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Fundos de investimento em direitos creditórios do devedor não são alcançados pela crise da empresa

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Atualizado às 07:12

Introdução

O direito das empresas em dificuldade tem por objetivo dar o tratamento ideal à crise da empresa, proporcionando a reestruturação ou o encerramento do empresário ou sociedade empresária, e, para tanto, identifica o devedor e seus credores como métrica econômica do melhor instrumento aplicável. As possibilidades de soerguimento/liquidação são pautadas em diversos fatores, dentre eles, um dos mais relevantes, é o passivo do devedor em cotejo com seus créditos e capacidade de geração de riqueza. Nesse contexto, não raro o agente econômico em crise possui diversos recebíveis decorrentes de relações jurídicas estabelecidas, nos termos do art. 2º, XIII, "g", da Resolução CVM nº 175, "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas", que foram cedidos a fundos de investimento creditório não-padronizados (FDIC-NP). Diante da efetiva crise da empresa, o questionamento que se põe é a análise do tratamento jurídico dos FDIC-NP, e sua eventual subordinação ao rol de credores sujeitos ao sistema de direito das empresas em dificuldade disposto na lei 11.101/2005, objeto do ensaio a seguir desenvolvido.

I. O alcance da crise da empresa

A. Reestruturação econômica

A lei 11.101/2005 criou um sistema de insolvência empresarial fundado na premissa de que a empresa, por se tratar de atividade indispensável ao bem-estar coletivo e essencial para o desenvolvimento econômico do país, deve contar com especial proteção jurídica. É o denominado princípio da preservação da empresa, previsto no art. 170, III da Constituição da República1 e reproduzido no art. 47 da lei 11.101/20052, que orienta todo o sistema de insolvência empresarial brasileiro.

O referido diploma põe à disposição dos agentes empresários (ou seja, aqueles que exercem atividade de natureza empresarial3) os seguintes institutos destinados ao tratamento da crise: (i) as conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de insolvência (pré-insolvência); (ii) as recuperações judicial e extrajudicial e (iii) a falência.

Frustrados os esforços por soluções consensuais e identificada a crise como passageira, o sistema da lei 11.101/2005 prioriza a superação da crise econômico-financeira por meio da recuperação (judicial ou extrajudicial). Reúne-se, assim, todos os agentes interessados (devedor e credores) em um único centro de decisões (o juízo recuperacional), criando-se um ambiente favorável de negociação coletiva das obrigações para que, mediante concessões mútuas4, viabilize-se a continuação das atividades empresariais - e, consequentemente, a manutenção da fonte produtiva, geradora de riquezas, tributos e empregos.

A falência, por outro lado, exsurge como instrumento legal apto a eliminar do mercado a sociedade empresária que não mais se sustenta, medida extrema que se impõe nas hipóteses em que já não há mais qualquer possibilidade de continuação das atividades5.

Quaisquer que sejam os instrumentos utilizados, o enquadramento jurídico dos créditos do devedor em crise, cedidos aos FDIC-NP, a fim de computar seu ativo/passivo, é de relevância crucial para se aferir a capacidade de satisfação dos credores.

B. Créditos anteriores à crise da empresa

Nos casos em que a crise seja identificada como meramente temporária, o devedor poderá contar com o auxílio estatal para buscar sua superação mediante a criação de um ambiente propício à negociação coletiva entre o devedor e seus credores, ou seja, os maiores interessados na continuação das atividades e na busca por uma solução conjunta. Nesse sentido, o equilíbrio dos interesses dos agentes envolvidos nesse processo é primordial para o alcance do êxito na repactuação das dívidas. A lei 11.101/2005 demonstra essa preocupação em diversas oportunidades, garantindo previsibilidade e segurança às obrigações repactuadas, como na regra inserta em seu art. 496. A aferição da existência do crédito na data do pedido de recuperação judicial leva em conta a data do seu fato gerador, ou seja, a data da fonte da obrigação - e não a data de seu reconhecimento judicial ou mesmo de sua quantificação, como chancelado pelo Superior Tribunal de Justiça7. O marco temporal estabelecido no dispositivo reproduzido acima assemelha-se a uma foto do estado econômico-financeiro do devedor no exato momento do requerimento do processamento de sua recuperação judicial, permitindo uma precisa demarcação do passivo sujeito à negociação coletiva.

