para prosperarem.  3. As exceções que estão virando regras: uma reflexão sobre a situação dos representantes comerciais, do fiador que honra o crédito após o pedido, e do não reconhecimento da competência do juízo da RJ Em paralelo aos avanços do sistema de insolvência com a nova LRF, um problema sempre presente, desde o início da vigência da lei em 2005, permanece à espreita e alarga sua amplitude: a exclusão de créditos relevantes dos efeitos da RJ. Antes da reforma da LRF, muito se criticava a exclusão dos créditos com garantia fiduciária e oriundos de ACC da RJ (artigos 49, §§3º e 4º). Isso sem contar o fisco, claro, que também sempre esteve fora do jogo. No entanto, depois de mais de 15 anos de batalhas entre devedores e credores, esses problemas foram melhor equacionados na reforma da LRF. Como vimos, o sistema procura se corrigir, e hoje essas partes são incentivadas a trabalhar lado a lado para buscar soluções que melhor atendam à recuperação de créditos e a preservação de atividades econômicas. Ocorre que esse movimento de excepcionar certos credores dos efeitos da RJ tem reaparecido em diversas instâncias. E os efeitos disso são preocupantes. Por exemplo, a recente lei 14.195/21, que alterou dispositivos da lei 4.886/65 relativa aos representantes comerciais, excluiu da RJ os créditos dos representantes comerciais reconhecidos em título executivo judicial, ainda que existentes na data do pedido, mas que transitarem em julgado após o deferimento do processamento da RJ (o que altera a regra clara do artigo 49 da LRF). A constitucionalidade desses dispositivos legais vem sendo questionada na ADIn 7.054 ajuizada pelo Conselho Federal da OAB. Paulo Penalva Santos1 tem um excelente artigo a respeito dos problemas causados pelo novo diploma legal publicado nesta coluna. Vale conferir. Para além dos representantes comerciais, uma longa discussão no judiciário vem sendo travada a respeito dos créditos detidos por fiadores, que são instados a honrar a fiança após o ajuizamento da RJ. As discussões em torno do assunto versam sobre a definição do fato gerador do crédito objeto da fiança: se é o momento da constituição da obrigação principal, ou se é o momento em que o fiador honra a fiança, quando, segundo alguns, seu direito de crédito passaria a existir. Nesses casos, em geral os instrumentos de dívida garantidos pela fiança estabelecem como causa de vencimento antecipado o ajuizamento da RJ em si (a chamada cláusula ipso facto de insolvência), de tal modo que o credor original rescinde o contrato imediatamente após o ajuizamento da RJ e, na sequência, notifica o fiador para honrar o pagamento da dívida. Ocorre que a fiança é contrato acessório, que depende do negócio principal (artigos 818 e 823 do Código Civil). Além disso, o fiador se sub-roga no crédito com o pagamento, de modo que assume a posição do credor original, com todos os seus direitos e deveres, sem a criação de um novo vínculo obrigacional entre as partes (artigos 346, III, 349 e 831 do CC). Apesar da posição maciça dos doutrinadores nesse sentido2, corroborada por decisões em todos os graus de jurisdição, alguns magistrados têm dado ganho de causa aos fiadores, excluindo-os dos efeitos da RJ por julgarem que seu crédito foi constituído após o ajuizamento do pedido. Parte dos que assim entendem utilizam como paradigma acórdão de relatoria da Ministra Nancy Andrighi no caso da OAS, mas que no entanto trata de uma situação diversa, bastante específica e inaplicável à grande maioria dos contratos de fiança objeto de controvérsia: lá se trata de uma carta de crédito em garantia, esta sim autônoma em relação à obrigação principal, se interpretada segundo os termos da publicação ISP98 (International Standby Practices) da Câmara Internacional3, e que foi instada para pagamento apenas no curso da RJ. Qual é o problema que surge se esse entendimento prevalecer em nossos tribunais? Simplesmente ficam excluídos da RJ todos os créditos representados por instrumentos de dívida que possuem (i) a cláusula ipso facto de insolvência; e (ii) garantia de fiança. O volume de créditos negociados no país sob essas condições está longe de ser trivial e sem dúvida crescerá muito diante da possibilidade de não ser reconhecida a concursalidade de tais créditos. Em outras palavras, potencialmente todo e qualquer crédito poderia estar excluído da RJ. Basta ao credor esperto, no momento da contratação, exigir a previsão contratual de vencimento antecipado em caso de RJ e a garantia de fiança para se ver livre (juntamente com o próprio fiador garante) do estigma do devedor insolvente. Isso representaria, sem dúvida, o bug do milênio na insolvência. Por fim, aproveitando o tema da necessária interpretação conjugada das normas esparsas de direito com a LRF e seus princípios de direito concursal, quando se está diante de bens e negócios jurídicos envolvendo uma empresa insolvente, vale tecer breves linhas sobre outro problema que vem se descortinando no horizonte. Trata-se da limitação injustificada da competência do juízo da RJ para apreciar questões relacionadas a contratos e ativos essenciais à recuperanda e ao concurso de credores, à luz do processo recuperacional em curso, quando houver previsão de cláusula arbitral no instrumento contratual. Isso acontece porque, à primeira vista, o princípio da competência-competência (parágrafo único do artigo 8º da Lei nº 9.307/96) que rege a arbitragem dispõe que o próprio tribunal arbitral tem a atribuição para decidir sobre a extensão da sua própria jurisdição.  Isso, aliado à renúncia à jurisdição estatal inerente ao compromisso arbitral, num primeiro olhar retiraria a competência do juízo da RJ para decidir sobre certas matérias. O problema (não tão óbvio à primeira vista) é que muitas das matérias a serem decididas a respeito de um contrato envolvendo a recuperanda são de competência absoluta do juízo recuperacional. Portanto, estão fora do alcance da arbitragem (inteligência do art. 1º da lei 9.307/96). E a justificativa de ordem prática para isso, quase intuitiva, é que os árbitros, por mais familiarizados que estejam com o direito falimentar, não conhecem os meandros da RJ do devedor envolvido na arbitragem, de modo que a questão controvertida passa a ser apreciada preponderantemente sob o viés civilista e contratual, tangenciando apenas o direito recuperacional e (com boa vontade dos julgadores) as circunstâncias que norteiam aquele procedimento de RJ. Em razão disso, doutrina e a jurisprudência4 reconhecem que tais matérias, ainda que em princípio se submetam à cláusula compromissória, são deslocadas para a competência absoluta do juiz da recuperação judicial. Não se trata de desconsiderar a cláusula compromissória e a competência do juízo arbitral. Trata-se, sim, de promover a convivência harmônica entre ambas as jurisdições arbitral e recuperacional, sendo certo que, em caso de conflito, o STJ já consolidou o entendimento de que cabe ao juízo recuperacional decidir sobre matérias atinentes ao acervo patrimonial das recuperandas. É justamente o que a Ministra Nancy Andrighi considerou no julgado paradigma sobre a questão, oriundo da RJ da Oi5. Apesar da jurisprudência caminhar nesse sentido, ainda há julgados delegando as decisões sobre quaisquer temas, diante de um contrato envolvendo cláusula compromissória, aos árbitros. Tais julgados desconsideram as matérias de direito recuperacional, o que é problemático, porquanto desrespeita as esferas de competência de parte a parte, e pode permitir novamente ao credor esperto se desvincular do processo recuperacional, em detrimento de todos os demais credores. 6. Conclusão O resumo desta ópera é que, embora a insolvência no país esteja em constante aperfeiçoamento, com uma legislação mais eficiente, juízes cada vez mais especializados e partes que compreendem o tabuleiro, ainda há ajustes pontuais a serem feitos, com o intuito de manter a higidez do sistema. O regime de exceções de certos credores à RJ, e a limitação da competência dos juízes de RJ em matérias que são claramente de direito concursal, são exemplos que militam contra a segurança jurídica e a eficiência do sistema, em prejuízo a toda a coletividade de agentes envolvidos nesse processo: credores, investidores, a economia e os devedores. À medida que os operadores do direito e legisladores se conscientizarem de que o sistema funciona bem quando as regras do jogo são compreendidas e aplicadas a todos, de forma equânime, o sistema da RJ será mais eficiente. Trocando em miúdos, quando a maioria sai de campo, não se tem jogo. Sob este prisma, estou convencida de que as exceções acima comentadas não passarão a ser regra.  VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil - Obrigações e Responsabilidade Civil - Vol. 2. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 293. Stolze, Pablo; Filho, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil 2 - obrigações. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 197 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código civil, volume V, tomo I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 458. Orlando, GOMES. Obrigações, 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 111-112. Arnaldo, RIZZARDO. Direitos das Obrigações, 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 352 TARTUCE, Flávio. Direito Civil - Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. Vol. 2. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 177. BDINE, Hamid. in Código Civil Comentado, Coord. Cezar Peluso, 12ª ed., Manole, 2018, p. 320.   SACRAMONE, Marcelo Barbosa e PIVA, Fernada Neves. "O pagamento dos débitos da recuperanda: a sub-rogação e o direito de regresso na recuperação judicial". Texto publicado na obra Direito Societário III (Flávio L. Yarshell e Guilherme Setoguti Pereira coord.), Quartier Latin, São Paulo, 2018. ____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/353273/contrato-de-representacao-comercial-e-recuperacao-judicial 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações - Vol. II. 32ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p 206 3 Vide parecer do Prof. Guerreiro nesse sentido (Apelação Cível nº 1068244-62.2017.8.26.0100, 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP, "Negaram provimento ao recurso. V. U.")   4 CC 153.498-RJ e CC 157.099-RJ, ambos do STJ, e TJ/MG AC 10000170156913006 5 CC 153.498-RJ
Os interesses públicos e privados a serem realizados no campo da insolvência1 e a grande variedade de problemas que cotidianamente surgem nas recuperações judiciais e falências nos levam a pensar se é possível o acordo de vontade das partes sobre o desenvolvimento dos processos e os limites em que essa composição pode se dar por meio dos chamados negócios jurídicos processuais. A lei estabeleceu a negociação como meio para enfrentar a crise da empresa, até mesmo porque a imposição de decisões judiciais, que poderiam resolver as questões entre as partes, seria insuficiente para os problemas que originam a litigiosidade, o que equivale dizer que a solução idealizada pelo legislador deve ser obtida pelo apoio dos credores ao reerguimento do devedor. Se o destino final, na recuperação judicial, é o reerguimento do devedor em dificuldade cuja permanência no mercado ainda seja viável; na falência, o objetivo é rápida e eficaz liquidação da empresa. Não se pode perder de vista, porém, que os meios exercem influência sobre o resultado e que as convenções em matéria processual se inserem na moderna tendência de contratualização das relações sociais e, enquanto técnica, também podem incidir sobre a relação processual, para a adaptação do procedimento às especificidades da causa2, sem afrontar normas cogentes que se apoiam sobre os princípios e garantias do processo civil. Poderia se cogitar, desse modo, da composição entre credores e devedor a respeito de diversos aspectos, como a adoção do chamado calendário processual, com a fixação de prazos diversos daqueles referidos na lei; a superação da preclusão; a modificação de procedimentos, com a adoção ou dispensa de fases procedimentais, como o período de fiscalização da execução do plano; a realização de outras formas de deliberação ou de alienação de ativos e até mesmo as convenções processuais nos incidentes dos processos concursais e naquelas ações em que a devedora é parte, entre outras formas de composição que poderiam conformar a prestação jurisdicional às peculiaridades dos casos concretos, que na prática divergem significativamente. Nesse contexto, é preciso observar que a lei 11.101/05 dispõe rigidamente sobre o processo e o percurso que deve ser cumprido pelos atores processuais, sem grandes margens para modificação do procedimento, seja pelo gerenciamento judicial ou por meio de acordo das partes, salvo poucas exceções. Ao contrário da Lei Concursal, o CPC dispõe, no art. 190, sobre a possibilidade de celebração de negócios processuais que versem sobre o procedimento, ônus, poderes, faculdades e deveres processuais das partes, antes ou durante o processo, além de, no art, 191, dispor que: "De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso" (art.191), condicionando tais acordos, entretanto, à eficiência das medidas estipuladas pelas partes para o desenvolvimento do processo. Não obstante a ausência de disposição específica, há regra geral na lei 11.101/05, que, por extensão, possibilita à assembleia geral deliberar, por maioria de seus membros, sobre matéria processual. Nesse contexto, pode ser objeto do acordo de vontades dos envolvidos não somente as disposições sobre o plano de recuperação, mas, 'qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores', consoante dispõe o art. 35, I, f, da LRE, o que certamente inclui a matéria processual e, também, evidentemente, não exclui o controle jurisdicional em termos de existência e validade sobre o que fora estabelecido pelas partes3. Quando o legislador especifica prazos, dispõe sobre a ordem dos atos processuais e o modo pelo qual devem se realizar, baseando-se em casos comuns, que seguem a média dos processos em curso, e acaba, por vezes, desconhecendo situações intrínseca e extrinsecamente muito diferentes. Para essa conclusão, basta comparar a recuperação judicial de uma empresa de médio porte ao processo que envolve grande grupo econômico em litisconsórcio ativo, muitas vezes, com milhares de credores; estaremos diante de problemas com dimensões diferentes, que certamente se refletirão sobre a suficiência dos prazos estabelecidos na lei para a apresentação do plano ou para o oferecimento de objeções, para a realização da assembleia de credores ou outras formas deliberativas previstas na lei, como ainda do chamado período de supervisão do cumprimento do plano aprovado, entre outros temas. No processo inglês, os juízes fixam o calendário em consulta com as partes e advogados, diante da multiplicidade de situações, tomando em conta os casos de grande importância financeira; em contrapartida, há uma série de sanções relativas a custos para coibir os desvios, conferindo certa margem de adaptação às necessidades concretas em favor da eficiência, sem exclusão do controle judicial4. No direito norte-americano, além da fixação de datas e programação do processo, a lei prevê alguma flexibilidade do procedimento, que se apoia principalmente sobre o gerenciamento judicial, como é o exemplo do poder do tribunal para a análise de motivos que podem levar à redução do prazo de exclusividade para a apresentação do plano ou a sua ampliação, normalmente autorizada pelas bankruptcy courts nos maiores casos5. No Direito brasileiro, após a reforma empreendida pela lei 14.112/20, conferiu-se alguma flexibilidade ao procedimento com a possibilidade de aumento do período de suspensão das ações movidas em face do devedor, fixando esse prazo em 180 dias, prorrogável por igual período (§4º, do art. 6º da LRE). Evidentemente, o legislador tomou em conta a prática de nossos tribunais, que já havia abrandado a rigidez da lei diante de hipóteses justificativas para a ampliação desse período. A previsão da possibilidade de aumento do chamado stay period constituiu grande avanço e certamente contribuirá para a flexibilização do processo em favor da consecução dos seus objetivos diante de realidades que não se podem igualar Contudo, essa previsão de flexibilização não se vê em relação aos demais prazos, levando a cogitar da alternativa da fixação de um calendário processual6, principalmente, mas não exclusivamente, para aqueles casos mais intricados, expostos a inúmeros percalços que podem surgir e que ocorrem no dia a dia dos nossos tribunais. É preciso dizer que, embora o calendário possa contar com a participação das partes, devedor e credores, é imprescindível a determinação judicial para a fixação das datas, até mesmo porque o desenvolvimento do processo depende da disponibilidade dos serviços da vara na qual tramita, algo que se relaciona à prestação do serviço público. Tecnicamente, o calendário do processo não constitui espécie de negócio jurídico processual; mas, antes, ato conjunto do juiz e das partes, pois, embora tenda a modificar o procedimento, muitas vezes fixando prazos diversos daqueles estipulados na lei e, portanto, produzindo consequências processuais e alterando o procedimento, há a necessária determinação judicial que o descaracteriza como convenção processual7. Não obstante essa classificação, importante ter em conta que a calendarização da atividade processual de forma razoável flexibiliza o procedimento e pode contribuir fundamentalmente para extrair maior efetividade do processo. Ponderemos que as partes podem ter interesse em influir na atividade-meio e não raramente conhecem as especificidades da causa, estando habilitadas a participar da fixação dos rumos do processo, desde que em harmonia com os objetivos publicísticos8, mesmo que se trate de ato que dependa da palavra final do Judiciário. Por outro lado, é preciso que se diga, também, com relação às convenções processuais, que certas estipulações podem trazer prejuízos injustificados a uma minoria ou mesmo ao serviço público em geral, como seria o caso da eternização de dado processo; por isso, a autonomia da vontade não deve ser total e a lei concursal dita alguns limites expressos, como é o caso do impedimento à negociação sobre a natureza jurídica e a classificação de créditos, critérios de votação em assembleia-geral de credores9, e outros, implícitos, que podem ser extraídos dos princípios constitucionais voltados ao processo, a exemplo daqueles que dão fundamento à publicidade e à ampla defesa. Tais limites expressos e implícitos justificam o exercício do controle judicial sobre as deliberações das partes em termos processuais, levando em conta pontos fundamentais como a disponibilidade do direito em questão; as garantias processuais fundamentais e a previsibilidade do iter processual. De forma mais específica, é preciso notar que avançou também a lei em vigor com a flexibilização das formas de deliberação dos credores no processo concursal, conforme autoriza o art. 39, §4º, da LRF, que se reflete também em relação aos custos do processo, que podem ser reduzidos pela adoção de meios deliberativos mais simples, principalmente, naqueles casos em que a formação da vontade coletiva pode ser alcançada mais facilmente; noutras situações, porém, a realização da assembleia de credores parece ainda ser fundamental e muitas questões podem surgir durante a sua realização, o que pode levar à premente necessidade de se decidir de imediato sobre tais pontos, e nada mais apropriado que o ambiente da assembleia para que ocorram tais deliberações, inclusive sobre a forma pela qual se deve proceder. Isso não leva a concluir que não deva haver o controle judicial posterior sobre a deliberação dos credores, como a correta distribuição do direito de voto; o quórum a ser considerado; a contagem de voto de credor presente na instalação e ausente no momento da deliberação; a exclusão do quórum de credor que se absteve de votar; a forma de votação e outras, para que não haja ofensa ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e contrariedade aos objetivos fixados pela LRE10. Já em relação às outras formas de deliberação dos credores, agora autorizadas pelas modificações trazidas pela lei 14.112/20 (incisos I a III, §4º, do art. 39), os credores manifestarão seu voto isoladamente, pelo que a opção pela forma de proceder dificilmente será objeto de negociação e normalmente se dará pela opção do devedor. Nesses casos, se for escolhido "outro mecanismo", deve ser autorizado pelo juízo, que decidirá se é suficientemente seguro nos termos da lei (inciso III, §4º, do art.39), devendo ser, ainda, todas essas formas, fiscalizadas pelo administrador judicial, que emitirá parecer sobre sua regularidade (§5º do art. 39) a ser submetido ao controle judicial. Também, não há vedação aos acordos de voto na lei 11.101/05, que podem tomar por fundamento legal as regras do CC/02 (art. 425) e as disposições do art. 190 do CPC, que não contrariam o sistema instituído pela lei 11.101/05, ainda que não tenham sido tipificados na legislação concursal. Dessa forma, como tem ressaltado a doutrina11, há a possibilidade da celebração de acordo de credores para influenciar os resultados do processo de recuperação judicial, o que o caracteriza como negócio jurídico processual, pois, além dos efeitos substanciais, produz efetivamente consequências processuais. Deve-se notar, ainda, que o negócio jurídico processual não exige a participação de todas as partes, basta que seja apto a criar, modificar ou extinguir situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento12. Impõe-se, contudo, limites para manter a licitude do acordo de voto dos credores e, para que não haja abuso do direito, deve-se lembrar que o voto deverá ser "exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem" (art. 39, §6º, da lei 11.101/05). O art. 61, caput, da LRF, conforme a redação conferida pela lei 14.112/20, determina que o juiz "poderá" determinar a manutenção do devedor em recuperação judicial pelo prazo máximo de dois anos da concessão da recuperação judicial, o que confere flexibilidade para ser estipulado o prazo em que perdurará esse período de fiscalização. Com essa previsão, cumpre indagar se as partes podem de comum acordo fixar esse prazo13. Veja-se que a extinção do processo após a concessão da recuperação judicial pode ser aconselhável em algumas situações, considerando-se a diferença de custo entre o financiamento concedido no curso do processo de recuperação judicial e aquele que ocorre após a aprovação do plano14, pelo qual são cobrados juros mais baixos; noutras situações, em vista da necessidade de fiscalização de determinadas medidas previstas no plano ou outras causas, necessária a supervisão (art. 61, caput, da LRE). Dessa forma, nem sempre está presente a necessidade dessa fase do processo e, nessas hipóteses, nada obsta que devedor e credores deliberem sobre o tempo que perdurará o período de fiscalização, o que não significa que deva essa questão ser subtraída ao controle judicial; mas, certamente, será evidenciada ao juiz a real vontade das partes nesse ponto, vontade essa que poderá ser contrariada apenas por decisão judicial fundamentada que se apoie na necessidade concreta de fiscalização. Na falência, além de se aproveitar a oportunidade dos negócios processuais relativos a eventuais assembleias gerais, não tão comuns nessa espécie processo, também é possível a formulação de calendários processuais, tomando-se em conta a necessidade da participação direta do juízo, que exercerá o gerenciamento judicial, necessário para a administração do volume de serviço da vara em que tramita o processo. Há utilidade dos negócios processuais também em relação aos incidentes e eventuais ações em que a massa ou a recuperanda sejam partes, em que são cabíveis, dentre outras, convenções para a adoção de meios alternativos de solução de controvérsias ou sobre o ônus da prova; desistência de recursos; renúncia ao direito ou desistência da ação, por parte do credor e do devedor em recuperação; no caso da massa falida, certamente de forma mais limitada, posto depender de autorização do juízo da quebra, ouvidos os credores, devedor e MP, por envolverem, esses negócios, interesses de terceiros e reflexos sobre os direitos substanciais da massa falida. Veja-se, com relação às formas de realização do ativo, que a lei abre oportunidade à deliberação dos credores, quando se trata de alienação de bens pelo chamado "processo competitivo organizado" ou por "qualquer outra modalidade", referidas nos incisos IV e V, do caput, do art. 142 da lei 11.101/05, conforme determina o inciso I, do §3º B, do mesmo artigo, que remete à assembleia de credores.  Mesmo que a deliberação dos credores não envolva todas as partes do processo, pode-se dizer que se trata propriamente de negócio processual, porque vincula aqueles que deliberaram por maioria e também as demais partes. Veja-se que não são as consequências materiais que determinam a natureza processual do negócio e sim os efeitos que produz sobre processo, que não podem ser negados, porque a escolha de uma forma ou outra de venda representa o modo de proceder para esse específico ato processual de alienação de ativos. Também a disposição do art. 145 da LRE torna possível a convenção processual, porque permite aos credores "adjudicar os bens alienados na falência ou adquiri-los por meio de constituição de sociedade, de fundo ou de outro veículo de investimento, com a participação, se necessária, dos atuais sócios do devedor ou de terceiros, ou mediante conversão de dívida em capital"; nessa hipótese, caso seja superavitária a falência, necessariamente, os sócios da devedora devem aquiescer ao negócio.  Como o eventual acordo de vontades certamente produzirá efeitos em relação ao processo, quando pouco, levando ao seu encerramento, eventual ajuste nesse sentido também constitui negócio jurídico processual, que se pode dizer típico, porque relacionado na lei. Não obstante, é preciso notar que a alternativa de constituição de sociedade não obriga aos dissidentes na falência, eis que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado, conforme assegurado na CF/88 (art.5º, XX), devendo a massa ressarcir tais pessoas pelo valor a que teriam direito pela regular realização do ativo15.    Ainda outras convenções processuais podem ser cogitadas nos processos de insolvência, lembrando sempre que algumas disposições em matéria processual são cogentes porque a conformação do processo em determinadas situações prende-se ao interesse público; em outras, a flexibilização do procedimento não deixa de ser compatível com as garantias fundamentais do processo16 e oportuna para levar à eficiência do instrumento e evitar o agravamento da crise que se procura solucionar. Não há como negar, desta maneira, a autonomia privada em termos processuais, se não houver contrariedade à eficiência do sistema de justiça estatal17 ou aos direitos e garantias fundamentais. _____ 1 Mencionando valores explícitos e as dimensões públicas e privadas da lei nessa seara, bem como valores e objetivos que devem ser confrontados nos processos de insolvência: FINCH, Vanessa. Corporate Insolvency Law: Perspectives and principles. 2ª ed., Cambridge, 2009, p.780-787. 2 Cf. CADIET, Loic. "Les conventions relatives au procès n droit français sur la contractualisation du règlement des litiges", in Revista de Processo. Ano 33. N.  160. São Paulo: Revista dos Tribunais. Jun./ 2008, p. 62. 3 Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. "Convenção das partes em matéria processual", in Revista de Direito Recuperacional e Empresa. V.1, julho-setembro de 2016. 4 Cf. BONCI, Marco. "Active case management - English reception and Italian rejection" in Revista de Processo. Ano 38. Vol. 219. Revista dos Tribunais. Maio de 2013. p.235-237. 5 Cf. KORDANA, Kevin A., POSNER, Eric A. "A Positive Theory of Chapter 11", cit., in New York University Law Review 74 (1999), pp.181-183. 6 Consoante ressalta Paulo Furtado, podem as partes "fixar calendário processual, com o objetivo de trazer previsibilidade, celeridade e economia ao procedimento, ficando os credores cientes desde o início das datas em que os atos processuais serão praticados, incluindo a apresentação do plano e as datas de realização da assembleia-geral de credores". FURTADO, Paulo. O negócio jurídico processual na recuperação judicial. Migalhas. São Paulo. Disponível aqui. 7 No mesmo sentido: CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: entre o privatismo e o publicismo. Tese de livre docência apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2015, p.59. 8 Cf. GRECO, Leonardo. "Os atos de disposição processual - primeiras reflexões", in Revista Eletrônica de Direito Processual. 1ª edição. Outubro/dezembro. 2007, p.8. 9 Sobre a vedação da utilização da mediação e conciliação para a natureza jurídica e a classificação de créditos proíbe expressamente a lei 11.101/05, bem como a vedação de negociação sobre a questão dos critérios de votação em assembleia-geral de credores (art.20-B, §2º). 10 Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. "Convenção das partes em matéria processual", in Revista de Direito Recuperacional e Empresa. V.1, julho-setembro de 2016. 11 Cf. GONTÍJO, Vinícios J.M. "Falências e Recuperação de empresas: acordo de credores na assembleia geral", in Revista de Direito Mercantil 159/160. 2011, p.167. 12 Cf. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: entre o privatismo e o publicismo. Tese de livre docência apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2015, p.232. 13 Já se decidiu no sentido que essa é tarefa incumbe ao juiz (AI. 2277616-38.2020.8.26.0000, da Comarca de Guarulhos, TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Araldo Telles, por maioria, j. 9/4/21). 14 Cf. KEBREDLE, Richard; PASIANOTTO, Ricardo M. "Os desafios do 'Financiamento DIP' em casos de reestruturações brasileiros", in Revista de Direito Recuperacional e Empresa. N. 1. Julho - setembro. São Paulo: Thomson Reuters. 2016, p. 2. 15 Cf. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de Recuperação de empresas e Falência. 2ª edição. Saraiva. 2021, p.584. 16 Cf. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: entre o privatismo e o publicismo. Tese de livre docência apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2015, p.207. 17 Cf. CAPONI, Remo. "Autonomia privata e processo civile: gli accordi processuali", in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Ano LXII - Splemento n.3. Milão: Giuffrè. Setembro 2008. pp.102, 104 e 108.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Consolidação substancial e project finance

Os empreendimentos de infraestrutura, de que o nosso país tanto carece, demandam vultosos investimentos. O financiamento para a construção desses empreendimentos depende de estudos muito sofisticados, e, em grande medida, há um cálculo para que o financiamento seja pago pelo faturamento que vier a ser obtido, no futuro, com aquela obra a ser construída. O financiador sabe que nesse tipo de empreendimento há um tempo de projeto e um tempo de construção (muitas vezes, demorado) até a entrega da obra.  É a partir deste instante que se abre a possibilidade de cobrar pelo serviço usufruído pela população. Os empréstimos para financiamento desses empreendimentos são de longo prazo, especialmente porque o pagamento ao financiador será feito com recursos auferidos pelo empreendimento financiado. Nesse tipo de financiamento, os contratos são expressos na previsão de que o pagamento dar-se-á com os recursos obtidos pelo financiado decorrentes da exploração do empreendimento. Há um vai e vem, no sentido de que o dinheiro do financiador vai para a obra, e o dinheiro da exploração da obra volta para o financiador. Cada empreendimento é visto como um negócio isolado, pois é ele que vai se pagar. O risco é isolado no empreendimento em si, sem consideração relevante para com a própria pessoa do empreendedor. O risco não se transmite a outras unidades de negócio. Tal é a noção de project finance, que se define como a "captação de recursos para financiar um projeto de investimento de capital economicamente separável, razão de ser das SPEs (Sociedades de Propósito Específico). Neste caso, os provedores de recursos veem o fluxo de caixa e/ou ativos do projeto como fonte primária de recursos para atender ao serviço da dívida (juros), mais a amortização do principal, a fim de fornecer um retorno compatível sobre o capital investido" (...)."Uma das características que distingue o project finance das demais modalidades de financiamento é a concessão de crédito a uma entidade jurídica segregada"1. Há necessidade de se promover uma segregação jurídica e uma segregação econômico-financeira, pois cada operação deve ser apta a suportar o pagamento dos juros e o pagamento do principal. Luis Ferreira Xavier Borges2, em estudo de 1998, ao apontar os figurantes de um clássico project finance, aponta o patrocinador, fornecedores de equipamentos, de serviços e de insumos, operador, comprador da produção, engenheiro independente, consultor de seguros, conselheiros legal e financeiro, financiador. Afirma que   "Essas mesmas personagens podem coexistir no todo ou em parte, mas a figura da sociedade de propósito especial - special purpose company (SPC) - costuma ser uma constante, que se explica pela própria necessidade de segregar o risco e pelo imperativo de uma personalidade jurídica distinta daquela dos sócios para o veículo dos investimentos". Outro ponto destacado pela doutrina é "A segregação de riscos e, consequentemente, de recursos entre os participantes torna essa estrutura de financiamento mais atrativa para os setores intensivos de capital, como o de infraestrutura"3. Ilustre administrativista4, ao notar a aproximação dos instrumentos de direito privado na seara do direito público, escreveu que "Para o project finance, a constituição da SPE é essencial. Ela figurará como a concessionária de serviço público, no polo prestador do contrato. Por meio dela, o projeto será isolado de quaisquer outros desenvolvidos pelos participantes e nela será administrado o fluxo de caixa do empreendimento (...)" (sem grifo no original). "As garantias do project finance são precipuamente aquelas relativas aos ativos do projeto, os quais espelham a sua rentabilidade (o que mitiga mas não exclui a possibilidade de garantias dos responsáveis do projeto - no caso, os acionistas da SPE concessionária). O contrato de financiamento deixa, portanto, de ter a tradicional característica subjetiva que a ele desde sempre esteve associada (a pessoa-investidora como a razão suficiente para que o mútuo seja celebrado) e assume nota puramente objetiva (o investimento lui même como razão e garantia do empréstimo" (grifos do original). Outro autor5 ensina que "A SPE tem como uma de suas principais finalidades a segregação do risco da atividade concedida do risco das demais atividades desenvolvidas pelas sociedades componentes do grupo vencedor da licitação (normalmente um consórcio). Essa segregação é essencial para o project finance, que é baseado em análise e controle de riscos (...) Com a segregação, limita-se o risco assumido pelos financiadores/credores à atividade de prestação de serviço público". Tem-se, em síntese, a concepção de sociedades de propósito específico com a finalidade de captar recursos com maior facilidade, dada a segregação de riscos e a possibilidade de satisfação do crédito por meio de recursos gerados pelo próprio empreendimento financiado. O isolamento dos riscos, por meio da constituição de sociedades de propósito específico, contribui para a obtenção de recursos; tudo fica isolado já na origem, tudo é segregado, de modo consciente, pelos empreendedores e pelos financiadores. A constituição de uma pessoa jurídica já tem a finalidade de limitar o risco empresarial. Quando se concebe o mecanismo do project finance e a respectiva SPE, tem-se mente especial preocupação com a segregação de riscos, tanto pelo empreendedor como por parte do financiador. Claro que o empreendedor de um projeto de grandes dimensões poderá estar integrado a um grupo empresarial, e esse grupo empresarial poderá experimentar crise econômico-financeira, a ponto de necessitar ajuizar uma recuperação judicial. No âmbito do processo de recuperação judicial poderá ser discutida a chamada consolidação substancial. E é aqui que nasce a conexão entre os dois termos deste artigo. Que papel desempenha o project finance na recuperação judicial. Na consolidação substancial há episódica criação ficcional de uma única entidade devedora, pois todos os devedores são considerados como se fossem um só, e os ativos de todas as empresas em recuperação são reunidos para a satisfação dos credores. Trata-se de uma das consequências da consolidação substancial, nos termos expressos do artigo 69-K da Lei 11.101/05: "Em decorrência da consolidação substancial, ativos e passivos de devedores serão tratados como se pertencessem a um único devedor". Segundo o artigo 69-J, é requisito da consolidação substancial a "confusão entre ativos ou passivos dos devedores". É aqui que surge o conflito entre a consolidação substancial e a SPE criada com recursos oriundos do project finance. A consolidação substancial representa a mistura de todos os empreendimentos como se fossem um só, o que "destrói as bases que fundamentam o cálculo do risco envolvido nos negócios"[6], e isso é o oposto do project finance, que é concebido para se manter isolado até o pagamento do financiamento. No julgamento do AI 2198895-43.2018.8.26.0000, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP entendeu que "Não há que se falar na suspensão total do pagamento dos financiadores, o que seria danoso ao sistema de financiamento de infraestrutura, já que a principal garantia do project finance não teria qualquer serventia diante de dificuldades financeiras enfrentadas pelas concessionarias". Nesse caso, os recebíveis do empreendimento (aeroporto) estavam cedidos em alienação fiduciária. Outro julgado, o AI 2297840- 94.2020.8.26.0000, este da 2ª Câmara Reservada, também faz referência ao project finance, todavia, sem discutir as consequências desse arranjo financeiro no âmbito do processo de recuperação (concessionária de rodovia, remunerada por pedágio). A consolidação substancial não se afeiçoa à ideia do project finance, cuja deliberada e necessária segregação, jurídica e financeira, tem a vocação de permanecer isolada, ainda que o devedor integre um grupo empresarial. A garantia do financiamento é o próprio empreendimento (ou melhor, os recebíveis do empreendimento), mais que os empreendedores, ainda que estes tenham, eventualmente, prestado outras garantias. A confiança do financiador advém do próprio empreendimento a ser financiado, segundo estudos econômicos e financeiros de consultorias especializadas. Por isso, o foco da garantia são os recebíveis gerados pelo projeto financiado, e as considerações de ordem subjetiva, especialmente à garantia, são colocadas em segundo plano. Por essa razão, não influenciam na consolidação substancial. Em rápidas palavras, e à guisa de conclusão, deve ser dito que a regra é a inadmissibilidade da consolidação substancial envolvendo sociedade de propósito específico concebida para a construção de determinado empreendimento, garantido pelos respectivos recebíveis, dada a especial segregação dos riscos envolvendo esse negócio. Rejeitar, prima facie, a consolidação substancial nessas hipóteses é assegurar a confiança do investidor, atraindo-o para o financiamento de longo prazo, tão necessário para a realização de obras de infraestrutura. Certamente, somente em circunstâncias muito excepcionais, é de ser admitida a consolidação substancial entre empresas de um mesmo grupo econômico, em que esteja presente negócio financiado por meio de project finance. _____________ 1 Luis Ferreira Xavier Borges e Viviana Cardoso de Sá e Faria. Project Finance: Considerações sobre a aplicação em infraestrutura no Brasil. Revista do BNDES, v. 9, n. 18, dez. 2002, p. 244. Os autores louvam-se em Finerty. 2 Project finance e infraestrutura: descrição e críticas. Revista do BNDES, v. 5, n. 9, p. 108. 3 Ob. Cit., p. 271. 4 Egon Bockmann Moreira, Concessões de serviços públicos e project finance. Revista Zênite de Licitações e Contratos, n. 199, setembro 2010, p. 870. 5 Henrique Bastos Rocha. Project finance e serviço público, in  Direito Administrativo. Estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Coord. Fábio Medina Osório e Marcos Juruena Villela Souto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006,  p. 839. 6 Gilberto Deon Corrêa Júnior, A consolidação substantiva no direito americano. Artigo publicado na Revista Ajuris, 73, 1998, página 2 da versão eletrônica.
