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Gramatigalhas

Esclarecendo dúvidas da Língua Portuguesa.

José Maria da Costa
quarta-feira, 12 de abril de 2023

Vo-lo - O que é isso?

1) Um leitor diz haver encontrado na Bíblia a seguinte frase: "Se assim não fosse, eu vo-lo teria dito". E afirma jamais ter visto uma construção como vo-lo em outro texto. Observa, ainda, que não conhece as regras para utilizar uma estrutura sintática como essa, nem mesmo quais pronomes a compõem. Por fim, pede explicações sobre o assunto. 2) Observe-se a seguinte frase: "Se assim não fosse, eu vos teria dito isso". Siga-se, em continuação, o raciocínio: (i) no caso, vos é um objeto indireto (significando a vós), e isso é um objeto direto; (ii) como isso é um objeto direto, se eu quiser substituí-lo por um pronome, este será o; (iii) se eu aproximar os dois pronomes, a estrutura frasal será "Se assim não fosse, eu vos + o teria dito"; (iv) e é exatamente a união desses dois pronomes que resulta na estrutura vo-lo. 3) Porque essa é uma construção própria da linguagem culta, é difícil encontrá-la em textos atuais, em que a linguagem normalmente prima pela simplicidade, mesmo quando os textos se submetem à norma culta. 4) Na própria Bíblia, entretanto, em versão mais tradicional, é usual encontrar construções dessa natureza: (i) "Se eu to não trouxer e não to puser à presença, serei culpado para contigo sempre" (Gênesis, 43:9 - to = te + o); (ii) "as coisas [...] que eu falo, como o Pai mo tem dito, assim falo" (João, 12:50 - mo = me + o); (iii) "Estas coisas [...] não vo-las disse desde o princípio, porque eu estava convosco" (João, 16:4 - vo-las = vos + as); (iv) "Outra vez saiu Pilatos e lhes disse: Eis que eu vo-lo apresento, para que saibais que eu não acho nele crime algum" (João, 19:4 - vo-lo = vos + o). 5) Com essas observações como premissas, observa-se, a pedido do próprio leitor, que, da junção de dois pronomes pessoais oblíquos átonos na frase, podem surgir associações que vale a pena observar. 6) É que os pronomes pessoais oblíquos átonos me, te, lhe, nos, vos podem juntar-se aos pronomes o, a, os, as, dando origem às formas mo (ma, mos, mas), to (ta, tos, tas), lho (lha, lhos, lhas), no-lo (no-la, no-los, no-las), vo-lo (vo-la, vo-los, vo-las). Exs.: a) "Estes autos, ele mos entregou em confiança"; b) "A causa, ele no-la confiou para defesa em segunda instância".
quinta-feira, 6 de abril de 2023

Vírgula optativa - Um caso prático

1) Um leitor traz dois exemplos, que encontrou no livro "O Mito de Sísifo", de Albert Camus: (i) "Mas vejo, EM CONTRAPARTIDA, que muitas pessoas morrem porque consideram que a vida não vale a pena ser vivida"; (ii) "Pode-se postular A PRINCÍPIO que as ações de um homem que não trapaceia devem ser reguladas por aquilo que ele considera verdadeiro". E indaga: por que o termo "em contrapartida" está separado entre vírgulas, enquanto "a princípio" não? 2) E um outro leitor quer saber sobre o emprego da vírgula com a palavra respeitosamente no seguinte exemplo: "Vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência interpor recurso..." (só antes, só depois, ou antes e depois, ou nem antes nem depois). 2) Ora, quando se trata do emprego da vírgula, deve-se atentar a uma primeira regra: não se usa a vírgula entre termos da oração que estejam em ordem direta (sujeito + verbos + complementos). Ex.: "Os integrantes da defesa civil entregaram suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes durante toda a noite passada". 3) Uma segunda regra: partindo-se do princípio de que não se emprega a vírgula na ordem direta, complementa-se que ela é empregada para marcar a intercalação ou a inversão de termos da oração (que, assim, de algum modo, saem dessa dita ordem direta). Exs.: a) "Durante toda a noite passada, os integrantes da defesa civil entregaram suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; b) "Os integrantes da defesa civil, durante toda a noite passada, entregaram suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; c) "Os integrantes da defesa civil entregaram, durante toda a noite passada, suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; d) "Os integrantes da defesa civil entregaram suprimentos e remédios, durante toda a noite passada, aos flagelados das enchentes". 4) Anote-se, porém, que, quando a inversão ou intercalação é de apenas uma palavra ou pequena expressão, acaba sendo optativo o emprego de tais vírgulas. Exs.: a) "Amanhã, os integrantes da defesa civil entregarão suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; b) "Os integrantes da defesa civil, amanhã, entregarão suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; c) "Os integrantes da defesa civil entregarão, amanhã, suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; d) "Os integrantes da defesa civil entregarão suprimentos e remédios, amanhã, aos flagelados das enchentes"; e) "Amanhã os integrantes da defesa civil entregarão suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; f) "Os integrantes da defesa civil amanhã entregarão suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; g) "Os integrantes da defesa civil entregarão amanhã suprimentos e remédios aos flagelados das enchentes"; h) "Os integrantes da defesa civil entregarão suprimentos e remédios amanhã aos flagelados das enchentes". 5) Complemente-se, todavia, com a observação de que, quando há intercalação com vírgula optativa, ou se usam ambas as vírgulas, ou não se utiliza nenhuma delas. Exs.: a) "O réu, displicentemente, segurava o queixo" (correto); b) "O réu displicentemente segurava o queixo" (correto); c) "O réu, displicentemente segurava o queixo" (errado); d) "O réu displicentemente, segurava o queixo" (errado). 6) Considerem-se, agora, os exemplos trazidos pela consulta: (i) "Mas vejo, EM CONTRAPARTIDA, que muitas pessoas morrem porque consideram que a vida não vale a pena ser vivida"; (ii) "Pode-se postular A PRINCÍPIO que as ações de um homem que não trapaceia devem ser reguladas por aquilo que ele considera verdadeiro". 7) Podem-se extrair as seguintes ilações a respeito desses exemplos: (i) a ordem direta do primeiro exemplo é "Mas vejo que muitas pessoas morrem em contrapartida"; (ii) a ordem direta do segundo exemplo é "Pode-se postular que as ações de um homem que não trapaceia devem ser reguladas por aquilo que ele considera verdadeiro a princípio"; (iii) "em contrapartida" e "a princípio" constituem circunlóquios de pequena extensão; (iv) com isso, pelas regras já vistas de uso de vírgulas, pode haver a inversão ou a intercalação de tais expressões, as quais, por serem de pequena extensão, podem vir com vírgulas ou sem vírgulas; (v) não se pode esquecer, porém, que, na hipótese de intercalação, ou se usam vírgulas antes e depois, ou não se emprega vírgula nenhuma; (vi) e, em resposta direta à indagação do leitor, pode-se dizer que ambos os exemplos estão corretos, e ambos, por serem as expressões de pequena extensão, poderiam vir entre vírgulas ou sem qualquer delas; (vii) por isso, a primeira expressão (em contrapartida) veio entre vírgulas, enquanto a segunda (a princípio) veio sem vírgula alguma. 8) Com essas considerações, apenas para ilustrar, vejam-se as variações do primeiro exemplo, com a indicação de sua correção ou erronia entre parênteses: (i) "Mas, em contrapartida, vejo que muitas pessoas morrem" (forma correta); (ii) "Mas em contrapartida vejo que muitas pessoas morrem" (forma correta); (iii) "Mas, em contrapartida vejo que muitas pessoas morrem" (forma errada); (iv) "Mas em contrapartida, vejo que muitas pessoas morrem" (forma errada); (v) "Mas vejo, em contrapartida, que muitas pessoas morrem" (forma correta); (vi) "Mas vejo em contrapartida que muitas pessoas morrem" (forma correta); (vii) "Mas vejo, em contrapartida que muitas pessoas morrem" (forma errada); (viii) "Mas vejo em contrapartida, que muitas pessoas morrem" (forma errada); (ix) "Mas vejo que, em contrapartida, muitas pessoas morrem" (forma correta); (x) "Mas vejo que em contrapartida muitas pessoas morrem" (forma correta); (xi) "Mas vejo que, em contrapartida muitas pessoas morrem" (forma errada); (xii) "Mas vejo que em contrapartida, muitas pessoas morrem" (forma errada); (xiii) "Mas vejo que muitas pessoas, em contrapartida, morrem" (forma correta); (xiv) "Mas vejo que muitas pessoas em contrapartida morrem" (forma correta); (xv) "Mas vejo que muitas pessoas, em contrapartida morrem" (forma errada); (xvi) "Mas vejo que muitas pessoas em contrapartida, morrem" (forma errada). 9) Vejam-se também as variáveis corretas para o exemplo trazido pelo segundo leitor: (i) "Respeitosamente vem à presença de Vossa Excelência interpor recurso..."; (ii) "Respeitosamente, vem à presença de Vossa Excelência interpor recurso..."; (iii) "Vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência interpor recurso..."; (iv) "Vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência interpor recurso..."; (v) "Vem à presença de Vossa Excelência respeitosamente interpor recurso"; (vi) "Vem à presença de Vossa Excelência, respeitosamente, interpor recurso". 10) Também se vejam as formas incorretas do mesmo exemplo do segundo leitor: (i) "Vem, respeitosamente à presença de Vossa Excelência interpor recurso..."; (ii) "Vem respeitosamente, à presença de Vossa Excelência interpor recurso..."; (iii) "Vem à presença de Vossa Excelência, respeitosamente interpor recurso"; (iv) "Vem à presença de Vossa Excelência respeitosamente, interpor recurso".
quarta-feira, 29 de março de 2023

