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A recomendação 102/23 do Conselho Nacional do Ministério Público - Ponderações sobre sua aplicação

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Atualizado às 08:48

Em outra oportunidade nesta coluna, já tive a oportunidade de tratar acerca do papel do Ministério Público nos processos de insolvência. Naquela oportunidade ressaltei a importância da instituição como função essencial à justiça, ao lhe ser atribuída a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127 de nossa Carta Magna, o que lhe permitiu o alcance da prelazia de autonomia funcional e administrativa, além de conferir aos seus membros predicamentos dos membros do Poder Judiciário, para garantir a independência na atuação funcional.

Especificamente em relação aos institutos da lei 11.101/05, mencionei o veto ao art. 4º do aludido diploma legal que assim dispunha: "Art. 4º O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência. Parágrafo único. Além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta." e que muitas eram as razões (e teses) do veto, mas todas buscavam explicar que isso não seria uma proposta para diminuir a importância do Ministério Público no sistema de insolvência brasileiro.

Ao contrário, ao lado das atribuições legais expressas (exemplificativamente - arts. 52, V; art. 99, VIII; 142, § 7º; 154, § 3º), defendi que a atuação do Ministério Público no âmbito do processo civil e de microssistemas como o do sistema de insolvência deveria ser pautada pela defesa de interesses públicos que atinjam ou influenciem a esfera pessoal e patrimonial de uma coletividade de indivíduos.

Isso está em harmonia com o que preceitua o Código de Processo Civil, nos seus arts. 176 a 178, especialmente, nos temas de insolvência, quando se vislumbrar interesse público ou social.

Ainda assim, não havia uma uniformidade de atuação dos mais diversos órgãos ministeriais em processos de insolvência, sobretudo em comarcas nas quais não haviam órgãos com atribuições específicas voltadas à lei 11.101/05.

Em 2022, sob a liderança do Conselheiro Daniel Carnio Costa, o Conselho Nacional do Ministério Público criou um grupo de trabalho voltado a otimizar a atuação dos órgãos ministeriais que atuam com processos da lei 11.101/05. Tal grupo foi composto por diversos integrantes de diversos Ministérios Públicos existentes além de desembargadores, juízes, advogados, acadêmicos e administradores judiciais.

Durante os debates sobre enunciados que poderiam ser criados para auxiliar na uniformização e orientação da atuação de promotores em processos de insolvência, ficou evidente a existência de uma corrente mais institucional, que defendia uma participação ampla do Ministério Público em todos os pontos da lei 11.101/05 e outra corrente que buscava temperar o âmbito dessa atuação, uma vez que as questões que envolvem o direito das empresas em crise, sem embargo à importância socioeconômica do tema, são compostos por direitos e litígios que abrangem direitos disponíveis e pessoas maiores e capazes.

A síntese desse trabalho foi a criação da Recomendação 102, de 8 de agosto de 2023, que dispõe sobre o aprimoramento da atuação do Ministério Público nos casos de recuperação judicial e falência de empresas e dá outras providências.

Em tal recomendação foram previstas orientações nas quais o Ministério Público, ao oficiar em processos da lei 11.101/05, deve se atentar aos objetivos elencados nos considerandos do texto normativo.

Uma observação deve ser feita ao leitor: a recomendação, embora reflita a síntese de discussões entre os membros do grupo de trabalho, deve ser vista como um texto de consenso, ou seja, nem todas as suas proposições são unanimidade entre os componentes, mas resultado de uma votação que exprimiu a vontade de uma maioria. Isso em nada desmerece o trabalho e sua importância, mas serve como informação para evitar eventuais incorretas interpretações ou atribuições que de sua utilização possam recair sobre os membros do grupo.

Reputo que o trabalho realizado tenha sido um avanço para o aprimoramento da atuação do Ministério Público em processos de insolvência. A uma, para buscar, sem prejuízo da independência funcional de seus órgãos e membros, uma homogeneidade de atuação que proporcionará segurança jurídica na aplicação da lei 11.101/05. A duas, porque servirá como valiosa orientação para promotores que não possuam especialização na matéria, mas, por circunstâncias comuns da carreira, devam oficiar em processos de falência, recuperação judicial e extrajudicial.