1) Contextualização A lei 14.112/20, que alterou a lei 11.101/05, tratou da contagem de prazos no âmbito das recuperações judiciais e falências. Contudo, conforme já exposto neste espaço, a redação do art. 189 da Lei 11.101/2005, com a reforma, não foi das mais felizes, criando uma verdadeira armadilha para quem atua na área. Assim se afirmou em coluna anterior1: a) O art. 189, § 1º, I da lei 11.101/05, com a alteração da lei 14.112/20, tem redação insuficiente para esclarecer com segurança como se dá a contagem dos prazos no âmbito das recuperações judiciais e falências. b) A melhor interpretação é que os prazos materiais (previstos na lei 11.101/05) sejam contados em dias corridos, ao passo que os prazos processuais (como recursos, ainda que previstos especificamente na L. 11.101/05) sejam contados em dias úteis - em linha com o já decidido pelo STJ antes da recente alteração legislativa. c) Contudo, não será surpreendente se, com lei14.112/20, o STJ pacificar que todos os prazos em tais procedimentos são contados em dias corridos.  Passados alguns meses da vigência da nova lei, vejamos como está a jurisprudência acerca do tema. Infelizmente, como já previsto, há divergências e risco de intempestividade ao advogado. Em síntese, há duas principais posições, como antes se cogitou: i) Há julgados que concluem pela contagem dos prazos processuais em dias úteis, conforme prevê o CPC; ii)  Há decisões pela contagem em dias corridos, considerando as alterações promovidas pela Lei 14.112/20 à Lei 11.101, bem como a "celeridade e a efetividade". 2) Entendimento do TJ/SP O TJ/SP tem duas câmaras de direito empresarial que, portanto, julgam os temas afetos a RJ e falência. Esse Tribunal - felizmente - tem se posicionado pela contagem de prazos em dias úteis. Vejamos alguns julgados que demonstram a assertiva. De início, da 1ª Câmara(grifos nossos): AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE NÃO CONHECEU EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INTEMPESTIVIDADE. PRAZOS CONTADOS EM DIAS ÚTEIS. LEI 14.112/2020. (...) (TJSP; Agravo de Instrumento 2299349-60.2020.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 10/06/2021)  E do inteiro teor, extraímos o seguinte (grifos nossos): Isso porque, a Lei 14.112/2020 encerrou qualquer discussão sobre a contagem dos prazos, estabelecendo que aqueles previstos na lei de falências sejam contados em dias corridos, enquanto os prazos recursais, em dias úteis, nos termos do CPC/20152.  Também a 2ª Câmara se manifesta no sentido de contagem dos prazos processuais em dias úteis. Vejamos, exemplificadamente, o seguinte julgado (grifos nossos): Contraminuta - Preliminar de inadmissibilidade por intempestividade - Rejeição - Contagem do prazo para interposição realizada em dias úteis (Lei nº 11.101/2005, art. 189, "caput" e par. ún.; CPC, art. 1.003, § 5º, c.c. 219) - Tempestividade configurada - Recurso conhecido. Agravo de instrumento - (...). (TJSP; Agravo de Instrumento 2093946-60.2021.8.26.0000; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 20/10/2021)3.  Pode-se dizer que essa é a posição dominante do TJSP: contagem dos prazos processuais em dias úteis4.  3)      Entendimento do TJ/RJ  Não há, no âmbito do TJ/RJ, câmaras especializadas em direito empresarial. Sendo assim, nesse Tribunal, são diversas as câmaras que julgam temas de RJ e falência. Isso torna a questão, por certo, mais pulverizada. De qualquer forma, o TJ/RJ tem decisões pela contagem de prazos em dias corridos. Vejamos um julgado (grifos nosso): AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO EMPRESARIAL E PROCESSUAL. RECURSO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO QUE HOMOLOGOU PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL APROVADO EM ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. MICROSSISTEMA PRÓPRIO DA LEI Nº 11.101/2005, EM QUE A CELERIDADE E A EFETIVIDADE SE IMPÕEM, COM PRAZOS PRÓPRIOS E ESPECÍFICOS, QUE, VIA DE REGRA, DEVEM SER BREVES, PEREMPTÓRIOS, INADIÁVEIS E, DESSA FORMA, CONTADOS DE CONTÍNUA. CÔMPUTO DOS PRAZOS EM DIAS CORRIDOS, SENDO A APLICAÇÃO DO CPC/2015 APENAS SUBSIDIÁRIA. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO C. STJ. CARÊNCIA DE PRESSUPOSTO RECURSAL EXTRÍNSECO DE ADMISSIBILIDADE. INTEMPESTIVIDADE MANIFESTA. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO, NA FORMA DO ARTIGO 932, III, DO CPC (0087120-81.2020.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). FERNANDO FERNANDY FERNANDES - Julgamento: 22/03/2021 - DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)  E existem outros julgados nesse mesmo sentido (contagem de prazos em dias corridos5). Contudo, essa não é a única posição do tribunal fluminense. Há, também, julgados que entendem que o prazo processual deve ser contado em dias úteis. Vejamos um exemplo (grifos nossos): AGRAVO DE INSTRUMENTO. Recuperação judicial. Decisão interlocutória que, a requerimento da recuperanda, determinou que o prazo do stay period, de que trata o artigo 6º, §4º, da Lei n. 11.101/2005, seja contado em dias úteis, nos termos do CPC, artigo 219, e seu parágrafo único. Inaplicabilidade à hipótese da contagem em dias úteis prevista no artigo 219 do CPC, que se refere exclusivamente a contagem dos prazos processuais. Prazo do stay period que não possui eficácia meramente processual, já que, nos termos do artigo 6º da Lei n. 11.101/2005, é possível verificar que ele regula institutos de natureza evidentemente material. E. Superior Tribunal de Justiça que, em reiteradas decisões, reconheceu a natureza material do prazo do stay period, determinando que a sua contagem ocorra em dias corridos e ininterruptos. RECURSO PROVIDO. (0003384-34.2021.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). CELSO SILVA FILHO - Julgamento: 15/06/2021 - VIGÉSIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)  Ou seja, a questão está em aberto no âmbito do TJ/RJ.  4)      Outros tribunais intermediários.  Houve análise específica de SP e RJ pois são os tribunais do país que mais recebem recuperações judiciais e falências. Mas a divergência segue Brasil afora. O TJ/MS, por exemplo, já decidiu pela contagem em dias úteis dos prazos processuais. Vejamos (grifos nossos): AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECUPERAÇÃO JUDICIAL - PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE DO AGRAVO DE INSTRUMENTO - PRAZO ESPECIAL PREVISTO NA LEI DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E DE FALÊNCIA, CONFORME ALTERAÇÃO REALIZADA PELA LEI FEDERAL Nº 14.112/2020 - CONTAGEM EM DIAS CORRIDOS - NÃO APLICAÇÃO AOS PRAZOS RECURSAIS - RECURSO IMPROVIDO - DECISÃO MANTIDA. A Lei Federal nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020, alterou a legislação referente à recuperação judicial, extrajudicial e falência, entrando em vigor no dia 23 de janeiro de 2021, sendo que, entre as inúmeras alterações realizadas na legislação está a afeta à contagem dos prazos relativos ao processo falimentar e recuperacional, os quais devem ser em dias corridos. A norma prevê que todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos e a melhor interpretação a ser dada ao dispositivo é a de que está-se referindo aos prazos decorrentes da referida lei são os prazos materiais, não se aplicando ao prazo para os recursos interpostos contra as decisões proferidas nos processos judiciais, os quais estão previstos exclusivamente no Código de Processo Civil e são computados apenas em dias úteis, na forma do art. 219 do CPC. Parece mais razoável essa interpretação como forma de estabelecer uma solução à controvérsia acerca da contagem de prazos, de modo a se considerar que todos os prazos processuais previstos na Lei de Recuperações e Falências, ou que dela decorram, devam ser contados em dias úteis (...) (TJMS. Agravo de Instrumento n. 1405199-76.2021.8.12.0000, N/A, 3ª Câmara Cível, Relator (a):  Des. Dorival Renato Pavan, j: 24/06/2021, p:  28/06/2021).  Nesse mesmo sentido, há outros tribunais, como: - TJDF; Acórdão 1315748, 07047191720208070000, Relator: FÁBIO EDUARDO MARQUES, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 10/2/2021, publicado no PJe: 17/2/2021; - TJGO, Agravo de Instrumento 5580313-76.2020.8.09.0000, Rel. Des(a). CARLOS HIPOLITO ESCHER, 4ª Câmara Cível, julgado em 12/04/2021, DJe de 12/04/2021; - TJPR - 18ª C.Cível - 0028932-45.2021.8.16.0000 - Chopinzinho -  Rel.: DESEMBARGADORA DENISE KRUGER PEREIRA -  J. 25.10.2021)  De seu turno, no TJ/MT encontra-se julgados nos dois sentidos. Pela contagem em dias corridos (grifos nossos): RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL - DEFERIMENTO DO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL - BEM ESSENCIAL AO DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE - MANUTENÇÃO DO BEM NA POSSE DA EMPRESA - FORMA DE CONTAGEM DE PRAZOS - CÔMPUTO EM DIAS CORRIDOS - SISTEMÁTICA E LOGICIDADE DO REGIME ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA (...). (N.U 1002204-85.2021.8.11.0000, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, CLARICE CLAUDINO DA SILVA, Segunda Câmara de Direito Privado, Julgado em 09/06/2021, Publicado no DJE 10/06/2021).  E no sentido inverso, pela contagem em dias úteis (grifos nossos): RECURO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL - PRELIMINAR DE INADMISSIBILIDADE DAS CONTRARRAZÕES - CONTAGEM DE PRAZO PROCESSUAL EM DIAS ÚTEIS - PRAZO EM DIAS CORRIDOS APENAS PARA ATOS DE NATUREZA MATERIAL DO PROCESSO RECUPERACIONAL - PRELIMINAR REJEITADA (...) I - Os prazos de natureza processual, como para contrarrazões, continuam a ser contados em dias úteis, na forma do Código de Processo Civil. (...) (N.U 1009160-20.2021.8.11.0000, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, SERLY MARCONDES ALVES, Quarta Câmara de Direito Privado, Julgado em 25/08/2021, publicado no DJE 26/08/2021)  5)      STJ  Considerando a legislação não ser clara e a divergência entre tribunais intermediários, é certo que a última palavra acerca do tema será do STJ (CF, art. 105, III, "a" e "c"). Ainda não existe decisão vinculante - e, sem dúvidas, o ideal é que o tema seja sumulado ou objeto de REsp repetitivo. Mas já existem algumas decisões dessa Corte. O primeiro acórdão que tratou do tema foi da 4ª Turma, relatado pelo Ministro Buzzi. E, felizmente, entendeu-se pela contagem de prazo recursal em dias úteis. O acórdão, proferido em setembro de 21, foi assim ementado (grifos nossos): AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PARCIAL PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DA PARTE AGRAVADA. (...)  1.1 Na medida em que regulamentado em diploma normativo diverso do microssistema que compõe o processo recuperacional e falimentar, os prazos processuais para interposição de agravo de instrumento contra decisões interlocutórias nos processos de recuperação judicial e de falência devem observar os ditames da Legislação Processual Civil, sendo computados, por conseguinte, em dias úteis, nos termos do art. 219, do CPC/15. 2. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp 1937868/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 27/09/2021, DJe 01/10/2021)  Vale destacar alguns trechos do voto condutor (grifos nossos):  (...) embora o art. 17, da Lei 11.101/05 disponha que "da decisão judicial sobre a impugnação caberá agravo", essa regra deve ser interpretada em conformidade com o disposto no art. 1.015, parágrafo único, do CPC/15. (...) Assim, apesar do entendimento firmado pela instância de origem, não se está, no presente caso, diante de uma regra excepcional, inserida no microssistema da recuperação judicial, que disciplina prazos próprios e específicos. A regulamentação do recurso de agravo de instrumento está disciplinada em um diploma normativo diverso da Lei 11.101/05. O Código de Processo Civil de 2015. Logo, questionamentos quanto as suas hipóteses de cabimento e prazo deverão ser dirimidos à luz da Legislação Processual Civil.  Essa decisão, como dito, é da 4ª Turma. E, como se sabe, a outra Turma que aprecia questões de direito privado é a 3ª Turma. Não identificamos, até o momento, nenhum acórdão desse órgão sobre o tema. Contudo, identificamos uma decisão monocrática, que trata do tema incidentalmente - e cuja tendência é ir no sentido contrário, ou seja, pela contagem em dias corridos. Vejamos trecho dessa decisão - frise-se, não colegiada (grifos nossos): (...) Sustenta omissão no acórdão recorrido quanto à intempestividade da própria manifestação da agravada (...). Isso porque, a contagem dos prazos na LRF não é em dias úteis, mas sim em dias corridos, como reconhecido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. (...) Da análise do processo, constata-se que, de fato, o Tribunal não analisou tal questão, em que pese tenha sido devidamente suscitada nos embargos de declaração opostos pela parte agravante. (...) Ressalta-se, ademais, que de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça "A Lei de Recuperação e Falência (Lei nº 11.101/2005) prevê um microssistema próprio em que a celeridade e a efetividade se impõem, com prazos próprios e específicos, que, via de regra, devem ser breves, peremptórios, inadiáveis e, dessa forma, contados de forma contínua" (AgInt no AREsp 1548027/MT, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 31/08/2020). Forte nessas razões, com fundamento no art. 932, V, "a", do CPC/2015, bem como na Súmula 568/STJ, CONHEÇO agravo para CONHECER do recurso especial e DARLHE PROVIMENTO, a fim de determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para que este se pronuncie, na esteira do devido processo legal e de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sobre o referido argumento deduzido nos embargos de declaração opostos pela parte agravante (...). (AREsp n 1914724-MT, Min. Relatora Nancy Andrighi, Data do Julgamento 01/09/2021).  Ou seja, não se pode afirmar que há posição pacífica no STJ acerca da contagem de prazos na RJ e falência.  6)      Conclusão: o que fazer?  Da breve compilação de julgados acima reproduzida, percebe-se que a questão da contagem de prazos na RJ e falência, a partir da interpretação da norma contida no art. 189, § 1º, I da Lei 11.101/05, encontra-se ainda longe de estar pacificada. Ademais, mesmo que haja uma maioria de tribunais concluindo pela contagem em dias úteis (como é o caso do TJSP), a questão não está pacífica em outros (como no TJRJ). Resta, então ao STJ definir o tema. Nessa Corte, o primeiro acórdão, da 4ª Turma, filiou-se à corrente da contagem dos prazos processuais em dias úteis (AgInt no REsp 1937868/RJ). Porém, ainda não se trata de precedente vinculante. De seu turno, na 3ª Turma, identificou-se apenas uma decisão monocrática que, em obiter dictum, deixa transparecer a adesão à tese de prazo em dias corridos (AREsp 1914724-MT). O ideal é o que o STJ decida a questão com brevidade - e, ainda melhor, via uma súmula ou REsp repetitivo. Mas, até que isso ocorra, o melhor é a cautela ao advogado. E isso significa contar o prazo em dias corridos; salvo nos casos em que houver, nos autos, decisão expressa definindo a contagem dos prazos em dias úteis - pois aí se tem, no mínimo, a aplicação dos princípios da cooperação e confiança, bem como do ato jurídico processual perfeito, para argumentar no caso de uma posterior fixação de entendimento no sentido dos prazos em dias corridos. E, por certo, é de se lamentar essa indefinição quanto a algo tão básico e relevante como contagem de prazo.  *Daniel Krumpanzl é graduando em Direito na Faculdade Ibmec. Estagiário no escritório Mange Advogados, na área de recuperação judicial e falência. ____________ 1 Texto escrito por Andre Roque e Luiz Dellore, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/341808/a-armadilha-dos-prazos-processuais-na-recuperacao-judicial-e-falencia. 2 Também da 1ª Câmara, de outro relator, no mesmo sentido: Agravo de Instrumento 2063796-96.2021.8.26.0000; Relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 06/05/2021). 3 Essa tem sido a posição 2ª Câmara, também em julgado relatado pelo processualista SHIMURA: Agravo de Instrumento 2098585-58.2020.8.26.0000; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 17/03/2021. 4 Em relação a outros relatores, além dos já antes indicados: Agravo de Instrumento 2272721-34.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 29/04/2021; Agravo de Instrumento 2174608-45.2020.8.26.0000; Relator (a): Azuma Nishi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 01/04/202; Agravo de Instrumento 2032508-33.2021.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 08/06/2021. 5 Vejamos alguns, de outras Câmaras: 0053120-89.2019.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MARÍLIA DE CASTRO NEVES VIEIRA - Julgamento: 29/01/2020 - VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL e 0022781-79.2021.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). CARLOS EDUARDO DA ROSA DA FONSECA PASSOS - Julgamento: 26/05/2021 - DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL).
1) Introdução  O objetivo deste artigo é analisar o tratamento do crédito do representante comercial na recuperação judicial do representado, considerando que o dispositivo do art. 44 lei 4.886/1965, que regula a atividade de representante comercial, com a redação dada pela lei 14.195/2021, passou a ter o seguinte teor: "Art. 44 - No caso de falência ou recuperação judicial do representado, as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, e qualquer outra verba devida ao representante oriunda da relação com base nesta Lei, serão créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas para fins de inclusão no pedido de falência ou plano de recuperação judicial. Parágrafo único. Os créditos devidos ao representante comercial reconhecidos em título executivo judicial transitado em julgado após o deferimento do processamento da recuperação judicial, e a sua respectiva execução, inclusive quanto aos honorários advocatícios, não se sujeitarão à recuperação judicial, aos seus efeitos e à competência do juízo da recuperação, ainda que existentes na data do pedido, e prescreverá em 5 (cinco) anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos garantidos por esta Lei." (grifos acrescentados).  No enfrentamento do tema serão examinadas a constitucionalidade formal e material das alterações introduzidas pela lei 14.195/2021, que resultou da conversão em lei da Medida Provisória nº 1.040/2021 ("MP nº 1.040/2021" ou "MP"). No exame da constitucionalidade material será analisada a possibilidade de interpretação conforme a Constituição, considerando a doutrina e a jurisprudência construída na vigência da anterior redação do art. 44 da lei 4.886/1965, que, incluído pela lei 8.420/1992, estabelecia: "Art. 44 - No caso de falência do representado as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenizações e aviso prévio, serão considerados créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas." 2) inconstitucionalidade formal De acordo com a sua exposição de motivos, a MP 1.040/2021 foi editada com o objetivo de melhorar o ambiente de negócios no Brasil e impactar positivamente a posição do País na classificação geral do relatório Doing Business do Banco Mundial. Para tanto, a MP previu mudanças legislativas destinadas a simplificar a abertura de empresas, aperfeiçoar a proteção aos acionistas minoritários, mediante alterações na Lei das Sociedades Anônimas, desburocratizar o comércio exterior, elevar a segurança jurídica, tudo com o objetivo final de melhorar o ambiente de negócios. A urgência e o relevante interesse público que motivaram a edição da MP foram justificados na necessidade de melhorar a posição do Brasil no Relatório Doing Business 2022, de modo a minimizar os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre a atividade econômica, em razão reflexos que essa melhoria tem nas entradas anuais de investimento estrangeiro1. Durante a sua tramitação no Congresso Nacional, a MP recebeu mais de três centenas de emendas parlamentares, dentre elas a que resultou na alteração da lei 4.886/1965, dando nova redação ao caput e incluindo o parágrafo único do art. 44. Com isso, foi estabelecida relevante modificação no tratamento que se pretende atribuir aos créditos de titularidade de representante comercial na falência e na recuperação judicial. O casuísmo da modificação é denunciado, em primeiro lugar, por ter vindo após as importantes alterações na legislação recuperacional e falimentar, que, após ampla discussão no Congresso Nacional, foram introduzidas pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Além disso, as alterações não têm pertinência com o escopo da MP 1.040/2021. Muito pelo contrário, trazendo insegurança jurídica em matérias que já estavam consolidadas na doutrina e na jurisprudência, a alteração vem na contramão do objetivo de melhorar o ambiente de negócios. Se não, vejamos. Insegurança jurídica trazida pela nova redação do art. 44 e seu parágrafo único. Na vigência do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação dada pela Lei nº 8.420/1992, a jurisprudência, com apoio na doutrina, consolidou-se no sentido de que os créditos equiparados aos trabalhistas, na falência e na recuperação judicial do representado, são aqueles de titularidade do representante comercial pessoa física, não beneficiando o representante comercial pessoa jurídica: "Agravo de Instrumento. Impugnação à relação de credores. Crédito decorrente de representação comercial titularizado por sociedade empresária, dotada de personalidade jurídica, não se equipara aos créditos derivados da legislação do trabalho. O artigo 44 da Lei n° 4.886/65 não foi revogado pelo artigo 83, I, da lei 11.101/2005, nem pela Lei Complementar n° 118/2005 que deu nova redação ao artigo 186 do Código Tributário Nacional. No entanto, sua interpretação deve ser feita sob a óptica do artigo 114 da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional 45/2004, que trata da competência da Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos das relações de trabalho, que abrange relações de emprego e relação de trabalho prestado por pessoa física (v.g. representante comercial autônomo). A equiparação do crédito derivado de representação comercial aos créditos decorrentes da legislação de trabalho, na falência e na recuperação judicial (art.  83, I, LRF) só pode ser reconhecida quando o representante comercial for pessoa física ou "firma individual" inscrita no Registro de Empresas. Agravo provido para classificar o crédito derivado de representação comercial, titularizado por pessoa jurídica, como quirografário, para fins de falência e recuperação judicial." (AI nº 550 678 4/4-00 TJSP, Seção de Direito Privado, Câmara Especial de Direito Privado, Relator Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, unânime, julgado em 27.08.2008). Da leitura do voto do Relator colhe-se que é a natureza alimentar dos créditos que autoriza a equiparação ao crédito trabalhista2: "III) A solução justa para a hipótese retratada nestes autos tem que levar em conta o entendimento do Juiz Marcelo Papaléo de Souza, acima transcrito, que ao tratar da competência da Justiça do Trabalho, com acuidade, afirma que apenas os representantes comerciais pessoas físicas poderão buscar a solução de seus conflitos com os representados na Justiça Laboral, em virtude da natureza alimentar de seus créditos. Por isso, somente poderão invocar a equiparação de seus créditos decorrentes do exercício de representação comercial, na falência ou recuperação do representado, os representantes comerciais pessoas físicas (nesta categoria incluídos os inscritos nas Juntas Comerciais como "firmas individuais" [...]." A nova redação do caput ora comentado não contribui para a segurança jurídica, que é uma das condições identificadas pelo Presidente da República na edição da MP 1.040/2020, para melhorar o ambiente de negócios no Brasil. Com efeito, em atenção ao princípio da supremacia da Constituição tal dispositivo só poderá ser interpretado no sentido que vinha sendo adotado pela jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP"), e isso leva a concluir, em primeiro lugar, que a alteração ou era desnecessária ou é materialmente inválida (tema que será analisado no item 4) e, em segundo lugar, que em qualquer hipótese a modificação poderá reacender discussões em matéria já pacificada na jurisprudência, o que não contribui para melhoria do ambiente de negócios no Brasil. Por sua vez, o parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, incluído pelo art. 53 da lei 14.195/2021, afastou o critério adotado pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ") em julgamento de recurso especial afetado ao rito do art. 1.036 do Código de Processo Civil de 2015 ("CPC/2015"), para resolver controvérsia assim delimitada: "interpretação do artigo 49, caput, da lei 11.101/2005, de modo a definir se a existência do crédito é determinada pela data de seu fato gerador ou pelo trânsito em julgado da sentença que o reconhece. 2. Recurso especial afetado ao rito do artigo 1.036 do CPC/2015." (ProAfR no REsp: 1843332 RS 2019/0310053-0, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 28/04/2020, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 06/05/2020). Pois bem, no julgamento dos recursos especiais paradigmas do Tema Repetitivo 1.051, foi afastada a interpretação no sentido de que a existência do crédito seria determinada pela data do trânsito em julgado da sentença que o reconhece, com a fixação, para os fins do art. 1.040 do CPC/2015 da seguinte tese: "Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador." (REsp 1843332/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/12/2020, DJe 17/12/2020). Além da inconstitucionalidade material (tema que será tratado no item 4), o parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, incluído pela lei 14.195/2021, não contribui para a elevar a segurança jurídica, ao adotar a data do trânsito em julgado como o marco temporal para identificar os créditos sujeitos à recuperação judicial do representado, afastando, assim, o critério estabelecido no Tema Repetitivo 1.051. Violação do processo legislativo. Além de a exposição de motivos indicar o seu objetivo, o art. 1º da MP 1.040/2021, o delimita claramente ao estabelecer: "Esta Medida Provisória dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos - Sira, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente na lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil"3. Da leitura da exposição de motivos e do art. 1º da MP 1.040/2021, conclui-se que o Presidente da República não cogitou de alteração da legislação falimentar ou da instituição de privilégio de representantes comerciais, muito menos da introdução no direito positivo de normas que são incompatíveis com os objetivos da MP, já que são motivo de grave insegurança jurídica, como visto acima. Há, assim, inequívoca falta de pertinência temática entre a emenda parlamentar que deu origem à alteração do art. 44 e seu parágrafo único, da lei 4.886/1965, com a MP 1.040/2021. Esse tema - emendas de contrabando - foi objeto de profunda discussão no julgamento da ADI 5.127-DF, que foi julgada improcedente por maioria, mas "com a cientificação do Poder Legislativo de que o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento, ex nunc, de que não é compatível com a Constituição da República a apresentação de emendas parlamentares sem relação de pertinência temática com medida provisória submetida à apreciação do Congresso Nacional" (DJe 15.05.2016). Conforme sintetizado na ementa, viola "a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo o único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.". Nessas condições, em consonância com a orientação do plenário do Supremo Tribunal Federal ("STF"), firmada com efeito ex nunc, em maio de 2016, no julgamento da ADI 5.127-DF, conclui-se pela inconstitucionalidade formal do art. 44 e seu parágrafo único da lei 4.886/1965, na redação dada pela lei 14.195/2021, que resultou da conversão da MP 1.040/2021, porque se trata de disposição que teve origem em emenda parlamentar sem pertinência com o objeto da MP. 3) Inconstitucionalidade material e interpretação conforme a Constituição Na recuperação judicial, os credores a ela sujeitos são divididos em quatro classes (lei 11.101/2005, art. 41, incisos I a IV), todos, em regra, com direito a voto na assembleia geral de credores. Na Classe I, estão os titulares de "créditos decorrentes da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente do trabalho" ("Crédito Trabalhista"), que mereceu tratamento favorecido na Lei, sendo os benefícios mais relevantes os estabelecidos no art. 54 da lei 11.101/2005, no sentido de que o plano não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para o pagamento dos créditos vencidos até a data do pedido (caput), podendo ser estendido em até dois anos, mediante apresentação de garantias suficientes para garantir a integralidade dos créditos e desde que aprovado pela Classe I (§2º do art. 54), o que corresponde à vedação ao cram down. Por sua vez, na falência, os créditos trabalhistas, limitados a até 150 (cento e cinquenta salários-mínimos), preferem a todos os demais (lei 11.101/2005, art. 83 e Código Tributário Nacional, art. 186). O que justifica o tratamento favorecido é a natureza alimentar dos créditos decorrentes da relação de trabalho, cuja caracterização, como visto no item 3 acima, não é exclusiva daquele que presta serviços pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho, podendo validamente alcançar créditos de outros trabalhadores, que, tal como os créditos dos empregados, têm natureza alimentar. Relembre-se que a Corte Especial do STJ, no julgamento do REsp 1.152.218/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 09.10.2014, decidiu sob o sistema dos recursos repetitivos na vigência do Código de Processo Civil de 1973, que "[os] créditos resultantes de honorários advocatícios têm natureza alimentar e equiparam-se aos trabalhistas para efeito de habilitação em falência, seja pela regência do decreto-lei 7.661/1945, seja pela forma prevista na lei 11.101/2005, observado, neste último caso, o limite de valor previsto no artigo 83, inciso I, do referido Diploma legal." (grifos aditados) No âmbito das relações de direito público, o debate a respeito do tratamento a ser dado ao crédito decorrente de relação de trabalho sem vínculo empregatício foi travado no STF com o objetivo de identificar o significado de "débitos de natureza alimentícia", de