Vírgula - Como usar com conjunções

1) Um leitor observa que, em textos jurídicos, tem visto o emprego frequente de algumas palavras e expressões: bem como, assim como, vez que, haja vista, posto que, porquanto. E tem notado que elas vêm, às vezes, entre vírgulas, às vezes com vírgula antes. E indaga qual a maneira correta de escrevê-las. 2) Antes de passar às observações específicas, façam-se algumas ponderações prévias importantes: (i) haja vista é uma locução verbal e tem como significado "que o leitor tenha a vista lançada", e, apesar de suas variações aceitáveis em termos de sintaxe, o melhor, para não errar, é utilizá-la invariável e seguida da preposição "a" ("[...] haja vista aos desafios enfrentados"; (ii) a expressão vez que não é correta, mas deve ser utilizada de modo completo (uma vez que), como na frase "O réu foi absolvido, uma vez que não era culpado"; (iii) a locução conjuntiva posto que sempre tem sentido concessivo (significando embora ou ainda que), e jamais causal (de modo que nunca tem o significado de porque). 3) Feitas essas anotações úteis para o emprego de tais palavras ou expressões, vê-se que as dúvidas do leitor são amplas e não formam um conjunto, de modo que não permitem uma sistematização adequada. 4) Tentando, todavia, responder ao que solicitou, fazem-se aqui algumas digressões que parecem oportunas. 5) A expressão haja vista é diferente das demais palavras e expressões, porque configura uma locução verbal, e normalmente vem numa segunda oração, separada, assim, por vírgula da primeira. Ex.: "O réu deve ser condenado, haja vista às robustas provas produzidas contra ele". 6) As demais palavras e expressões são conjunções ou locuções conjuntivas: bem como é aditiva; assim como é comparativa; uma vez que é causal; posto que é concessiva; e porquanto é explicativa. E, como a função da conjunção normalmente é iniciar uma segunda oração, vem esta, na maioria dos casos, precedida de uma vírgula para separá-la da primeira oração. Exs.: (i) "Fulano fez o trabalho, bem como o entregou a tempo ao professor"; (ii) "Ele nasceu em Portugal, assim como toda sua família"; (iii) "Ele não saiu de casa naquela noite, uma vez que a chuva era torrencial"; (iv) "O magistrado continuou a audiência, posto que fosse tarde"; (v) "Venha logo, porquanto preciso muito de sua ajuda". 7) Para ir um pouco mais além com o leitor, anota-se que, quando se intercala um termo na oração fora de sua ordem direta, ele virá entre vírgulas. Para ilustrar o que acontece, veja-se que, se for intercalada uma expressão após as conjunções dos exemplos anteriores, tal expressão há de ficar entre vírgulas, como é fácil perceber nos exemplos a seguir. Exs.: (i) "Fulano fez o trabalho, bem como, em seguida, o entregou a tempo ao professor"; (ii) "Ele nasceu em Portugal, assim como, nas décadas seguintes, toda sua família"; (iii) "Ele não saiu de casa naquela noite, uma vez que, além de muito fria, a chuva era torrencial"; (iv) "O magistrado continuou a audiência, posto que, malgrado todos os cuidados, fosse tarde"; (v) "Venha logo, porquanto, cansado, preciso muito de sua ajuda". E se veja que a própria expressão haja vista - como também nenhuma outra expressão - escapa a essa regra: ""O réu deve ser condenado, haja vista, depois de regularmente colhidas, às robustas provas produzidas contra ele". 8) Com todo esse quadro, importa realçar que o emprego da vírgula, por um lado, tem regras que precisam ser obedecidas; por outro lado, depende de uma série de circunstâncias, que também requerem cuidado e estrita observância. E uma diretriz geral (de que a ordem direta dispensa a vírgula) seguida de outra (as inversões e intercalações normalmente são marcadas por vírgulas) auxiliam muito na solução dos desafios que aparecem nesse campo.
quarta-feira, 22 de março de 2023

Usá-lo - É usar + o?

1) Um leitor, em síntese, pede esclarecimentos sobre as regras para utilização das formas verbais que se unem a pronomes, como o, a, os, as, nos, vos, lhe, lhes... 2) Ora, os verbos, em suas mais variadas formas, podem unir-se a pronomes pessoais oblíquos átonos, e dessa junção se originam associações que vale a pena observar. 3) Assim, se o verbo termina por vogal e é seguido de o, a, os, as, a junção ocorre sem alteração alguma: entregou + o = entregou-o; dou + as = dou-as. 4) Se o verbo vem seguido de vos ou lhes, a junção também se faz sem alteração alguma: entregamos + vos = entregamos-vos; entregamos + lhes = entregamos-lhes. 5) Se a primeira pessoa do plural vem seguida do pronome nos, o verbo perde o s final: entregamos + nos = entregamo-nos. 6) Bem nessa esteira, lembra Mário Barreto que, nesses casos, o correto "é suprimir-se o s final da primeira pessoa do plural quando o pronome nos vem após o verbo".1 7) Na lição de Domingos Paschoal Cegalla, em casos dessa natureza, "para atender à eufonia, suprime-se o s final da primeira pessoa do plural dos verbos, quando seguida do pronome nos".2 8) Se o verbo termina por m ou ditongo nasal e é seguido de o, a, os, as, a forma verbal permanece inalterada, e o pronome é precedido de um n: entregaram + a = entregaram-na; dão + o = dão-no. 9) Se o verbo termina por r, s ou z e é seguido de o, a, os, as, aquelas consoantes são eliminadas, e os pronomes passam a ter as formas lo, la, los, las: encontrar + o = encontrá-lo; encontrar + a + ei = encontrá-la-ei; procuras + os = procura-los; fiz + as = fi-las. 10) Nos dizeres de Artur de Almeida Torres, "nas formas verbais terminadas em r, s ou z, seguidas do pronome oblíquo o, a, em sua antiga representação lo, la, aqueles fonemas assimilaram-se ao l, desaparecendo depois: mandar-lo, mandallo, mandá-lo; levastes-lo, lesvastello, levaste-lo, fez-lo, fello, fê-lo".3 11) Cândido Jucá Filho, nesse aspecto, lembra que Filinto Elísio, "censurando os críticos ignorantes, incide nesta erronia grosseira: 'E chamais-los puristas e censores?' (isto é, 'chamai-los')".4 12) Se o verbo termina por ns, segue-se a observação anterior, apenas com a transformação do n remanescente em m: tu manténs + o = tumantém-lo; tu tens + o = tu tem-lo.5 13) De Édison de Oliveira é interessante observação sobre o assunto, muito embora em nada altere a realidade gramatical nem institua permissão para o cometimento dos equívocos em norma culta: "É claro que a maioria dessas combinações, embora rigorosamente corretas de acordo com a gramática, são frequentemente evitadas na linguagem cotidiana, e até na linguagem literária, por estranhas ou mal sonoras, sendo fácil transmitir a mesma ideia através de outras construções". 14) E, "para evidenciar o caráter excêntrico que a forma verbal assume em tais circunstâncias", exemplifica tal autor com a conjugação completa de um tempo verbal seguido de pronome: quero + o = quero-o; queres + o = quere-lo; quer + o = qué-lo; queremos + o = queremo-lo; quereis + o = querei-lo; querem + o = querem-no.6 __________ 1 BARRETO, Mário. Fatos da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1954, p. 141. 2 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 139. 3 TORRES, Artur de Almeida. Moderna Gramática Expositiva. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1966, p. 15. 4 JUCÁ FILHO, Cândido. Curso de Português - Segundo Ano Colegial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1954, p. 31. 5 RIBEIRO, Júlio. Gramática Portuguesa. 8. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1908, p. 257. 6 OLIVEIRA, Édison de. Todo o Mundo Tem Dúvida, Inclusive Você. Porto Alegre: Gráfica e Editora do Professor Gaúcho Ltda., Edição sem data, p. 137.
quarta-feira, 15 de março de 2023