Mesmo diante dessa conquista para a comunidade jurídica e, ao final, para o jurisdicionado, não podemos cair na armadilha de se utilizar o texto da recomendação para conferir uma atuação universal do Ministério Público, desvirtuando sua própria essência, em desprezo a limites legais existentes.

Digo isso porque há um argumento sedutor, de caráter puramente deontológico (e, por isso mesmo, insuficiente para funcionar como exclusivo critério hermenêutico), em se associar a necessária intervenção do Ministério Público em processos de insolvência, diante da repercussão econômica e social destes na sociedade. Mas será mesmo que o interesse social dos institutos da lei 11.101/05 sempre justificariam a intervenção do Ministério Público? Temos outros critérios que nos permitiriam depurar e otimizar a atuação ministerial nos processos de insolvência?

A reflexão é importante porque além do Ministério Público não possuir infraestrutura para atuar em todas as situações previstas na lei 11.101/05, em processos de caráter econômico como os de recuperação judicial, extrajudicial e falência, qualquer intervenção estatal deve ser proporcional e equilibrada, para permitir maior eficiência na solução de problemas.

O fato é que nem sempre há interesse público direto e imediato decorrente da função social da empresa que demande a intervenção do Ministério Público nos processos da lei 11.101/05. É obrigação do órgão ministerial, quando sua atribuição não estiver expressamente prevista em lei, demonstrar a pertinência concreta de sua intervenção, numa exposição que transcenda a retórica deontológica de que o interesse social está contido na função social da empresa.

Para tanto, como bem acentua Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil, Volume I, Malheiros, 2016, páginas 881 e 882): O interesse público que essa Instituição tem o dever de resguardar não é o puro e simples interesse da sociedade no correto exercício da jurisdição como tal - que também é uma função pública -, porque dessa atenção estão encarregados os juízes, também agentes estatais eles próprios. O Ministério Público tem o encargo de cuidar para que, mediante o processo e o exercício da jurisdição pelos juízes, recebam o tratamento adequado certos conflitos e valores a eles inerentes, particularmente mediante o zelo por direitos e interesses indisponíveis, como está na Constituição Federal.

Indo além, temos os preceitos da lei 13.655, de 25/4/18, a qual promoveu a inserção de diversos dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para buscar garantir o alcance de maior segurança jurídica por poderes e órgãos estatais, quando da aplicação da lei ao caso concreto, de modo que a atuação ministerial deve ter acuidade na compatibilização de sua visão instituição com a situação do caso concreto, num juízo de subsunção que explicite sua necessária atuação em prol do interesse público, sem se valer de argumentos genéricos ou de construções que não tenham estofo nos elementos dos autos.

De acordo com a exposição de motivos do PL 7.448, DE 2017, que resultou na lei 13.655/18:

A proposta pretende tornar expressos alguns princípios e regras de interpretação e decisão que, segundo a doutrina atual, devem ser observados pelas autoridades administrativas ao aplicar a lei. Vale dizer que algumas destas iniciativas já foram incorporadas ao novo código de processo civil.

Assim, a proposta sugere parâmetros a serem observados quando autoridades administrativas tomam decisões fundadas em cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados. Busca também conferir aos administrados o direito a normas de transição proporcionais e adequadas, bem como estabelece um regime para que negociações entre autoridades públicas e particulares ocorram de forma transparente e eficiente.

Sobre o âmbito de alcance das introduções trazidas pela lei 13.655/18, Odete Medauar (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - Anotada - Volume II, Quartier Latin, 2019, páginas 63/64) assim leciona:

A ementa da referida Lei identifica o âmbito material específico de aplicação dos seus preceitos: criação e aplicação do direito público, visando à eficiência e segurança jurídica nessas situações. Em tese, incide nas decisões relativas a assuntos tratados em disciplinas do direito público, por exemplo: direito constitucional, direito administrativo, direito tributário, direito financeiro, direito processual, direito urbanístico, direito ambiental.

Quanto às autoridades públicas que decidem, o art. 20 utiliza a expressão "esferas administrativa, controladora e judicial".