Permite, assim, não apenas a definição das partes do acordo coletivo, mas também uma decisão fundamentada, por parte do devedor e de seus credores, sobre os mecanismos mais apropriados para reestruturação das atividades. No mesmo sentido, Marlon Tomazette8:

A possibilidade de realização da assembleia de credores e de instituição do comitê de credores, tanto na falência como na recuperação judicial, demonstra a necessidade de identificação dos credores do devedor falido ou em recuperação judicial. (...) Na recuperação judicial, a identificação é fundamental para identificar quem fará parte do acordo e, consequentemente, para saber quem poderá se manifestar sobre o plano de recuperação judicial.

O disposto no art. 49 da lei 11.101/2005, além de conferir segurança jurídica às partes ao assegurar simetria de informações e transparência, concretiza o próprio espírito que norteia a referida lei no sentido de viabilizar a continuidade da empresa.  Com efeito, durante o trâmite da recuperação, o devedor empresário deve continuar exercendo suas atividades normalmente e, assim, manter regular negociação com bancos, fornecedores, clientes e demais interessados. Se os créditos originados após o pedido da recuperação judicial fossem a esta submetidos, não haveria quem aceitasse negociar com a sociedade empresária em crise, o que inviabilizaria o acesso ao crédito e a continuação da própria atividade empresarial, contrariando a principal diretriz da lei (preservação da empresa).

Os parágrafos 1º e 3º do artigo 49 em comento, no entanto, abarcam opções legislativas de exceção à regra geral do caput, as quais, desde já ressaltamos não englobar os créditos cedidos aos FDIC-NP. O parágrafo primeiro9 prevê que, não obstante sujeitos à recuperação judicial, créditos assegurados por garantias cambiais, reais ou fidejussórias podem ser executados em face dos coobrigados, fiadores ou obrigados em regresso. A regra veio a ser confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de julgamento de recurso repetitivo, consolidada no Tema Repetitivo nº 88510 e que originou o enunciado da súmula 58111 da Corte. Já o parágrafo terceiro12 traz a exclusão dos créditos de titulares de propriedade fiduciária em garantia. Nesse caso, não há dúvidas de que se trata de credores que, em apertada síntese, detêm a propriedade resolúvel da coisa para garantia de uma obrigação principal, de modo que satisfeita a dívida, o bem alienado ou cedido fiduciariamente retorna à propriedade do devedor. A exclusão operada pelo dispositivo em comento se dá exatamente para proteger o direito de propriedade do credor fiduciário que pode liquidar o bem a fim de satisfazer (ou amortizar) o seu crédito, o que é confirmado pela jurisprudência iterativa do Superior Tribunal de Justiça. Em diversas ocasiões, aquele Tribunal Superior solidificou a não submissão desse tipo de crédito à recuperação judicial, diante da constatação de que a propriedade (resolúvel) do bem que garante a obrigação é do credor, e não do devedor em recuperação, sendo ainda indiferente o momento em que é performado, se antes ou depois do processamento13.

Diversa, no entanto, é a situação dos FDIC-NP, caso em que, como será visto a seguir, o próprio objeto do contrato firmado - ou seja, a obrigação principal contraída - é a transferência da propriedade definitiva (e não resolúvel) dos direitos creditórios.

Na pré-insolvência, recuperação extrajudicial e falência o mesmo raciocínio se aplica, por não se tratar o recebível de ativo do devedor em crise.

II. Fundos de investimento creditório não-padronizados (FDIC-NP)

A. Natureza dos fundos de recebíveis

Sabe-se que os fundos de investimento são uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinados à aplicação em ativos financeiros14. Em outras palavras, consistem em veículos de investimento coletivo, cujo objetivo é agrupar recursos de diversas fontes para viabilizar não apenas o acesso a ativos financeiros de maior valor, mas também a repartição dos riscos inerentes aos investimentos de alta monta - que dificilmente seriam suportados por investidores individuais. 