Não paire dúvidas ou Não pairem dúvidas?

quarta-feira, 8 de março de 2023

Um caso de vírgula

1) Um leitor envia a seguinte mensagem: "Na frase 'houver risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação' (parágrafo único, art. 995, CPC/15) a expressão entre vírgulas é um adjunto adnominal ou um aposto explicativo? Como distinguir?". 2) Quanto ao excerto legal citado pela consulta, podem-se fazer as seguintes considerações: (i) o texto fala, num primeiro momento, de modo genérico, em um risco; (ii) em seguida, menciona que esse risco pode ser de dano grave; (iii) em continuação, considera que ele também pode ser de difícil reparação; (iv) e finaliza que ele pode até mesmo ser de impossível reparação. 3) Trazendo todos os termos ocultos, o exemplo pode ser assim escrito: "Quando houver risco de dano grave, dano de difícil reparação ou dano de impossível reparação...". 4) Todas essas expressões são separadas por vírgulas, uma vez que uma das funções da vírgula é separar os elementos de uma enumeração. 5) Ou seja, quando há palavras ou expressões que possam ser caracterizadas como elementos de uma enumeração - o que alguns autores chamam de "termos coordenados"1, então haverá vírgula para separá-los. Exs.: (i) "O réu era feio, magro, doente"; (ii) "Eu era esse rapaz bonito, forte, atraente"; (iii) "Encontrei diversas frutas no pomar: mangas, laranjas, goiabas e jabuticabas"; (iv) "Agora é hora de pensar, refletir, planejar, executar e conseguir a vitória"; (v) "O pai, a mãe, o filho, a filha e os netos saíram todos em busca de uma vida melhor". 6) É importante observar que a necessidade de emprego de vírgula em tais casos não depende de qual seja a função sintática dos termos envolvidos; se caracterizam elementos de uma enumeração, haverá vírgula entre eles, não importando qual seja sua função sintática. __________ 1 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974, p. 337.
quarta-feira, 1 de março de 2023

Rui Barbosa ou Ruy Barbosa?

1) Com a promulgação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, ocorrente em 29 de setembro de 2008, tem-se questionado qual é a melhor forma de grafar o nome de nosso jurista: se Rui Barbosa ou Ruy Barbosa. 2) Registre-se que, em sua certidão de nascimento, consta a grafia com y: Ruy Barbosa. 3) Como já esclarecido outrora nesta mesma coluna pelo brilhante professor José Maria da Costa, os nomes próprios sujeitam-se às regras normais de ortografia e de acentuação gráfica. Por isso se deve escrever Antônio, Uílson, Luís, Mateus, Rui, e não Antonio, Wilson, Luiz, Matheus ou Ruy. 4) Confirma-se na lei tal afirmação: o item XI, subitem 39, do Formulário Ortográfico da Língua Portuguesa - em instruções aprovadas unanimemente pela Academia Brasileira de Letras na sessão de 12.8.43 - assim determina: "Os nomes próprios personativos, locativos e de qualquer natureza, sendo portugueses ou aportuguesados, serão sujeitos às mesmas regras estabelecidas para os nomes comuns". 5) Esse mesmo Formulário prevê, no item II, subitens 9 e 10, o seguinte: 9. O y, que é substituído pelo i, ainda se emprega em abreviaturas e como símbolo de alguns termos técnicos e científicos: Y= ítrio; yd = jarda, etc. 10. Nos derivados de nomes próprios estrangeiros devem usar-se as formas que se acham de conformidade com a primitiva: byroniano, maynardina, taylorista, etc. 6) Observe-se que a Academia Brasileira de Letras detém delegação legal para definir a extensão de nosso léxico bem como as regras de escrita, acentuação e pronúncia dos vocábulos, de modo que sua palavra não significa mera posição ou opinião, mas é a própria lei a ser seguida; assim, qualquer outra discussão há de situar-se apenas no campo das polêmicas científica e doutrinária. Tendo a Academia aprovado unanimemente o Formulário em questão, não há dúvida quanto à sua legalidade. 7) Considerando a previsão expressa de substituição do y por i a partir da promulgação do referido Formulário, o nome do jurista passou a ser grafado Rui. 8) Em obediência à lei, registra-se que a Fundação Casa Rui Barbosa explica em seu site1: [...] em respeito às Instruções para a Organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (12 de agosto de 1943) e à lei número 5.765, de 18/12/1971, que aprova alterações na ortografia da língua portuguesa, a Fundação Casa de Rui Barbosa não apenas grafa com "i" o nome de seu patrono, como orienta todos os que a consultam a fazer o mesmo. 9) É oportuno acrescentar proveitosa lição de Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante para a situação ora analisada: "A grafia dos nomes de todos os que se tornam publicamente conhecidos aparece corrigida em publicações feitas após a morte dessas pessoas".2 10) De Arnaldo Niskier também é lição nesse sentido: "Passando desta para a melhor, a norma é escrever seus nomes de acordo com as regras ortográficas", razão pela qual "um Antonio Luiz só o será em vida: depois da morte passará a ser, portuguesmente, Antônio Luís".3 11) Ocorre que, com a promulgação do Acordo Ortográfico em 29 de setembro de 2008, houve a inclusão expressa das letras k, w e y em nosso alfabeto, conforme Anexo I, Base I, art. 1º. 12) A partir de então, poder-se-ia cogitar o retorno da grafia original Ruy, a qual iria ao encontro da certidão de nascimento do polímata. 13) Encerrar-se-ia a questão aí, não fossem as restrições trazidas pelo próprio Acordo. Logo no art. 2º, lê-se o seguinte: 2º) As letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais:  a) Em antropónimos/antropônimos originários de outras línguas e seus derivados: Franklin, frankliniano; Kant, kantismo; Darwin, darwinismo; Wagner, wagneriano; Byron, byroniano; Taylor, taylorista;  b) Em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados: Kwanza, Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano;  c) Em siglas, símbolos e mesmo em palavras adotadas como unidades de medida de curso internacional: TWA, KLM; K-potássio (de kalium), W-oeste (West); kg-quilograma, km-quilómetro, kW-kilowatt, yd-jarda (yard); Watt.  14) Nota-se, pois, que o emprego de k, w e y é restrito: embora sejam agora letras oficiais de nosso alfabeto, não se pode cogitar, por exemplo, a criação livre de vocábulos que ostentem seu emprego. 15) Observando-se a alínea a, constata-se que apenas nomes próprios (chamados de antropônimos) originários de outras línguas e seus derivados podem se construir com k, w e y. O questionamento, portanto, é: seria Ruy um nome originário de qual língua? E como seria sua grafia original? Seria ela com y? 16) Em breve pesquisa, percebe-se que a sugestão mais frequente é tratar-se de forma reduzida de Roderick, de origem germânica, adaptado do latim Rodericus. Essa informação, no entanto, não parece 100% segura, já que o nome, segundo dicionário da Porto Editora, "já existente em Portugal no século XIII, embora fosse muito mais antiga noutros pontos da Península Ibérica"4. Tamanho hiato temporal faz suscitar alguma desconfiança. 17) De toda maneira, caso se considere correta essa origem, não há razão para grafar o nome com y. Por outro lado, se considerarmos a fonte incerta, a conclusão será a mesma: não existe razão para se grafar o nome com y, uma vez que, sem a certeza da procedência, muito mais sentido faz manter a grafia vernacular condizente com nossa lei. 18) Em resumo, diante da situação, tem-se o seguinte: mesmo depois da promulgação do Acordo Ortográfico de 2008, após a morte do jurista, deve-se grafar Rui Barbosa de Oliveira, apesar de sua certidão fazer constar Ruy. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 26 de fevereiro de 2023. 2 Cf. CIPRO NETO, Pasquale; INFANTE, Ulisses. Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Scipione, 1999, p. 42. 3 Cf. NISKIER, Arnaldo. Questões Práticas da Língua Portuguesa: 700 Respostas. Rio de Janeiro: Consultor, Assessoria de Planejamento Ltda., 1992, p. 45. 4 Disponível aqui.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Ter e vir - Como acentuar