que trata o § 1º do art. 100, da Constituição da República4, segundo o qual os precatórios relativos a tais créditos serão pagos com preferência em relação aos demais créditos. Os casos que ensejaram a discussão são relativos a precatórios expedidos para pagamento de honorários advocatícios, destacados do principal. Consolidada a jurisprudência, foi editada a Súmula Vinculante 47, aprovada nos termos do art. 103-A da Constituição da República, que declarou os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar.5 A Súmula Vinculante foi aprovada antes da vigência do CPC/2015, o qual, no § 14 do art. 85 reafirma a natureza alimentar dos honorários, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho. Há que se considerar, ainda, que a peculiar natureza do crédito relativo a honorários advocatícios tem fundamento na própria natureza da profissão ante a essencialidade do advogado para o funcionamento do Poder Judiciário, conforme prescreve a Constituição da República: "O advogado é essencial à administração da Justiça" (art. 133). Daí a precisa observação de José Afonso da Silva, com apoio na lição de Eduardo J. Couture6:"A advocacia não é apenas uma profissão, é também um múnus e "uma árdua fadiga posta a serviço da justiça"." O advogado, no seu mister privado, presta serviço público e exerce função social (lei 8.906/1994, art. 2º, §1º). É essencial à administração da justiça porque sem a sua presença não se cumpre a garantia do devido processo legal, que integra o rol das garantias individuais que constituem cláusula pétrea (CRFB, art. 5º, LIV e LV, cc art. 60, §4º, I). A proteção conferida aos honorários advocatícios não constitui benesse ou privilégio conferido ao advogado, mas garantia deferida aos jurisdicionados, porque os honorários proporcionam ao advogado os meios  para que ele, sem mercantilizar a profissão - o que lhe é absolutamente vedado7 - obtenha meios necessários para a sua subsistência e de sua família, em condições dignas, equiparáveis às demais profissões incumbidas da Administração da Justiça, e, assim, exercer o múnus que a Constituição e a Lei lhe atribuem. Em suma, a investigação da compatibilidade do tratamento favorecido a determinados créditos no processo de falência e de recuperação com a Constituição deve ser feita mediante a averiguação da existência de fundamento constitucional que autorize o tratamento diferenciado sem violar o princípio do par condicio creditorum, corolário do princípio da isonomia. Interpretação conforme a Constituição. Examinadas as alterações do art. 44 da lei 4.886/1965, o que se conclui, no aspecto material, é que o caput é passível de preservação, mediante interpretação conforme a constituição, mecanismo de controle de constitucionalidade que impede a aplicação da norma em sentido que conduziria à sua inconstitucionalidade, como leciona o Ministro Luís Roberto Barroso: "[...] a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara legítima uma determinada leitura da norma legal. Na interpretação conforme a Constituição, o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatível com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sempre que um determinado preceito infraconstitucional comportar diversas possibilidades de interpretação, sendo qualquer delas incompatível com a Constituição. Note-se que o texto legar permanece íntegro, mas sua aplicação fica restrita ao sentido declarado pelo tribunal." (Interpretação e aplicação da Constituição, Editora Saraiva, 1996, p. 175). Trata-se de mecanismo que tem sido adotado pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar parcialmente procedente ação direta de inconstitucionalidade, atribuindo ao dispositivo de lei impugnado "interpretação conforme à Constituição da República"8 para afastar a interpretação que conduziria à inconstitucionalidade da norma infraconstitucional impugnada. Para preservá-lo, o caput art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação que lhe foi dada pela lei 14.195/2021, deve ser entendido no sentido adotado pela jurisprudência do TJSP citada no item 3, que distingue o  crédito do representante comercial autônomo (pessoa física) do crédito da representação comercial exercida por pessoa jurídica/empresa, para afastar a equiparação do crédito de titularidade do representante comercial pessoa jurídica do trabalhador sob vínculo, admitindo-a para o representante comercial pessoa física. A distinção tem fundamento constitucional, tendo em vista que para o representante comercial autônomo (pessoa física), a remuneração decorrente do contrato de representação comercial tem natureza alimentar, tal como o crédito do empregado e essa identidade de natureza autoriza a equiparação, sem incorrer em violação ao princípio do par condicio creditorum. A natureza alimentar não está presente no crédito da empresa que exerce atividade de representação comercial, de modo que a equiparação aos créditos decorrentes da legislação do trabalho resultaria em privilégio odioso, por injustificado e, portanto, incompatível com o princípio constitucional da isonomia. Por essa razão, a interpretação no sentido de que o caput do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação da lei 14.195/2021, abarcaria créditos de empresas, deve ser afastada ante a ausência de fundamento constitucional que possa justificar o privilégio. Pondere-se ainda, que a sociedade empresária, pessoa jurídica que exerce atividade de representação comercial, pode ser uma grande empresa que não atende os requisitos da Lei Complementar 123/2006 para ser enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte e, caso os seus créditos fossem equiparados aos decorrentes da legislação do trabalho, tais créditos passariam a ter, na falência e na recuperação judicial, tratamento mais benéfico do que o atribuído à microempresa ou empresa de pequeno porte. Portanto, além de violar o princípio constitucional da isonomia, a interpretação que considere o crédito da grande empresa abrangido pelo caput do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação da pela lei 14.195/2021, é inconstitucional também porque viola o art. 170, IX, da CRFB, que ao dispor sobre os princípios da ordem econômica, inclui o do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte. No sistema recuperacional, o princípio do tratamento favorecido foi atendido com a inclusão, no art. 41, dos créditos Classe IV, dos titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte, medida que resulta no fortalecimento deste grupo de credores nas negociações com o devedor em recuperação judicial, com reflexos nas condições de pagamento dos respectivos créditos. Norma materialmente inconstitucional. A partir das inovações trazidas com a introdução, pela lei 14.195/2021, do parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, passou-se a atribuir ao representante comercial tratamento diferenciado - e favorecido - no elemento temporal considerado para identificar os créditos sujeitos à recuperação judicial do representado.   De fato, enquanto para todos os demais credores o critério temporal previsto no art. 49 da lei 11.101/2005 é o da data do fato gerador da obrigação, para a categoria dos representantes comerciais, o critério que foi preconizado seria o da data do trânsito em julgado da sentença que reconhecer o crédito. O tratamento é mais benéfico do que o atribuído ao titular de crédito decorrente da legislação do trabalho, ao qual o caput pretendeu equiparar o crédito do representante comercial. Isso porque, enquanto o trabalhador tem a sujeição do seu crédito à recuperação judicial definida pela aplicação do critério da "existência na data do pedido", o crédito do representante comercial, ainda que existente na data do pedido, não ficaria sujeito se reconhecido por sentença transitada em julgado após o ajuizamento do pedido de recuperação. Trata-se, assim, de privilégio odioso, mesmo quando o caput do art. 44 da lei 4.886/1965 é interpretado conforme a Constituição, no sentido de que o crédito equiparado ao decorrente da legislação do trabalho é, apenas, o de titularidade do representante comercial pessoa física, porque depois de equiparar, estabeleceu-se no parágrafo único tratamento mais benéfico do que o atribuído ao próprio empregado. Há, assim, clara violação ao princípio constitucional da isonomia consagrado no caput do art. 5º da Constituição da República. Garantia constitucional do ato jurídico perfeito. Ainda que fossem superadas as inconstitucionalidades do parágrafo único do art. 44 lei 4.886/65 acima mencionadas, seria preciso fazer uma interpretação conforme a Constituição da República para se concluir que essas alterações apenas são aplicáveis às recuperações judiciais ajuizadas e às falências decretadas após a vigência da lei 14.195/2021. O art. 5º, inciso XXXI da Constituição da República estabelece que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Por sua vez, "reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou" (Decreto-Lei nº 4.657/42). Já o art. 49 da lei 11.101/2005 dispõe que "estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos". Do exposto facilmente se conclui que é a data do pedido o marco temporal que submete os créditos à recuperação judicial. Isso significa que as recuperações judiciais requeridas anteriormente lei 14.195/2021, já possuíam o seu rol de créditos sujeitos com base na norma então vigente. A classificação de créditos segundo a lei vigente é ato jurídico perfeito protegido pela Constituição da República. Portanto, deve ser afastada a interpretação de que lei posterior pode "reclassificar" os créditos existentes e já submetidos à recuperação judicial.  4) Conclusões O art. 44 e respectivo parágrafo único da Lei nº 4.886/65, com a redação dada pela Lei nº 14.195/2021, é motivo de insegurança jurídica, porque: (i) a alteração do caput ou era desnecessária ou pretendeu estabelecer privilégio para determinada atividade empresarial já afastado por jurisprudência consolidada no sentido de que somente o crédito de natureza alimentar, de titularidade do representante comercial pessoa física, é que foi validamente equiparado ao crédito decorrente da legislação do trabalho, não o crédito de empresa que exerça atividade de representação comercial; (ii) a alteração estabelecida no parágrafo único é conflitante com a tese firmada no julgamento, pela Segunda Seção do STJ, dos recursos especiais paradigmas do Tema Repetitivo 1.051, com a definição, para os fins do caput do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, da seguinte tese de direito: "Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador"; o conflito está caracterizado pela pretensão de se excluir dos efeitos da recuperação judicial os créditos dos representantes comerciais anteriores ao pedido, se declarados por sentença transitada após o ajuizamento da recuperação judicial. Sendo motivo de insegurança jurídica, as alterações padecem do vício de inconstitucionalidade formal, porque provenientes de Emenda parlamentar ao Projeto de Conversão da MP 1.040/2021, sem nenhuma pertinência temática com a matéria disposta na MP, cujo objetivo foi o de melhorar o ambiente de negócios, inclusive estabelecendo normas voltadas a garantir a necessária segurança jurídica, justamente o que a Emenda não faz. O caput do art. 44 da Lei nº 4.886/65, conforme alterado pela Lei nº 14.195/2021, deve ser interpretado no sentido de que os créditos do representante comercial pessoa física são equiparados ao Crédito Trabalhista na recuperação judicial e na falência do representado. Eventual interpretação que inclua a empresa entre os destinatários do tratamento favorecido importa em criar privilégio sem fundamento constitucional plausível e, por isso, deve ser afastada por incompatível com a Constituição. Por outro lado, o dispositivo comporta interpretação conforme a Constituição, no sentido de que o crédito equiparado ao Crédito Trabalhista é o de titularidade do representante comercial pessoa física, que tem natureza alimentar e, assim, é merecedor do mesmo tratamento dispensado ao Crédito Trabalhista. O parágrafo único do art. 44 Lei nº 4.886/65, incluído pela Lei nº 14.195/2021, é materialmente inconstitucional porque, sem nenhuma justificação plausível para tanto, cria exceção ao sistema da Lei nº 11.101/2005, sedimentado em julgamento pelo regime dos recursos repetitivos, com fixação de tese vinculante para todos os órgãos do Poder Judiciário. O parágrafo único pretende atribuir a determinada categoria - a dos representantes comerciais, pessoa física ou jurídica - tratamento mais favorecido do que o dispensado ao Crédito Trabalhista, incorrendo, assim, em clara violação do princípio constitucional da isonomia. Por fim, caso superadas as inconstitucionalidades expostas, ainda assim seria preciso ser feita interpretação conforme a Constituição da República para se concluir que essas alterações apenas são aplicáveis às recuperações judiciais ajuizadas e às falências decretadas após a vigência da lei 14.195/2021, uma vez que o art. 5º, inciso XXXI da Constituição da República garante que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada", sendo a data do pedido de recuperação judicial e a decretação da falência, respectivamente, os marcos temporais que submetem os créditos a estes regimes. __________ 1 Conforme exposição de motivos, que corresponde à proposta dos Ministros Economia, da Justiça e de Minas e Energia. da Advocacia-Geral da União e da Secretaria-Geral da Presidência da República, dirigida ao Chefe do Poder Executivo: "11. Por fim, temos a certeza de que a revisão do arcabouço legal por meio das inovações e mudanças mencionadas mostra-se urgente e de relevante interesse público por se inserir no conjunto de medidas de curto prazo editadas pelos Ministérios da Economia, da Justiça e de Minas e Energia, da Advocacia-Geral da União e da Secretaria-Geral da Presidência da República que objetivam minimizar os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre o nível da atividade econômica. Além disso, para que o Brasil alcance a posição desejada no Relatório Doing Business 2022, é necessário implementar as mudanças regulatórias a tempo para que sejam refletidas pelos respondentes no primeiro semestre de 2021 e constem do relatório 2022. 12. Registre-se, ademais, que Resultados de um estudo de 2013 do Banco Mundial sugerem que, em média, uma melhoria de 1 ponto percentual no ambiente de negócios medido pela pontuação do Doing Business (em comparação com as melhores economias para se fazer negócios) representa uma diferença nas entradas anuais de Investimento Estrangeiro Direto na ordem de US$250-500 milhões por ano." Disponível aqui (acesso em 11.10.2021). 2 No mesmo sentido, Agravo de Instrumento nº 2123265-10.2020.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Desembargador Araldo Telles, julgado em 27.07.2020. 3 Disponível aqui. (acesso em 11.10.2021). 4 Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. § 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo. 5 Súmula vinculante 47 - Enunciado: Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza. 6 Eduardo J. Couture. Los Mandamientos del Abogado, Buenos Aires, Depalma, 1951, pp. 11 e 31, apud, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Revista dos Tribunais, 6ª Edição, 2ª Tiragem, São Paulo, 1990, pp. 502/503. 7 Nesse sentido o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, aprovado pela Resolução nº 2/2015 do Conselho Federal da OAB, estabelece: "Art.  5º - O exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização." (destaques acrescentados). 8 Nesse sentido: (ADI 5139, STF - Tribunal Pleno, Relatora: Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 11/10/2019, Publicação: 06/11/2019).
A lei 14.112/20, em vigor desde 23 de janeiro de 2021, promoveu recente e importante alteração no sistema de insolvência empresarial brasileiro, alterando substancialmente o texto da lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. A reforma aprimorou algumas das ferramentas jurídicas já existentes no nosso sistema de insolvência empresarial, mas também trouxe ferramentas novas, introduzindo importantes mecanismos para o tratamento mais eficaz da crise da empresa. Dentre as novidades trazidas pela reforma, pode-se citar o sistema de pré-insolvência empresarial, criado sob inspiração do modelo francês da conciliacion e do mandat ad hoc, da Diretiva da União Europeia 2019/1023 e da moratorium do direito britânico, criada pelo Corporate Insolvency and Governance Act de 2020. Conforme já explicado em artigo1 publicado no Migalhas, comentando o sistema de pré-insolvência ainda na fase de projeto: O sistema de pré-insolvência criado pelo PL 4458/20 cria estímulos para que empresas devedoras busquem a renegociação coletiva de suas dívidas de forma predominantemente extrajudicial, com mínima intervenção judicial. A utilização da mediação e da conciliação preventivas necessita da criação de estímulos para que seja eficaz e adequada. Nesse sentido, é preciso proteger o devedor de execuções individuais, como condição para que se crie um espaço adequado para realização dos acordos com os credores. Os credores somente se sentarão à mesa para negociar se não puderem prosseguir nas suas execuções individuais. Por outro lado, a devedora somente terá condições de propor um acordo aos seus credores se tiver um espaço de respiro e uma proteção contra os ataques patrimoniais provenientes de ações individuais. Da mesma forma, um credor somente se sentirá seguro para negociar se houver uma proteção ao acordo entabulado, evitando-se que seja prejudicado pelo uso sucessivo de um processo de insolvência. De igual modo, deve-se cuidar para que os devedores não façam uso predatório dessa ferramenta, apenas com o intuito de prolongar a proteção do stay contra os credores. Tendo em vista essas premissas, o projeto estimula a conciliação e a mediação nos CEJUSCs, criando-se alternativa extrajudicial de renegociação das dívidas. Por outro lado, oferece à devedora a essencial proteção do stay, típico da recuperação judicial, a fim de se criar um ambiente adequado à negociação coletiva. Considerando que a determinação de suspensão de ações deve ser judicial - só uma decisão judicial pode ter o condão de suspender o andamento de ações judiciais - o mecanismo oferece à devedora a oportunidade de requerer ao juízo competente a medida de stay com natureza cautelar, eventualmente preparatória de futura recuperação judicial. No entanto, a fim de se evitar a utilização do mecanismo apenas como uma forma de alongar a proteção típica de uma recuperação judicial, o projeto determina que o prazo de proteção antecipado à devedora durante as negociações no CEJUSC será descontado do prazo de stay típico. Superada a discussão travada durante o processo legislativo, o sistema de pré-insolvência brasileiro tornou-se realidade e se encontra regulado na Seção II-A da lei 11.101/05 pelos artigos 20-A a 20-D. Nesse sentido, faz-se importante destacar algumas características bastante práticas para orientação de utilização desse novel instituto no direito brasileiro. De início, vale destacar que a utilização dessa ferramenta pressupõe o entendimento de que a lei trouxe uma gradação no tratamento da crise da empresa. Nesse sentido, o sistema de pré-insolvência foi pensado para ser utilizado como ferramenta eficaz para o tratamento precoce da crise da empresa, num momento em que a situação econômico-financeira da devedora ainda não é de extrema gravidade. Essa é a razão pela qual o art. 20-B, parágrafo primeiro, dispõe que a suspensão das execuções, no bojo de um procedimento de mediação ou conciliação prévia, poderá ser obtida por empresas em dificuldade e não necessariamente empresas insolventes. O sistema estimula o uso dessa ferramenta por empresas que estejam em dificuldades, mas que ainda tenham condições de negociar com seus credores em condições de equalizar seu passivo e reestruturar suas atividades empresariais com intervenção judicial mínima. Portanto, o sistema de pré-insolvência mostra-se como ferramenta adequada para o tratamento da crise do empresário individual, da micro e da pequena empresa, seja pelo perfil mais simples das suas crises, seja pela menor quantidade de credores envolvidos na negociação. Destaca-se, também, que esses procedimentos possuem menor custo, se comparados à recuperação judicial ou extrajudicial, ampliando-se o acesso à mecanismos de reestruturação para micro e pequenas empresas É certo que até mesmo grandes empresas podem se utilizar do sistema de pré-insolvência como estratégia para o enfrentamento da crise, antecipando-se ao problema e evitando-se o desgaste e o estigma associados aos processos de recuperação judicial. Analisando-se em detalhes o procedimento da pré-insolvência (mediação ou conciliação antecedentes), é importante que fique claro que a concessão da medida cautelar prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 pressupõe a demonstração pelo requerente de que o procedimento de mediação ou conciliação já foi instaurado no CEJUSC do Tribunal competente ou da câmara especializada, com a comprovação de expedição das cartas endereçadas aos credores convidados a participar do referido procedimento. O texto da lei condiciona o deferimento da tutela de urgência cautelar à demonstração de que o procedimento de mediação ou conciliação já esteja instaurado perante o CEJUSC ou câmara privada. Entretanto, é necessário definir o momento em que se considera instaurado o referido procedimento. Nesse sentido, deve-se considerar iniciado o procedimento de mediação ou conciliação quando o CEJUSC do tribunal competente ou a câmara privada expedir a carta-convite endereçada aos credores envolvidos na negociação. O pedido de medida cautelar deve ser instruído com os documentos elencados no art. 48 da lei 11.101/05. Conforme dispõe o art. 20-B, parágrafo primeiro, a obtenção da medida de suspensão das execuções somente será possível por empresas que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial. Os documentos que demonstram a existência desse direito são aqueles elencados pelo art. 48 da Lei n. 11.101/05 (não ser falido, não ter requerido recuperação judicial nos últimos 05 anos etc.). Não é necessária a juntada dos documentos relacionados pelo art. 51 da lei 11.101/05, uma vez que não se trata de ajuizamento da recuperação judicial, mas apenas de medida cautelar antecedente. Conforme já explicado na obra Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência2, "a probabilidade do direito consiste na apresentação dos documentos relacionados no art. 48, que comprovam que a devedora tem direito á pedir recuperação judicial". A definição exata dos credores convidados a participar do procedimento de mediação ou de conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada deve ser exigida como requisito para a concessão da medida cautelar prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Isso porque, toda e qualquer medida cautelar pressupõe a demonstração de fumus boni juris e de periculum in mora. No caso dessa medida cautelar nominada, o periculum in mora é in re ipsa, sendo presumido por lei na medida em que a suspensão das execuções é essencial para a criação de um ambiente mais adequado à realização das negociações, sem o qual as chances de êxito nas mediações ou conciliações serão reduzidas drasticamente. Entretanto, compete à devedora comprovar a fumaça do bom direito, sendo que a apresentação organizada e precisa dos credores sujeitos ao procedimento de mediação ou conciliação é fundamental para demonstrar, ao menos em tese, a possibilidade de reorganização de suas atividades e de superação da crise da empresa, sem a necessidade de utilização das ferramentas da recuperação extrajudicial ou judicial. O prazo de 60 dias de suspensão previsto no art. art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 é decadencial e improrrogável, considerando que se trata de medida cautelar requerida em caráter antecedente, cuja eficácia cessa se o autor não deduzir o pedido principal de recuperação judicial ou extrajudicial nos termos do art. 309, inc. i, do CPC. O prazo de suspensão das execuções previsto nesse artigo tem natureza jurídica de medida cautelar preparatória. Portanto, o não ajuizamento do pedido principal subsequente, decorrido o prazo de 60 dias, implica no reconhecimento da decadência da medida, cuja eficácia cessará nos termos do art. 309, inc. I, do CPC. Cabe ao requerente comunicar aos juízos responsáveis pelas execuções a concessão da medida cautelar de suspensão deferida com base no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. A prática forense na condução das medidas cautelares preparatórias ou antecedentes deve ser observada na utilização dessa nova medida prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Nesse sentido, se mostra desnecessária a citação dos credores para apresentação de contestação da medida cautelar. Basta que os credores sejam cientificados da medida pela própria devedora, momento em que devem aguardar o decurso do prazo de suspensão ou impugná-lo mediante o recurso próprio. A medida cautelar de suspensão prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 vincula apenas os credores convidados a participar do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada. O objetivo da medida cautelar de suspensão das execuções é proporcionar um espaço de respiro e um ambiente mais adequado de negociação da devedora com os seus credores. Na medida em que os credores sujeitos à negociação não podem prosseguir nas suas execuções individuais, cria-se o estímulo necessário para que se sentem à mesa para negociar com a devedora. Nesse sentido, é importante esclarecer que a suspensão das execuções só faz sentido em relação àqueles credores envolvidos na mediação ou conciliação, não atingindo os demais credores que não tenham sido convidados a participar do procedimento de negociação. A devedora não poderá renovar o pedido de suspensão previsto no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 depois de cessada a sua eficácia, salvo em relação a credores que não participaram do procedimento de mediação ou conciliação, nos termos do art. 309, parágrafo único, do CPC. A medida cautelar de suspensão das execuções prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 está sujeita ao regime jurídico das tutelas cautelares requeridas em caráter antecedente. Nesse sentido, depois de cessada a eficácia da medida pelo decurso do prazo de 60 dias sem o ajuizamento do pedido principal, é vedado à devedora renovar o pedido, salvo em relação a outros credores, conforme dispõe o art. 309, parágrafo único, do CPC. Pode o juiz revogar a medida cautelar deferida com base no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05, diante da demonstração por qualquer credor de que a devedora não promove ou procrastina, de qualquer forma, o regular andamento do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada. O juiz que concede a medida cautelar prevista no no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 deverá fiscalizar a presença dos requisitos autorizadores da concessão da cautelar durante todo o período de sua vigência. Nesse sentido, desaparecendo a fumaça do bom direito durante o prazo de suspensão das execuções de 60 dias, a medida deverá ser revogada. Nesse sentido, se depois de iniciada a mediação ou conciliação, o comportamento da devedora demonstrar de forma inequívoca o seu intuito procrastinatório ou refratário às negociações, deverá o juiz competente revogar a medida cautelar. Os acordos obtidos durante o procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada vinculam apenas os credores anuentes, não se aplicando nessa fase a regra da maioria ou a extensão aos dissidentes do acordo aceito pela maioria dos credores. A lógica dos procedimentos de pré-insolvência é a concessão de algumas das vantagens oferecidas pela recuperação judicial, mas sem algumas de suas desvantagens, como o estigma causado à devedora que se utiliza dessa ferramenta. No Brasil, a pré-insolvência concede à devedora a suspensão das execuções mesmo sem estar em recuperação judicial, criando um ambiente adequado de negociação e buscando evitar o ajuizamento de uma recuperação judicial. Entretanto, por opção legislativa, o sistema brasileiro de pré-insolvência não adotou a regra da maioria nessa fase prévia de mediação ou conciliação. Nesse sentido, os acordos realizados nessa fase vinculam apenas as partes que expressamente anuírem, não podendo ser impostos aos credores resistentes, ainda que minoritários. A novação decorrente do acordo feito entre devedora e credor no procedimento previsto nos artigos 20-B e 20-C da lei 11.101/05 somente se consolida com o decurso do prazo de 360 dias a contar da sua homologação judicial e desde que a devedora não ajuíze pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos do art. 20-C, parágrafo único. A regra do art. 20-C, parágrafo único, da lei 11.101/05 tem por objetivo dar aos credores maior tranquilidade e conforto para realizarem acordos nessa fase de pré-insolvência, sem o risco de serem prejudicados pelo sucessivo ajuizamento de recuperação judicial com inclusão do crédito já renegociado. Assim, a novação decorrente do acordo é provisória durante o prazo de 360 dias a contar da sua homologação judicial. Caso a devedora ajuíze recuperação judicial ou extrajudicial dentro desse prazo, incluindo o crédito já renegociado na fase de pré-insolvência, o credor voltará a ser titular do valor integral do crédito, em suas condições originais, deduzidos os valores eventualmente pagos e ressalvados os atos validamente praticados naquela fase. Protege-se o interesse do credor, a fim de criar mais um estímulo à realização de acordos nas mediações ou conciliações antecedentes. Essas são algumas ponderações práticas sobre o uso adequado do sistema de pré-insolvência brasileiro. Espera-se que essa importante ferramenta de enfrentamento da crise da empresa tenha no Brasil a mesma relevância já observada nos países europeus e asiáticos que possuem a tradição de gerenciamento precoce da crise das empresas, eliminando-se os custos e os estigmas associados á utilização das ferramentas judiciais e tradicionais de recuperação empresarial. __________ 1 COSTA, Daniel Carnio. CUEVA., Ricardo Villas Boas. Disponível aqui. 2 COSTA, Daniel Carnio. MELO, Alexandre Nasser. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência; 2ª edição - Curitiba: Juruá.2021; pág. 130.