Sua operação no mercado se dá, em resumo, da seguinte maneira: a fim de arrecadar recursos para viabilizar a consecução de seu objeto, os fundos de investimento emitem cotas, ou seja, frações representativas de seu patrimônio, que são disponibilizadas para negociação no mercado de valores mobiliários. Os investidores interessados adquirem (rectius: subscrevem15) essas cotas e assim passam a ser cotistas, titulares de uma parcela do patrimônio do fundo. Os recursos obtidos com a subscrição das cotas, por sua vez, são destinados às aplicações financeiras objeto dos fundos de investimento, que pode se afigurar em diversas modalidades: fundo imobiliário, fundo de ações, fundo multimercado, fundo em dívida pública, dentre outros. Para fins deste estudo, interessa-nos especificamente o caso dos FIDC-NP.

Atualmente, a definição dos FIDC-NP pode ser identificada na recente Resolução CVM nº 175, de 23 de dezembro de 2022, que constitui o novo marco regulatório dos fundos de investimento em geral, consolidando a matéria em um único ato normativo ao revogar as antigas Instruções Normativas nº 444 (que dispunha sobre os fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados) e nº 356 (que dispunha sobre os fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em cotas de fundos de investimento em direitos creditórios). De acordo com o art. 2º do Anexo Normativo II da Resolução CVM nº 175, entende-se por direitos creditórios não-padronizados aqueles direitos creditórios que possuam ao menos uma das características listadas em seus incisos16. Além disso, o §1º estipula casos em que, ainda que detentores de alguns dos atributos listados nos incisos do art. 2º, os direitos creditórios não serão considerados não-padronizados17-18.

Exemplo de um direito creditório não-padronizado pôde ser verificado no recente processo de recuperação judicial do Grupo Light, com a presença do Fundo de Direitos Creditórios Light ("FIDC Light")19. Este último tinha como objeto o investimento em direitos creditórios (recebíveis) inicialmente detidos pelo primeiro. Isto é, o FIDC Light foi constituído para adquirir, na qualidade de cessionário, recebíveis de titularidade do Grupo Light, na qualidade de cedente, oriundos dos serviços de fornecimento de energia elétrica para a população. Assim, o pagamento mensal da "conta de luz" (crédito da empresa devedora) é destinado ao FDIC Light cessionário, sendo que este último, em contrapartida, já adiantou o valor do recebível ao Grupo Light.

Note-se desde já que o caso exemplificado se amolda à hipótese prevista no art. 2º, XIII, alínea 'g' do Anexo Normativo II da Resolução CVM nº 175: os créditos adquiridos pelo FIDC Light são "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas" - quais sejam, aquelas estabelecidas entre o Grupo Light e seus usuários/consumidores. A aquisição dos direitos recebíveis pelo FIDC Light é caso clássico do que se denomina true sale, negócio jurídico por meio do qual o cedente/vendedor - no caso, o Grupo Light - transfere a propriedade definitiva de determinados direitos creditórios (recebíveis) anteriormente por eles detidos20.

Trata-se, portanto, de operação completamente distinta de um empréstimo ou financiamento em que os recebíveis são dados como garantia fiduciária ao cumprimento da obrigação principal, constituindo-se assim uma cessão fiduciária de créditos - que, como cediço, é modalidade de propriedade resolúvel, ou seja, passível de extinção caso verificada a implementação de uma condição ou termo. Com efeito, o que ocorre frequentemente no mercado é a contratação de mútuos (obrigação principal) garantidos por créditos vincendos (obrigação acessória de garantia), de modo que o originador dos recebíveis os utiliza como garantia do empréstimo contratado. Na hipótese descrita, não há cessão definitiva do crédito: como mencionado, a propriedade do credor fiduciário é resolvida, ou seja, retorna ao titular original, o devedor, quando há a quitação integral da dívida contratada.

No caso da true sale, diversamente, o próprio objeto do contrato firmado - ou seja, a obrigação principal contraída - é a transferência da propriedade definitiva dos direitos creditórios (recebíveis), que, portanto, deixam de integrar o ativo do cedente/alienante. O objeto principal do contrato firmado é a compra da carteira de recebíveis. Por este motivo, a situação da true sale, que pôde ser constatada no contrato firmado entre o FIDC Light e o Grupo Light em recuperação judicial, não se confunde com aquelas previstas nas alíneas 'e' ("o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial") e 'f' ("o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial") do art. 2º, XIII do Anexo II da Resolução CVM nº 175. Pelo contrário, amolda-se perfeitamente à definição da alínea 'g', por se tratar "de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas".