1) Um leitor, em síntese, indaga qual é a grafia correta para a terceira pessoa do plural do presente do indicativo dos verbos ter e vir. E especifica: seria teem ou têm, e veem ou vêm? 2) Ora, num primeiro aspecto, observa-se que ter é verbo que traz problemas quanto à acentuação gráfica, dificuldade essa que se espraia para seus compostos, razão pela qual algumas detidas observações são oportunas. 3) Assim, tanto ter quanto seus compostos são grafados, na terceira pessoa do plural do presente do indicativo, com um acento circunflexo, e isso para diferenciar da terceira pessoa do singular: eles têm, eles mantêm. 4) Seus compostos - e apenas seus compostos - na terceira pessoa do singular, recebem um acento agudo: ele tem, ele mantém. 5) Atente-se, portanto, a como se grafam as seguintes formas verbais: ele tem, ele mantém, eles têm, eles mantêm (a mesma observação vale para todos os demais compostos do verbo ter). 6) Observe-se, por outro lado, que, na terceira pessoa do singular do presente do indicativo, nem ter nem seus compostos apresentam dois ee, encontro vocálico esse privativo de crer, dar, ler, ver e seus compostos. 7) Num segundo aspecto, embora vir tenha exatamente a mesma estrutura, fazem-se as mesmas observações, para que não remanesça dúvida alguma, a começar pelo fato de que ele apresenta dificuldade quanto à acentuação gráfica, dificuldade essa que se espraia para seus compostos. 8) Nesse quadro, tanto ter quanto seus compostos são grafados, na terceira pessoa do plural do presente do indicativo, com um acento circunflexo, para diferenciar da terceira pessoa do singular: eles vêm, eles intervêm. 9) Seus compostos, mas não ele próprio, na terceira pessoa do singular, recebem um acento agudo, em razão de regra específica de acentuação gráfica das oxítonas: ele vem, ele intervém. 10) Atente-se, assim, às seguintes formas do presente do indicativo: ele vem, eles vêm, ele intervém, eles intervêm. 11) Repetindo a mesma observação já feita para o verbo ter, nem ver, nem seus compostos apresentam dois ee, encontro vocálico esse privativo de crer, dar, ler, ver e seus compostos.
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Tempos verbais - Uso de um pelo outro

1) Um professor de francês indaga se, em português, se pode dizer "eu precisava", ou se deve dizer "eu precisaria", ou "eu preciso" de uma tesoura. E lembra que a situação a que se refere é presente, de modo que não se desenrola no passado. Observa, por fim, que, em francês, é possível usar as três formas. 2) Ora, a par de sua aplicação direta e normal, os tempos verbais, em português, se prestam a uma gama variada de possibilidades, enriquecendo o arsenal de que dispõe o usuário do idioma para montar um texto. 3) Assim, começando pelo presente do indicativo, vê-se que ele, num primeiro aspecto, pode também ser empregado em situações de fato pretéritas, sobretudo quando se quer dar ânimo e ênfase à narrativa. É o que se denomina presente histórico. Ex.: "Napoleão, então, vai ao encontro de seu destino em Waterloo" (vai = foi). 4) Também se emprega o presente do indicativo em lugar do futuro, para indicar com ênfase uma decisão. Ex.: "Vou a São Paulo hoje e volto amanhã" (volto = voltarei). 5) Também se usa o presente do indicativo em lugar do pretérito imperfeito do subjuntivo, sobretudo em uma linguagem mais coloquial. Ex.: "Se eu respondo mal, ela se zangaria" (respondo = respondesse). 6) De igual modo, o presente do indicativo pode substituir o futuro do subjuntivo. Ex.: "Se queres a paz, prepara-te para a guerra" (queres = quiseres). 7) Num segundo ponto, o pretérito imperfeito do indicativo pode substituir, sobretudo na linguagem mais informal, o futuro do pretérito. Ex.: "Se ela me desprezasse, eu me matava" (matava = mataria). 8) Num terceiro plano, o pretérito mais-que-perfeito do indicativo pode vir, respectivamente, em lugar do futuro do pretérito do indicativo e do futuro do subjuntivo. Como exemplo, veja-se o conhecido verso de Camões: "[...] mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida" (servira = serviria; fora = fosse). 9) Mas não é só: em quarto lugar, o futuro do presente pode ser empregado em lugar do presente do indicativo, para indicar incerteza ou ideia aproximada. Ex.: "Ela terá aproximadamente seus vinte anos" (terá = tem). 10) Além disso, o futuro do presente também pode ser empregado em lugar do imperativo. Ex.: "Não furtarás" (furtarás = furtes). 11) Sem pretender exaurir o rol dessa utilização de uns tempos verbais em lugar de outros, vê-se que o infinitivo pode substituir o imperativo nas ordens. Ex.: "Não furtar" (furtar = furtarás). 12) Como é de fácil percepção, é enorme a possibilidade de variação dos tempos verbais para se substituírem mutuamente. E não há regras estritas nem proibições maiores a serem obedecidas em tais situações. Nem mesmo as hipóteses aqui levantadas esgotam o rol das combinações possíveis. 13) E calha com perfeição, a esta altura, a advertência de Evanildo Bechara: "os casos aqui lembrados estão longe de enquadrar a trama complexa do emprego de tempos e modos em português. São várias as situações que podem, ferindo os princípios aqui expostos, levar o falante ou escritor a buscar novos meios mais expressivos. São questões que fogem ao âmbito da Gramática e constituem preocupação da Estilística".1 14) De modo específico para as indagações do leitor, todas as possibilidades por ele aventadas encontram respaldo no uso que os melhores escritores fazem do idioma. ___________ 1 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974, p. 279.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Satanás - Acentuado no plural?

1) Um leitor afirma haver encontrado em um dicionário português acentuação gráfica em plurais de palavras oxítonas terminadas em 's', como satanáses e ananáses. E indaga se essas são formas permitidas. 2) Diga-se, num primeiro momento que (deixando a questão da acentuação gráfica para um segundo momento), as palavras satanás e ananás fazem seus plurais, respectivamente, em satanases e ananases. Nesse ponto, seguem a regra de formação normal de plural, na esteira de tantas outras, como ás (ases) e gás (gases). 3) Num segundo momento, é regra que se acentuam graficamente as palavras oxítonas (ou seja, aquelas cuja última sílaba é pronunciada mais fortemente) terminadas em a, e, o, seguidas ou não de s: jacá(s), rapé(s), cipó(s). 4) Num terceiro momento, porém, é preciso observar dois aspectos: (i) uma palavra pode, por exemplo, ser oxítona no singular, mas não no plural; (ii) nesse caso, a análise deve ser individualizada em cada uma delas, para verificação da acentuação gráfica; (iii) e esse raciocínio pode acarretar a conclusão de que uma palavra seja acentuada no singular, mas não no plural. 5) Assim, satanás e ananás são oxítonas terminadas em a(s) e, por isso, são acentuadas graficamente. Já satanases e ananases são paroxítonas, e não há razão técnica alguma para receberem acento gráfico. Desse modo, são incorretas as formas satanáses e ananáses. 6) Por fim, é preciso fazer dois pequenos reparos na consulta do leitor. O primeiro: satanás e ananás são acentuadas graficamente porque realmente são oxítonas terminadas em a, seguidas (poderiam não ser) de s. A justificativa do leitor, assim, não é adequada, já que nem toda oxítona vai ser acentuada somente porque termina em s. Basta ver abacaxis, fuzis, juritis, angus e tatus. O segundo: embora satanás e ananás sejam oxítonas, não o são, porém, satanases e ananases.
1) Um leitor indaga qual a razão para retrocitar (verbo) e retrocitado (adjetivo) constarem do VOLP, mas não dos principais dicionários brasileiros. Sem dúvida, uma excelente e oportuna questão. 2) Pode-se dizer, em termos bem práticos, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa é, por assim dizer, uma espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia oficial. 3) Também conhecido pela sigla VOLP, seu objetivo é reconhecer a existência e consolidar a grafia dos vocábulos, além de classificá-los pelo gênero (masculino ou feminino) e pela categoria morfológica (substantivo, adjetivo...). 4) Difere dos dicionários convencionais, por não explicar usualmente o significado dos termos que registra. 5) É elaborado pela Academia Brasileira de Letras, que tem a delegação e a responsabilidade legal de editá-lo, desde a vetusta Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8 de dezembro de 1900, incumbência essa corroborada por diversos diplomas legais posteriores. 6) Oportuno é reiterar que, incumbido por lei específica para sua confecção, quem o elabora goza de autoridade para, nesse campo, dizer o Direito, motivo por que, ao consultá-lo, legem habemus e devemos prestar-lhe obediência, como devemos fazer com respeito aos demais diplomas legais. Qualquer discussão ou divergência há de ficar para o plano da ciência, não consistindo, todavia, em válvula que permita o descumprimento de suas determinações 7) Em comunhão com tal pensamento, para José de Nicola e Ernani Terra, esse vocabulário "é a palavra oficial sobre a ortografia das palavras da língua portuguesa no Brasil"1, não se podendo olvidar que também é a palavra oficial no que concerne à própria existência dos vocábulos em nosso idioma. 8) No caso da consulta, noticia o leitor que os vocábulos que ele aponta constam do VOLP, mas não dos dicionários Aurélio e Houaiss. 9) E, ante essa realidade de fato, é importante observar que, por força da autoridade da ABL e do VOLP que ela edita, os estudiosos da língua e os dicionaristas, sem sombra de dúvida, prestam relevantes serviços ao vernáculo. Não são eles, porém, as autoridades para dizerem, com valor oficial, acerca da existência ou não de algum vocábulo em nosso idioma, bem como acerca de sua grafia e de suas peculiaridades, ou mesmo de sua correção no idioma. 10) Insista-se em que a atribuição de dizer oficialmente se um vocábulo existe ou não em nosso idioma cabe, com exclusividade, à Academia Brasileira de Letras, e esta a exerce por via da edição do VOLP. Desse modo, na divergência entre os gramáticos, filólogos e dicionaristas de um lado, e o VOLP de outro, há de prevalecer, nesse campo, o que registra este último com toda a sua autoridade oficial. __________ 1 NICOLA, José de; TERRA, Ernani. 1.001 Dúvidas de Português. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 231.
quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Que ou Na qual?