terça-feira, 31 de agosto de 2021

Plano recuperação apresentado por credor

Uma das novidades1 da reforma da lei 11.101/05, de dezembro de 2020, foi a possibilidade de o próprio credor apresentar plano de recuperação. Essa relevante alteração poderá significar importante melhoria não só na apresentação do plano de recuperação judicial do devedor, que, ciente da prerrogativa assegurada aos credores, tende a melhorar a sua proposta de pagamento dos credores, mas também no próprio ambiente de negociação. A negociação é o instrumento central da reestruturação de dívidas; o aparato judicial é utilizado para que, com o respiro do stay period, todos possam conversar dentro das regras do jogo, sem que um possa prevalecer-se sobre outro se fosse admitida uma corrida de credores ao patrimônio do devedor. Essa possibilidade aberta aos credores, de apresentação de plano de recuperação, como toda e qualquer inovação legislativa, terá de passar pelo teste da prática, especialmente da jurisprudência, que terá papel decisivo sobre sua aplicabilidade, pois alguns dispositivos geram debate. Para que se abra aos credores a possibilidade de apresentação de plano de recuperação, o primeiro requisito é a rejeição do plano apresentado pelo devedor. A lei dá preferência ao devedor e ao seu plano. Ele tinha a obrigação de pagar as suas dívidas e não o fez, e a lei, em nome da preservação da atividade empresarial, assegura-lhe o direito de negociar com os credores uma solução do passivo acumulado. Por ocasião da assembleia de credores, uma vez rejeitado o plano de recuperação apresentado pelo devedor, deve o administrador judicial proceder à votação sobre interesse dos credores em apresentarem plano de recuperação. O administrador judicial não tem escolha. É dever legal seu submeter a escrutínio dos credores a instituição ou não da faculdade de apresentação de plano de recuperação. Poderá, eventualmente, o devedor entender que há voto abusivo, por exemplo, por ocasião da rejeição do seu plano, cuja caracterização poderia levar à sua aprovação. Nem assim o administrador judicial está dispensado de colocar em votação a matéria, ainda que possa estar convencido de que há abuso de voto. O § 4º do art. 56 tem natureza cogente para o administrador judicial. Após a juntada da ata da assembleia no processo, poderá o juiz apreciar a alegação de voto abusivo e conceder a recuperação judicial, circunstância em que a votação sobre apresentação do plano pelos credores ficará prejudicada. Vota-se a abertura de prazo para que os credores apresentem ou não um plano de recuperação; não há vinculação dos credores a esse prazo, de sorte que não é obrigatória a apresentação do plano. Na realidade, a aprovação por mais da metade dos créditos presentes cria uma faculdade aos credores, que pode ser exercida ou não. A lei não esclarece se o plano deve ser apresentado nos autos do processo ou se em assembleia já agendada por ocasião da deliberação sobre o prazo aos credores. Esse ponto é relevante porque o plano dos credores só poderá ser colocado em votação caso sejam satisfeitas as condições previstas no artigo 56, § 6º, da LFR, e a lei não indica quem faz a verificação da presença das condições por ela instituídas. A lei é clara ao estabelecer que o plano "somente será posto em votação" caso as exigências legais específicas sejam satisfeitas. Registre-se que não há exigência legal específica para o plano apresentado pelo devedor, a não ser a observância das normas gerais de direito privado, especialmente os requisitos de validade dos negócios jurídicos. Já o plano do credor, além de obedecer aos requisitos de validade dos negócios jurídicos, tem de preencher os requisitos arrolados no § 6º do artigo 56. A votação do plano só será possível se houver prévia deliberação sobre os requisitos do § 6º do art. 56, e essa verificação cabe exclusivamente ao juiz, pois não foi cometida ao administrador judicial essa tarefa. O contraditório é de observância obrigatória e, sobre o plano de recuperação do credor o devedor será intimado a se manifestar, assim como o administrador judicial. A discussão sobre o preenchimento dos requisitos do artigo 56, §6º, pode dilatar o procedimento, atrasando (i) a decretação da falência ou (ii) a deliberação sobre o plano dos credores. Para fins de agilização do processo, a lei poderia ter cometido ao administrador judicial o papel de promover uma verificação preliminar das exigências legais e, uma vez convencido de que tudo está regular, colocar o plano em votação, sem prejuízo de posterior deliberação judicial a respeito da matéria. O administrador judicial teria, em respeito ao contraditório, de colher a manifestação do devedor. Ocorre que, sem amparo legal, essa alternativa parece instaurar insegurança jurídica aos agentes do processo. O plano dos credores poderá prever um dos meios previstos no artigo 50 da LFR. O § 7º do art. 56 enfatiza uma das possibilidades: "O plano de recuperação judicial apresentado pelos credores poderá prever a capitalização dos créditos, inclusive com a consequente alteração do controle da sociedade devedora, permitido o exercício do direito de retirada pelo sócio do devedor". A conversão de crédito em capital social é uma das melhores medidas para a reestruturação de dívidas de qualquer sociedade, pois, sem desembolso de recursos, limpa-se o balanço e a empresa estará livre do peso da dívida para empreender no mercado. Ocorre que, enquanto para a empresa essa solução é ótima, para o empresário (rectius, sócio) pode não ser, pois é evidente que ele será diluído ao ponto de, muitas vezes, "perder" sua participação social. Está clara a opção da lei, que quer a preservação da atividade, preservação da empresa e não do sócio. Como já fora rejeitado o plano de recuperação, a falência seria a consequência natural, e o patrimônio social seria expropriado independentemente da vontade do sócio. Como a falência, apesar da dicção do artigo 75, acaba, na maioria das vezes, acarretando perda de valor, perda de riqueza, a transferência do controle, parcial ou total, para as mãos dos credores, durante o processo de recuperação, evitando-se a quebra, culmina em relevante prestígio da função social da empresa. É de se ter em conta ainda o seguinte. Se, em termos jurídicos, o sócio é titular de participação social que não se altera nem na falência, o certo é que, em termos econômicos, sua participação social pode ser negativa. Pode o balanço patrimonial apresentado pelo próprio devedor ostentar patrimônio líquido negativo, circunstância em que o valor da participação do sócio é igual a zero. Não tem valor algum, não tem significado patrimonial. Nem simbolicamente se pode dizer que o sócio tem algum ativo, ou tem alguma propriedade. Como dizem os contadores, nessa circunstância o sócio é titular de um buraco e nada mais. No exemplo acima, o próprio devedor apresentou, no processo de recuperação, um balanço com patrimônio líquido negativo, que é um exemplo mais extremado, para mostrar que não há ofensa ao direito de propriedade do devedor. Ainda que o patrimônio líquido seja positivo, e, portanto, a participação do sócio tenha valor real, como o plano fora rejeitado pelos credores, e à alternativa da falência os credores preferiram a conversão do crédito em ações ou quotas da sociedade em recuperação, nem assim há ofensa ao direito de propriedade. A efetivação cogente de obrigações é um modo de tutela de direitos quando há previsão legal. No âmbito do processo de recuperação o devedor tem a primazia de liderar tanto a apresentação do plano de recuperação como as próprias negociações. Sendo infrutífera a sua iniciativa, e diante da alternativa da falência, a lei consagra aos credores a possibilidade de uma solução melhor, que consiste no prosseguimento da atividade empresarial nas mãos de outras pessoas, ainda que contra a vontade do devedor. Essa opção da lei, entre a execução forçada do patrimônio da sociedade na falência e a execução forçada da participação do sócio na sociedade que teria a falência decretada, é legítima e não ofende o direito de propriedade. Antes, há absoluto respeito ao direito de propriedade do sócio, mas na medida de sua real existência econômica, pois a propriedade acionária não é uma ficção jurídica, mas realidade prática da vida empresarial. Com o patrimônio líquido da sociedade negativo, o patrimônio do sócio é zero, e a conversão de crédito em participação social não lhe causa prejuízo algum. Com patrimônio líquido da sociedade positivo, o patrimônio do sócio também é positivo, e esse valor será considerado por ocasião da conversão de crédito em participação, ainda que haja diluição. A diluição é justificada porque a sociedade pode ter a falência decretada, e, diante dessa possibilidade, a lei assegura a conversão dos créditos por parte dos credores. Sequer é preciso fazer apelo à função social da empresa para justificar a conversão de créditos sem a vontade do sócio se se atentar ao real valor do seu patrimônio. Somente um direito de propriedade fundado na ficção patrimonial eliminaria o direito dos credores de promover a conversão dos créditos em participação social. É por demais evidente que eventual plano abusivo por parte dos credores, com vistas à tomada do controle da sociedade, será rechaçado pelo Poder Judiciário. Essa circunstância, porém, terá de ser demonstrada em cada caso. Há, contudo, uma circunstância com potencial de instaurar impasse. Há diferença entre a solução do processo de recuperação, com a conversão de crédito em participação social, que é, sob o aspecto procedimental, relativamente simples, e a solução de ordem societária, endo-social. No âmbito interno da sociedade em recuperação é preciso que se tomem as medidas pertinentes à alteração do controle.  É preciso discutir se a deliberação da assembleia geral de credores e posterior deliberação judicial é suficiente para tornar o credor um sócio. á Essa interface entre o direito da insolvência e o direito societário deve ser harmônica e de respeito aos limites de cada área. Admitido o caráter constitutivo da decisão concessiva da recuperação judicial, ela, na hipótese aqui tratada, tem o condão jurídico de transformar o credor em sócio, e o condão jurídico-econômico de reestruturar o passivo da sociedade. A mesma força que a sentença tem para transformar a dívida (carência, deságio e parcelamento, v.g.) tem para transformar o credor em sócio. Em nome da segurança jurídica, é útil, embora não obrigatório, que a própria sentença seja expressa a esse respeito, dizendo que tais e tais pessoas, doravante, deixaram de ser credores e passaram a ser sócios, viabilizando a rápida solução no interior da sociedade em recuperação. Deve ser descartada a suficiência da sentença concessiva da recuperação para fins de alteração do controle e ulteriores providências no seio social; o processo de recuperação é externo à vida societária, embora possa influir no seu destino. É possível e pode ser conveniente que o próprio plano preveja a substituição do administrador da sociedade (art. 64, VI) além de outros detalhamentos sobre as consequências da conversão de crédito em participação societária. A sentença pode intimar os administradores da sociedade para que convoquem o órgão deliberativo o mais rápido possível, e que acolham, como sócios legitimados a votar, os credores que assumiram tal posição por força da concessão da recuperação judicial.   Outro aspecto relevante da reforma da lei 11.101/05, no que toca aos meios de recuperação, é a previsão do inciso XVIII do artigo 50, verbis: "venda integral da devedora, desde que garantidas aos credores não submetidos ou não aderentes condições, no mínimo, equivalentes àquelas que teriam na falência, hipótese em que será, para todos os fins, considerada unidade produtiva isolada".   A locução venda integral da devedora não é feliz, pois pode significar a venda de toda a participação societária ou a venda de todos os elementos do estabelecimento empresarial. Essa previsão afasta de vez entendimento jurisprudencial que rejeitava a venda relevante de ativos da sociedade. Quando essa proposta vem do devedor, não há maior dificuldade, pois ele mesmo vai esclarecer, no plano de recuperação, o alcance da medida. Quando a proposta for apresentada pelo credor, por certo surgirá discussão sobre o direito de propriedade. Novamente, a opção da lei é, entre a falência, assegurar a possibilidade de continuidade da atividade empresarial nas mãos de outra pessoa. Quotas e ações são direitos relacionais, cujo valor depende da sociedade em que dividido o capital. Quotas e ações não têm valor intrínseco e estático e dependem da situação da entidade em que foi investido o capital. Elas tanto podem não ter nenhum significado econômico e, portanto, a propriedade está zerada, completamente esvaziada, como podem ter significado econômico, que terá de ser respeitado. As alterações promovidas na lei 11.101/05, ao permitirem a apresentação de plano de recuperação por parte dos credores, propiciará importantes discussões sobre o significado jurídico e econômico do direito de propriedade de quotas e ações, o que fortalecerá, sem dúvida alguma, nosso sistema de direito empresarial. Mesmo diante da insolvência da empresa, sócios empedernidos poderão lutar para a manutenção do status quo, e esse status, por ocasião da apresentação do plano pelos credores, terá de ser avaliado sob o aspecto econômico; a propriedade de quotas e ações é a propriedade de um fruto cuja casca pode envolver coisa positiva ou negativa; pode ter significado econômico ou não. A titularidade de crédito é expressão do direito de propriedade, assim como é expressão do direito de propriedade a titularidade de participação societária. Ambos os direitos ostentam o mesmo grau de proteção constitucional. É legítima, por deliberação da assembleia, tanto a redução do direito de propriedade dos credores (deságio), como a redução do direito de propriedade dos sócios. Se a função social da propriedade servir de fundamento para o deságio do credor, também haverá de servir de fundamento para a alteração do direito de propriedade do sócio. Haveria odiosa ofensa à igualdade constitucional admitir que o direito de propriedade do credor possa ser comprimido por deliberação de assembleia de processo de recuperação, e o direito de propriedade do sócio não pudesse ser afetado pela mesma deliberação. Pode a lei, de modo legítimo, com vistas a assegurar as intenções do art. 47 da lei 11.101/05, atribuir ora ao devedor, ora ao credor, a prerrogativa de propor a reestruturação da dívida da entidade que a lei pretende proteger, oscilando o direito de propriedade ora entre o sócio ora entre o credor, na exata medida da força econômica de cada um. __________ 1 Na reunião ordinária do IBR - Instituto Brasileiro de Estudo de Recuperação de Empresas do dia 25/8/2021, o tema dos debates foi exatamente a apresentação de plano de recuperação por parte dos credores. Veio dessa reunião a inspiração para este artigo.
O sistema de insolvência brasileiro sofreu profunda modernização com o advento da lei 11.101/05. Saíram de cena os arcaicos processos de falência e concordata tratados pelo decreto-lei 7.661/45, para a entrada de um novo procedimento falimentar, mais célere e objetivo, e do instituto da recuperação judicial, com alguma inspiração no modelo norte-americano de reorganização de atividades empresariais, previsto no Chapter 11 do US Bankrupcty Code. Entretanto, a despeito da modernização proporcionada pela lei 11.101/05, não houve o alcance de maior objetividade no tratamento da falência, seja pela insuficiência das regras estabelecidas, seja pela cultura de desvalorização da figura do empreendedor e do lucro no cenário nacional. Ao permanecer o estigma sobre a figura do falido e a incompreensão de que o empreendedorismo se faz num ambiente de risco, no qual o insucesso nem sempre é fruto de fraude ou dolo de lesionar os demais players do mercado, muitas recuperações judiciais foram ajuizadas de forma temerária, quando já não mais havia atividade empresarial para se soerguer. Nesses casos, embora o ideal fosse a adoção da via falimentar para aplicação ao direito de recomeço (fresh start), por meio da liquidação da atividade mediante o pagamento dos credores com os ativos que ainda restavam, em razão da ausência de objetividade para utilização do instituto, acabou-se por criar um cenário de má utilização das recuperações judiciais e da continuidade da imagem negativa da falência. Diante do dinamismo inerente à vida humana e, consequentemente, ao exercício da empresa, além das situações acima descritas, foi percebida a necessidade de atuação do legislador para fortalecer a lei 11.101/05, a fim de que soluções consolidadas pela jurisprudência pudessem ser incorporadas ao texto legal, bem como para que novos institutos fossem inseridos, tudo com vistas à melhoria do sistema não só visando maior segurança jurídica, mas, também, com o escopo de conferir aos agentes econômicos e aos operadores do direito outros instrumentos voltados a garantir efetividade tanto da recuperação judicial como do processo falimentar. A sobrevinda da lei 14.112/20 trouxe auspiciosas inclusões no texto da lei 11.101/05. Dentre muitas alterações, pode ser notado um profundo trabalho legislativo, após oitiva democrática das pessoas do meio jurídico e acadêmico, com a intenção de se conferir mais objetividade e eficiência dos processos de falência e de recuperação judicial. Uma das boas alterações trazidas pela novel legislação está no artigo 114-A da lei 11.101/05, que permite o encerramento da falência da empresa acaso não existam bens suficientes sequer para o custeio do processo. Embora no Brasil ainda não exista aprofundamento na discussão sobre a análise econômica do Direito, é importante ter em mente a realidade da finitude de recursos materiais e humanos em qualquer área, pública ou privada. No Poder Judiciário não é diferente. A inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF) não pode funcionar como elemento único no acesso à justiça, desprezando-se as inexoráveis limitações existentes para atendimento das demandas que lhe são submetidas. Trazendo a discussão para o campo do direito de insolvência, temos situações diversas de tramitação de processo de falência sem utilidade alguma, seja porque inexistem recursos para serem revertidos em pagamento aos credores, seja pela própria ausência de credores habilitados para formação da massa falida subjetiva. Esse contexto evidencia o puro desperdício de recursos públicos, ao manter a atuação do Poder Judiciário sem qualquer utilidade no provimento jurisdicional final. Na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo/SP, adotou-se a posição de extinção de tais processos, por perda superveniente de objeto relacionado à pretensão deduzida. Mas, embora houvesse aceitação, a solução não estava presente na lei 11.101/05. Com o advento do artigo 114-A da lei 11.101/05, não só a previsão legal atinge a segurança jurídica de previsibilidade legislativa sobre o encerramento de processos de falência sem ativos para reversão aos credores, mas, de outro lado, garante o equilíbrio que deve existir entre o direito de acesso à jurisdição e a possibilidade de encerramento de um processo judicial em razão da impossibilidade de entrega material da prestação jurisdicional, em razão de circunstâncias de fato alheias à atuação do Poder Judiciário. Manoel Justino Bezerra Filho1 bem sintetiza a essência do processo de falência: 5. com certa liberdade, pode-se dizer que a falência é uma "grande execução", processo no qual são arrecadados todos os bens do devedor para formar a "massa falida", de um lado: de outro lado, faz-se o ordenamento de todos os débitos do falido, encontrando-se o valor devido, para a formação do "quadro-geral de credores", que é elaborado classificando-se os créditos para serem pagos na ordem que a lei determina. Na sequência, transforma-se a "massa falida" em dinheiro e rateia-se o resultado aos componentes do "quadro-geral de credores", na ordem legal.  Como se observa, o escopo maior da falência é a liquidação dos bens do falido, a fim de que seus débitos sejam pagos com o proveito da venda de tais ativos, respeitada a ordem legal estabelecida, cuja função é proporcionar tratamento paritário entre os credores. A existência de um procedimento de execução concursal é bem explicitada por Fábio Ulhoa Coelho2: Para evitar injustiça - privilegiando os mais necessitados, tornando eficazes as garantias legais e contratuais ou conferindo iguais chances de realização do crédito a todos os credores de mesma categoria -, o direito afasta a regra da individualidade da execução e prevê, na hipótese, a instauração da execução concursal, isto é, do concurso de credores (no passado recente, a tecnologia costumava designá-lo também por execução "coletiva" expressão que hoje deve ser reservada ao processo de satisfação do direito objeto de ação civil pública, na forma da Lei n. 7.347/85). Se o devedor possui patrimônio negativo, menos bens que os necessários ao integral cumprimento de suas obrigações, a execução deles não poderá ser feita de forma individual, o que levaria à injustiça referida de início. Deve processar-se como concurso, ou seja, envolvendo todos os credores e abrangendo todos os bens, reunindo a totalidade do passivo e do ativo do devedor.  Outra função do processo falimentar, a qual não encontra consenso doutrinário, seria proporcionar o encerramento da própria atividade empresarial, com o advento da sentença de encerramento do procedimento. Sérgio Campinho3, ao afirmar não ser a pluralidade de credores pressuposto essencial ao processo de falência, firma a seguinte posição: Professamos a orientação de que o fim maior e imediato do instituto falimentar é o de propor providência judicialmente realizável para resolver a situação jurídica de insolvência do devedor empresário. Está vocacionado, na nova lei, a promover a liquidação do patrimônio insolvente, saneando o mercado e assegurando a proteção do crédito. Esse escopo deve ser perseguido e para sua realização se faz desinfluente a verificação da existência de um ou mais credores, seja para a instauração da falência, seja para o seu prosseguimento, a qual, por certo, adotará, na existência de credor único, rito simplificado, com a superação de diversos atos processuais.  Tal posição jurídica coloca o processo de falência como instrumento não só voltado ao pagamento dos créditos do empresário ou sociedade empresária insolvente, mas, também, como medida jurídica destinada ao saneamento do mercado, com objetivo de recuperação dos créditos investidos na atividade e com a retirada da atividade do cenário de empreendedorismo, permitindo que o espaço seja ocupado por outro empreendimento em condições de melhor operabilidade. Nesse ponto, o citado autor, ao tratar do encerramento da falência, assim dispõe vernaculamente4: Diversa, porém, será a consequência se o falido for sociedade empresária. A falência é causa de dissolução da sociedade (Código Civil e 2002, arts. 1.044; 1.051, I; 1.087 e Lei 6.404/76, art. 206, II, c). Com a sentença que decretar a falência, tem-se verificado a causa dissolutória, desencadeando a liquidação do ativo para pagamento do passivo. A partir do trânsito em julgado da sentença de encerramento, a pessoa jurídica estará extinta, competindo arquivar a prefalada decisão, para se ter por cancelado o registro na Junta Comercial. A ideia do procedimento falimentar como uma das formas de dissolução e liquidação da sociedade empresária, consagrada na Lei de Sociedades Anônimas e no Código Civil de 2002, vem corroborada na Lei n. 11.101/2005. Com efeito, a falência é um fato jurídico irreversível. Não se recuperanda a empresa, segundo os procedimentos nela disciplinados, serão ela e a sociedade que a explora liquidadas. A própria permissão legal para continuação da atividade é sempre em caráter provisório e será executada por terceiro, que não a sociedade falida. O conceito de falência-liquidação na lei vigente ganha reforço com a regra transitória que obsta a concordata preventiva nos processos em curso anteriormente à vigência da nova lei, os quais, de resto, permanecem regidos pelo Decreto-Lei n. 7.661/45. Inclusive, nesses casos, poderá ser promovida a alienação dos bens que integram a massa falida assim que concluída a sua arrecadação, independentemente da formação do quadro-geral de credores (art. 192, caput, e § 1º). Mas a constatação não impede que os sócios, de posse do remanescente do ativo, ao invés de partilharem seu produto, restabeleçam a mesma empresa, constituindo, porém, nova sociedade para esse fim, embora com o mesmo objeto.  Já Manoel Justino Bezerra Filho5 possui entendimento diverso sobre esse tema: 5. Com liberdade de linguagem, pode-se dizer que o decreto falimentar transforma o falido em uma espécie de "morto-vivo", pois após a sentença de encerramento e a sentença de extinção das obrigações, os sócios podem voltar à atividade empresarial com a mesma sociedade empresária, "revertendo os efeitos da dissolutórios da falência com o objetivo de fazê-la retornar à exploração da atividade", como examinado com detalhes na Apelação 555.048-4/6-00, de 28.05.2008, rel. Romeu Ricupero, do TJSP; no mesmo sentido, consulte-se Bezerra Filho (Temas de Direito Societário...p. 624). Por outro lado, é certo que dificilmente haverá interesse na "ressurreição" da falida, pois seu bom nome empresarial não mais existirá, sua história estará indelevelmente marcada pela falência; de qualquer forma, não há impedimento legal à retomada da atividade se, por qualquer motivo houver tal interesse. Ainda a propósito, no REsp 1.359.273-SE, j. 4.4.2013, Rel p/ acórdão Min. Benedito Gonçalves, entendeu-se que a falência dissolve a pessoa jurídica, que a seguir é liquidada; porém não a extingue, o que apenas ocorre depois de cumprido o art. 51 do CC/2002.  De toda forma, há o consenso sobre a finalidade da falência em buscar a recuperação de crédito dos credores da falida por intermédio de aplicação das regras da execução concursal. Todavia, em muitos casos verifica-se a ausência de ativos necessários ao pagamento de créditos e ao próprio custeio do processo. Com o advento da lei 14.112/20, há, agora, previsão expressa de encerramento do processo falimentar, quando ausente a arrecadação de ativo, ou quando aqueles que forem arrecadados forem insuficientes ao pagamento das despesas do processo, verbis: Art. 114-A. Se não forem encontrados bens para serem arrecadados, ou se os arrecadados forem insuficientes para as despesas do processo, o administrador judicial informará imediatamente esse fato ao juiz, que, ouvido o representante do Ministério Público, marcará, por meio de edital, o prazo de 10 (dez) dias para os interessados requererem o que for a bem dos seus direitos. § 1º Um ou mais credores poderão requerer o prosseguimento da falência, desde que paguem a quantia necessária às despesas e aos honorários do administrador judicial, que serão consideradas despesas essenciais nos termos estabelecidos no inciso I-A do caput do art. 84 desta Lei. § 2º Na hipótese de não haver apresentação de requerimento pelos credores, o administrador judicial promoverá a venda dos bens arrecadados no prazo máximo de 30 (trinta) dias, para bens móveis, e de 60 (sessenta) dias, para bens imóveis, e apresentará o seu relatório, nos termos e para os efeitos dispostos neste artigo. § 3º Proferida a decisão, a falência será encerrada pelo juiz nos autos. § 5º O disposto no inciso VI do caput do art. 158 terá aplicação imediata, inclusive às falências regidas pelo decreto-lei 7.661, de 21 de junho de 1945 .  Agora, o administrador judicial, ao constatar a insuficiência de ativos para pagamento de credores e de custeio do processo, deverá informar o Juízo que, ouvido o Ministério Público, fixará prazo de 10 dias para que os credores se manifestem sobre eventual interesse no prosseguimento do processo falimentar, inclusive nos casos regidos pelo decreto-lei 7.661/45. Algumas observações sobre o texto do art. 114-A. Embora a inserção legal seja benéfica ao sistema, isso não afasta a responsabilidade de atuação cooperativa e pragmática das partes, para evitar a continuidade do trâmite processual, sem que resultados práticos buscados pela lei possam ser atingidos, conforme mandamento do art. 8º do Código de Processo Civil. Em relação ao Ministério Público, seja para se manifestar sobre a continuidade do processo de falência na hipótese insuficiência de ativos, seja para sua intervenção em qualquer dos demais termos do procedimento falimentar, há que ser observada a nova redação dos arts. 20 e 21 da LINDB. Em suas manifestações, o órgão ministerial deverá sempre demonstrar e comprovar as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB) Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB). Verifica-se, assim, o equilíbrio entre a previsão de atuação do Ministério Público nos processos da lei de insolvência e a busca de real efetividade em sua participação, considerando, ainda, que a oportunidade de eventual apuração de crime falimentar não restará prejudicada na hipótese de encerramento do processo falimentar por ausência de ativos. Já em relação aos credores, o mesmo raciocínio também deve ser seguido. Ainda que eventualmente algum credor se disponha em custear o prosseguimento do processo falimentar, na hipóteses de insuficiência de ativos para reversão em recursos voltados ao seu custeio e ao adimplemento de débitos, haverá de justificar seu interesse processual, seja em relação à necessidade de atuação do Poder Judiciário na espécie, seja em função da utilidade do provimento jurisdicional que se busca na falência, que é o pagamento de créditos e a liquidação sociedade empresária falida como forma de saneamento do mercado. Desse modo, o credor que se manifestar pela continuidade do processo de falência, nos termos do art. 114-A da lei 11.101/05, deverá demonstrar como realizará o pagamento das despesas do processo falimentar, compreendendo a remuneração do administrador judiciais e dos demais atos processuais, o racional econômico voltado ao prosseguimento do feito e lastro probatório que permita aferir, em tese, a possibilidade de real entrega da prestação jurisdicional que se busca na execução concursal. Ausentes esses elementos, está o Poder Judiciário autorizado a encerrar o processo falimentar por insuficiência de ativos, sem a necessidade de formação da massa falida subjetiva e remetendo cópia da decisão a fim de que seja dada baixa nos registros da sociedade empresária junto à Junta Comercial local e à Receita Federal do Brasil, para cancelamento dos cadastros, como forma de dissolução da sociedade, nos termos do art. 51, §3º, do Código Civil. Outro ponto que merece destaque é a possibilidade imediata de aplicação do art. 114-A da lei 11.101/05 aos processos pendentes. O art. 5º, caput e seu §1º, da lei 14.112/20 estabelecem as regras de direito intertemporal das alterações que introduziu na Lei 11.101/2005 e estão assim dispostos: Art. 5º Observado o disposto no art. 14 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) , esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes.  § 1º Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência desta Lei:  I - a proposição do plano de recuperação judicial pelos credores, conforme disposto no art. 56 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;  II - as alterações sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial e sobre a ordem de classificação de créditos na falência, previstas, respectivamente, nos arts. 49 , 83 e 84 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;  III - as disposições previstas no caput do art. 82-A da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;  IV - as disposições previstas no inciso V do caput do art. 158 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.  Em nenhuma das situações elencadas está descrita qualquer proibição à aplicação imediata do art. 114-A da lei 11.101/05, o que permitirá, por pedido do administrador judicial ou por determinação de ofício do Juízo respectivo, a observância do novo dispositivo legal, a fim de que os processos de falência pendentes, inclusive aqueles que tramitam sob a égide do decreto-lei 7.661/45, nos quais não haja ativos suficientes para pagamento de credores ou custeio de sua tramitação, possam ser encerrados, com o esgotamento da prestação jurisdicional e o saneamento do mercado com a retirada das empresas não recuperáveis. Portanto, com a previsão do artigo 114-A da lei 11.101/05 foi conferido ao sistema de insolvência brasileiro um importante instrumento não somente para o encerramento de processos que não conseguirão atingir sua finalidade, mas, um elemento norteador para o caminho de maior objetividade no tratamento do processo falimentar e, consequentemente, de aprimoramento do sistema de insolvência brasileiro. __________ 1 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Lei 11.101/2005 comentada artigo por artigo. 12ª edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2017. Página 238. 2 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14ª edição. São Paulo. Thomson Reuters Brasil. 2021. Página 287 3 CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial. Falência e Recuperação de Empresa. 11ª edição. São Paulo. Saraiva Educação. 2020. Página 212. 4 Op. cit, páginas 406/407. 5 Op. cit, página 307.
Introdução  A pessoa jurídica equipara-se à pessoa física no que tange à capacidade que lhe é conferida para ser sujeito de direitos e contrair obrigações e, dessa forma, se consubstancia em importante instrumento para a promoção do valor constitucional da livre iniciativa (art. 1º, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil - "CRFB").  Para tanto, a ela é reconhecida autonomia patrimonial em relação aos seus sócios e administradores, o que permitiu a mobilização de recursos e de incentivo ao empreendedorismo para o atendimento de interesses privados e públicos. Mas a limitação da responsabilidade pode ser danosa para a sociedade e para a economia, se for usada com finalidade diversa daquela que motivou a limitação da responsabilidade do sócio. Daí surgiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Contudo, o uso sem critério da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, em casos de dificuldades no recebimento do crédito, pode gerar insegurança jurídica e desestímulo ao empreendedorismo. Na busca de equilíbrio entre a autonomia patrimonial da sociedade, protegendo os seus sócios, administradores e sociedades do mesmo grupo e, por outro lado, o estabelecimento de norma eficaz para coibir fraudes e abusos, andou bem o legislador de 2020 ao incluir os artigos 6º-C e 82-A na Lei nº 11.101/2005, conforme veremos a seguir. Desconsideração da personalidade jurídica - art. 50 do Código Civil e o art. 6º-C da lei 11.101/2005  O regramento da desconsideração da personalidade jurídica está atualmente previsto no art. 50 do Código Civil, que indica requisitos específicos para a desconsideração. Aliás, tais requisitos foram recentemente detalhados por meio da lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), que modificou o dispositivo com objetivo de ressaltar a excepcionalidade desse remédio diante da banalização do instituto, incorporando, assim, a orientação da doutrina e jurisprudência majoritária sobre o tema. Por comodidade transcreve-se o art. 50 do Código Civil: "Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.  § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.  § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:  I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;  II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e  III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.  § 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.  § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Grifou-se) Da transcrição acima infere-se que é conditio sine qua non para a desconsideração da personalidade jurídica a comprovação, por parte do interessado, da prática de atos ilícitos que caracterizem abuso da personalidade jurídica, quais sejam, desvio de finalidade e confusão patrimonial. Desvio de finalidade se verifica, segundo Gustavo Tepedino, "quando essa imputação autônoma de situações subjetivas na pessoa jurídica é desvirtuada, de modo que sua autonomia seja utilizada de forma disfuncional, isto é, em contrariedade aos propósitos para os quais o ordenamento tutela sua existência autônoma"1. Por sua vez, a confusão patrimonial se caracteriza pela ausência da separação de fato entre patrimônios. O §2º, do art. 50 do Código Civil traz dois importantes parâmetros para aferir a confusão patrimonial: (i) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (ii) transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante. O inciso III, §2º, do art. 50 do Código Civil ao dispor que a confusão patrimonial pode ser caracterizada por "outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial", adota conceito jurídico indeterminado na medida em que "outros atos de descumprimento" deverão ser aferidos no caso concreto. Note-se, ainda, que para além do desvio de finalidade e da confusão patrimonial, a nova redação do caput do art. 50 do Código Civil, dada pela lei 13.874/2019, dispõe que para haver abuso da personalidade jurídica é necessário ainda mais um requisito: existência de benefício, ainda que indireto, do sócio e/ou administrador da pessoa jurídica a que se pretende desconsiderar a personalidade. Dentre outros pontos, o dispositivo ainda trata da desconsideração na hipótese de grupos econômicos, ressalvando-se, no §4º do próprio art. 50 do Código Civil, que "a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica." Nesse sentido, a doutrina civilista, antes mesmo da inserção do §4º, no art. 50, do Código Civil pela Lei da Liberdade Econômica, já havia consolidado entendimento de que a desconsideração só alcançaria grupos econômicos quando estivessem presentes os requisitos do caput, do art. 50, do Código Civil (v.g. desvio de finalidade ou confusão patrimonial) e houvesse, ainda, prejuízo aos credores, até o limite dos valores transferidos entre as sociedades. Verbis: Enunciado 406 da V Jornada de Direito Civil do CJF: "A desconsideração da personalidade jurídica alcança os grupos de sociedade quando estiverem presentes os pressupostos do art. 50 do Código Civil e houver prejuízo para os credores até o limite transferido entre as sociedades". Portanto, em atenção ao princípio da segurança jurídica, não se admite que o credor possa simplesmente escolher contra quem direcionar o comando executivo de uma sentença para ver adimplido seu crédito - o que restou devidamente explicitado pela lei 13.874/2019. Outros diplomas também tratam da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, como faz o Código de Defesa do Consumidor ("CDC"), aprovado pela lei 8.078/1990, autorizando-a em caso de falência:    "Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (...) § 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores." Diante de normas como a do CDC, que adotando a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, ganham relevo o arts. 6º-C e 82-A da lei 11.101/2005, incluídos pela lei 14.112/2020. O primeiro porque ao estabelecer que "É vedada a atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reladas por esta lei" derrogou o art. 28 do CDC2, na parte em que elevava a mera falência à categoria de fundamento para a atribuição de responsabilidade pessoal a terceiros, o que não mais é possível porque foi expressamente afastada a possiblidade de desconsideração da personalidade jurídica de sociedade falida para o fim de atribuição de responsabilidade a sócio, administrador ou outra sociedade integrante do mesmo grupo, ressalvada a hipótese do art. 82-A, que será tratada no capítulo seguinte. A extensão dos efeitos da falência, a desconsideração da personalidade jurídica na falência e o artigo 82-A da lei 11.101/2005 O art. 81 da lei 11.101/20053 determina a extensão da falência da sociedade aos sócios ilimitadamente responsáveis pelas obrigações da sociedade. Contudo, não autoriza a extensão da falência para o sócio de responsabilidade limitada. Nesse sentido, o Ministro Luis Felipe Salomão, em sede doutrinária, leciona: "(...) a extensão só se aplica em caso de sociedade em nome coletivo e comandita simples, em que a responsabilidade dos sócios é ilimitada, vedada a extensão na hipótese de LTDA. e S.A."4  (grifos aditados). A decretação da falência da sociedade impõe aos seus administradores, ao tempo da quebra, os deveres enumerados no art. 104 da lei 11.101/2005. Mas os administradores da sociedade falida não são falidos e não são atingidos pelos efeitos da falência5. A extensão da falência, a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade pessoal de administradores são institutos distintos, admitidos no direito positivo em hipóteses também distintas e produzem efeitos também distintos. A falência é meio de dissolução e liquidação do devedor, com a consequente extinção da empresa individual ou sociedade empresária falida. Dentre os efeitos da falência previstos na lei 11.101/2005, destacam-se: (i) a inabilitação para exercer atividade empresarial (art. 102); (ii) perda do direito de administrar os seus bens ou deles dispor (art. 99, VI, c/c art. 103) e (iii) vencimento antecipado de todas as dívidas da sociedade e dos sócios de responsabilidade ilimitada (art. 77), que, como visto, são atingidos pelos efeitos da falência. Já a desconsideração da personalidade jurídica tem objetivo e efeitos diversos e mais restritos, posto que a sua finalidade é exclusivamente afastar a separação patrimonial entre a sociedade e o sócio de modo a permitir que os bens de um respondam pela dívida do outro, não se cogitando de dissolução e liquidação da sociedade cuja personalidade jurídica e ou da produção de outros efeitos da falência. Na perspectiva do credor, cujo interesse repousa na satisfação do seu crédito, os resultados práticos da falência e da desconsideração da personalidade jurídica podem ser equivalentes, na medida que ambos os institutos permitem que bens de uma pessoa (física ou jurídica) respondam por dívidas de outra. Mas no plano jurídico, os institutos são inconfundíveis. Em outro giro, a responsabilidade de administrador nada tem em comum com extensão de falência ou desconsideração da personalidade jurídica e, como visto acima, o administrador da sociedade falida não é atingido pelos efeitos da falência. De qualquer modo, quaisquer discussões a respeito da possibilidade de extensão da falência ou dos seus efeitos aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores, e aos administradores da sociedade falida, ficam superadas com a inclusão na lei 11.101/2005 do art. 82-A, com a seguinte redação: "Art. 82-A - É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. Parágrafo único - A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para os fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o §3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)." O art. 82-A representa relevante avanço em favor do princípio da separação patrimonial entre a sociedade e o sócio de responsabilidade limitada, a sociedade e os seus administradores e entre sociedades do mesmo grupo, em primeiro lugar, em razão da norma contida no caput, ao vedar a extensão da falência. Além disso, ao mesmo tempo em que vedou a extensão da falência, o legislador ressalvou a possiblidade de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, medida suficiente para coibir abusos e eventuais fraudes e, além disso, na perspectiva do credor, com resultado equivalente ao da falência, que é o de viabilizar a arrecadação de bens de terceiro para satisfação dos credores. A possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica como sucedâneo da extensão da falência atende o escopo de estimular o empreendedorismo e de manutenção das empresas viáveis, que poderão vir a responder por dívida da falida, mas não sendo atingidas pelos efeitos na falência, não serão dissolvidas e liquidadas. Ou seja, mantém-se a fonte produtora, o que se justifica na circunstância de que a falência não é medida sancionatória, como expressamente esclarece o art. 75 da lei 11.101/2005, na redação dada pela lei 14.112/2020, ao enumerar os objetivos da falência. Também de grande relevância para o direito positivo são as duas normas do parágrafo único do art. 82-A, a primeira esclarecendo que a desconsideração da personalidade jurídica deverá observar os requisitos do artigo 50-A do Código Civil, e a segunda ao condicionar a desconsideração da personalidade jurídica à instauração do incidente regulado no Código de Processo Civil de 2015. Antes da vigência do Código de Processo Civil de 2015, reconhecia-se o direito ao contraditório com base na garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LIV e LV, da CRFB), havendo discussões sobre necessidade de contraditório prévio através de ação ordinária, matéria que o resolvida com a instituição do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Com o parágrafo único do art. 82-A incluído na lei 11.101/2005, as discussões ficam definitivamente superadas, pois o contraditório prévio, com a instauração do incidente passa a ser condição expressamente exigida na Lei para validade de decisão que desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade falida. Conclusões  O legislador de 2020, seguindo o caminho inaugurado com a Lei da Liberdade Econômica, prestigiou o princípio da separação patrimonial entre os sócios e as sociedades regularmente constituídas com apoio nas leis vigentes, com limitação da responsabilidade dos sócios, contribuindo, assim, para estimular o empreendedorismo. Fez isso com a inclusão na lei 11.101/2005 do art. 6º-C, que veda, expressamente, o redirecionamento de execução a terceiro em razão da falência do devedor, derrogando, portanto, pelo critério da anterioridade, os dispositivos de lei que indicavam a falência da sociedade devedora como fundamento para desconsideração da personalidade jurídica, caso, por exemplo, do CDC, e também com a inclusão do art. 82-A que veda, expressamente, a extensão da falência a sócios de responsabilidade limitada, controladores e aos administradores da sociedade falida. Ao mesmo tempo, o art. 82-A trouxe mecanismo suficiente para coibir o abuso da personalidade jurídica, ao dispor sobre a desconsideração da personalidade jurídica, mas exclusivamente, nas hipóteses do art. 50 do Código Civil e, em homenagem às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, determina que a desconsideração da personalidade jurídica se faça mediante prévia instauração do incidente regulado no Código de Processo Civil de 2015. __________ 1 Tepedino, Gustavo. Fundamentos do Direito Civil (p. 130). Forense. Edição do Kindle. 2 E os demais diplomas legais em que a falência era motivo para a desconsideração da personalidade jurídica. 3 "Art. 81. A decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida e, por isso, deverão ser citados para apresentar contestação, se assim o desejarem." 4 Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2017. p. 148. No mesmo sentido, João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea: "O caput do art. 81 e os arts. 115 e os arts. 115 e 190 da LRFE estipulam que a decisão que decreta a falência de uma sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes. Essa categoria de sócio também acaba inabilitada a desapossada de seus bens, o que, a contrario sensu, evidencia que os sócios de responsabilidade limitada não se sujeitam aos efeitos da falência" (Recuperação de Empresas e Falência, Almedina, 2016, pág. 2016, pág. 476. 5 Dentre as alterações introduzidas pela lei 14.112/2020 está a nova redação do caput do art. 104 para, adotando melhor técnica, esclarecer que os deveres impostos nos seus incisos I a XII cabem aos representantes legais do falido, que, não obstante a sujeição a deveres como, por exemplo, o dever de assinar termo de comparecimento e prestar informações (inciso) não é falido.