Ainda assim, no caso concreto, houve intensa discussão judicial sobre a inclusão do FIDC Light no rol de credores submetidos à recuperação judicial do Grupo Light, em uma aparente confusão sobre a natureza dos fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados e de seu objeto, conforme será adiante explicitado.        

B. Não submissão dos fundos de recebíveis à crise da empresa

Conforme anteriormente exposto, em se tratando de recuperação judicial o rol de credores submetido é estipulado no art. 49 da lei 11.101/2005, alcançando todos aqueles detentores de créditos existentes na data do pedido de reestruturação, ainda que não vencidos, e desde que não se enquadrem nas exceções dos parágrafos 1º e 3º do referido dispositivo.

No já mencionado caso da true sale, negócio jurídico extremamente comum no mercado de valores mobiliários (e realizado especificamente por fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados para fins de aquisição de recebíveis), o que se verifica é a transferência da propriedade definitiva dos direitos creditórios, constituindo-se hipótese de verdadeira compra da carteira de recebíveis.

O objetivo de operações desta natureza é a securitização de crédito: por meio dela, o investidor-cessionário - FDIC-NP paga uma quantia ao titular de recebíveis futuros (no exemplo do caso Light, a própria companhia em recuperação judicial), assumindo os riscos a eles associados - principalmente o risco de inadimplência. O cedente, por outro lado, recebe o preço da cessão imediatamente, desvencilhando-se dos já mencionados riscos inerentes aos direitos creditórios, devendo responder apenas pela sua existência (e não pelo seu adimplemento).

A true sale é, portanto, uma cessão perfeita e acabada, em que o cedente efetivamente transfere a propriedade dos títulos e os riscos a eles inerentes ao cessionário. O que pode ser diferido é o fluxo financeiro do recebível cedido, momento em que haverá a transferência da sua posse. Isso porque em operações desta natureza, o recebimento dos direitos creditórios é comumente convergido em um Agente Centralizado, responsável por, posteriormente, realizar a mera transferência da posse dos recursos recebidos para o FIDC-NP- repita-se, o efetivo titular da propriedade destes créditos.

Diante do raciocínio desenvolvido até então, por se tratar a true sale de uma operação de transferência definitiva da propriedade de direitos recebíveis, os créditos objetos de negociação não integram o patrimônio do devedor empresário (ou sociedade empresária) que se submeta a um processo de recuperação judicial ou de falência. Foi também neste sentido o entendimento adotado no caso do Grupo Light. Naquele caso, conforme mencionado, o FIDC havia firmado contrato de cessão de recebíveis com a companhia Light em momento anterior à recuperação judicial. A entrega da posse destes direitos creditórios, todavia, havia sido diferida no tempo - ou seja, ainda que o FIDC fosse seu proprietário desde a assinatura do contrato entre as partes, o Grupo Light ainda permaneceria na posse destes recebíveis durante algum tempo.

Inicialmente, ao ajuizar medida cautelar antecedente à recuperação judicial, o Grupo Light incluiu o FIDC Light no polo passivo, demonstrando seu entendimento de que este se enquadraria como credor em eventual recuperação judicial ajuizada. Iniciou-se assim uma discussão entre as partes sobre a possibilidade de submissão do FIDC Light, titular da propriedade de recebíveis do Grupo Light cujo fluxo financeiro havia sido diferido (ou seja, cuja posse seria transferida em data futura, posterior à recuperação judicial), no rol de credores. A matéria chegou a ser discutida nos autos da tutela cautelar antecedente à recuperação judicial e em agravo de instrumento21. Todavia, antes mesmo de proferida uma decisão judicial sobre o tema nos referidos autos, o Grupo Light ajuizou pedido de recuperação judicial e deixou de incluir o FIDC Light em seu rol de credores, perfilhando o entendimento correto de que este não era um credor enquadrado no disposto no art. 49 da lei 11.101/2005, reconhecendo sua inequívoca condição de proprietário dos direitos creditórios, e consequentemente, sua ilegitimidade para figurar no polo passivo de uma demanda que pretenda rediscutir as dívidas financeiras do Grupo Light.

                Assim sendo, ao adquirir a titularidade/propriedade definitiva de direitos creditórios em momento anterior ao pedido de recuperação judicial do cedente, os FIDC-NPs, na qualidade de cessionários, não se submetem à crise da empresa.