1) Um leitor envia a seguinte mensagem: "Caro professor, vi a seguinte construção em um julgado do STJ: '[...] O prosseguimento da execução fiscal, ou de execução trabalhista que na qual a União Federal tenha créditos, e eventuais embargos, na forma do art. 6º, § 7º, da lei 11.101/2005, deverá se dar perante o juízo Federal ou do trabalho competente [...]' (AgInt no CC 156841/MT). Minha dúvida reside na correção quanto ao uso do 'que' antes da expressão 'na qual'". 2) Vamos destacar e simplificar o trecho, preservando o que interessa ao raciocínio: "O prosseguimento da execução fiscal [...] que na qual a União Federal tenha créditos...". 3) Ora, no local apontado pelo leitor, há duas possibilidades de utilização do pronome relativo, a saber: (i) "O prosseguimento da execução fiscal [...] em que a União Federal tenha créditos..." (forma correta); (ii) "O prosseguimento da execução fiscal [...] na qual a União Federal tenha créditos..." (forma correta). 4) Não é possível, todavia, utilizar apenas o que: "O prosseguimento da execução fiscal [...] que a União Federal tenha créditos..." (forma errada). Também não é possível empregar apenas o qual: "O prosseguimento da execução fiscal [...] a qual a União Federal tenha créditos..." (forma errada). Em realidade, quem tem créditos, tem créditos em algum lugar. Bem por isso, a preposição em (ou na, que é em + a) é obrigatória, e sua ausência configura erro de estruturação sintática. 5) No caso da consulta, parece ter havido um equívoco de revisão no texto: apontou-se um vocábulo que indevido e se continuou com a expressão correta na qual, mas o redator se esqueceu de deletar o que.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Que ou De que?

1) Um leitor pede que se comente um vício comum entre jornalistas e membros do Congresso (acrescente-se que também nos meios forenses), que é o uso indiscriminado do de que em objetos diretos, como "eu penso de que". 2) Vejam-se os seguintes exemplos: (a) "Eu noto seu semblante triste"; (b) "Eu imagino uma história complicada"; (c) "E declaro minha opinião". 3) É perceptível que os verbos notar, imaginar e declarar são transitivos diretos, de modo que pedem complementos sem preposição, de modo que não é normal que alguém erre os exemplos, dizendo-os do seguinte modo: (a) "Eu noto do seu semblante triste"; (b) "Eu imagino de uma história complicada"; (c) "E declaro de minha opinião". Não faz o mínimo sentido pensar em expressar-se desse modo. 4) Pois bem. Imaginem-se, na sequência, os seguintes exemplos, já mais complexos, em que tais objetos diretos sejam transformados em orações que desempenhem a mesma função sintática de objetos diretos: (a) "Eu notei que seu semblante estava triste"; (b) "Eu imaginei que haveria por trás uma história complicada"; (c) "Eu declaro que você está alterado". 5) Nesses casos, muito embora o complemento desses verbos seja uma oração inteira, nem por isso eles deixam de ser transitivos diretos. Por isso continuam sendo construídos sem preposição, razão pela qual estão errados os seguintes exemplos: (a) "Eu notei de que seu semblante estava triste"; (b) "Eu imaginei de que haveria por trás uma história complicada"; (c) "Eu declaro de que você está alterado". 6) Mas é preciso observar que esse acréscimo da preposição de com verbos transitivos diretos, embora errado, é bastante comum em discursos que primam mais pelo tom de voz e pela pompa do que pelo conteúdo e pela correção do vernáculo. Por isso é preciso corrigi-los. 7) Para tanto, vale a pena trazer aqui a precisa observação de Eliasar Rosa para essa situação: "Há uma forma de errar muito curiosa nas sustentações orais, ou em discursos forenses, ou parlamentares. Consiste ela em usar-se a preposição de com verbos que não a exigem. Exemplos: 'O Dr. Promotor afirmou de que o réu matou por motivo fútil; entretanto a defesa vai demonstrar de que isto não é verdade, pois o que está provado, nos autos, é de que o réu matou impelido por relevante valor social...' Ora, os verbos afirmar, demonstrar, provar não se constroem com a preposição de. Logo o certo seria: 'O Dr. Promotor afirmou que...; entretanto a defesa demonstrará que..., pois está provado que...'".1 __________ 1 ROSA. Eliasar. Os Erros Mais Comuns nas Petições. 9. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S/A, 1993, p. 54-55.
quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Prolação ou prolatação?