A falência, segundo o novo art. 75, parágrafo segundo, da lei 11.101/05, incluído pela lei 14.112/20, também é mecanismo de preservação dos benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial (empregos, produtos, serviços, tributos etc) assim como a recuperação judicial. Ambas as ferramentas do tratamento da insolvência no Brasil possuem objetivos comuns, mas os métodos para o seu atingimento são diferentes. Na recuperação judicial, tem-se uma empresa em crise, porém viável. Assim, busca-se criar condições para superação da crise através da negociação entre os agentes do mercado. Na falência, por outro lado, tem-se uma empresa em crise em razão de sua total inviabilidade. Não há possibilidade de manutenção daquela atividade empresarial. Assim, a falência buscar preservar os benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial pela liquidação imediata do devedor, abrindo-se o espaço de mercado para o surgimento de uma nova atividade empresarial geradora de empregos, tributos, produtos, serviços e riquezas, bem como pela realocação útil dos ativos da falida em outras cadeias produtivas, fazendo com que tais ativos voltem a ser fonte daqueles mesmos benefícios econômicos e sociais já mencionados. Entretanto, para que a falência seja eficiente e funcione como um instrumento de saneamento do mercado, é necessário que além de criar condições para preservação dos benefícios decorrentes da atividade empresarial (pela substituição do agente e pela realocação dos ativos) também viabilize ao empreendedor uma nova chance, um recomeço na atividade empresarial. Isso é importante pois, do contrário, desapareceriam da sociedade os empreendedores e com isso desapareceria também a atividade empresarial. Tendo em vista que a atividade empresarial envolve risco e que é comum que um negócio não prospere, condenar aqueles que tentaram empreender ao ostracismo empresarial é conduta que prejudica brutalmente a atividade de empreendedorismo. Nesse sentido, a reforma também se preocupou com a reabilitação do falido, oferecendo aos empresários desaventurados uma nova chance de empreender. No sistema brasileiro, o falido é o empresário individual ou a sociedade empresária, não os seus sócios. Entretanto, dependendo do modelo societário ou da posição exercida pelo sócio, os representantes legais da sociedade falida podem suportar as limitações processuais e de atuação profissional decorrentes da falência da empresa. Os sócios de sociedades de responsabilidade ilimitada ou que representam e administram a sociedade de responsabilidade limitada (diretores/administradores) são equiparados ao empresário individual para fins dos encargos processuais e restrição profissional, conforme se depreende do art. 81, parágrafo segundo, e do art. 102 da lei 11.101/05. Quanto à responsabilidade civil, somente os sócios de responsabilidade ilimitada podem ter seu patrimônio pessoal arrecadado (embora devam ser vendidos os bens da sociedade em primeiro lugar). São considerados falidos, a teor do art. 81 da lei 11.101/05. Nesse sentido, os sócios diretores/administradores de uma sociedade falida (ou os sócios de uma sociedade de responsabilidade ilimitada) somente estarão autorizados a exercer novamente a atividade empresarial depois de extintas as suas responsabilidades e de devidamente reabilitados, nos termos da lei. O tratamento que a lei 11.101/05 conferia ao empresário falido, no que tange às extinções de suas obrigações e à sua reabilitação para voltar a empreender condenava o falido a uma pena perpétua de inabilitação comercial. Conforme dispunha o sistema revogado, o falido ficava inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial a partir da decretação da falência e até a sentença que extingua suas obrigações.  Mas o art. 158 da lei 11.101/05, antes da reforma, dispunha que as obrigações do falido seriam extintas somente ao término do processo de falência, mediante o pagamento integral dos créditos ou mediante o pagamento de mais de 50% dos créditos quirografários. Caso não existisse ativo suficiente para esses pagamentos, a extinção das obrigações do falido ocorreria somente depois do decurso do prazo de 5 ou 10 anos, contados do encerramento da falência, conforme o falido tenha ou não sido condenado por crime falimentar. Tendo em vista que o sistema revogado vinculava o início do prazo de reabilitação do falido (em casos de falências sem ativos suficientes para o pagamento dos credores) ao encerramento do processo de falência e considerando que o término da falência demorava muitos anos para ocorrer, o falido ficava, na prática, condenado a uma pena quase que perpétua de inabilitação comercial. Esse tratamento legal tornava o pedido de autofalência, na prática, um suicídio empresarial. Nenhum empresário desejava buscar a decretação de sua falência, na medida em que ficaria vinculado a um processo de longuíssima duração sem a oportunidade de poder reempreender. O novo sistema trazido pela lei 14.112/2020 facilitou a extinção das obrigaçoes do falido ao diminuir de 50% para 25% o limite mínimo de pagamento dos credores quirografários (art. 158, II) e, principalmente, ao dispor que decorrido o prazo de 03 anos da decretação da quebra, o falido já pode ter extintas as suas obrigações mediante a entrega do patrimônio sujeito à falência (art. 158, V). O art. 159, por sua vez, dispõe que nessas hipóteses acima, o falido poderá requerer ao juízo de falência que suas obrigações sejam declaradas extintas por sentença. Dessa forma, o novo sistema de insolvência empresarial brasileiro, ao permitir que o falido possa voltar às atividades de empreendedorismo em prazo razoável (03 anos depois da decretação da falência) alinha-se aos mais modernos diplomas falimentares e passa a oferecer mecanismos de incentivo ao reemprendedorismo aos empresários e sociedades empresárias. Uma consequência ainda pouco percebida dessa nova regulação é a de que a autofalência agora surge como opção interessante para o enfrentamento da crise de uma empresa inviável. Isso porque, pode ser mais vantajoso ao empresário buscar a extinção de suas responsabilidades e sua reabilitação através de um processo célere (03 anos) ao invés de se aventurar numa recuperação judicial sem chances de êxito e que acabará sendo convolada em falência. Na prática, muitos processos de recuperação judicial são ajuizados como uma tentativa desesperada de se evitar a falência. Empresas inviáveis tentam postergar uma inevitável falência através do ajuizamento de recuperações judiciais que já nascem sem chances de êxito. Compreende-se essa conduta quase como um ato de legítima defesa, uma tentativa do empresário de não se tornar falido e, portanto, de não se tornar um pária do sistema econômico. Doravante, com o novo sistema de fresh start, a autofalência surge como uma opção razoável de tratamento da crise da empresa, permitindo ao empresário o encerramento de suas atividades, com extinção de suas responsabilidades e retorno ao mundo empresarial no prazo de 03 anos. É a autofalência no cardápio do tratamento da crise da empresa!
terça-feira, 4 de maio de 2021

A cooperativa na reforma da lei 11.101/05

Na coluna do dia 3 de março de 2020 tratei da insolvência das cooperativas, e me concentrei no exame de alguns aspectos da lei 5.471/71, que é a chamada lei das cooperativas. Hoje quero falar sobre a reforma da lei 11.101/05, introduzida pela lei 14.112/2020, e que tem provocado alguma celeuma sobre o seu impacto nas cooperativas. As cooperativas, como regra geral, estão afastadas do regime de insolvência da lei 11.101/05. Essa afirmativa pode ser feita sem nenhum receio. Pode-se dizer que, de lege lata, essa é a única interpretação possível. Ainda que se queira ver a cooperativa como um agente econômico organizado sob a forma de empresa, que de fato é, ela não pode ajuizar a ação de recuperação judicial, por opção do legislador. Há quem sustente que a previsão do inciso II do art. 2º, que estatui não se aplicar a lei 11.101/05 a cooperativa de crédito implica dizer que as demais cooperativas estão autorizadas a ajuizar a recuperação. O raciocínio seria o seguinte. Como a lei só excluiu do regime da lei 11.101/05 as cooperativas de crédito, automaticamente teria admitido que as demais cooperativas possam ajuizar recuperação judicial. O equívoco interpretativo reside no seguinte ponto. A restrição do inciso II do artigo 2º não significa dilatação do âmbito de aplicação do artigo 1º da lei 11.101/05. Por outras palavras, a previsão expressa de não cabimento da recuperação judicial para as cooperativas de crédito não leva, não transforma, as demais cooperativas em sociedade empresária. Por que o inciso II do artigo 2º da lei 11.101/05 só se refere às cooperativas de crédito não significa que as demais sociedades cooperativas estão, automaticamente, enquadradas no regime do artigo 1º da lei 11.101/05. Pode ser dito ainda que a previsão do inciso II do artigo 2º não transforma a sociedade cooperativa de sociedade simples em sociedade empresária. Não duvido, porém, que a jurisprudência brasileira, que sempre foi voluntarística em relação à crise da empresa, e isso vem desde o regime da concordata preventiva da lei de insolvência de 1945, acabe por aceitar o processamento de recuperação judicial de cooperativas. As perplexidades que a concordata preventiva suscitava, e que causaram a perda de sua credibilidade, ainda que seu perfil fosse de reduzida eficácia, vão sendo reproduzidas na vigência da lei 11.101/05, e, talvez, até com mais intensidade. O fato de certo ente jurídico ser um agente econômico não é suficiente para o uso da recuperação judicial, que não é um dado da natureza, senão uma criação jurídica, um instituto que tem seus contornos estabelecidos pela lei, cuja observância, no estado de direito, é imperativo democrático e respeito à separação de poderes. A reforma advinda da lei 14.112/2020 contém previsões acerca das cooperativas. Elas estão muito mal alocadas, pois inseridas no artigo 6º, § 13, quando, ao menos formalmente, deveriam estar contempladas ou no artigo 49 ou no artigo 1º. Porém, esse é um aspecto de menor relevância, dado o contexto legislativo em que vivemos. O § 13 do artigo 6º, na redação dada pela lei 14.112/2020, está assim redigido: "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica". São dois os assuntos contidos nesse dispositivo. O primeiro, diz respeito à não submissão de créditos e o segundo (na parte em itálico do dispositivo acima transcrito) à legitimidade ativa de uma entidade jurídica. Como se verá, não há nexo lógico nem jurídico entre os dois temas tratados no dispositivo. A primeira parte do § 13 tem o seguinte significado. Uma vez admitida a recuperação judicial do produtor rural, a lei estabelece exclusão de crédito dos seus efeitos. Assim, estão excluídos da recuperação judicial do produtor rural o crédito da cooperativa à qual é cooperado ou associado. Note-se que, aqui, a cooperativa é credora e mantém  incólume o seu direito de crédito. Ao que tudo indica, a ratio legis é a proteção da cooperativa, tendo em vista os princípios que governam a sua idealização e concretização, cujo crédito não será reestruturado como os demais créditos sujeitos o serão. Ato cooperativo é o ato celebrado entre a cooperativa e o seu cooperado (vide definição no art. 79 da lei 5.674/71). Somente o crédito oriundo dessa relação está excluído da recuperação judicial do produtor rural. Duas observações se impõem: a) caso exista relação jurídica entre o produtor rural e a cooperativa que integra, e que não se caracterize como ato cooperativo, o respectivo crédito estará submetido à recuperação judicial, presentes os demais requisitos (art. 49); b) eventual dívida que o produtor rural tenha para com uma cooperativa da qual não seja associado, não é dívida oriunda de ato cooperativo, e, então, poderá ser crédito submetido ao processo de recuperação, respeitado o comando do artigo 49 da lei 11.101/05. A reforma da lei, aliás, pode ser interpretada como um retrocesso para o produtor rural, pois, além da restrição do crédito decorrente de ato cooperativo, ainda viu excluído o crédito decorrente de cédula de produto rural física (CPR com liquidação física). (art. 11 da lei 8.929/1994, na redação dada pela lei 14.112/2020. A segunda parte do § 13 do artigo 6º tem uma redação curiosa: "...consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica". Da primeira parte do dispositivo, que cuida de exclusão de crédito, a própria lei extrai uma consequência. Note-se que o legislador saiu do campo prescritivo e foi ao campo doutrinário, no qual é próprio o caráter descritivo. Extrair consequência de uma norma é descrever seu âmbito de incidência e, portanto, é tarefa da doutrina, e não da lei. O ponto é recheado de perplexidades. Não há antecedente lógico que suporte a consequência estabelecida; não há premissa que sustente a consequência que a própria lei extraiu. Pode-se dizer que o legislador é um péssimo intérprete do seu próprio texto. Em termos lógicos, a previsão do § 13 do artigo 6º da lei 11.101/05 é um verdadeiro desastre. Em termos gramaticais, consequentemente é uma conjunção (conclusiva ou ilativa), e já vimos que não há nenhuma relação com a primeira oração do parágrafo. Excluir crédito (primeira parte) não se afeiçoa, nem longinquamente, com a legitimidade ativa assegurada pela segunda parte do dispositivo. Há, na realidade, uma falsa oração subordinada, pois, para que ela se caracterize, a ligação entre as duas proposições exige que "uma esteja contida na outra como o efeito na causa" (Carneiro Ribeiro), e não é o que ocorre na espécie. Nada foi alterado em relação à oração subordinante. Em termos lógicos e gramaticais, não há congruência alguma no texto. É precisa, a respeito, a lição de Fábio Ulhoa Coelho1: "Não é possível, sob o ponto de vista lógico, extrair qualquer conclusão de algo que não está sedimentado na premissa. Quer dizer, não é possível extrair-se de norma sobre cooperativas credores nenhuma consequência acerca de cooperativas devedoras" (itálico do original). Poder-se-ia tentar salvar o preceito recorrendo-se ao canône hermenêutico que procura aproveitar as palavras da lei, que não conteria nenhuma inutilidade. Para salvar o dispositivo, nessa linha e argumentação, seria preciso conferir certa autonomia à parte final do texto legal em relação à primeira parte. Ter-se-ia de dizer que a segunda parte do § 13 do artigo 6º, da lei 11.101/05, é um verdadeiro parágrafo dentro do parágrafo, que contém regra própria e autônoma em relação à primeira oração. Ter-se-ia, então, a seguinte conclusão: "não se aplica a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica". Trata-se de um preceito possível, evidentemente, pois, a critério do legislador, elege-se tal ou qual sociedade para este ou aquele regime de insolvência, pois não temos, entre nós, ao menos por enquanto, um regime universal de insolvência. Ocorre que essa conclusão tem um complicador fatal.  O comando legislativo, segundo o qual as operadoras de plano de assistência à saúde, instituídas sob a forma de cooperativas, não se submetem à restrição do inciso II do artigo 2º da lei 11.101/05, surgiu apenas no Senado Federal. Não houve apreciação desse tema por ocasião de sua tramitação na Câmara dos Deputados. No Senado Federal, a oração surbordinada "consequentemente não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica" foi admitida como emenda de redação, o que não corresponde à realidade. É evidente que se trata de um assunto relevante e importante, mas completamente dissociado da oração subordinante, contida na primeira parte do § 13. O texto que admite um novo regime jurídico para uma espécie societária não é apenas uma emenda de redação, sem alteração de texto normativo. Em termos jurídicos, a inovação é muito grande, sem que haja pertinência com a exclusão de crédito perpetrada pela primeira parte do dispositivo legal. A conclusão definitiva a ser extraída é a de que é inconstitucional a parte final do parágrafo treze do artigo 6º da Lei de Falências e Recuperação de Empresas, o que já foi notado por Fábio Ulhoa Coelho2 e por Marcelo Barbosa Sacramone. Diz o artigo O STF apreciou assunto dessa natureza no julgamento da ação declaratória de constitucionalidade nº 3, j.02-12-1999, rel. Min. Nelson Jobim. Transcrevo trecho de interesse para esta coluna: "O retorno do projeto emendado à Casa iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado. Só retornará se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica. Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada. Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial. Não basta a simples modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica. O comando jurídico - a proposição - tem que ter sofrido alteração. O conceito de emenda de redação é: modifica-se o enunciado, sem alterar a proposição" (sem grifo no original). Definitivamente, não foi o que ocorreu com a Lei 14.112/2020, cujo trâmite, no Senado Federal, trouxe inequívoca alteração da proposição aprovada pela Câmara dos Deputados. Ora, o texto aprovado pela Câmara Federal continha a seguinte e única previsão: "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei no 5.764, de 16 de dezembro de 1971." (NR). Já a redação aprovada pelo Senado Federal, que se se tornou lei, é a seguinte, com o perdão pela insistência: § 13.  Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do Art. 79 da lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do Art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.   A parte final (em negrito) é rigorosamente autônoma em relação à primeira parte, e ela pretende assegurar a legitimidade para as cooperativas de planos de saúde ajuizarem recuperação judicial. Trata-se de clara inovação legislativa, e não de emenda de redação, e, por isso, está contrariado o disposto no artigo 65, parágrafo único, da Constituição Federal, segundo o qual: "sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora". O Regimento Interno das Casas do Congresso, no artigo 135, prevê que "A retificação de incorreções de linguagem, feita pela Câmara Revisora, desde que não altere o sentido da proposição, não constitui emenda que exija sua volta `à Câmara iniciadora". Na interpretação a contrario sensu, a norma regimental só admite a chamada emenda de redação quando se assentar em dois pressupostos: a) correção de linguagem; b) manutenção do sentido da proposição. Como, na espécie ora comentada, não se trata de correção de linguagem, ter-se-ia de examinar se se trata de alteração de sentido da proposição. Ora, não há a menor dúvida de que houve alteração de sentido, e de larga magnitude. Jamais se poderá inferir que, da redação aprovada pela Câmara Federal, as cooperativas de planos de saúde estariam autorizadas a ajuizar a recuperação judicial. Essa fórmula de legislar (a mídia diz que se trata de inserir um jabuti no projeto), tão depreciadora do trabalho legislativo, é causa de forte insegurança jurídica. Caso não haja rápido pronunciamento do STF a respeito da matéria, a jurisprudência, por certo, oscilará, o que não é nada conveniente para quem experimenta crise econômico-financeira. Um outro aspecto da inovação implementada exclusivamente pelo Senado Federal é a distorção no mercado. A administração de planos de saúde é uma atividade que depende de especial autorização do estado para funcionamento, com controles intensos, ao longo do exercício da atividade, de diversos aspectos, inclusive o da liquidez e solvência do administrador que recolhe recursos do público em geral. Admitida a recuperação judicial da cooperativa administradora de planos de saúde, as demais sociedades que atuam no mesmo mercado terão recebido tratamento distinto, pois a insolvência de uma sociedade anônima ou limitada passará pelos regimes especiais de direito público (intervenção e liquidação extrajudicial, entre outros).  E fica ainda a seguinte perplexidade: a ANS poderá decretar a liquidação extrajudicial da cooperativa, a despeito de ela poder ajuizar a recuperação judicial? Ou ficará derrogada a atuação da ANS no que concerne à insolvência da cooperativa médica? O assunto é muito sério para ser tratado como uma mera emenda de redação, pois, na verdade, provoca uma profunda alteração na sistemática regulatória da atividade de administração de planos de saúde. Em conclusão, tem-se: a) cooperativa de crédito não pode fazer uso da recuperação judicial; b) crédito de cooperativa está excluído dos efeitos do processo de recuperação judicial do produtor rural, desde que se refira a ato cooperativo; c) as cooperativas, de modo geral, não têm legitimidade ativa para o ajuizamento da recuperação judicial; d) ainda que as cooperativas sejam agentes econômicos, a lei, ao caracterizá-la como sociedade simples, afastou-a do regime da insolvência da sociedade empresária; e) pretendeu-se reconhecer legitimidade à cooperativa médica para ajuizar recuperação judicial. Porém, a previsão, tal como consta da lei 11.101/05, é inconstitucional. __________ 1 Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, 14ª ed., complemento de rejeição dos vetos. São Paulo, RT, p. 3. 2 Ob.cit., p. 3. No mesmo sentido, Marcelo Barbosa Sacramone, coluna Insolvência em Foco, Migalhas, 30/03/2021.
A aprovação da lei 14.112/2020 causou relevante alteração em diversos institutos do procedimento da recuperação judicial, previstos na lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falência - LRF), entre os quais pode-se mencionar o da habilitação e da impugnação de crédito retardatária, questão, pode-se dizer, controvertida na prática forense. Apenas para lembrança dos leitores, importante salientar que habilitação é instituto totalmente diverso da impugnação, pelo menos por quatro singelas razões. Primeiro, em razão da fase em que cada requerimento é formulado: após o deferimento do processamento da recuperação judicial, será publicado o Edital contendo a 1ª (primeira) Relação dos Credores, apresentada pela própria recuperanda, com os créditos, sua importância e respectiva classificação. Após a publicação do indigitado Edital, os credores não contemplados na relação editalícia poderão habilitar o seu crédito, mediante procedimento de natureza eminentemente administrativa, a fim de incluir seu crédito em uma das classes de credores (art. 7º, §1º, LRF), ou, mesmo, divergir do crédito ali constante, seja para excluí-lo, seja para reclassificá-lo ou, ainda, retificar sua importância. Após a apreciação das habilitações e divergências apresentadas ao administrador judicial e por este apreciadas, será elaborada uma 2ª (segunda) Relação de Credores, também veiculada mediante Edital, a qual poderá ser objeto de impugnação, por meio da instauração de incidente distribuído por dependência aos autos principais do procedimento recuperacional. A impugnação, portanto, apresenta natureza judicial, visando tanto a incluir crédito (ainda) não arrolado, quanto a atacar crédito arrolado, seja para excluí-lo da Lista de Credores, seja para apresentar divergência a um de seus elementos, tais como classificação ou importância do crédito.1 Segundo, em razão do destinatário do requerimento: a habilitação (não retardatária) será dirigida ao administrador judicial (art. 7º, §1º, segunda parte, LRF), ao passo que a impugnação de crédito, em razão de sua natureza judicial, é dirigida ao próprio juízo da recuperação judicial, lembrando, por meio de autos em separado ao processo principal da recuperação (art. 13, parágrafo único, LRF). Terceiro, em razão do prazo para formulação de cada requerimento: a habilitação de crédito será apresentada em 15 (quinze) dias, contados da data da publicação do 1º (primeiro) Edital da Relação dos Credores no Diário Oficial (art. 7º, §1º, LRF), ao passo que a impugnação de crédito será requerida no lapso de 10 (dez) dias, contados da data da publicação do 2º (segundo) Edital da Relação dos Credores (art. 8º, caput, LRF). Ambos os prazos serão contados em dias corridos, nos termos previstos pelo (novo) art. 189, §1º, I, LRF, incluído pela Lei nº 14.112/2020, colocando (a princípio) termo à discussão quanto à forma de contagem dos prazos previstos na Lei nº 11.101/2005, especialmente após o julgamento do REsp 1699528/MG.2 Por fim, quarto, em razão da (im)possibilidade de sucumbência: inequivocamente que o requerimento de habilitação de crédito, formulado administrativamente, não ensejará ao requerente risco de condenação a título de sucumbência, ao passo que a impugnação judicial, por ostentar natureza de ação incidental, poderá implicar eventual condenação a título de sucumbência, embora haja vozes na doutrina que defendam o não cabimento de condenação a título sucumbencial em sede de incidentes processuais, em virtude da ausência de expressa previsão legal (art. 85, §1º, CPC).3 Outrossim, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se apresenta inconsistente, uma vez que embora exista precedente defendendo a possibilidade de condenação em honorários sucumbenciais em sede de habilitação de crédito, desde que haja pretensão resistida,4 o mesmo tribunal já sinalizou acerca do não cabimento de honorários advocatícios em sede de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, pelo mesmo fundamento da ausência de previsão legal.5 Apresentadas essas singelas diferenças, poderíamos mencionar uma quinta, que envolve, definitivamente, firme divergência jurisprudencial, acerca da possibilidade (ou não) de veicular tanto impugnações quanto habilitações, igualmente, retardatárias. Analisemos, pois, a mencionada diferença. É certo que pela rápida leitura da lei 11.101/2005, especialmente de seu art. 10, reconhece-se a possibilidade de veicular pleito habilitatório retardatário, isto é, após o prazo quinzenal previsto na LRF.6 Tal formulação se mostra razoável se pensarmos na hipótese de habilitação de crédito trabalhista. Suponha-se que após a publicação do Edital contendo a 2ª (segunda) Relação de Credores na recuperação judicial, determinado credor ainda estivesse discutindo perante o juízo trabalhista o dever de percepção de verbas rescisórias, com sentença favorável, porém com Recurso Ordinário ainda pendente de julgamento. Nesse caso, temos um crédito que, a despeito de ser reconhecido por sentença favorável, não pode ser lastreado por uma Certidão que autorize o credor a habilitá-lo, razão pela qual a posterior consolidação desse crédito, mediante Certidão lavrada após a publicação do Edital contendo a Relação dos Credores, viabilizará o credor trabalhista a postulá-lo de modo retardatário, perante o juízo da recuperação judicial, aplicando-se o regime de tratamento da impugnação à habilitação (art. 10, §5º, LRF). No tocante à impugnação retardatária, a discussão se torna mais delicada. Fala-se delicada, pois a impugnação judicial (pelo menos até o advento do art. 10, §§7º, 8º e 9º da lei 14.112/2020), prevista pelo art. 8º, caput, LRF, abrigaria, conforme julgados recentes exarados pela 3ª Turma do STJ, prazo de natureza cogente e peremptório, cuja inobservância implicaria impossibilidade do requerente de perseguir o indigitado crédito nos autos do procedimento recuperacional.7 Na mesma direção, parcela da doutrina alinha-se à posição exarada pela 3ª Turma do STJ.8 Assim, os créditos já arrolados e que não foram, oportuna e tempestivamente, impugnados dentro do decênio legal, seriam alcançados pela preclusão, embora, ainda, seja reservado ao credor-impugnante o direito de discutir, por meio de ação autônoma pelo procedimento comum, os elementos de seu crédito submetido à recuperação judicial, a fim de exclui-lo, reclassificá-lo ou mesmo retificá-lo, nas hipóteses previstas pelo art. 19, LRF, não havendo, por isso, tratamento discriminatório entre o credor trabalhista do exemplo acima (cujo crédito ainda não estava arrolado) e o credor-impugnante. Tal posição jurisprudencial, contudo, não está amparada em julgado firmado sob o rito dos recursos repetitivos, previsto no art. 927, III, CPC, e, assim, não constitui hipótese de precedente obrigatório, motivo pelo qual não tem o condão de vincular os demais tribunais brasileiros acerca da aplicação do art. 8º da lei (Federal) 11.101/2005. Não por outro motivo, alguns tribunais têm formulado entendimentos a contrario sensu daquele aviado pelo STJ, como é o caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) que vem sinalizando, há algum tempo, a possibilidade de apresentação da impugnação retardatária, conferindo-lhe o mesmo tratamento dado pela legislação às habilitações retardatárias.9-10 Nesse passo, também, outra parcela da doutrina vem defendendo a admissibilidade da impugnação retardatária, tal como sinalizado pelo TJ/SP.11 A lei 14.112/2020 traz importante previsão sobre o assunto, reconhecendo, inclusive, a expressão impugnação retardatária, o que colocaria uma pá de cal na discussão aqui travada, passando a ser essa uma semelhança entre os dois institutos, especialmente no que toca ao disposto no art. 10, §7º, LRF, o qual prescreve que o quadro-geral de credores será formado com o julgamento das impugnações tempestivas e com as habilitações e as impugnações retardatárias decididas até o momento da sua formação. Trata-se de questão que poderá ainda render muitas controvérsias, especialmente diante do fato de que o oferecimento da impugnação retardatária até a publicação do quadro-geral dos credores poderia ser interpretado como o reconhecimento de uma preclusão diferida, esvaziando-se, com isso, o prazo decenal previsto no caput do art. 8º, LRF, bem como o disposto no art. 223, CPC. Isso porque o impugnante, em verdade, estaria limitado cronologicamente até a publicação do indigitado quadro-geral e não mais ao prazo disposto no art. 8º para oferecer a impugnação a destempo, o que, curiosamente, acarretaria o reconhecimento de um prazo impróprio à parte/requerente. Outra discussão que poderá ser aviada diz respeito à possibilidade de a recuperanda ostentar legitimidade para veicular o pleito fora do prazo decenal do art. 8º, caput, LRF, uma vez que os §§7º a 9º do art. 10 restaram silente nesse ponto, não estabelecendo nenhuma vedação a esse respeito e deixando dúvidas acerca da viabilidade de a impugnação retardatária ser veiculada pela recuperanda (como admitido, para a impugnação tempestiva, pelo art. 8º, caput, LRF), ou, apenas, pelo credor. De modo geral, em uma primeira vista, não parece fazer sentido a recuperanda impugnar a Lista de Credores do administrador judicial, seja para retificar, seja para incluir novos créditos, quanto mais de forma retardatária, na medida em que ela própria quem elaborou a 1ª (primeira) Lista de Credores que serviu de base à lista do administrador judicial. Não à toa que há julgados do TJSP contrários à habilitação de crédito retardatária pela recuperanda, com fundamento na ausência de legitimidade.12 Nada obstante, há debate sobre os casos de créditos que se consolidem em definitivo após a publicação das Listas de Credores, embora se refiram a fatos geradores anteriores ao pedido de recuperação judicial. Num cenário em que o credor não promova a habilitação e continue executar a recuperanda na ação própria, considerando a competência do juízo da recuperação judicial para decidir acerca da natureza concursal do crédito,13 conviria levar em conta a possibilidade de a recuperanda apresentar ao menos habilitação retardatária de crédito. Por fim, ainda, vale destacar que a admissibilidade do mencionado pleito retardatário poderá gerar morosidade processual, em clara afronta ao princípio da duração razoável do processo, aplicável, por certo, ao procedimento recuperacional, à luz do disposto no art. 189, caput, LRF c/c art. 4º, caput, primeira parte, CPC, em virtude da necessidade de o juízo recuperacional (também competente para julgar os incidentes de impugnação) direcionar esforços e despender de tempo para resolver pleitos retardatários, cuja morosidade se torna inevitável especialmente em grandes recuperações judiciais. São questionamentos desta natureza que (ainda) subsistem, a despeito da edição da lei 14.112/2020 e, com isso, desaproximam o objetivo do legislador de equiparar institutos que, dada as diferenças, foram desenhados para serem distintos entre si. *Rodolfo Mascarenhas Lopes é pós-graduando em Direito Processual Civil pelo CEPED/UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Advogado no FASV Advogados. **Pedro Simas de Oliveira é bacharel em Direito pela UERJ. Advogado especializado em contencioso cível e empresarial/insolvência no FASV Advogados.  __________ 1 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Almedina, 2016, p. 147. 2 "RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ADVENTO DO CPC/2015. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. FORMA DE CONTAGEM DE PRAZOS NO MICROSSISTEMA DA LEI DE 11.101/2005. CÔMPUTO EM DIAS CORRIDOS. SISTEMÁTICA E LOGICIDADE DO REGIME ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA." (STJ, REsp 1699528/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 10/04/2018, DJe 13/06/2018). 3 Nesse sentido, cf. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 14ª ed. reform. Salvador: Jus Podivm, 2017, v. 3, p. 184; ROQUE, Andre Vasconcelos. Questões controvertidas sobre a impugnação de crédito na recuperação judicial. Migalhas, São Paulo, 20 out. 2020. Coluna Insolvência em foco. Disponível aqui. Acesso em: 06 jan. 2021. 4 "(...) 5. Com relação à fixação de honorários advocatícios, a orientação pacífica da jurisprudência desta Corte Superior dispõe que é impositiva a fixação de honorários sucumbenciais na habilitação de crédito, no âmbito da recuperação judicial ou da falência, quando apresentada impugnação, o que confere litigiosidade à demanda." (STJ, AgInt nos EDcl no AgInt no REsp 1816967/PR, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 30/08/2020, DJe 08/09/2020). 5 "RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DESCABIMENTO. ART. 85, § 1º, DO CPC/2015. RECURSO ESPECIAL PROVIDO." (STJ, REsp 1845536/SC, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 26/05/2020, DJe 09/06/2020). 6 "Art. 10. Não observado o prazo estipulado no art. 7º, § 1º, desta Lei, as habilitações de crédito serão recebidas como retardatárias." (grifos nossos). 7 Nesse sentido, cf. STJ, REsp 1704201/RS, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 07/05/2019, DJe 24/05/2019; STJ, AgInt no AREsp 1433517/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, Terceira Turma, j. em 10/02/2020, DJe 13/02/2020. 8 AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 205. 9 Nesse sentido, cf. TJSP; Agravo de Instrumento 2112507-74.2017.8.26.0000; Relator (a): Carlos Alberto Garbi; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jaboticabal - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/11/2017; Data de Registro: 16/11/2017). 10 Nesse sentido, ainda, cf. TJSP; Agravo de Instrumento 2190317-23.2020.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mairinque - 1ª Vara; Data do Julgamento: 10/11/2020; Data de Registro: 10/11/2020; TJSP; Agravo de Instrumento 2147600-93.2020.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mairinque - 1ª Vara; Data do Julgamento: 09/10/2020; Data de Registro: 09/10/2020. 11 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Almedina, 2016, p. 146-147. Ainda, em sentido favorável à impugnação retardatária, cf. COELHO, Fábio Ulhôa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 49. 12 Cf. TJSP; Agravo de Instrumento 2083481-26.2020.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mogi Guaçu - 3ª V. CÍVEL; Data do Julgamento: 13/11/2020; Data de Registro: 13/11/2020; TJSP; Agravo de Instrumento 2205747-83.2018.8.26.0000; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Sorocaba - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 20/02/2019; Data de Registro: 22/02/2019. 13 Cf. STJ, AgRg nos EDcl no CC 136.508/PA, Rel. Min João Otávio de Noronha, Segunda Seção, j. 12/08/2015, DJe 20/08/2015.