Esfera administrativa mostra-se de sentido largo, para abranger todos agentes que decidem nos órgãos e entes da Administração direta e indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Esfera controladora diz respeito aos órgãos ou entes que exercem controle interno e externo sobre atuações da Administração Pública direta e indireta. Podem ser exemplificados, no controle interno, os órgãos contábeis e financeiros do próprio órgão ou ente público, as controladorias, as ouvidorias, as corregedorias; no controle externo, os tribunais de contas, o ministério público.

Esfera judicial abarca os juízes e os membros dos tribunais do Poder Judiciário. Embora o Poder Judiciário se enquadre na condição de "esfera controladora" da Administração Pública, o dispositivo indicou explicitamente tal esfera, talvez por clareza.

Como se pode observar, é obrigatória a observância dos preceitos da lei 13.655/18 pelo Ministério Público quando de sua atuação nos processos de insolvência. Isso porque o sistema de insolvência é de evidente interesse público, na medida em que sua eficiência proporcionará maior atração de investidores e, consequentemente, proporcionará o fortalecimento da economia brasileira.

A própria lei reconhece o seu caráter de interesse público na medida em que determina a intervenção do Ministério Público, segundo suas próprias atribuições constitucionais.

Logo, a aplicação da Recomendação 102 ao Ministério Público não afasta a obrigatoriedade da aplicação das regras constantes da LINDB, para que em suas manifestações sempre demonstre e comprove as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB)

Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB).

Outro diploma normativo de observância obrigatória ao Ministério Público (bem como aos demais participantes dos processos da Lei 11.101/2005), é a lei 13.874/19, que trata da Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica. Aqui, merece destaque a previsão do art. 2º, I, do aludido diploma legal (Art. 2º  São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;), que traz em seu bojo o princípio do in dubio, pro libertatem, segundo o qual devemos abandonar uma posição restritiva e formalista em demasia, sob a falsa premissa de respeito a valor de ordem pública, muitas vezes interpretado subjetivamente pelo sujeito aplicador da lei, para que se passe a entender que a liberdade de iniciativa envolve o prestígio à escolha de objetivos particulares, de modo a tornar o direito privado cada vez mais privado, com prestígio à boa-fé, à função social da propriedade e à liberdade de contratar e empreender.

Tomemos como exemplo o art. 14 da recomendação 102 que assim está disposto: Art. 14. O Ministério Público avaliará a idoneidade e a eficiência do administrador judicial durante todo o processo, na forma do art. 22 da lei 11.101/05, pleiteando a sua substituição quando necessário. Claramente o âmbito de atuação aqui deve respeitar a observância das obrigações legais previstas no art. 22 da lei 11.101/05, não podendo o órgão ministerial querer se substituir ao juiz na avaliação sobre o ato de nomeação, bem como deve apontar as situações do caso concreto que evidenciem, de maneira objetiva, a ineficiência do auxiliar do Juízo, segundo os critérios legais de desempenho de tal função.

Outra situação é a impossibilidade do Ministério Público se imiscuir em questões econômicas do plano de recuperação judicial (art. 28 da Recomendação), não sendo sua atribuição buscar a modificação de cláusulas que envolvam direitos disponíveis de pessoas maiores e capazes. Como exemplo, eventual deságio proposto não comportaria questionamento, porque inserido na esfera de transação das partes, além de possuir razão econômica voltada à composição do caixa para suportar as obrigações ordinárias da operação empresarial e da capacidade de pagamento da devedora, que não poderia assumir estipêndios em patamar superior à sua condição financeira. Sem a apresentação de elementos concretos que evidenciassem abuso por parte da devedora, não haveria espaço para que o Ministério Público questionasse cláusulas do plano, colocando em risco a preservação da atividade e as finalidades previstas no art. 47 da lei 11.101/05.

Concluindo, deve ser louvado o trabalho do Conselho Nacional do Ministério Público na edição da Recomendação 102, conferindo uma maior homogeneidade na atuação ministerial e auxiliando na orientação de promotores que não possuem conhecimento especializado na matéria. Acrescento que a aplicação do texto da Recomendação deve observar o critério estrito de legalidade, sobretudo os arts. 20 e 21 da LINDB, bem como a Lei de Liberdade Econômica, a fim de que o Ministério Público demonstre, com elementos do caso concreto e avaliando as consequências de suas manifestações, a necessidade de sua intervenção para a defesa real de interesse público nas demandas que envolvam a aplicação da lei 11.101/05.