1) Um leitor quer que se esclareça qual a forma correta: prolação ou prolatação de sentença. 2) Pode-se afirmar, em termos bem práticos, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa é, por assim dizer, uma espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia oficial. 3) Também conhecido pela sigla VOLP, seu objetivo é reconhecer a existência e consolidar a grafia dos vocábulos, além de classificá-los pelo gênero (masculino ou feminino) e categoria morfológica (substantivo, adjetivo...). 4) Difere dos dicionários convencionais, por não explicar usualmente o significado dos termos que registra. 5) É elaborado pela Academia Brasileira de Letras, que tem a delegação e a responsabilidade legal de editá-lo, desde a vetusta Lei Eduardo Ramos, de nº 726, de 8 de dezembro de 1900. 6) Oportuno é reiterar que, incumbido por lei específica para sua confecção, quem o elabora goza de autoridade para, nesse campo, dizer o Direito, motivo por que, ao consultá-lo, legem habemus e devemos prestar-lhe obediência, como devemos fazer com respeito aos demais diplomas legais. 7) Qualquer discussão ou eventual divergência entre o VOLP e os dicionaristas há de ficar para o plano da ciência, não consistindo, todavia, em válvula que permita o descumprimento de suas determinações. E isso quer significar que, nas divergências entre os estudiosos e dicionaristas de um lado e o VOLP de outro, deve prevalecer o que este último afirma. 8) Em comunhão com tal pensamento, para José de Nicola e Ernani Terra, esse vocabulário "é a palavra oficial sobre a ortografia das palavras da língua portuguesa no Brasil"1, não se podendo olvidar que também é a palavra oficial no que concerne à própria existência dos vocábulos em nosso idioma. 9) Com respeito à dúvida trazida pelo leitor, uma consulta ao site da ABL mostra que o VOLP registra prolação, mas não prolatação. E isso faz concluir que apenas o primeiro vocábulo existe em nosso idioma, mas não o segundo. Seu sentido é o ato de proferir, no caso, uma sentença ou despacho em processo judicial. __________ 1 NICOLA, José de; TERRA, Ernani. 1.001 Dúvidas de Português. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 231.
1) Um leitor indaga, em síntese, qual a forma correta: "prebiótico ou pré-biótico?" 2) O que se vai fazer aqui, mais uma vez, é, em última análise, lançar um roteiro de como proceder em situações como esta, em que se quer saber se o vocábulo existe ou não em nosso idioma. E a ideia é deixar o leitor autônomo, autossuficiente e capacitado para resolver questões dessa natureza por si próprio. 3) E, assim, quando se quer saber se um determinado vocábulo existe ou não em nosso idioma, o primeiro passo é lembrar que, entre nós, a Academia Brasileira de Letras é o órgão incumbido, desde a edição da lei 726/1900, de definir a existência, a grafia oficial, o gênero e as peculiaridades dos vocábulos em nosso idioma. 4) E a ABL, para atender a essa incumbência legal, o faz oficialmente pela edição, de tempos em tempos, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Mais modernamente, ela também tem disponibilizado, em seu site pela internet, o rol dessas palavras e expressões oficialmente existentes, bem como tem registrado as demais peculiaridades dos vocábulos.1 5) Sintetize-se, então, que o primeiro passo para solucionar o desafio é consultar o VOLP, a fim de saber se o vocábulo efetivamente existe na língua portuguesa. Lembre-se, nesse campo, que a última edição física disponível do VOLP pode estar bem desatualizada. Em seguida, como segundo passo, no Google, busque-se por Academia Brasileira de Letras, ou simplesmente ABL. Na sequência, clique em Busca no Vocabulário e digite o vocábulo pretendido. 6) No caso, uma consulta à edição eletrônica do VOLP vai comprovar que, atualmente, ambas as formas são aceitas em vernáculo: prebiótico e pré-biótico. E, com isso, está resolvida a questão. 7) Um alerta adicional precisa ser feito a esta altura: nessa tarefa de saber se o vocábulo existe ou não em português, não confie nos dicionários. Os estudiosos da língua e os dicionaristas, sem sombra de dúvida, prestam relevantes serviços ao vernáculo. Não são eles, porém, as autoridades para dizerem, com valor oficial, se uma palavra existe ou não no idioma, bem como qual seja sua grafia, suas peculiaridades, ou mesmo sua correção. Essa atribuição cabe, com exclusividade, à Academia Brasileira de Letras, de modo que, na divergência entre os gramáticos, filólogos e dicionaristas de um lado, e o VOLP de outro, há de prevalecer, nesse campo, o que registra este último. __________ 1 Mais recentemente, a ABL tem tomado duas providências interessantes, para as quais o leitor deve estar atento, a fim de não incorrer em deslizes gramaticais: a primeira, a Academia não mais tem editado fisicamente o VOLP, mas apenas tem disponibilizado as novas edições por aplicativos específicos; a segunda, tem ela atualizado sua lista de novos vocábulos à medida que sua Comissão de Lexicologia e Lexicografia os aprova como novos integrantes do idioma, e não necessariamente em bloco e de tempos e tempos. Assim, na dúvida sobre a existência de qualquer palavra, é um bom hábito consultar com frequência a listagem eletrônica respectiva.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Primeiros documentos oficiais em português

1) Um leitor envia a seguinte mensagem: "Sou professor de Português iniciante. Em sala, eu falava da importância de estudar Gramática, quando um aluno me surpreendeu com a seguinte pergunta: Como eram emitidos os documentos oficiais no período do português fonético? Fiquei desarmado. Mas então: usavam um português despadronizado? Recorriam ao latim? Como faziam?" 2) Para nivelar as informações históricas necessárias acerca das origens do português, faça-se a seguinte síntese: (i) a língua portuguesa, como diversas outras, teve origem no latim vulgar, que era o idioma oficial de Roma levado pelos soldados para as áreas conquistadas pelo Império Romano; (ii) com as alterações havidas no falar das diversas regiões do império, começaram a surgir, a partir do século V, as outras línguas românicas, a saber, o francês, o espanhol, o italiano, o sardo, o provençal, o rético, o franco-provençal, o dálmata e o romeno; (iii) no século XIII, surgiu o galego-português na Espanha e em Portugal; (iv) entre o século XIII e o início do século XVI, nasceu o português arcaico em terras lusitanas; (v) depois desse tempo, veio, então, o português moderno, que teve em Camões o grande responsável por sua uniformização. 3) Ora, não importando se o português ainda era rudimentar ou se já era mais avançado em termos de evolução, o certo é que, ao longo de todo esse tempo, sempre houve uma escrita que correspondeu à fala do tempo respectivo. Desse modo, não se pode dizer de um português falado (ou fonético), que não encontrasse correspondência em um português escrito, certo como é que a fala e a escrita sempre andaram em paralelo, não importando o estádio de evolução do idioma. 4) Para atestar essa afirmação, importa ver que, já nos primórdios da língua, havia o Trovadorismo, uma tendência cultural que se estende de 1189 (ou 1198) até 1434. Surgiu possivelmente na França e se estendeu a outros países, dentre os quais Portugal, entre os séculos XI e XII. E em Portugal foram escritas - repita-se, foram escritas - inúmeras cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer, as quais se encontram preservadas até os dias de hoje. Vale ressaltar: não se tratava de uma língua falada, que não correspondesse a uma língua escrita, mas tais manifestações culturais encontravam registros físicos, que não se limitavam a uma tradição oral. 5) Quanto aos documentos oficiais, não apenas em Portugal, mas em toda a Europa, normalmente eram escritos em latim, e só a partir do reinado de Dom Dinis, que instituiu a língua portuguesa como o idioma oficial da corte, foi que os documentos passaram a ser redigidos em português. Ou seja: apenas em 1290 Dom Dinis declarou o galego-português como língua oficial do Reino de Portugal, e foi quando, por consequência, seu uso foi estendido às fórmulas da escrita notarial e aos documentos oficiais. 6) Em língua e em terras lusitanas, porém, pouco antes disso, o primeiro documento escrito em português data de pouco mais de 800 anos. Trata-se do testamento de Dom Afonso II, de 1214, hoje depositado na Torre do Tombo, em Lisboa, o qual assim se iniciava: "En o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal. seendo sano e saluo temente o dia de mia morte a saude de mia alma. e a proe de mia molier raina dona Orraca e de meus filios e de meus uassalos.". Atualizando para o português de hoje: "Em nome de Deus. Eu, rei D. Afonso, pela graça de Deus rei de Portugal, estando são e salvo, temendo o dia da minha morte, para a salvação da minha alma e para proveito de minha mulher, a rainha D. Orraca e de meus filhos e de meus vassalos.". 7) Com essas considerações, torna-se, de modo específico, à dúvida do leitor, e sobre ela se pode dizer de modo prático: (i) em Portugal, apenas em 1290, o rei Dom Dinis declarou o galego-português língua oficial do reino; (ii) isso significa que apenas a contar desse ano foi tornado obrigatório o uso desse idioma nos documentos oficiais; (iii) antes, normalmente se empregava o latim vulgar para essa finalidade; (iv) mesmo não sendo obrigatório o emprego do português em documentos oficiais, todavia, tem-se conhecimento de que, algumas décadas antes, já se lavrava um primeiro documento importante em português, e isso em 1214; (v) diga-se, além disso, que, assim como a língua estava em um estádio bastante rudimentar a essa época, também a estruturação gramatical seguia em mesmo passo; (vi) e não havia como exigir mais do que isso, já que a Gramática não inventa, mas estrutura os fatos da língua, considerada esta como situação de fato; (vii) não se há de falar em um português estritamente fonético, sem correspondência com uma língua escrita em tempo algum, já que, em todas as épocas, houve registros escritos do idioma, não importando seu grau de pouca evolução a esse tempo.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Polícia e Notícia - Por que acentuar?