O Congresso Nacional rejeitou diversos vetos presidenciais à lei 14.112/2020. Dentre os vetos rejeitados, aqueles que implicam alterações na lei 11.101/05 foram os referentes ao art. 6º, §13º; art. 6º - B; art. 50-A; art. 60, parágrafo único e art. 66, §3º. A apreciação desses novos dispositivos legais, alguns com efeitos absolutamente controversos, deve ser feita individualmente.  a)      Art. 6º, § 13. "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica."  O veto presidencial ao art. 6º, § 13, inserido pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, era justificado na possibilidade de que a recuperação judicial somente para as cooperativas médicas feria o princípio da isonomia em relação às demais modalidades societárias e afastava "os instrumentos regulatórios que oportunizam às operadoras no âmbito administrativo a recuperação de suas anormalidades econômico-financeiras e as liquidações extrajudiciais". O veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional. O art. 6º, §13º, possui duas determinações distintas, sem causa e efeito, como sua redação tenta induzir. A primeira delas é a não sujeição à recuperação judicial dos créditos decorrentes de atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados. Ainda que a sociedade cooperativa, como pessoa jurídica não empresária, não possa utilizar-se da recuperação judicial para superar a crise que afeta sua atividade, seja ela qual for, seus cooperados poderiam requerer recuperação judicial e submeter todos os seus débitos à negociação coletiva, desde que sejam empresários. Dentro desses débitos dos cooperados em recuperação, contudo, era excepcionado o crédito das sociedades cooperativas. As justificativas ao acolhimento da Emenda 13 ao PL 6.229 pelo relator, e que inseria o dispositivo legal, foram exclusivamente a peculiaridade que caracterizaria as operações realizadas no âmbito das cooperativas e a importância dessas para o desenvolvimento econômico nacional. O ato cooperativo praticado entre a cooperativa e seus associados é qualquer operação destinada à consecução dos objetivos sociais da cooperativa. Por essa posição adotada pelo legislador, como os atos cooperativos não visariam ao lucro, mas ao bem comum, não poderiam ser caracterizados como operação de mercado ou contrato de compra e venda regular de produto ou mercadoria (art. 79 da lei 5.764/71). Tais características peculiares do cooperativismo e que fariam com que o conflito de interesses típico dos contratos a mercado fosse atenuado em função do mutualismo entre cooperativa e do cooperado fizeram com que o legislador tratasse de forma diferenciada os créditos decorrentes desses contratos e não os submetesse às recuperações judiciais dos cooperados. Durante a tramitação legislativa da alteração ao art. 6º, § 13, foi inserida complementação ao dispositivo legal pelo Senado Federal, sem que o texto alterado  voltasse para a Câmara dos Deputados. A complementação é justamente a determinação de que a vedação às cooperativas contida no art. 2º, II, não afetaria a sociedade operadora de plano de assistência à saúde se fosse cooperativa médica. A despeito da inserção do advérbio "consequentemente" no dispositivo legal, a inserção não possui qualquer relação lógica com o restante do parágrafo, que trata da cooperativa enquanto credora na recuperação judicial dos cooperados. Por não se tratar apenas de correção redacional, imprescindível era seu retorno à Câmara dos Deputados, pelo que o dispositivo possui inconstitucionalidade formal. Outrossim, o dispositivo apenas ressalta a não aplicação às cooperativas prestadoras de assistência à saúde do art. 2º, II, o qual veda a determinados empresários o requerimento de recuperação judicial.  Pela redação do próprio dispositivo legal, a cooperativa médica continua, portanto, a não se sujeitar à recuperação judicial ou à falência pois não é considerada empresária, condição imprescindível para a submissão aos institutos da recuperação de empresas e falência, nos termos do art. 1º da Lei n. 11.101/2005. O art. 2º, II, somente concebe as sociedades operadoras de seguro-saúde como relativamente excluídas para impedi-las, em razão da atividade, de se submeter à recuperação judicial ou à extrajudicial, mas não à falência, ainda que empresária. A sociedade cooperativa, entretanto, independentemente de sua atividade, é absolutamente excluída da aplicação da legislação de insolvência em razão de sua forma ser não empresarial, conforme art. 1º, que permanece em vigor e não foi alterado ou ressalvado.  b)      Art. 6º-B. "Não se aplica o limite percentual de que tratam os arts. 15 e 16 da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995, à apuração do imposto sobre a renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre a parcela do lucro líquido decorrente de ganho de capital resultante da alienação judicial de bens ou direitos, de que tratam os arts. 60, 66 e 141 desta Lei, pela pessoa jurídica em recuperação judicial ou com falência decretada. Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese em que o ganho de capital decorra de transação efetuada com: I - pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada; ou II - pessoa física que seja acionista controlador, sócio, titular ou administrador da pessoa jurídica devedora."  As alienações judiciais de ativos realizadas pelos procedimentos de recuperação judicial e de falência poderão implicar ganho de capital ao empresário devedor, que pode ter adquirido os bens por valor inferior ao produto da referida arrematação. Pela lei 14.112/2020, insere-se o art. 6º-B na lei 11.101/2005, que determina que não se aplica o limite percentual de que tratam os arts. 15 e 16 da lei 9.065, de 20 de junho de 1995, à apuração do imposto sobre a renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre a parcela do lucro líquido decorrente de ganho de capital resultante da alienação judicial de bens ou direitos, de que tratam os arts. 60, 66 e 141 desta Lei, pela pessoa jurídica em recuperação judicial ou com falência decretada. O dispositivo legal havia sido vetado pelo Presidente da República, sob a justificativa de que acarretava renúncia de receita sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que estivesse acompanhada de estimativa de seu impacto orçamentário. O veto, entretanto, foi rejeitado pelo Congresso Nacional. O dispositivo legal permite, assim, que o prejuízo fiscal apurado seja compensado, sem limite máximo de 30%, como previsto originariamente pela Lei n. 9.065/95, com o lucro líquido decorrente do ganho de capital das alienações judiciais nos procedimentos de insolvência, tanto para fins de imposto de renda quanto para a contribuição social sobre o lucro da pessoa jurídica. A compensação somente poderá ocorrer, contudo, se os bens vendidos não forem adquiridos por pessoa jurídica controladora, controlada, coligada ou interligada, ou por pessoa física que fosse acionista controlador, sócio, titular ou administrador da pessoa jurídica devedora. c)       Art. 50-A. "Nas hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, deverão ser observadas as seguintes disposições: I - a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); II - o ganho obtido pelo devedor com a redução da dívida não se sujeitará ao limite percentual de que tratam os arts. 42 e 58 da lei 8.981, de 20 de janeiro de 1995, na apuração do imposto sobre a renda e da CSLL; e III - as despesas correspondentes às obrigações assumidas no plano de recuperação judicial serão consideradas dedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior. Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica à hipótese de dívida com: I - pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada; ou II - pessoa física que seja acionista controladora, sócia, titular ou administradora da pessoa jurídica devedora."  A lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, inseriu o art. 50-A na lei 11.101/2005, o qual fora vetado pelo Presidente da República sob a justificativa de que os benefícios tributários concedidos feririam o princípio da isonomia tributária, acarretariam renúncia de receita sem o cancelamento de outra despesa obrigatória e sem que houvesse estimativa de seu impacto orçamentário e financeiro. O veto, entretanto, fora rejeitado pelo Congresso Nacional. Trata o dispositivo legal da tributação sobre o desconto obtido em razão das negociações de dívidas em virtude da recuperação judicial, sejam elas sujeitas ou não sujeitas à recuperação. Ainda que tivesse ocorrido discussão intensa sobre a necessidade de incidência ou não dos tributos sobre o desconto obtido na recuperação judicial, a inserção do art. 50-A mantém a tributação, embora permita regime diverso em razão da recuperação judicial do devedor. O regime mais benefício de tributação ocorre desde que a renegociação não tenha ocorrido com pessoa diretamente relacionada ao devedor em recuperação ou com a pessoa jurídica que fosse controladora, controlada, coligada ou interligada, ou a pessoa física que fosse acionista controladora, sócia, titular ou administradora da pessoa jurídica devedora. Dentro do regime especial definido pela lei, as renegociações de dívidas realizadas pela pessoa jurídica em recuperação judicial, com eventual obtenção do deságio, implicam receita diante da redução da dívida. Mesmo que as dívidas renegociadas não estejam sujeitas ao procedimento de recuperação ou que não haja o reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, a receita decorrente da redução da dívida deve ser tributada pela incidência do imposto de renda e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Pelo dispositivo legal, essa receita decorrente da redução da dívida não é computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Para o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas e pelo regime de tributação com base no lucro real, permite-se que o lucro líquido seja ajustado com adições e exclusões, sem que haja a incidência do limite de redução em no máximo 30%. Da mesma forma, na contribuição social sobre o lucro, o lucro líquido ajustado pode ser reduzido por compensação da base de cálculo negativa de períodos anteriores sem a limitação de 30%. São também consideradas dedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior, as despesas correspondentes às obrigações assumidas no plano de recuperação judicial. d)      Art. 60, parágrafo único. "O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta lei."  A lei restringiu o risco dos adquirentes de bens alienados pela recuperanda. As obrigações do devedor e os ônus que recaiam sobre os bens arrematados deverão ser de responsabilidade exclusiva do devedor1. A limitação da sucessão das obrigações do devedor ao adquirente procura garantir o princípio da preservação da empresa. Separada do conceito de empresário devedor, a empresa, entendida como atividade, poderá ser desenvolvida de modo mais eficiente pelo adquirente do conjunto de bens, que poderá garantir maior circulação de riquezas. Permitir a venda de ativos livres de ônus garante que a empresa a ser desenvolvida pelo adquirente não seja impossibilitada pela ineficiência do devedor vendedor. Por seu turno, a limitação da sucessão reduz os riscos do adquirente, o que garante aumento do valor do preço obtido pelas arrematações e, por consequência, maior satisfação de todos os credores. Quanto aos ônus, a alienação do bem na recuperação judicial assegura o levantamento de todas as constrições ou ônus que poderiam recair sobre o ativo, como penhoras de credores, submetidos ou não submetidos à recuperação judicial, impostos pendentes como IPTU ou IPVA, multas administrativas, débitos trabalhistas etc. Referidos ônus deverão ser levantados pelos órgãos administrativos competentes mediante mero ofício do juízo da recuperação judicial, ainda que a constrição tenha sido realizada mediante determinação por juiz diverso. Quanto à sucessão do arrematante, não haverá responsabilidade por nenhuma obrigação do devedor ou do bem adquirido existente até o momento da arrematação, sejam os débitos trabalhistas, tributários, ambientais, administrativos, penal, anticorrupção etc. A inclusão dos débitos ambientais, administrativos, penal, anticorrupção e trabalhistas foi expressamente mencionada no parágrafo único pela alteração promovida pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020. O dispositivo foi vetado pelo Presidente da República sob o fundamento de que as obrigações ambientais seriam protegidas constitucionalmente, assim como as da Lei anticorrupção deveriam ser conservadas sob pena de afronta aos direitos fundamentais da probidade e da boa administração pública. O veto fora rejeitado pelo Congresso Nacional. A despeito da inclusão expressa da não sucessão às obrigações ambientas, regulatórias, administrativa, penal, anticorrupção e trabalhista, a redação original do dispositivo já permitia exatamente essa interpretação do texto. Isso porque determinava-se que não haveria sucessão do arrematante em nenhuma obrigação, de modo que todas essas, juntamente com as tributárias, estavam incluídas. A inclusão de todas as obrigações, afinal, conforma-se com o intuito de maximização do valor e satisfação da coletividade de credores2-3. No tocante às obrigações tributárias, além de sua expressa não sucessão no art. 60 da LREF, o art. 133 do Código Tributário Nacional corrobora o dispositivo legal. Pela alteração concebida pela Lei Complementar 118/2005, o art. 133, § 1º, II, estabelece que na alienação judicial de filial ou unidade produtiva isolada em processo de recuperação judicial não haverá a sucessão do arrematante pelas obrigações tributárias do vendedor. A interpretação do dispositivo legal, ao contrário do que poderia ser deduzido do veto presidencial rejeitado pelo Congresso Nacional, não contraria a Constituição Federal. A ausência de responsabilidade não impede a satisfação dos referidos créditos pelo produto da alienação pelo devedor nos termos do plano de recuperação judicial e, outrossim, garante que o melhor valor de alienação para a satisfação de todos os créditos seja efetivamente possível, o que assegura a melhor satisfação das referidas obrigações. A não sucessão das obrigações do devedor e o levantamento dos ônus incidentes sobre o bem, entretanto, são condicionados à alienação por uma das modalidades públicas prescritas na LREF. Ao remeter ao art. 142, a LREF determina que a alienação desses ativos deverá ser realizada na modalidade do leilão, processo competitivo organizado ou qualquer outra modalidade aprovada nos termos dessa Lei. A exigência decorre da garantia de que haveria um procedimento competitivo entre os interessados e que seria alcançado o melhor preço de aquisição do bem, com vantagens a todos os credores. Com esse produto da arrematação, o devedor poderia satisfazer seus credores, tanto para os credores sujeitos quanto aos não sujeitos à recuperação judicial. A alienação de bens diretamente entre o devedor e o adquirente não é impedida pela legislação de insolvência. Todavia, a não sucessão das obrigações pelo arrematante apenas ocorrerá se a alienação ocorrer por essas formas públicas de alienação. Na hipótese de alienação direta e de modo que os credores não sejam prejudicados por uma aquisição abaixo de valor de mercado do bem, o adquirente é considerado sucessor das obrigações e passa a ser responsável pelo pagamento dos credores na medida do valor do bem adquirido, ainda que essa forma esteja prevista no plano de recuperação judicial aprovado4. A responsabilidade do adquirente ocorrerá, também, se este for sócio do devedor, for sociedade por ele controlada, parente em linha reta ou colateral até o quarto grau, consanguíneo ou afim, seja do devedor ou de sócio do devedor, ou, ainda, considerado agente do devedor5.  e)      Art. 66, §3º. "Desde que a alienação seja realizada com observância do disposto no § 1º do art. 141 e no art. 142 desta lei, o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do adquirente nas obrigações do devedor, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista".  A LREF garantiu que a alienação de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor (UPI), desde que realizada por um dos modos públicos disciplinados no art. 142 da LREF e mediante aprovação no plano de recuperação judicial, permitirá ao arrematante a aquisição dos bens livre de toda e qualquer sucessão nas obrigações do devedor e de qualquer encargo existente sobre os bens, nos termos do art. 60. A isenção de responsabilidade para a UPI e filiais não foi reproduzida originalmente pelo art. 66 para a alienação ou oneração de bens não circulantes e fora do plano de recuperação judicial, mas a falta de previsão expressa não significava imediata sucessão. Sustentava-se que a alienação de bens individuais, que não se confundiam com estabelecimentos empresariais, não gerava o risco de ineficácia do trespasse caso não restassem bens suficientes para solver o passivo (art. 1.145 do CC), ou a sucessão geral do adquirente pelas obrigações contabilizadas do devedor (art. 1.146 do CC), por falta de previsão legal. Contudo, poderia se cogitar de o adquirente ser responsável apenas por eventuais ônus incidentes sobre o bem, porque não poderia alegar seu desconhecimento, ou pela satisfação das obrigações propter rem, como qualquer outra alienação em que o vendedor não estivesse sujeito à recuperação judicial. Entretanto, a interpretação sistemática dos diversos dispositivos da lei 11.101/2005 já impedia essa conclusão. Se a alienação do estabelecimento empresarial, desde que realizada por uma das formas públicas de alienação previstas no art. 142 e aprovada pelos credores no plano de recuperação judicial, teria seu objeto livre de qualquer ônus e não implicaria sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, o mesmo efeito deverá ser produzido em relação aos bens menos importantes ao desenvolvimento da atividade ou que, em regra, afetariam menos a garantia dos credores. Se a alienação do estabelecimento, mesmo sem remanescerem outros ativos para a satisfação do passivo ou mesmo sem a anuência da totalidade dos credores, era prevista como livre de ônus ou débitos, com mais razão e por gerar menos riscos de insatisfação das obrigações, a alienação ou oneração de outros ativos não circulantes também deveria ser realizada sem responsabilidade do adquirente. Se a situação mais gravosa aos credores é permitida, não seria lógico proibir a menos gravosa. De forma a retirar qualquer risco do adquirente e evitar qualquer controvérsia, a alteração da lei 11.101/2005 pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, incluiu o art. 66, § 3º, em que se determina que a alienação, desde que feita por uma das formas públicas de alienação disciplinadas pelo art. 142, está livre de qualquer ônus e não há sucessão do adquirente nas obrigações do devedor, quaisquer que fossem. O veto do Presidente da República, fundamentado na impossibilidade constitucional de se impedir a sucessão das obrigações ambientais e da Lei anticorrupção,  fora levantado pelo Congresso Nacional. A despeito da inserção expressa, a interpretação sistemática já era permitida pela redação original da lei 11.101/2005. A alienação de bens deve ser interpretada em conjunto com o art. 60 da lei 11.101/2005. Nesse aspecto, a alienação do estabelecimento empresarial, desde que realizada por uma das formas públicas de alienação, terá seu objeto livre de qualquer ônus e não implicará sucessão do arrematante nas obrigações do devedor. A ausência de risco na aquisição assegura maior valor das arrematações e, por consequência, a maior possibilidade de satisfação dos interesses de todos os credores, sujeitos e não sujeitos à recuperação judicial. Pela mesma razão, notadamente porque exigirá inclusive a aprovação judicial na hipótese de ativos não circulantes, não deverá ocorrer sucessão nos demais bens. A alienação sem qualquer possibilidade de sucessão permitirá que os ativos dispensáveis ao prosseguimento da atividade empresarial sejam alienados a outros empresários, que poderão alocar esses fatores de produção de forma mais eficiente. Outrossim, aumenta a possibilidade de existirem interessados, o que permite ao empresário a redução dos custos com ativos desnecessários para o desenvolvimento de sua atividade, bem como o aumento do valor obtido nas arrematações, o qual reverterá ao pagamento de toda a coletividade de credores. Nem se alegue que a impossibilidade de sucessão permitiria a liquidação ordinária dos ativos, em detrimento dos credores não sujeitos à recuperação judicial. A alienação dos ativos continua condicionada à evidente utilidade para a recuperação judicial reconhecida pelo juiz e, mesmo se aprovada pela Assembleia Geral de Credores, poderá gerar a convolação em falência se verificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implica liquidação substancial da empresa, nos termos do art. 73. __________ 1 O Supremo Tribunal Federal considerou o dispositivo legal de acordo com a Constituição Federal. A não sucessão dos adquirentes dos bens alienados pelas empresas em dificuldades garante a função social que tais complexos patrimoniais exercem (STF, ADI 3.934-2, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 6-11-2009). 2 Em sentido contrário, BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 218. Para o autor, "o adquirente deve atentar para o fato de que esta blindagem não o protegerá de sucessão nos créditos derivados da legislação do trabalho e nos decorrentes de acidentes do trabalho; quando a lei quis excluir estes créditos, mencionou-os de maneira explícita, como se vê da leitura do inc. II do art. 141". 3 STF, ADI 3.934-2/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 4-6-2009. 4 TJ/SP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 0057674-82.2013, rel. Des. Araldo Telles, j. 30-9-2013; TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 0227587-33.2011, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 30-10-2012. 5 Conferir comentários aos arts. 141 e 142.
Introdução Na semana em que se comemoram 5 anos de vigência do CPC/15, vale lembrar que um dos supostos grandes pontos positivos da "já não tão nova" legislação (lei 13.105/15), pelo menos para os advogados, seria a disciplina dos prazos processuais, especificamente quanto à sua contagem ser restrita aos dias úteis (CPC, art. 219). Tivemos a oportunidade de nos debruçar sobre isso anteriormente em diversas oportunidades1. Muitas dificuldades (e, infelizmente, intempestividades) já ocorreram nesse período. Seguem algumas delas: (i) o prazo segue em dias corridos (processo penal2); (ii) o prazo já foi em dias corridos e passou para dias úteis (processo do trabalho3); (iii) o prazo foi objeto de muita polêmica se em dias úteis ou corridos, até que lei específica definiu a contagem em dias úteis (Juizados4); e (iv) o prazo, que era em dias úteis, passou a ser em dias corridos (ECA5). Ou seja, a matéria não é uniforme, o que é péssimo para a advocacia, dado o risco que se tem de uma perda de prazo, devido à profusão de regramentos distintos. E, recentemente, essa situação tormentosa ganhou novo capítulo. É impressionante como as leis são editadas de modo a se deixar em aberto discussões a respeito de algo tão básico quanto o prazo processual. Discussões, por certo, fazem parte do Direito. Mas, em relação a questões procedimentais - especialmente no que se refere ao risco de uma intempestividade de manifestação ou não conhecimento de um recurso - não é possível normalizar que leis sejam editadas de modo a se ter dúvidas quanto à forma de contagem dos prazos. A contagem de prazos na RJ e Falência na redação original da lei 11.101/05 Até a edição do CPC/15, não havia qualquer debate quanto à contagem dos prazos na Lei de Recuperação e Falência - que se computavam em dias corridos. Com o CPC/15 e seu art. 219, contudo, começou o debate. Como se sabe, prevê esse dispositivo (e respectivo parágrafo único) que os prazos processuais serão contados em dias úteis6. Na redação original da lei 11.101/2005, não havia regra específica definindo a forma de contagem dos prazos. E, ao longo de seus dispositivos, há prazos cuja natureza (se processual ou de direito material) é controvertida. Para alguns, todos os prazos na Recuperação Judicial e na Falência seriam computados em dias úteis; para outros, todos os prazos seriam considerados em dias corridos; para outra correte, alguns prazos seriam em dias corridos, e outros em dias úteis - a depender da natureza do prazo em questão. Após muita divergência nas varas de origem e tribunais intermediários, a jurisprudência do STJ fixou-se no seguinte sentido (grifos nossos): "(...) diante do exame sistemático dos mecanismos engendrados pela Lei de Recuperação e Falência, os prazos de 180 dias de suspensão das ações executivas em face do devedor (art. 6, § 4°) e de 60 dias para a apresentação do plano de recuperação judicial (art. 53, caput) deverão ser contados de forma contínua. (STJ, REsp 1699528/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/04/2018, DJe 13/06/2018)". Ou seja, os prazos específicos da lei (como aqueles para a suspensão das ações executivas7 e para a apresentação de objeção ao plano de recuperação judicial) eram contados em dias corridos, ao passo que os prazos tipicamente processuais (como os prazos recursais) eram contados em dias úteis. Ainda que vez ou outra algum magistrado ou Câmara de Tribunal aplicasse regra distinta, a matéria estava razoavelmente pacificada. Mas, frise-se, estava. Pois o cenário mudou... A reforma da lei 14.112/20: dispositivo lacônico Com a reforma na lei recuperacional e falimentar, e já sendo conhecida a controvérsia que se travou sobre o tema, esperava-se que o legislador esclarecesse acerca da contagem dos prazos, para evitar algumas divergências que ainda existiam, como exposto no tópico anterior. E a lei assim fez. Mas - de forma surpreendente - de maneira incompleta e que trouxe MAIS dúvidas, ao invés de DIMINUIR as polêmicas. Vejamos o texto legal (grifos nossos): Art. 189. Aplica-se, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei, o disposto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), desde que não seja incompatível com os princípios desta Lei. § 1º Para os fins do disposto nesta Lei: I - todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos; Teria o legislador tentado regular, na lei, exatamente o que o STJ decidiu? Prazos típicos da recuperação judicial e falência de forma corrida e prazos processuais (especialmente os recursais) em dias úteis? Talvez. A redação, com a devida vênia, é confusa. Será que a contagem de prazos do CPC (em dias úteis) é incompatível com os "princípios" da lei recuperacional? Será que os recursos interpostos das decisões proferidas com base na lei 11.101/05 "dela decorrem" (contagem em dias corridos) - especialmente após ser inserida pela mesma lei 14.112/2020 a previsão do art. 189, §1º, II, segundo a qual "as decisões proferidas nos processos a que se refere esta Lei serão passíveis de agravo de instrumento8, exceto nas hipóteses em que esta Lei previr de forma diversa"? Essas são duas das principais dúvidas que decorrem da interpretação do novo sistema. E, a partir daí, surgem ao menos 3 correntes9 relativas à forma de contagem de prazo no âmbito das recuperações judiciais e falências, a saber: a) TODOS os prazos são contados em dias corridos10, pois, pela "principiologia de celeridade" da lei especial11 e considerando que todas as decisões proferidas no âmbito de uma RJ e falência "decorrem da própria lei11.101", há um microssistema especial que afasta, por completo, a aplicação do CPC; b) os prazos de DIREITO MATERIAL, previstos na lei 11.10112, seriam contados em dias corridos, ao passo que os prazos PROCESSUAIS13 seriam contados em dias úteis, com base no CPC - exatamente como a jurisprudência do STJ acima indicada; c) os prazos de direito material seriam contados em dias corridos; mas, quanto a atos processuais expressamente MENCIONADOS na lei 11.10114, o prazo seria em dias corridos, ao passo que em relação a recursos e manifestações NÃO MENCIONADOS NA LEI ESPECÍFICA15, o prazo seria em dias úteis. Em nosso entender, a corrente "c" é, sem dúvidas, a menos adequada, pois traz um sistema altamente complexo (o que desestimula sua aplicação, sob uma interpretação finalística), dá margem para muitos debates secundários e não encontra, em verdade, base na legislação. Logo, deve ser rechaçada. A corrente mais técnica, que aplica as diversas legislações de forma harmônica, é a "b" - inclusive por ter sido a que prevaleceu no STJ antes da reforma. Mas o ideal teria sido (i) o legislador expressamente adotá-la (e, como visto, não nos parece clara essa escolha) e (ii) identificar o rol de situações em que o prazo seria em dias corridos16. Ainda que em nosso entender a corrente "b" seja a correta, não nos surpreenderá se o STJ vier a pacificar pela tese "a", simplesmente desconsiderando a aplicação do CPC17, com base na principiologia da lei recuperacional. Contudo, não nos parece a posição mais correta pois, ainda que o art. 189-A da lei 11.101/2005 preveja a preferência dos processos de RJ e falência, o próprio CPC também prevê a celeridade como princípio18 e leis especiais que trazem a prioridade de tramitação (como o mandado de segurança19) não acarretam a contagem dos prazos em dias corridos. Até que haja a definição pelo STJ, o recomendável é verificar como cada juiz ou Câmara, no caso concreto, está realizando a contagem de prazo. Por força do princípio da cooperação (CPC, art. 6º), em verdade cada magistrado deveria, no início do procedimento, esclarecer a forma que são contados os prazos. Na maior parte das vezes, contudo, isso não ocorre. Em isso não ocorrendo, exatamente com base no mesmo princípio, cabe ao advogado provocar o juízo (por exemplo, via embargos de declaração, apontando omissão), para que se esclareça essa relevante questão procedimental. É certo que, diante dessa indefinição, a cautela e conservadorismo no prazo devem pautar a atuação do profissional. Nada obstante, com base nos princípios da cooperação, confiança, segurança jurídica e devido processo legal, eventual intempestividade pode e deve ser afastada. Afinal, os mesmos valores que informam a aplicação do princípio da fungibilidade nos recursos (dúvida objetiva e ausência de erro grosseiro) estão aqui presentes. Até que o STJ, finalmente, venha a pacificar a questão.  Conclusão Diante do que se expôs neste breve artigo, é possível concluir que: a) O art. 189, § 1º, I da lei 11.101/05, com a alteração da lei 14.112/20, tem redação insuficiente para esclarecer com segurança como se dá a contagem dos prazos no âmbito das recuperações judiciais e falências. b) A melhor interpretação é que os prazos materiais (previstos na lei 11.101/05) sejam contados em dias corridos, ao passo que os prazos processuais (como recursos, ainda que previstos especificamente na L. 11.101/05) sejam contados em dias úteis - em linha com o já decidido pelo STJ antes da recente alteração legislativa. c) Contudo, não será surpreendente se, com lei14.112/20, o STJ pacificar que todos os prazos em tais procedimentos são contados em dias corridos. d) Até que haja a definição da jurisprudência, por cautela e para evitar perda de prazo, o melhor é contar os prazos em dias corridos - salvo se houver decisão expressa, nos autos, definindo que a contagem dos prazos se dá de outra maneira (o que pode, inclusive, ser provocado pelas partes - recuperanda, credores, AJ ou MP). e) Caso não haja nos autos expressa menção à contagem em dias corridos, eventual intempestividade pode ser afastada, com base na principiologia do CPC. __________ 1 De forma mais ampla em artigos na internet (com destaque para 1/ 2 e, à luz da pandemia, clique aqui) e, com profundidade, nos Comentários ao CPC 2015, ora em sua 4ª edição (Gen, 2021). 2 Art. 798, CPP 3 Art. 775, CLT 4 Lei 9.099, art. 12-A, com a redação da lei 13.728/18). 5 Art. 152, § 2º do ECA, incluído pela L. 13.509/17). 6 Apesar de aparentemente simples, a tarefa de definir o que é um prazo processual tem complexidades. A respeito: ROQUE, Andre et alii, Comentários ao CPC/2015, Gen, 4ª. Ed, 2021, p. 329. 7 Acerca da contagem dos 180 dias do stay period ser em dias corridos. 8 Antes da alteração legislativa, o tema já estava pacificado nesse sentido, conforme exposto no seguinte texto. 9 Nesse sentido, a posição do colega desta coluna, Prof. Daniel Carnio Costa, exposta em podcast. 10 Como o prazo de impugnação perante o juiz e todos os recursos. 11 O art. 189-A destaca que os processos recuperacionais terão "prioridade sobre todos os atos judiciais". 12 Como o prazo do stay period e o prazo de divergência e habilitação perante o AJ. 13 Como os prazos recursais. 14 A lei menciona, por exemplo, agravo e apelação em algumas oportunidades (arts. 17; 58-A, p.u.; 59, § 2º; 90; 100; 135, p.u.; 154, § 6º; 156, p.u.; 159, § 5º; 164, § 7º; 167-J, § 4º e 189, § 1º, II). 15 Caso dos embargos de declaração, por exemplo. 16 Vide rodapés 10 e 12, com identificação de alguns prazos em dias úteis e corridos. 17 O STJ tem sido pródigo em não aplicar dispositivos do CPC. Nesse sentido, cf. a seguinte coluna. 18 CPC, art. 4º, que positiva "o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa". 19 A L. 12.016/2019 assim prevê: "Art. 20.  Os processos de mandado de segurança e os respectivos recursos terão prioridade sobre todos os atos judiciais, salvo habeas corpus".