Repita-se que o mesmo raciocínio se aplica à pré-insolvência, recuperação extrajudicial e falência, uma vez que tais ativos (de titularidade do FDIC-NP) não integram o patrimônio do devedor.

Conclusão

Dentre os institutos disponibilizados na lei 11.101/2005 para viabilizar a preservação da empresa, o agente empresário pode se beneficiar da recuperação judicial, por meio da qual busca promover uma negociação coletiva com seus credores, perante e com o auxílio do Estado. O art. 49 da lei 11.101/2005 delimita quais credores serão parte da negociação coletiva ao estipular que apenas os créditos existentes na data do pedido se submetem à recuperação judicial, permitindo assim, não apenas a definição das partes do acordo coletivo, mas também uma decisão fundamentada por parte dos interessados sobre os mecanismos mais apropriados para reestruturação das atividades. No caso dos FIDC-NP, estes frequentemente realizam seus investimentos mediante a estipulação de contratos denominados true sale, por meio dos quais adquirem a propriedade definitiva de recebíveis. A hipótese não se confunde com outra comumente verificada no mercado, em que recebíveis são entregues em garantia fiduciária do cumprimento de determinada obrigação principal; no caso da true sale, a própria transferência da propriedade dos recebíveis é a obrigação principal.

Assim sendo, caso o cedente de recebíveis a um FDIC-NP enfrente uma crise econômico-financeira e se valha de qualquer instrumento do direito das empresas em dificuldade (pré-insolvência, recuperação extrajudicial ou judicial ou falência), ainda que o contrato de true sale tenha sido realizado em momento anterior ao pedido, o cessionário não figurará no rol de credores, por se tratar de proprietário definitivo dos direitos creditórios, cuja posse será transferida futuramente pelo devedor - e não um credor submetido à lei 11.101/2005.

__________

1 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)  III - função social da propriedade;

2 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

3 Sobre o tema: GUIMARÃES, Márcio Souza. A Ultrapassada Teoria da Empresa e o Direito das Empresas em Dificuldades. in WAISBERG, Ivo e RIBEIRO, J. Horácio H. Rezende (coord.) Temas de Direito da Insolvência - Estudos em homenagem ao Professor Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo: IASP, 2017, pp. 682 a 708.

4 As interações entre o devedor e seus credores no âmbito da recuperação judicial podem ser analisadas à luz da teoria dos jogos Trata-se de hipótese em que os interesses dos jogadores (devedor e credores) estão em conflito, e cada um deles tomará decisões estratégicas visando sempre potencializar suas vantagens, orientados, em todo caso, pelo princípio da função social da empresa (GUIMARÃES, Márcio Souza. Direito das empresas em dificuldades in: PINHEIRO, Armando Castellar; PORTO, Antônio J. Maristrello; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro (coord.). Direito e economia: diálogos. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019, p. 369). No mesmo sentido Mario Engler Pinto: "O modelo introduzido pela Lei 11.101, de 09.02.2005, para superação da crise financeira da empresa, pode ser considerado um jogo oficial de interação estratégica, na medida em que pressupõe o consenso mínimo entre o devedor e seus credores, sobre o plano de recuperação judicial ou extrajudicial. No lugar de negociações individuais e bilaterais entre o devedor e seus credores, surge a necessidade de interação coletiva e organizada. A celebração do acordo pode significar um ganho para as partes envolvidas, pois evita o mal maior da decretação da quebra". (grifamos) JUNIOR, Mario Engler Pinto. A Teoria dos Jogos e o Processo de Recuperação de Empresas in: WALD, Arnoldo (org.). Doutrinas Essenciais: Direito Empresarial - Vol. VI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 454.

5 Como bem pontua Raquel Sztajn: "(...) sendo inviável a recomposição da organização, melhor tratar de desfazê-la o mais rapidamente possível evitando a propagação dos danos e enviando claros sinais de que não serão feitas concessões a empresários ou empresas cuja continuidade não se justi?que no plano econômico." SZTAJN, Rachel. In SOUZA JÚNIOR, Francisco Sátiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio de A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 221.

6 Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

7 Em decorrência de inúmeros recursos, a matéria foi examinada em sede de recurso repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça que consolidou a jurisprudência no Tema nº 1.051: Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador.