1) Um leitor faz a seguinte afirmação: "Professor, sei que se acentua polícia, que é paroxítona terminada em ditongo". Em continuação, indaga do seguinte modo: "Mas como justificar notícia, que, segundo o dicionário digital, é proparoxítona?" 2) Ora, num primeiro aspecto, quando se divide em sílabas a palavra polícia, podemos fazê-lo do seguinte modo: po-lí-cia. Nesse caso, a junção final dos dois sons vocálicos (ia) em mesma sílaba causa o que se denomina ditongo. E, como, ao pronunciar o ditongo, há mais força no a do que no i, dizemos que o som cresce do primeiro para o segundo som vocálico; e, por isso, damos a ele o nome de ditongo crescente. 3) Além dessa divisão, porém, é também gramaticalmente aceita a seguinte divisão desse vocábulo: po-lí-ci-a. E, quando dois sons vocálicos se encontram desse modo na palavra, mas em sílabas distintas, dizemos que há um hiato. 4) Num segundo aspecto, para efeito de acentuação gráfica, quando temos a divisão po-lí-ci-a, como a sílaba tônica (mais forte) é a antepenúltima da palavra, ela é uma palavra proparoxítona, e todas as proparoxítonas são acentuadas em português. 5) Se, porém, temos a divisão po-lí-cia, podemos afirmar que o que há é uma paroxítona com ditongo crescente na última sílaba. E, para não haver confusão de critérios, há uma regra de acentuação, segundo a qual também será acentuada graficamente toda paroxítona com ditongo crescente na última sílaba. 6) Então, como se verifica, polícia e notícia têm a mesma justificativa para acentuação: (i) pode-se afirmar, por um lado, que ambas são proparoxítonas; (ii) ou então, que ambas são paroxítonas com ditongo crescente na última sílaba. E, com qualquer das justificativas, ambas serão graficamente acentuadas. 7) E o que houve, no caso da dúvida trazida para consulta, foi que o leitor justificou a acentuação de uma das palavras como paroxítona terminada em ditongo; já o dicionário digital considerou a outra como proparoxítona. Mas ambas as justificativas são corretas, e ambos os vocábulos têm acentuação gráfica.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Pois - Pode começar frase?

1) Um leitor indaga se é permitido usar pois no início de períodos. E exemplifica com o seguinte texto: "Contudo, a Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que sua ancestral. Pois se as ideias da Revolução Francesa, como é hoje evidente, duraram mais que o bolchevismo, as consequências práticas de 1917 foram muito maiores e mais duradouras que as de 1789". 2) Antes de enfrentar o desafio proposto pelo leitor, é preciso observar que uma discussão antiga busca saber, num primeiro aspecto, se, com a conjunção pois, a vírgula vem antes, depois, ou antes e depois. 3) Vejam-se os seguintes exemplos: a) "Esconda-se, pois alguém se aproxima"; b) "Era um aluno de caráter; foi, pois, um professor exemplar". 4) Em ambas as orações, pois é uma conjunção, porque une duas orações: no primeiro caso, por ter o significado de porque, é uma conjunção coordenativa explicativa; no segundo caso, tendo como sinônimas logo, portanto, e, assim, é uma conjunção coordenativa conclusiva. 5) Ora, fixe-se, em tese, uma regra geral, com dois aspectos importantes (embora comporte ela diversas observações e exceções): a) o lugar normal de uma conjunção é o início de uma segunda oração; b) como as orações normalmente se separam por vírgulas, é comum que haja vírgula antes da conjunção. 6) Fixada essa ponderação como premissa e voltando a raciocinar com os exemplos acima citados, pode-se dizer que, quando o pois é uma conjunção coordenativa explicativa ("Esconda-se, pois alguém se aproxima"), podem-se extrair as seguintes ilações: a) nesse caso, a conjunção começa a segunda oração; b) como a regra é que as orações sejam separadas por sinal de pontuação, normalmente há uma vírgula ou ponto e vírgula antes do pois; c) como, em continuação, por via de regra, o texto segue em ordem direta (e a regra diz que não há vírgula na ordem direta), usualmente não se põe vírgula após o pois. Exs.: i) "Espere um pouco, pois ele não demora"; ii) "Não tenha medo, pois eu não mordo"; iii) "Fale mais alto, pois eu também quero ouvir". 7) Já quando o pois é uma conjunção coordenativa conclusiva ("Era um aluno de caráter; foi, pois, um professor exemplar"), observações diversas podem ser feitas: a) nesses casos, a regra é que o pois não começa a segunda oração, mas vem posposto a um outro termo dela; b) normalmente já haveria um sinal de pontuação antes desse outro termo, porquanto ele inicia a segunda oração; c) além disso, especificamente quanto ao pois, o certo é que ele se intercala entre outros termos da oração, e, como se dá com as intercalações de um modo geral, deve ela ser marcada por vírgulas antes e depois. Exs.: i) "Tinha dois anos; era, pois, muito pequeno"; ii) "Você foi injusto com o amigo; deve, pois, desculpar-se"; iii) "É um bom filho; será, pois, um bom pai". 8) Voltando, após essas premissas, ao caso da consulta, é preciso dizer que, por conta das questões que surgem nos casos já analisados, acabam por vir outras dúvidas em outras hipóteses que não mantêm relação alguma com o que já foi dito. 9) Diante disso, importa frisar que pois pode ter outros significados e exercer outras funções. Dentre elas, pode ter o conteúdo semântico de uma conjunção coordenativa adversativa, com o significado de mas, porém, contudo, todavia, entretanto: (i) "Você está tranquilo? Pois eu estou na maior ansiedade"1; (ii) "-Estou muito bem de vida! - Pois eu, meu caro, ando na miséria!".2 E, como se vê, nesses casos, não há impedimento algum a que tal vocábulo inicie frases, com sua utilização logo após um ponto. 10) Além disso, também pode iniciar uma frase, quando seu significado for pois então ou ora. Ex.: "Seu companheiro o enganou? Pois rompa com ele!"3 11) E esse último caso é exatamente um exemplo paralelo à dúvida trazida pelo leitor. __________ 1 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 2.246. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 1.663. 3 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 1.663.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Peticionamento - Existe?