Recentemente, a lei 14.112/2020, modificando a legislação falimentar, tentou pacificar um tema objeto de intensa polêmica: a renúncia de crédito ou perdão de dívidas no âmbito das recuperações judiciais (muito conhecido pela expressão haircut), assunto este que gera implicações e divergências tanto no meio jurídico (tributário) quanto no meio contábil. Na redação aprovada originalmente, o art. 50-A da lei 11.101/05 passaria a ter a seguinte redação:  Art. 50-A. Nas hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, deverão ser observadas as seguintes disposições: I - a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); II - o ganho obtido pelo devedor com a redução da dívida não se sujeitará ao limite percentual de que tratam os arts. 42 e 58 da lei 8.981, de 20 de janeiro de 1995, na apuração do imposto sobre a renda e da CSLL; e III - as despesas correspondentes às obrigações assumidas no plano de recuperação judicial serão consideradas dedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior. Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica à hipótese de dívida com: I - pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada; ou II - pessoa física que seja acionista controladora, sócia, titular ou administradora da pessoa jurídica devedora.  No entanto, o dispositivo supracitado foi vetado pelo Presidente da República (Veto nº 57/2020, Mensagem nº 752/2020), sob o seguinte fundamento.  Razões do veto Os dispositivos propostos concedem benefícios tributários para hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, nos termos das disposições especificadas no próprio projeto. Entretanto, e embora se reconheça a boa intenção do legislador, tais medidas ofendem o princípio da isonomia tributária, acarretam renúncia de receita, sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que esteja acompanhada de estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro, o que viola o art. 113 da ADCT, e o art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Para tratar desta matéria, conquanto sem exauri-la, separemos o raciocínio em algumas partes: (1) a polêmica sobre a natureza jurídica e contábil do perdão da dívida e suas incidências tributárias; (2) as assimetrias tributárias envolvidas na questão; (3) a avaliação da qualidade da tributação em tais circunstâncias. Natureza jurídica e contábil do perdão da dívida A primeira grande discussão sobre o assunto consiste em saber qual a natureza jurídica da renúncia total ou parcial ao crédito por parte do respectivo credor. Sobre isso, o mundo contábil e o mundo jurídico parecem se digladiar permanentemente. Para iniciar a explicação, comecemos com um exemplo numérico simples e valores simbólicos: imaginemos uma sociedade empresária com o seguinte balanço patrimonial: Ativo Valores em R$ Passivo e Patrimônio Líquido Valores em R$ Circulante   Circulante   Caixa 100,00 Fornecedores 700,00 Estoques 250,00 Empréstimos 2.000,00 Não circulante   Patrimônio Líquido   Imobilizado 1.000,00 Capital 100,00 Investimentos 500,00 Lucros e prejuízos acumulados (950,00) Total do ativo 1.850,00 Total do passivo e PL 1.850,00 Imaginemos agora que a sociedade supracitada, em processo de recuperação judicial, obtenha a aceitação de seus fornecedores e credores de empréstimos em perdoar 40% de seu passivo total de R$ 2.700,00, totalizando a renúncia o valor de R$ 1.080,00 (= R$ 2.700,00 x 40%). O passivo passaria a ser R$ 2.700,00 - R$ 1.080,00 = R$ 1.620,00. Como restará seu balanço agora? Vamos fazer um pequeno esboço, passo a passo. Pelo lançamento (a débito) de redução do passivo, teríamos um balanço (incompleto por não termos ainda lançado a contrapartida a crédito) da seguinte forma: Ativo Valores em R$ Passivo e Patrimônio Líquido Valores em R$ Circulante   Circulante   Caixa 100,00 Fornecedores 420,00 Estoques 250,00 Empréstimos 1.200,00 Não circulante   Patrimônio Líquido   Imobilizado 1.000,00 Capital 100,00 Investimentos 500,00 Lucros e prejuízos acumulados (950,00) Total do ativo 1.850,00 Total do passivo e PL 770,00 (??!) Não é preciso muito esforço para verificar que nosso balanço estaria ainda "desbalanceado", ou seja, sem identidade de totais em seus lados. Mas como igualaríamos esses dois lados? Em outras palavras: qual seria o lançamento a crédito para contrabalançar a redução do passivo derivada do perdão de dívida? A resposta contábil para essa questão é o reconhecimento de uma receita. O meio jurídico questiona justamente essa última parte, com uma indagação similar à seguinte: como reconhecer receita se não houve acréscimo de patrimônio e se não houve ingresso ou disponibilidade de recursos ao devedor??!! Vamos responder por partes: Primeiramente, devemos consignar que receitas não derivam somente de aumentos de ativo. Ao contrário, elas podem se originar também de eliminação de passivos. Com efeito, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), em sua estrutura conceitual (CPC 00) define receitas da seguinte forma (grifos nossos): Receitas são aumentos nos ativos, ou reduções nos passivos, que resultam em aumentos no patrimônio líquido, exceto aqueles referentes a contribuições de detentores de direitos sobre o patrimônio. Essa situação não é muito difícil de compreender. De modo não técnico, podemos dizer que, como regra geral, da mesma forma que uma despesa resulta em que a entidade empresarial fique "mais pobre", uma receita a deixa "mais rica". Mas de quais maneiras ela ficaria mais rica? Simples: quando aumentasse seus bens (ativos) ou quando reduzisse suas dívidas (passivos). O leitor pode pensar em um exemplo similar como pessoa física (devedora): se, por negociação com seu credor, deixasse de pagar uma dívida anteriormente contraída, ficaria financeiramente em melhor situação, ou seja, "enriqueceria" pelo montante que deixou de estar obrigado a pagar. Isso não é novidade em contabilidade ou no direito tributário, nem essa situação se resume às recuperações judiciais. Inúmeros são os casos de reconhecimento de receita (com implicações tributárias), dentre os quais podemos citar delegações contratuais para pagamento de impostos prediais em contratos de locação, prescrição de dívidas, renúncia de contribuição condominial, entre outros. Completemos, agora, nosso balanço. Lançaríamos no resultado, a crédito, uma receita, que seria exatamente do valor da renúncia ou eliminação do passivo. Supondo que não tivéssemos outras despesas (despesas = 0), apenas para simplificar o exemplo, teríamos uma demonstração de resultado simplificada nos seguintes termos: Transportando o lucro do exercício para a conta de lucros e prejuízos acumulados e somando algebricamente o valor do lucro do exercício, R$ 1.080,00, ao saldo de prejuízo anteriormente existente ali (R$ 950,00), teríamos um saldo final positivo (lucro acumulado) de R$ 130,00. Agora sim nosso balanço estaria correto, da seguinte forma: Ativo Valores em R$ Passivo e Patrimônio Líquido Valores em R$ Circulante   Circulante   Caixa 100,00 Fornecedores 420,00 Estoques 250,00 Empréstimos 1.200,00 Não circulante   Patrimônio Líquido   Imobilizado 1.000,00 Capital 100,00 Investimentos 500,00 Lucros e prejuízos acumulados 130,00 Total do ativo 1.850,00 Total do passivo e PL 1.850,00 Fizemos essa digressão numérica simplificada para evidenciar que não há como fugir do reconhecimento de uma receita no caso concreto. Cuida-se de um fenômeno econômico, contábil e matemático. Verifique-se diante do exemplo anterior que o não reconhecimento de uma receita nos impediria até mesmo de fechar o balanço com fidelidade aos eventos econômicos ocorridos. Note-se, porém, que essa conclusão não pacifica a discussão sobre saber se o reconhecimento de receita no caso concreto resulta em incidência tributária. Nem toda receita é tributável ou preenche os requisitos para ser considerada renda. Nessa linha, há bons argumentos jurídicos que pugnam pela não incidência tributária na hipótese, por não haver disponibilidade da renda para o devedor, não existir caráter de contraprestação, entre outros fundamentos. Cabe, entretanto, admitindo cuidar-se de uma receita, verificar se eventual incidência tributária sobre o haircut seria de boa qualidade econômica. Para isso, verificaremos a seguir as implicações da exigência de tributos no caso. Assimetrias da tributação do haircut no Brasil Seguindo as conclusões anteriores, partiremos do princípio de que o perdão da dívida implica eliminação de passivo cuja contrapartida é o reconhecimento de uma receita. Esse é o posicionamento clássico do Fisco brasileiro, que já se pronunciou sobre o assunto diversas vezes, uma delas na Solução de Consulta nº 65, de 2019, da qual destacamos o seguinte trecho: A natureza da receita decorrente do perdão de dívidas dependerá da natureza da dívida que a gerou. Na hipótese de empréstimos ou financiamentos, e.g., ter-se-á uma receita financeira - como esclarece o Ato Declaratório SRF nº 85, de 27 de outubro de 1999, ao dispor sobre "a renegociação de dívidas do crédito rural nos termos da Lei nº 9.138, de 29 de novembro de 1995" (incidência prevista no art. 397 do Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018 - Regulamento de Imposto de Renda - RIR/2018). Tratando-se de dívidas perante fornecedores de mercadorias, estar-se-á diante de uma recuperação de custos, receita especificada no art. 441, inciso II, do RIR/2018. No caso de redução de multa e juros relativos a tributos, enquadra-se a receita nesse mesmo dispositivo do RIR/2018, como recuperação ou devolução de custo ou despesa. No entanto, se o perdão da dívida é receita para o devedor, deveria, pelas mesmas razões, ser considerado despesa (dedutível) para o credor. Este último, ao conceder remissão total ou parcial da dívida incorre em uma perda (diminuição de seu ativo/crédito). No entanto, nem mesmo nos casos em que o credor é tributado no regime de lucro real se tem permitido, como regra, a dedutibilidade dessa despesa, notadamente quando não há procedimentos prévios de cobrança. Em outras palavras: usualmente, se o credor reconheceu a despesa em sua contabilidade, deverá excluí-la quando da apuração de seus impostos sobre o lucro (IR/CSLL). E o fundamento para tanto é que, se há remissão total ou parcial de dívida antes de se esgotarem todos os meios e possibilidades de cobrança, essa renúncia ao crédito não se considera necessária para o prosseguimento do negócio, constituindo-se em mera liberalidade do credor. Nesse sentido, a doutrina tributária é praticamente pacífica, podendo-se encontrar fundamentos também em julgados do CARF: Número do Processo 18471.000201/2003-87 Data da Sessão 08/12/2008 Relator(a) Leonardo Lobo de Almeida Nº Acórdão 197-00.082  Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ Exercício: 2000 [...] IRPJ - FALÊNCIA DO DEVEDOR - DEDUTIBILIDADE DA DESPESA - Nos termos do art. 90, § 4°, da Lei 9.430/96, são dedutíveis as perdas no recebimento de créditos decorrentes das atividades da pessoa jurídica em caso de falência decretada do devedor, desde que existentes procedimentos judiciais visando o recebimento do crédito. IRPJ - PERDÃO DE DÍVIDA - INDEDUTIBILIDADE COMO DESPESA - PROVA - Cabe ao contribuinte produzir prova de suas alegações. Não estando demonstrada qualquer tentativa de cobrança da dívida existente, caracteriza-se o abatimento concedido ao devedor como perdão, não autorização a sua dedução como despesa na apuração do lucro real. CSLL - TRIBUTAÇÃO REFLEXA - Tendo em vista a íntima relação de causa e efeito que possuem com o lançamento principal, a decisão proferida em relação ao IRPJ deve ser estendida à CSLL. Esses critérios de exação resultam em que o Fisco, na maioria dos casos, será credor de tributos sobre a receita (reconhecida pelo devedor), mas não permitirá que o credor pague menos tributos sobre as despesas que reconhecer em sua contabilidade, uma vez que, nem mesmo na sistemática do lucro real essa despesa será dedutível. Por outras palavras, o Fisco ganha de ambos os lados: tributa a receita (do devedor) e não permite a dedução de despesas (do credor). Isso resulta em uma tributação altamente assimétrica, benéfica apenas ao Fisco, mas desigual com as partes envolvidas nos contratos sujeitos à recuperação, ao mesmo tempo que desincentiva a reestruturação do devedor em dificuldade econômico-financeira. Caberia, portanto, mudança nesse panorama tributário para que se alcançasse maior igualdade e justiça fiscal. Avaliando a eficiência econômica da tributação do haircut Podemos dizer que uma tributação é economicamente eficiente quando alguns princípios da ciência econômica são atendidos por dada espécie de tributação. O primeiro princípio basilar a ser analisado é o princípio da neutralidade tributária, que, em suma, preconiza que uma tributação deve causar o mínimo possível de distorção na alocação de recursos do setor privado. Um tributo, por exemplo, não deve ser decisivo na vontade das partes em formalizar ou extinguir um contrato ou de realizar uma troca mutuamente vantajosa. Em suma: um tributo neutro é aquele que não modifica o comportamento dos agentes econômicos. É bem verdade que quase nenhuma espécie tributária é completamente neutra1, mas há de se analisar, a cada caso concreto, o nível de distorção causado pelo tributo, para se concluir por sua aceitabilidade ou não. A tributação sobre o haircut é extremamente distorciva. Com efeito, tributar a receita reconhecida por força da eliminação de passivos do devedor em recuperação atinge este último justamente no momento em que se encontra em crise e dispõe de menos recursos para cumprir suas obrigações tributárias. Cria nova obrigação, novo passivo. Em última análise, essa exação influencia sobremaneira a capacidade de o devedor se recuperar, distorcendo a capacidade de o devedor apresentar um plano viável para sua recuperação e até mesmo o modo que um plano de recuperação será apresentado. Um breve exemplo ilustrará a questão: imaginemos que o devedor em recuperação tenha um passivo de R$ 10 milhões. Para se recuperar, precisaria obter de seus credores o perdão de 60% do débito (= R$ 6 milhões), restando com um passivo de R$ 4 milhões, valor de dívidas além do qual seu negócio seria inviável economicamente. Vamos admitir ainda que o montante máximo que os credores admitiriam renunciar, de modo a que tivessem futura vantagem na manutenção da atividade do devedor e na continuidade de suas relações econômico-contratuais seria também de R$ 6 milhões. Em não havendo tributação, as partes chegariam a um acordo mutuamente vantajoso. No entanto, com uma tributação sobre a renúncia de crédito (digamos em torno de 35%,2 sem contar outras despesas3), o passivo do devedor, num cálculo simplificado, seria o seguinte:   Efeito da tributação sobre o haircut (exemplo teórico com aproximadamente 35% sobre a receita, sem consideração de outras despesas) Valores em R$ Receita (renúncia) 6.000.000,00 Outras despesas 0,00 Tributos sobre o haircut (2.100.000,00) Passivo do devedor após a renúncia (valor do passivo remanescente + tributos) 6.100.000,00 Não é preciso muita análise para evidenciar que, incidente a tributação nos termos supracitados, o devedor não mais conseguirá cumprir suas obrigações, nem os credores aceitarão renunciar a mais de 60% de seu crédito (nas condições de nosso exemplo). Em conclusão, não haverá recuperação judicial em virtude da tributação, que acabou por impedir que as partes chegassem a um acordo mutuamente benéfico, distorcendo a alocação de recursos na economia. A perda de eficiência para a sociedade é enorme: impõe-se a morte (ou a redução desnecessária) de uma unidade produtiva empresarial, em detrimento dos empregos, dos consumidores e da própria arrecadação futura de tributos, mesmo quando as partes envolvidas chegariam a acordo por vontade recíproca. Economicamente, diz-se que a tributação impôs um peso morto (deadweight loss) pela perda de eficiência econômica provocada. A tributação sobre o haircut também não se adapta ao princípio da capacidade contributiva (ou da capacidade de pagar), que é princípio tanto jurídico quando econômico. Nesse sentido, bem o explicam Neves e Viceconti4: O princípio da capacidade de pagar estabelece que o sistema tributário é justo se cada cidadão contribui para o erário público na proporção de sua capacidade de pagamento. A consequência desse princípio é que pessoas que possuam idêntica capacidade de pagamento devem contribuir com o mesmo montante de tributo (a chamada equidade horizontal) e que pessoas com capacidade de pagamento distintas devem contribuir de forma também desigual no montante de tributos, de forma que as de maior capacidade contribuam mais (equidade vertical). Podemos notar que se o devedor não estiver em recuperação, mas em curso de atividade empresarial rentável e hígida, não haverá receitas a serem reconhecidas quando este toma crédito, gerando passivos/dívidas com normal e tempestiva liquidação. Já quando se encontra em crise, situação em que apresenta dificuldade para honrar seus passivos, tributa-se a melhor (ou mais comum) forma de que dispõe para retomar sua atividade: o equacionamento dos débitos com seus credores por meio de deságio de dívidas. Em outras palavras, a tributação do haircut faz exatamente o contrário do que o princípio da capacidade contributiva preconiza: não se tributa quando o devedor tem capacidade de pagar, mas se tributa quando dispõe de menos recursos para o pagamento. A perda de eficiência econômica nessas situações é patente. Não bastasse as ineficiências anteriormente apontadas, a tributação do haircut ainda tende a (ou assume o risco de) priorizar uma variável de estoque (exação presente, não contínua) em detrimento de uma variável de fluxo (exação futura e contínua). Expliquemos com um exemplo. Vamos imaginar o último exemplo supracitado, em que tributação, que arriscaria inviabilizar a atividade empresarial, ficaria no montante de R$ 2.100.000,00. Se realmente inviabilizasse a atividade empresarial, essa seria a última parcela devida ao Fisco, que receberia simplesmente seu estoque de crédito, exaurindo a fonte produtiva e os tributos futuros. Imaginemos, porém, que não houvesse a tributação do haircut. Com isso, o devedor conseguiria se recuperar e geraria um lucro anual de R$ 500 mil. Supondo uma alíquota total de 35% (como fizemos anteriormente), ele pagaria anualmente R$ 175 mil em tributos (desconsiderando outros tributos). Para fazer a comparação com a situação anterior, precisaríamos avaliar o valor presente do fluxo futuro de tributos, pois esses pagamentos ocorrerão indefinidamente ao longo do tempo. Pressupondo que a atividade empresarial do devedor não tenha limite no tempo (adotando as premissas da continuidade contábil) e usando como taxa algo compatível com a SELIC (aproximadamente em 4% a.a.), teríamos o valor presente do fluxo futuro de uma perpetuidade em R$ 175 mil / 4% = R$ 4.375.000,00. Podemos constatar que, no exemplo dado, a tributação do haircut causou prejuízo ao Fisco. Ele recebeu o valor de seu crédito de R$ 2.100.000,00, mas, ao inviabilizar a recuperação do devedor com a incidência tributária, renunciou a R$ 4.375.000,00. Usualmente, aliás, o fluxo futuro de tributos superará o estoque de créditos tributários que o Fisco tem a receber no presente, o que demonstra que, também por esse motivo, essa exação pode se mostrar bastante ineficiente na prática. Conclusão Por todos os argumentos aqui desenvolvidos, concluímos que: O perdão de dívidas (haircut) em recuperação judicial se constitui inegavelmente como receita, sob a perspectiva econômica e contábil, o que não suprime a divergência jurídica sobre se tratar ou não de base de cálculo para tributação; Se considerarmos tal remissão como receita tributável, a conclusão necessária é que ela apresenta inúmeras ineficiências: é assimétrica em relação a devedores e credores, viola a neutralidade tributária, cria distorções e perdas econômicas (deadweight loss), não atende ao princípio da capacidade contributiva e ainda incrementa o risco de serem priorizadas variáveis de estoque em detrimento de variáveis de fluxo; Por todos esses motivos, espera-se que o Congresso Nacional analise com sabedoria a questão, para derrubar o veto pelo Presidente da República (Veto nº 57/2020, Mensagem nº 752/2020) ao art. 50-A, incluído na lei 11.101/05 pela lei 14.112/2020. __________ 1 Na doutrina econômica, costuma-se apontar o tributo de montante fixo para todos os destinatários (lump sum), como a espécie que mais se aproxima da neutralidade. No entanto, suas falhas em termos de regressividade usualmente impedem sua adoção na prática. 2 Obviamente que essa alíquota é só exemplificativa e teórica. Há diversidade de tributação em cada regime, além de bases de cálculo distintas para cada tributo. 3 Note-se que se o devedor não tiver outras despesas incrementais e dedutíveis (no regime de lucro real) decorrentes diretamente da recuperação (além daquelas usuais derivadas de seu negócio), toda a receita derivada do perdão da dívida acarretará lucro tributável. No texto consideramos, por simplificação, uma tributação total das receitas/lucro, sem outras despesas, mas os impostos usualmente terão base de cálculo distinta. PIS e Cofins (além de outros tributos indiretos) incidem diretamente sobre a receita, enquanto IR e CSLL incidem sobre o lucro (real ou presumido), montante este que é diretamente influenciado pelo total de receitas reconhecidas. 4 Introdução à economia, 12ª edição, Saraiva, 362.
A falência é um instituto ainda muito estigmatizado na cultura jurídica brasileira. Há severa falta de objetividade para utilização do processo falimentar, o qual deveria funcionar como um rápido instrumento de liquidação de atividades empresariais malsucedidas, com a rápida alienação de seus ativos, sua pronta realocação em outras empresas e o pagamento dos credores na maior proporção possível, funcionando como importante recuperação de investimentos. Embora a lei 11.101/2005 tenha trazido uma modernização ao instituto e mesmo diante do amadurecimento do sistema de insolvência pelo profícuo trabalho jurisprudencial das Cortes brasileiras, um dos grandes problemas enfrentados, ainda hoje, está relacionado à venda dos bens do falido. A alienação de ativos arrecadados é ponto vital para a efetividade do processo falimentar. Importante que a alienação ocorra tão logo concluída a arrecadação dos bens, para a preservação de seu valor e, consequentemente, para permitir maior obtenção de recursos para pagamento dos credores. Entretanto, mesmo com sensível alteração do sistema de alienação de ativos proposto pela redação original da lei 11.101/2005, na prática o procedimento tem se mostrado burocrático, mormente por discussões estéreis sobre o valor de avaliação do bem provocadas, em muitos casos, por falidos ou sócios da falida que assumem uma postura nada cooperativa com o procedimento. Outro fator que impede o bom andamento dos trabalhos de venda é a consideração, equivocada, de possível espera na alienação para se aguardar melhores oportunidades de mercado, o que, na prática é de difícil ou impossível constatação, de modo a impedir a imediata realização dos bens para reversão de valores à massa falida. Isso porque alguns credores não possuem a devida compreensão da circunstância diferenciada de venda forçada de bens em processos judiciais, a qual não guarda similitude com as vendas de praxe do mercado comum. Neste ponto, houve sensível avanço do texto proposto pela lei 14.112/2020, no sentido de permitir a discussão de valores dos bens objeto de futura arrematação com a imposição de limites que evitam o abuso processual, sem qualquer comprometimento com o contraditório das partes envolvidas. Assim, o novo texto do art. 142 agora prevê: Art. 142. A alienação de bens se dará por: I - leilão eletrônico, presencial ou híbrido; II - processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou plano de recuperação judicial, conforme o caso; III - qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei. § 1º A alienação de que trata o caput deste artigo: I - dar-se-á levando em conta o caráter forçado da venda e a conjuntura do mercado no momento da venda, mesmo que desfavorável; II - independe da consolidação do quadro geral de credores; III - poderá contar com serviços de terceiros como consultores, corretores e leiloeiros; IV - no caso de falência, deverá ocorrer no prazo máximo de cento e oitenta dias, a contar da data da lavratura do auto de arrecadação; V - não estará sujeita à aplicação do conceito de preço vil. § 2º No leilão eletrônico ou presencial, aplicam-se, no que couber, as regras do Código de Processo Civil. § 3º A alienação por leilão eletrônico, presencial ou híbrido dar-se-á: I - em primeira chamada, pelo valor mínimo de avaliação do bem; II - em segunda chamada, dentro de quinze dias, contados da primeira, por no mínimo cinquenta por cento do valor de avaliação; e III - em terceira chamada, dentro de quinze dias, contados da segunda, por qualquer preço. § 4º A alienação prevista nos incisos II e III do caput deste artigo, conforme disposições específicas desta Lei: I - será aprovada pela assembleia-geral de credores; ou II - decorrerá de disposição de plano de recuperação judicial aprovado; III - deverá ser aprovada pelo Juiz, levando em conta a manifestação do administrador judicial e do Comitê de Credores, se existente. § 5º Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público e as Fazendas Públicas serão intimados por meio eletrônico, sob pena de nulidade. § 6º Todas as formas de alienação de bens realizadas de acordo com esta Lei serão consideradas, para todos os fins e efeitos, alienações judiciais. São sensíveis as mudanças no sistema atual. De proêmio temos a alteração das formas de alienação, não havendo mais a previsão das propostas fechadas ou do pregão, este último dificilmente verificado na prática, para a vinda de um procedimento inominado a ser organizado por profissional especializado de mercado e que deverá observar os requisitos do parágrafo 4º. Outro ponto louvável é a previsão do caráter forçado da venda, o que nem sempre é bem compreendido pelas partes. Muito bem ponderado o tema no agravo de autos nº 9064070-92.2008.8.26.0000 da relatoria do E. Desembargador Elliot Akel do Tribunal de Justiça de São Paulo, verbis: (...) De qualquer modo, assinale-se que em hipótese como a dos autos não há propriamente perícia avaliatória, em que devam ser observadas as regras processuais atinentes à produção de prova técnica, mas estimativa dos bens arrecadados, que poderá ser repetida quando provado erro ou dolo do avaliador ou no caso de se verificar, posteriormente, que houve considerável diminuição do valor dos bens. Nova avaliação poderá, ainda, ser admitida, se houver fundada dúvida sobre o valor atribuído ao bem. Como já decidido, "as avaliações judiciais são feitas para determinado fim (alienação de bens penhorados, em praça pública), que não coincide necessariamente com aqueles que levam os comerciantes a atuar no mercado, comprando e vendendo bens. Sempre existe uma diferença prejudicial ao executado. Vendendo-se as mesmas coisas no mercado, o resultado poderia ser melhor. Entretanto, o objeto da penhora é vendido em praça pública, em execução judicial, em condições diversas, nas quais os preços correntes no mercado nem sempre fornecem os parâmetros de valor aceitáveis no átrio do foro. Os compradores são outros e as regras são de um mercado específico. Não constitui isso nenhuma novidade" (Agravo de Instrumento nº 462 831/9, julg 12.11.90, 2ª Câmara, rel Juiz Senna (sic) Rebouças). (...) A venda forçada no ambiente do processo judicial é diversa da venda comum do bem em seu regular e específico mercado de comercialização. Desse modo, não corresponde à realidade a expectativa de venda de bens em processo de falência como se fosse uma venda regular de mercado. As circunstâncias são diversas e para uma melhor maximização dos ativos, é sempre melhor, sobretudo para perspectivas de recuperação de créditos pelos credores, que a venda seja realizada o quanto antes, tendo agora a lei previsto um prazo de 180 dias para ultimação das alienações contado a partir da lavratura do auto de arrecadação. Nesse particular, também contribui para otimização do procedimento a vedação de aplicação do conceito de preço vil e da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil a fim de que a venda não seja obstada por uma discussão generalizada sobre a precificação de bens a qual é muitas vezes utilizada como expediente de procrastinação, na contramão dos objetivos da lei. E para que não se alegue prejuízo ao contraditório, andou bem a alteração legislativa em readequar a forma pela qual haverá impugnação ao preço do bem objeto de alienação, que deverá estar acompanhada de oferta firme de aquisição em valor superior ao estabelecido para a venda além de depósito de caução equivalente a dez por cento do valor ofertado. Por fim, na esteira de imposição de responsabilidade e acuidade no exercício do direito de ação, impôs a lei a caracterização de ato atentatório à dignidade da justiça para a arguição infundada de vício na alienação, cujo escopo é coibir discussões processuais estéreis, as quais somente servem para tumultuar o processo, sem qualquer utilidade prática em relação aos objetivos da falência. Enquanto não se firma uma jurisprudência sobre o abuso processual, a redução do espectro de discussão sobre determinados assuntos pode funcionar como importante instrumento para trazer objetividade à questões materiais e processuais, tal como, agora, consta do texto legal atinente à venda de bens em processos falimentares. Esperamos que essas medidas proporcionem maior racionalidade na tramitação do procedimento de alienação de ativos do falido, contribuindo com a celeridade e a recuperação dos créditos investidos na atividade malsucedida.