8 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 192.

9 Art. 49. § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.

10 Tema nº 885: A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005

11 A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória. (Súmula n.  581, Segunda Seção, julgado em 14/9/2016, DJe de 19/9/2016).

12 Art. 49. § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

13 Nesse sentido, destacam-se, dentre outros, os precedentes: AgInt no REsp n. 2.032.341/SP, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 16/10/2023; AgInt no REsp n. 2.041.801/MG, Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 9/10/2023, DJe de 11/10/2023; AgInt no AREsp n. 2.090.386/SP, Relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 20/3/2023, DJe de 23/3/2023.

14 Art. 1.368-C do Código Civil: O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza.

15 A subscrição é o ato por meio do qual o investidor passa a ser o titular das cotas emitidas pelo fundo de investimento, bem como assume a obrigação de integralizar (ou seja, efetivar o pagamento total correspondente) o valor das cotas adquiridas.

16 a) estejam vencidos e pendentes de pagamento quando da cessão; b) decorrentes de receitas públicas originárias ou derivadas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de suas autarquias e fundações; c) resultem de ações judiciais ou procedimentos arbitrais em curso, constituam seu objeto de litígio, tenham sido judicialmente penhorados ou dados em garantia; d) a constituição ou validade jurídica da cessão para a classe de cotas seja considerada um fator preponderante de risco; e) o devedor ou coobrigado seja sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial; f) sejam cedidos por sociedade empresária em recuperação judicial ou extrajudicial, ressalvado o disposto no inciso I do § 1º; g) sejam de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas; h) derivativos de crédito, quando não utilizados para proteção ou mitigação de risco de direitos creditórios; ou i) cotas de FIDC que invistam nos direitos creditórios referidos nas alíneas "a" a "h".

17 § 1º Não são considerados direitos creditórios não-padronizados: I - direitos creditórios cedidos por sociedade empresária em processo de recuperação judicial ou extrajudicial, desde que cumulativamente atendam aos seguintes requisitos: a) não sejam originados por contratos mercantis de compra e venda de produtos, mercadorias e serviços para entrega ou prestação futura; e b) a sociedade esteja sujeita a plano de recuperação homologado em juízo, independentemente do trânsito em julgado da homologação do plano de recuperação judicial ou extrajudicial; e II - os precatórios federais, desde que cumulativamente atendam aos seguintes requisitos: a) não apresentem nenhuma impugnação, judicial ou não; e b) já tenham sido expedidos e remetidos ao Tribunal Regional Federal competente.

18 Em apertada síntese, a diferença entre direitos creditórios padronizados e não-padronizados diz respeito ao nível de riscos inerentes aos ativos. Os primeiros são ativos considerados de baixo risco, que conferem mais segurança ao investidor. Os direitos creditórios não-padronizados, por outro lado, são ativos considerados mais arriscados, como valores de natureza futura e incerta, como objeto de litígio em curso ou recebíveis futuros.

19 Processo nº 0843430-58.2023.8.19.0001 em trâmite perante a 3ª Vara Empresarial da Capital do Estado do Rio de Janeiro - RJ.

20 Didaticamente, leciona Luiza Rangel de Moraes: "A cessão desses direitos creditórios consiste na transferência pelo cedente, credor originário ou não, de seus direitos creditórios para o cessionário, que, no caso, é um FIDC. É uma operação de securitização destinada à formação de FIDC, dando origem aos valores mobiliários com lastro nos créditos que a companhia tem a receber. A operação básica é a seguinte: - uma empresa transfere o direito de recebimento de seus créditos para um FIDC, através de um contrato de cessão de direitos creditórios; - esses direitos creditórios passam a constituir patrimônio do FIDC, através de um contrato de cessão de direitos creditórios; - esses direitos creditórios passam a constituir patrimônio do FIDC, que é gerido por uma instituição financeira; e - as cotas desse fundo são subscritas" (MORAES, Luiza Rangel de. O papel dos fundos de investimento na recuperação judicial de empresas. In: Revista de direito bancário e do mercado de capitais. Vol. 37, 2007. Jul-Set, 2007. p. 15-29)

21 Agravo de Instrumento nº 0027567-98.2023.8.19.0000, que teve curso perante a 12ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.