A lei 14.122/20 alterou a Lei de Falências e de Recuperação Judicial (lei 11.101/05), modificando vários institutos e introduzindo novos conceitos, tal como a insolvência transnacional, além de alterar a lei que trata do parcelamento de dívidas tributárias. Em relação à recuperação extrajudicial, a lei 14.122/20 aprimorou o instituto, tornando-o mais célere e eficiente, conforme veremos em seguida. A realidade tem demonstrado que credores e devedor procuram com frequência regularizar seus negócios extrajudicialmente. Esses acordos têm na informalidade, na rapidez e na discrição as suas principais vantagens, especialmente se comparados ao formalismo e à morosidade das lides forenses. A recuperação extrajudicial é uma alternativa prévia à recuperação judicial, pois pressupõe uma situação financeira e econômica compatível com uma renegociação parcial, envolvendo credores selecionados, aos quais o devedor propõe novas condições de pagamento. Nesse modelo da recuperação extrajudicial torna-se desnecessária a participação de todos os credores e a realização de assembleia geral para aprovar o plano1. Na recuperação extrajudicial, o devedor, para resolver problemas de liquidez, propõe a seus credores, na maioria dos casos, remissão parcial do débito ou dilação do prazo de pagamento. Esse procedimento - extremamente simples - tem por finalidade dar transparência e segurança às negociações, desde que seja garantido aos credores de mesma classe, tenham ou não aderido ao contrato, as mesmas condições de prorrogação de prazo de vencimento ou redução percentual do passivo.  Segurança jurídica Apesar de o legislador ter dado ampla liberdade para as partes sobre o conteúdo do acordo extrajudicial, há uma questão importantíssima que diz respeito à ineficácia dos atos elencados no art. 129 da lei 11.101/05. Note-se que os incisos II e III abrigam hipóteses que podem ser utilizadas nos planos de recuperação extrajudicial, como o pagamento de dívidas de forma não prevista pelo contrato ou a constituição de direito real de garantia. A lei 14.112/20 alterou a redação do artigo 131, para afastar a ação revocatória também dos acordos celebrados nos planos de recuperação extrajudicial, pois o texto anterior só impedia a declaração de ineficácia no plano de recuperação judicial. Agora, há segurança jurídica para que o acordo extrajudicial possa tratar de dação em pagamento, constituição de direito real em garantia, ou pagamento de dívidas vencidas por qualquer forma distinta da prevista no contrato, cujos atos estarão protegidos de eventual declaração de ineficácia em relação à massa falida.  Possibilidade de inclusão do credor trabalhista O parágrafo 1º. do artigo 161 da lei 11.101/2005 vedava expressamente a inclusão do crédito trabalhista no plano de recuperação extrajudicial. A lei 14.112/20 modificou essa norma, permitindo a inclusão do crédito trabalhista e por acidente de trabalho na recuperação extrajudicial, desde que haja negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional. Alteração na remuneração dos trabalhadores é possível, desde que prevista em convenção ou acordo coletivo, na forma do disposto no artigo 7, VI da Constituição da República. A suspensão das ações A proteção legal do stay period dada pela lei é ampla no caso de recuperação judicial, pois o deferimento de seu processamento suspende a prescrição e todas as execuções em face do devedor (art. 6º). A questão que se punha anteriormente à edição da lei 14.112/20 dizia respeito se, em relação aos credores sujeitos à recuperação extrajudicial, ocorreria ou não a suspensão de suas ações individuais. Embora fosse razoável entender que os credores que não subscreveram o pedido inicial de recuperação extrajudicial, mas que estivessem obrigados por força do art. 163, § 1º, também teriam suspensas suas ações, esse entendimento não era pacífico na doutrina e na jurisprudência.  Essa polêmica ficou prejudicada, pois a lei 14.112/20 inseriu § 8º ao art. 163, ao determinar expressamente a aplicação à recuperação extrajudicial, desde o respectivo pedido, da suspensão de que trata o art. 6º, exclusivamente em relação às espécies de crédito por ele abrangidas, e afirma que somente deverá ser ratificada pelo juiz se comprovado o quórum inicial exigido pelo § 7º do mesmo artigo (um terço de todos os créditos de cada espécie). A proteção do stay period na recuperação extrajudicial é coerente com o sistema, pois o que depende da homologação são os efeitos do plano, que não se confunde com a suspensão das ações, que inclusive é um requisito essencial para que o plano possa ser analisado e homologado. Caso não houvesse a suspensão das ações, no interregno entre a ajuizamento da recuperação extrajudicial e a decisão homologatória, credores sujeitos ao plano poderiam excutir bens do devedor frustrando a eficácia da recuperação, à qual deveriam estar sujeitos. Simplificação do procedimento Ajuizado o pedido de recuperação extrajudicial, o juiz determinará a publicação de edital eletrônico, convocando os credores para, querendo, impugnarem o plano (art. 164, com redação conferida pela lei 14.112/20). A redação original da lei 11.101 exigia a publicação do edital no diário oficial e em jornal de grande circulação nacional ou das localidades da sede e das filiais do devedor. A necessidade de publicar na sede e nas filiais do devedor representava um excesso de formalismo, que felizmente foi suprimida com a reforma da lei falimentar. Agora, basta a publicação de edital eletrônico para convocar credores para a apresentação de suas impugnações ao plano.   Sugestões para novas alterações legislativas Finalmente, cumpre frisar que a reforma, embora positiva, poderia ter avançado em outras questões como, por exemplo, a legitimidade para impugnar o plano e seus efeitos em relação aos credores, temas que ainda estão longe de se tornar pacíficos na doutrina e na jurisprudência. Por exemplo, não faz sentido estender a qualquer credor a legitimidade para impugnar o plano, principalmente se a finalidade do acordo for a prevista no art. 162. Qual o interesse jurídico dos credores não abrangidos pelo plano em impugná-lo, se seus direitos não serão modificados? Evidentemente o dispositivo deve ser aplicado com cautela, sob pena de inviabilizar o próprio instituto da recuperação extrajudicial, pois não teria sentido permitir, por exemplo, que credores por contratos de arrendamento mercantil ou alienação fiduciária em garantia pudessem impugnar um plano que não os atinge. Quando a impugnação se limitar ao quantum apresentado pelo devedor, ainda que procedente, o juiz só deixará de homologar o plano de recuperação extrajudicial se esse fato novo descaracterizar o montante de metade dos créditos sujeitos à recuperação extrajudicial. É evidente que o credor tem direito de exigir que o seu crédito seja incluído no plano pelo valor correto, apurado pelo juiz. Nesse caso excepcional, seria admissível o processamento da impugnação em apartado para não prejudicar a homologação do plano, desde que, releve-se a insistência, não houvesse dúvida em relação à comprovação do percentual de metade dos créditos incluídos no plano. Conclusão Em síntese, a lei 14.112/20 trouxe inovações positivas para o regramento da recuperação extrajudicial. O art. 131 passa a ter nova redação para que, também na recuperação extrajudicial, ao lado da judicial, sejam eficazes e não atingidos pela revocatória os atos elencados nos incisos I a III e VI do art. 129. A nova lei altera o parágrafo 1º do art. 163, para permitir a sujeição de créditos de natureza trabalhista e acidentária na recuperação extrajudicial, desde que haja negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional. Além disso, reduz o quórum de aprovação do art. 163 para metade dos créditos de cada classe, em vez do quórum anterior de 3/5. Há inclusão de novos parágrafos ao art. 163. O § 7º estabelece que o pedido poderá ser apresentado com comprovação da anuência de credores que representem pelo menos 1/3 de todos os créditos de cada espécie por ele abrangidos e com o compromisso de, no prazo improrrogável de 90 dias, contado da data do pedido, atingir o quórum referido no caput (metade dos créditos de cada classe), por meio de adesão expressa, facultada a conversão do procedimento em recuperação judicial a pedido do devedor. O novel § 8º afirma que se aplica à recuperação extrajudicial, desde o respectivo pedido, a suspensão de que trata o art. 6º, exclusivamente em relação às espécies de crédito por ele abrangidas, e somente deverá ser ratificada pelo juiz se comprovado o quórum inicial exigido pelo § 7º. Por fim, a lei 14.112/20 confere uma nova redação ao art. 164, para determinar a publicação do edital de convocação dos credores em meio eletrônico, substituindo a publicação em órgão oficial e em jornal de grande circulação. Tal medida almeja reduzir os custos da recuperação extrajudicial. No geral, as alterações realizadas pela lei 14.112/20, embora tímidas, são positivas e cumprem o objetivo de atualizar a disciplina da recuperação extrajudicial com vistas a torná-la mais eficiente, sobretudo com a expressa previsão de aplicação da suspensão do art. 6º, o que traz maior segurança jurídica, e com a redução do quórum para sua aprovação. __________ 1 "Art. 45-A. As deliberações da assembleia-geral de credores previstas nesta Lei poderão ser substituídas pela comprovação da adesão de credores que representem mais da metade do valor dos créditos sujeitos à recuperação judicial, observadas as exceções previstas nesta lei".
Desde a vigência do CPC/1973 (é isso, leitor, não estou falando do CPC/2015, mas sim do Código anterior), o agravo de instrumento é objeto de debates e propostas de reformulação. Na versão original do Código anterior, o agravo era interposto em 1º grau. E então, o efeito suspensivo (raro e esporádico), vinha por meio do mandado de segurança. Isso gerava indevida duplicidade de impugnações. Assim, menos de 2 décadas depois da vigência do Código de 1973, veio uma grande reforma: o agravo de instrumento seria interposto diretamente no Tribunal (não mais em 1º grau) e seria possível, em casos excepcionais, a concessão de efeito suspensivo ao agravo. Isso se deu quando da lei 9.139/1995. A explosão do número de agravo de instrumentos fez com que logo fosse pensada nova solução legislativa: haveria a necessidade de se limitar o número de agravos, sob pena de inviabilizar o funcionamento dos tribunais intermediários. Portanto, poucos anos depois da "reforma do agravo", veio a "reforma da reforma": a lei 10.352/2001. Por meio dessa nova alteração no CPC/1973, o relator tinha a faculdade converter o agravo de instrumento em retido, se o recurso não tratasse de uma situação de urgência. Porém, dessa decisão monocrática de conversão, era cabível agravo regimental / interno - de modo que o problema prosseguiu, pois houve inúmeros agravos da decisão de conversão... Assim, mais alguns anos e veio a "reforma da reforma da reforma". Com a lei 11.187/2005, o agravo de instrumento somente seria cabível para hipótese de urgência; a conversão do AI em retido passou a ser cogente (não mais uma opção) e a decisão monocrática de conversão seria irrecorrível. E então foi editado o CPC/2015. Não se adotou nenhum dos quatro modelos do CPC/1973, mas sim optou-se por um rol taxativo do cabimento do agravo de instrumento, nas hipóteses constantes do art. 1.015 do CPC/2015. Esse modelo de rol taxativo, curiosamente, era o modelo que existia no CPC/1939... A doutrina processual, desde o início, já vislumbrou que essa solução não iria funcionar. Afinal, se não funcionou em 1939 (tanto que não se repetiu em 1973), por que funcionaria em 2015? Obviamente, não funcionou. E, como estamos agora? Em verdade, o problema ainda não está solucionado, sendo que o ideal seria uma reforma legislativa para alterar o cabimento do recurso de agravo1. Mas o foco deste artigo é o seguinte: diante do rol claramente insuficiente, o que fazer? E a análise se dá sob dois aspectos. Vejamos, de forma separada. 1) ESQUECIMENTO DO LEGISLADOR QUANTO A DETERMINADAS MATÉRIAS E INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA DO CABIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO: O EXEMPLO DA RJ E FALÊNCIA Há sempre o risco ao se elaborar um rol taxativo. Seja pela evolução da sociedade (tornando o rol insuficiente), seja pelo efetivo esquecimento de tratar de determinadas situações em que necessária a inclusão no rol (de modo que o rol é insuficiente desde seu nascedouro). Considerando que o legislador é humano e, portanto, falho, não é de se surpreender que haja esquecimentos. Foi o que, sem dúvida, ocorreu com o caso da recuperação judicial e falência quanto ao agravo de instrumento. O CPC/2015 trouxe situações em que sempre cabível o agravo de instrumento - e isso está no parágrafo único do art. 1.0152. A premissa do legislador é correta: nesses casos, a sentença não será efetivamente o momento em que se definem as principais questões do litígio (como é típico do processo de conhecimento); isso ocorrerá anteriormente, como numa penhora (execução e cumprimento de sentença) ou avaliação de bem (inventário). Mas, é certo que isso também se aplica às decisões interlocutórias proferidas no bojo de uma recuperação judicial e falência, pois estamos diante de um procedimento especial bem característico. E, de forma ainda mais aguda que o inventário, uma série de decisões interlocutórias não podem aguardar a "sentença" da recuperação judicial, após o término de todo o procedimento. Ou seja:  o legislador lembrou no inventário, mas esqueceu da RJ... Diante disso, a doutrina, já há algum tempo, defende que se interprete o parágrafo único do art. 1.015 também para incluir as interlocutórias proferias em RJ e falências. E isso pode ser sintetizado pela deliberação ocorrida nas Jornadas de Direito Processual do CJF, com a edição do Enunciado 69: "A hipótese do art. 1.015, parágrafo único, do CPC abrange os processos concursais, de falência e recuperação". E o STJ, felizmente, decidiu exatamente nesse sentido. É verdade que já havia decisões adotando esse entendimento, mas recentemente a questão foi julgada em sede de recurso especial repetitivo - ou seja, agora é um precedente vinculante conforme previsto no art. 927 do CPC3. A tese foi assim fixada (grifos nossos)4: "É cabível agravo de instrumento contra todas as decisões interlocutórias proferidas nos processos de recuperação judicial e nos processos de falência, por força do art. 1.015, parágrafo único, CPC"5 Assim, agora temos segurança jurídica e previsibilidade: de qualquer decisão interlocutória proferida em RJ e falência, cabe agravo de instrumento, com base no art. 1.015, parágrafo único do CPC/20156. Mas, o mais curioso é que estamos em vias de ter alteração legislativa acerca do tema. Isso porque o assunto é tratado no âmbito da reforma da lei de RJ e Falência (PL 4.458/2020, apenas pendente de sanção presidencial), que inclui o artigo 189 na lei, com a seguinte previsão: "as decisões proferidas nos processos a que se refere esta Lei serão passíveis de agravo de instrumento, exceto nas hipóteses em que esta Lei previr de forma diversa". Ou seja, com a inclusão dessa previsão na lei recuperacional, será desnecessário o entendimento ora firmado pelo STJ Diferente é o que se verifica em relação a outras hipóteses não previstas no art. 1.015, como se verá no tópico seguinte. 2) "CORREÇÃO" DO PROBLEMA LEGISLATIVO PELO JUDICIÁRIO, SEM ALTERAÇÃO LEGISLATIVA: A TAXATIVIDADE MITIGADA Exceto pelas hipóteses do art. 1.015, parágrafo único (analisada acima uma situação de interpretação ampliativa), o que fazer com casos em que não estão no rol do cabimento do agravo, especialmente quando se está diante do procedimento comum do processo de conhecimento? A doutrina trouxe três principais respostas7: (i) agravo de instrumento, mesmo fora dessas hipóteses, (ii) mandado de segurança e (iii) nada, aguardar o final do processo e interpor apelação. A divergência doutrinária e jurisprudencial era grande. Nesse ponto, como se sabe, o STJ já decidiu, também em recurso repetitivo, já há algum tempo, pela "taxatividade mitigada". A tese repetitiva foi assim firmada, por maioria, pela Corte Especial do STJ (grifos nossos): "O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação"8. Ou seja, o rol não é exatamente taxativo. Mas, diferentemente da situação tratada acima (cabe AI de decisões proferias em RJ e falência), a solução aqui é bem distinta: pois há grande subjetividade em se saber o que é a "taxatividade mitigada", e quais as hipóteses de "urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão na apelação". Ou seja, enquanto a questão "mais simples" acima exposta, já está solucionada pela jurisprudência e ruma para alteração legislativa, a questão "mais complexa" dos casos do processo de conhecimento seguem subjetivas e sem previsão de alteração legislativa. Infelizmente, pois o ideal seria a regulação legislativa da situação que o STJ apontou ser de taxatividade mitigada. Assim, atualmente, tem-se grande instabilidade e insegurança quanto ao cabimento do agravo com base na taxatividade mitigada. E é de se destacar que, diferentemente do passado (vide introdução ao artigo), em que as reformas processuais eram feitas por meio do legislativo, atualmente as "reformas processuais" estão sendo feitas pelo próprio Judiciário, ao "interpretar" os diversos dispositivos do Código, de maneira muitas vezes claramente dissociada do texto legal. Isso, em meu entender, de maneira inadequada, pois em verdade aumenta a instabilidade e segurança jurídica, como já dito. Que futuras reformas legislativas resolvam isso. __________ 1 Isso, inclusive, já foi objeto de anterior texto na coluna "Tendências do Processo Civil", de minha coautoria. 2 Parágrafo único. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário. 3 CPC, art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: (...) III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos. 4 Aos interessados, a sessão de julgamento pode ser vista aqui. 5 REsp 1717213/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 03/12/2020, DJe 10/12/2020, Tema Repetitivo 1022. 6 O assunto foi objeto de diversas manifestações aqui no Migalhas. Andre Roque tratou do tema na coluna Insolvência em Foco, em 2017 e Paulo Lucon também tratou do assunto em 2019. Com a decisão do repetitivo, o assunto foi enfrentado por Rogerio Mollica e Teresa Arruda Alvim e Evaristo Aragão Santos. 7 Para verificar uma visão geral do tema, cf. Execução e Recursos: Comentários ao Código de Processo Civil 2015, 2ª ed. São Paulo: Gen, 2018, p. 1028 e ss., obra de minha coautoria e nesse ponto escrita por ZULMAR DUARTE. 8 REsp 1.704.520-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, por maioria, julgado em 05/12/2018, DJe 19/12/2018 (Repetitivo, Tema 988), Informativo 639.
A segunda década do século XX teve como marco a grande depressão econômica e o surto pandêmico da gripe espanhola. Passados mais de cem anos, o Brasil e o mundo enfrentam uma das mais graves crises da história. No cenário econômico que se desenha, o sistema falimentar toma foco e certamente será colocado à prova. Em julho deste ano, a Revista Eletrônica Infomoney alertava que a pandemia provocou, na primeira quinzena de junho, o fechamento de 39,4% das 1,3 milhão de empresas que haviam suspendido temporária ou definitivamente suas operações. No total, foram 522,7 mil negócios encerrados no período1. Entre as que foram fechadas pela pandemia, 518,4 mil (99,2%) eram de pequeno porte (tinham até 49 empregados), 4,1 mil (0,8%) de porte intermediário (de 50 a 499 empregados) e 110 de grande porte (mais de 500 empregados)2. Ainda, segundo a Boa Vista SCPC, em junho de 2020, as decretações de falência cresceram 71,3% em relação ao ano de 20193. A crise empresarial produz efeitos que se espraiam ao redor de um amplo leque de interesses (empregados, fornecedores, agentes financeiros, fisco e outros)4. O interesse da coletividade passa a ser afetado pelos sucessos ou insucessos que marcam o trajeto das pequenas e grandes empresas, que terão inevitável repercussão sobre indivíduos e/ou grupos, constituindo um problema social5. Diante da relevância do tema, as propostas de alterações legislativas sobre a Lei de Falências e Recuperações de Empresas, em especial a recente aprovação do Projeto de Lei 4.458/2020 pelo Senado, passaram a ocupar o cotidiano dos meios de divulgação de notícias mais populares do Brasil. Dentre os princípios que expressamente nortearam as mencionadas alterações, tem-se o incentivo ao rápido recomeço ("Fresh Start"), ao lado da aplicação produtiva dos recursos econômicos e do empreendedorismo, o que representa uma mudança cultural da concepção de falência na perspectiva nacional, que é encarada como uma espécie de punição ao empresário que se encontra na posição de insolvente. O empreendedor é figura central para o bom funcionamento da economia capitalista, na medida em que gera empregos, produtos, serviços e tributos, tão necessários ao bem-estar social. Por outro lado, a possibilidade de insucesso da atividade empresarial também é grande, na medida em que o empreendedorismo é, por definição, uma atividade de risco. Nesse sentido, não é razoável transformar o empreendedor falido - que não teve sucesso na sua primeira tentativa - num pária do sistema econômico. Deve-se dar a ele a chance de tentar novamente, a fim de prosperar e gerar os benefícios econômicos e sociais que se espera da atividade empresarial. O sistema anterior vinculava a reabilitação do falido ao decurso do prazo de 05 ou 10 anos, conforme tenha ou não sido condenado por crime falimentar, contado do encerramento da falência. Entretanto, por razões estruturais, o processo de falência constumava demorar anos para ser encerrado. Daí que o falido ficava, na prática, alijado da atividade empresarial e impedido de tentar novamente e prosperar.  A nova previsão decorre da redação do art. 75, inciso III ("fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.").  O "Fresh Start" é um instituto importado do direito norte americano que tem a intenção de permitir um retorno rápido do empresário falido ao mercado6. Conserva-se a ideia de que o indivíduo é um agente econômico e desempenha um papel essencial na produtividade do mercado. A Constituição Americana contempla o ideal de que a falência confere ao devedor a chance de um novo começo, ficando livre de obrigações e responsabilidades. A essência do sistema de falência individual americano é o perdão do endividamento. O modelo adotado pela proposta de alteração legislativa é o da seção 727 do Bankrupcy Code norte americano, seguindo a regra do Discharge, em que o devedor se torna isento de suas obrigações na medida em que não tenha se envolvido em alguma situação considerada negativa pela norma de regência.   Certo é que a legislação pátria foi inspirada na doutrina norte americana, porém, quando da edição da lei 11.101 de 2005, não foram adotadas medidas que assegurassem a plena e efetiva aplicação do instituto do "Fresh Start". Nesse passo, andará bem o legislador atual se eleger mecanismos que possibilitem o célere recomeço do empresário, deixando-o livre para explorar outra atividade, movimentando a economia7. Nessa linha, as recentes alterações contemplam, também, um encurtamento dos prazos de extinção das obrigações do falido. É nesse contexto que o art. 158 passa a surgir com uma nova redação. Diminui-se o decurso do prazo de inabilitação dos antigos 05 e 10 anos para 03 anos. Há, ainda, a mudança do termo inicial de contagem do prazo, que se transfere do encerramento da falência para a sua decretação. Sob tal perspectiva, retira-se do empresário a punição que lhe assombrava, ao carregar o fardo de inativo durante a morosa tramitação do processo, ao aguardo da extinção de suas obrigações. Estimula-se o empreendedorismo, apresentando-se a falência como decurso natural do risco inerente à atuação empresarial que, por vezes, em razão de circunstâncias externas, foge ao controle de seu gestor.  Outro importante ponto é a alteração dos requisitos específicos do pedido de reabilitação, ocorrendo a redução do percentual necessário de pagamento dos créditos quirografários, reduzindo-se a exigência de mais de 50% para o patamar de mais de 25% de adimplemento.  Some-se a isso a alteração na ordem de classificação dos créditos, que veio para propiciar mais agilidade ao processo e, por consequência, trazer maior celeridade à reabilitação do agente econômico. Trata-se da nova previsão do art. 83, que reposiciona os créditos de natureza quirografária, através da incorporação por ele de outros créditos que ocupavam posição de preferência no pagamento. Para que o Brasil supere o momento de crise econômica, faz-se necessário um sistema de falência rápido e eficiente. O diploma concursal brasileiro evidencia que tanto a recuperação judicial quanto a falência estão informadas pelo mesmo princípio, que é o da preservação da empresa.  Este princípio, quando tratado dentro do âmbito falimentar, norteia a preservação das atividades empresariais que surgirão em razão da retirada do mercado da empresa falida, mediante o reaproveitamento de seus ativos antes vinculados a uma atividade improdutiva, bem como mediante a oportunidade conferida ao insolvente de célere retorno para o exercício de atividade empresária, sem qualquer óbice a uma nova chance, conferindo à falência o status de forma regular de encerramento de uma atividade8. É assim que se consolida uma visão social do direito falimentar: o processo de insolvência se traduz em benefícios sociais e econômicos através da criação de oportunidades rápidas para a reinserção do agente insolvente no mercado, transformando uma atuação improdutiva em produtiva9, preservando-se o interesse da coletividade e oxigenando a economia. Referências bibliográficas  ABRÃO, Nelson. A continuação do negócio na falência. São Paulo: Leud, 1975.  AGÊNCIA ESTADO. 522 mil negócios faliram só na primeira quinzena de junho, diz IBGE. InfoMoney, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.  ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 14. edição, São Paulo: Saraiva, 1996.  ARAÚJO, José Francelino de. Comentários à lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2009.  BATISTA, Felipe Vieira. A Recuperação Judicial Como Processo Coletivo. Tese (Programa de Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia - UFBA. Salvador, 2017.  BEZERRA FILHO, Manoel Justino; BEZERRA, Adriano Ribeiro Lyra. Lei de falência na jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.  CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009; DELANEY, Kevin J. Strategic bankruptcy: how corporations and creditors use Chapter 11 to their advantage. California: University of California Press, 1998.  COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios de direito comercial: com anotações ao projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57-58. COSTA. Daniel Carnio. A importância social e econômica da falência. BrasilJurídico, jan. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.  GAZZONI, Marina. Os 'falidos' do coronavírus: veja as empresas que quebraram na pandemia. Seu Dinheiro. jul. 2020. Disponível aqui.Acesso em: 10 nov. 2020.  MANDEL, Julio. Nova lei de falências e recuperação de empresas anotada. São Paulo: Saraiva, 2005.  OLIVEIRA, Joana. 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia no Brasil, segundo o IBGE. El País, São Paulo, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. *Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo e Professor da PUC/SP. **Clarissa Somesom Tauk é juíza auxiliar em exercício na 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. __________ 1 OLIVEIRA, Joana. 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia no Brasil, segundo o IBGE. El País, São Paulo, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. 2 AGÊNCIA ESTADO. 522 mil negócios faliram só na primeira quinzena de junho, diz IBGE. InfoMoney, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. 3 GAZZONI, Marina. Os 'falidos' do coronavírus: veja as empresas que quebraram na pandemia. SeuDinheiro. jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. 4 "(...) a coletividade tem interesse metaindividual afetado, direta ou indiretamente, pelos sucessos ou insucessos que marcam a trajetória de grandes empresas" ... "É útil a imagem de três círculos em torno da empresa - a exemplo das elipses representantes dos movimentos dos planetas em redor do Sol. No círculo mais próximo ao centro, estarão representados os interesses dos empresários; mas não somente os deles, como também os dos sócios da sociedade empresária, dos investidores estratégicos, acionistas do bloco de controle e, nas companhias com elevado nível de dispersão acionária, os dos administradores graduados. No segundo círculo, o mediano, representam-se os interesses dos bystanders: os dos trabalhadores, (voltados à preservação de seus empregos e melhoria no salário e nas condições de trabalho), dos consumidores (que precisam ou querem os produtos ou serviços fornecidos pela empresa), o Fisco (cuja arrecadação aumenta em relação direta com o desenvolvimento da atividade econômica), dos fornecedores de insumo (empresas-satélite, muitas delas exploradas por micro pequenos e médios empresários), dos investidores não sofisticados do mercado de capitai (se a empresa é explorada por companhia aberta) e dos vizinhos dos estabelecimentos empresariais (normalmente beneficiados com a valorização do entorno). No terceiro círculo, o mais extenso, são representados os interesses metaindividuais coletivos ou difusos da coletividade, ou seja, o de todos os brasileiros (favorecidos, em caso de plena eficácia dos princípios de direito comercial, pelo decorrente barateamento geral dos preços), a economia local, regional, nacional e global (com o desenvolvimento, que, afinal, é a soma dos desenvolvimentos das respectivas empresas." (COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios de direito comercial: com anotações ao projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57-58). 5 "A empresa é a célula essencial da economia de mercado e cumpre relevante função social, na medida em que, ao explorar a atividade prevista em seu objeto e ao perseguir o seu objetivo - o lucro -, promove interações econômicas (produção ou circulação de bens ou serviços) com outros agentes do mercado, consumindo, vendendo, gerando empregos, pagando tributos, movimentando a economia, desenvolvendo a comunidade em que está inserida, enfim, criando riqueza e ajudando no desenvolvimento do país, não porque esse seja o seu objetivo final - de fato, não o é -, mas simplesmente em razão de um efeito colateral benéfico (que os economistas chamam de "externalidade positiva") do exercício da sua atividade." (SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luís Felipe; TELLECHA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2016, p. 73). 6 CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009; DELANEY, Kevin J. Strategic bankruptcy: how corporations and creditors use Chapter 11 to their advantage. California: University of California Press, 1998. 7 De acordo com o relatório apresentado pelo Deputado Hugo Leal, verbis: "De outro modo, a Seção XII do Capítulo V da Lei, que trata do encerramento e da extinção das obrigações do falido, foi atualizada no Substitutivo para permitir um rápido recomeço ao empresário ("fresh start"), permitindo que ele possa utilizar o próprio registro do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) para iniciar um novo negócio. Isto se dá pela defi nição da contagem do prazo para extinção das obrigações do falido na data da decretação da quebra e não do encerramento do processo. Também o esclarecimento de que o termo inicial para reinício do prazo prescricional porventura interrompido corresponde, inclusive para as Fazendas Públicas, ao trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência, o que permitirá, uma vez consumada a prescrição, a extinção das inscrições em dívida, e não apenas da respectiva cobrança judicial, como ocorre atualmente em razão da omissão da legislação. Também a pessoa natural que for sócia ou administradora do devedor poderá, a seu exclusivo critério, requerer que lhe sejam integralmente estendidos os efeitos da falência, declarando-se solidária e ilimitadamente responsável pelas dívidas do falido a fim de obter os benefícios de pessoa natural falida, que poderá requerer ao juízo da falência que as obrigações a ela referidas sejam declaradas extintas por sentença. Estas mudanças vão na direção de dar maior dinamismo aos nossos sistemas recuperacional e falimentar, pois é essencial para a eficiência econômica que haja possibilidade dos empresários, que tiveram dificuldade em seus negócios, de rapidamente se reerguerem e tentarem novos empreendimentos, criando novos empregos e gerando novas riquezas na economia." 8 Abordando a finalidade liquidatória da falência, Nelson Abraão afirma: "assim sendo, torna-se necessário o desmonte do estabelecimento ou estabelecimentos com a venda de seus componentes ao correr do martelo, aniquilando-se a atividade empresaria." (O novo direito falimentar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 167). 9 COSTA. Daniel Carnio. A importância social e econômica da falência. Brasil Jurídico, jan. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.