1) Um leitor anota que, em consulta ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa disponibilizado no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras, descobriu que nele não se registra a palavra peticionamento, a qual vem sendo amplamente empregada no meio jurídico e até mesmo dá nome ao procedimento obrigatório para qualquer manifestação processual atualmente, por meio do assim chamado "peticionamento eletrônico". E indaga como resolver a questão de referência a tal procedimento, dada a nomenclatura utilizada pelos Tribunais. 2) Num primeiro plano de premissas, pode-se dizer, em termos práticos, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa é uma espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia oficial. 3) Também conhecido pela sigla VOLP, seu objetivo é reconhecer a existência e consolidar a grafia dos vocábulos, além de classificá-los pelo gênero (masculino ou feminino) e categoria morfológica (substantivo, adjetivo...). 4) Difere dos dicionários convencionais, por não explicar usualmente o significado dos termos que registra. 5) É elaborado pela Academia Brasileira de Letras, que tem a delegação e a responsabilidade legal de editá-lo, desde a vetusta Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8 de dezembro de 1900, delegação essa confirmada por diversos outros diplomas legais posteriores. 6) Finalizando as considerações quanto a essa primeira premissa, reitera-se que, incumbido por legislação específica para sua confecção, quem o elabora goza de autoridade para, nesse campo, dizer o Direito, motivo por que, ao consultá-lo, legem habemus e devemos prestar-lhe obediência, como é nossa obrigação também com respeito aos outros diplomas legais. E qualquer discussão ou divergência entre o VOLP e os dicionaristas há de ficar para o plano da ciência, não consistindo, todavia, em válvula que permita o descumprimento de suas determinações. 7) Dizendo de outro modo, é preciso realçar que os estudiosos da língua e os dicionaristas, sem sombra de dúvida, prestam relevantes serviços ao vernáculo. Não são eles, porém, as autoridades para dizer, com valor oficial, sobre a existência ou não de algum vocábulo em nosso idioma, bem como sobre sua grafia e suas peculiaridades, ou mesmo sobre sua correção no idioma. Essa atribuição cabe, com exclusividade, à Academia Brasileira de Letras, de modo que, na divergência entre os gramáticos, filólogos e dicionaristas de um lado, e o VOLP de outro, há de prevalecer, nesse campo, o que registra este último. 8) Num segundo plano no campo das premissas, é preciso atentar ao que seja um neologismo. Napoleão Mendes de Almeida o vê consistindo "no emprego de palavras novas, criadas pela ciência, por organizações modernas (telégrafo, autódromo, astronauta, telex, xerox) ou de palavras antigas tomadas em sentido novo (computador, satélite)". 9) A dupla exigência para formação do neologismo (estruturação adequada em nosso idioma + ausência de sinônimo perfeito em nossa língua) encontra-se em diversos estudiosos, além de expressa em lição do mesmo Napoleão Mendes de Almeida: "Para que se justifique, o neologismo deve, antes de tudo, ser necessário e, depois, formado de acordo com o gênio da língua. Não sendo conveniente nem corretamente formado, o neologismo passa a ser barbarismo".1 10) Exatamente por causa dessa dupla exigência para a formação de um neologismo - estruturação adequada no idioma + ausência de sinônimo - foi que, anos atrás, apesar da defesa de alguns gramáticos, acabou sendo condenado o emprego da palavra imexível, feito por um ex-ministro. Por um lado, sua formação estava integralmente de acordo com as regras de nossa língua, quer quanto ao prefixo, quer quanto ao sufixo utilizados. Deu-se, porém, que já havia no idioma sinônimos perfeitos para o vocábulo, representados pelas palavras intangível e intocável. A demora ou recusa, aliás, quanto à inserção de novos vocábulos em nosso idioma, com frequência esbarra exatamente nessa desnecessidade, quando há palavra que corresponda com perfeição a seu significado, o que parece acontecer atualmente com expertise (experiência, perícia, preparo) e performance (desempenho). 11) Quanto à excessiva aversão a que se incorporem palavras novas ao nosso léxico, é de se meditar nas palavras judiciosas de Júlio Nogueira, o qual, então, falava especificamente do francês: "Acaso a nossa língua pode apresentar palavras tiradas dos próprios celeiros para exprimirem todas as ideias concernentes à arte da navegação, da guerra, das modas, do esporte e tantas outras? Não sejamos, pois, intolerantes e, principalmente, parciais como nos temos revelado em desfavor das contribuições que recebemos desde tempos remotos de uma das mais cultas línguas do universo, senão a mais culta".2 12) Também não se olvide a lição de José Oiticica: "Se o neologismo necessário é bem feito, enriquece a língua, aumentando-lhe o poder de expressão e a maleabilidade; não assim o neologismo descabido, capaz de usurpar as funções de boas palavras ou construções clássicas. Pior ainda o vezo das novidades léxicas e sintáticas".3 13) Com base nessas duas premissas, passa-se ao raciocínio acerca da dúvida trazida pelo leitor: (i) é certo que o vocábulo peticionamento não é registrado pelo VOLP, o que, em princípio, demonstra que ele não existe oficialmente em nosso idioma; (ii) antes de condená-lo, porém, deve-se ver se ele se ajusta aos requisitos normalmente exigidos para permitir seu uso na condição de um neologismo; (iii) num primeiro aspecto, pode-se dizer que tem ele uma estruturação adequada em nosso idioma, já que, advindo de peticionar e tendo como cognato peticionário (vocábulos esses regularmente constantes do VOLP), é formado nos mesmos moldes de tantos outros substantivos de estruturação similar, como abafamento, branqueamento, descontentamento, enfrentamento, pronunciamento; (iv) num segundo aspecto, uma atenta análise faz concluir que ele preenche o requisito de ausência de sinônimo em nossa língua; (v) em realidade, para o fim do que se indaga na dúvida do leitor, peticionamento é o ato de peticionar, de apresentar formalmente uma petição em autos de processo judicial; (vi) e, para portar esse conteúdo semântico, não servem os vocábulos normalmente dados como sinônimos em tal situação, os quais têm sentido aproximado, mas não totalmente substitutivo; (vii) analisando apenas os verbos mais chegados com significação semelhante, vê-se que, por um lado, tecnicamente falando em termos processuais, peticionar é algo mais e/ou particularmente diverso de expor, expressar, exprimir ou manifestar; (viii) por outro lado, peticionar pode abranger outras funções além de exigir, pedir, reclamar, requerer, rogar, solicitar ou suplicar. 14) E, assim, voltando à consideração direta da dúvida do leitor, podem-se fazer as seguintes ponderações: (i) por um lado, é certo que o VOLP não registra o vocábulo peticionamento, e este, assim, não existe oficialmente em nosso idioma; (ii) por outro lado, preenche tal palavra claramente a dupla exigência para a formação do neologismo em nossa língua (estruturação adequada em nosso idioma + necessidade de seu emprego ante a ausência de sinônimo perfeito em nossa língua); (iii) sendo assim, pode perfeitamente ser empregado peticionamento em nosso idioma na condição de real neologismo e para os fins pretendidos na expressão técnica peticionamento eletrônico; (iv) e o leitor pode crer que, num futuro não distante, a ABL vai inserir tal palavra oficialmente em nosso idioma, registrando-a normalmente no VOLP. __________ 1 ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981, p. 208. 2 NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959, p. 53. 3 OITICICA, José. Manual de Estilo. 7. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1954, 33-34.
quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Para se manifestar ou Para manifestar-se?

1) Uma leitora indaga qual das duas formas é gramaticalmente correta: (a) "Intime-se a parte autora para se manifestar no prazo de..."; (b) "Intime-se a parte autora para manifestar-se no prazo de...". E pergunta adicionalmente se seria correta a forma manifestar-se-á. 2) Fixe-se, para conceituar, que, quando o pronome pessoal oblíquo átono se põe antes do verbo, diz-se que há próclise: "O advogado se atrasou"; já quando tal pronome se posta depois do verbo, diz-se que há ênclise: "O advogado atrasou-se". 3) No caso dos exemplos inicialmente dados, uma análise técnica revela que o leitor quer saber, em última análise, como se coloca o pronome, quando uma preposição (no caso para) precede um verbo no infinitivo (no caso manifestar): em próclise ou em ênclise? 4) Ora, para os verbos no infinitivo, existe, por um lado, a lição de Cândido de Figueiredo de que "as preposições pertencem à categoria das partículas que influem geralmente na colocação dos pronomes pessoais atônicos, atraindo-os".1 5) Exemplos colhidos pelo mencionado autor em autorizados escritores de nosso idioma, entretanto, revelam que, quando se tem um infinitivo precedido de preposição, a colocação do pronome átono, em última análise, não se faz em próclise necessária, mas constitui caso de colocação facultativa, a saber, antes do verbo (em próclise) ou depois dele (em ênclise). Exs.: a) "Até chegou a me dar casa..." (Machado de Assis); b) "... obriga o procurador a respeitar-lhe as cláusulas" (Rui Barbosa); c) "... era bastante para sacudir-me da Tijuca" (Machado de Assis); d) "Chamou-me um escravo para me servir o doce" (Machado de Assis); e) "Ficou Maria Henriqueta livre por se ver livre do suborno da mãe" (Camilo Castelo Branco); f) "Senhor, morro por unir-me convosco" (Padre Manuel Bernardes); g) "Gastei pouco tempo em dizer-lhe..." (Machado de Assis); h) "... não faltaria Deus em lhe dar um bom dia" (Padre Antônio Vieira). 6) Assim, fixada a regra de que o infinitivo precedido de preposição permite a colocação facultativa do pronome átono em próclise ou em ênclise, pode-se dizer, quanto à indagação que motivou estas considerações, que estão corretas ambas as formas trazidas pelos exemplos dados: "Intime-se a parte autora para se manifestar no prazo de..."; (b) "Intime-se a parte autora para manifestar-se no prazo de...". 7) Quanto ao terceiro exemplo trazido pela consulta, o que se vê é que ele não se encaixa na dúvida trazida, pois, afinal, não é possível dizer-se corretamente "Intime-se a parte autora para manifestar-se-á...". 8) Mesmo assim, para que o leitor não fique sem essa parte da resposta, vê-se que o raciocínio precisa passar por um outro caminho: (i) o verbo empregado pela consulta está no futuro (manifestará); (ii) e o futuro não admite ênclise; (iii) ou seja, quando se diz ênclise para os demais tempos, deve-se pensar em mesóclise para o futuro (manifestar-se-á); (iv) com esse raciocínio, faz-se uma ligeira adaptação; (v) por um lado, para os demais casos, é facultativo o emprego da próclise ou da ênclise; (vi) já com o futuro, é facultativo o emprego da próclise ou da mesóclise; (vii) com o futuro, porém, está proibido o uso da ênclise. 9. Com esse raciocínio, veja-se o que está correto ou não nos seguintes exemplos: (i) "A parte autora se manifestou..." (forma correta); (ii) "A parte autora manifestou-se..." (forma correta); (iii) "A parte autora se manifestará..." (forma correta); (iv) "A parte autora manifestar-se-á..." (forma correta); (v) "A parte autora manifestará-se..." (forma errada). __________ 1 FIGUEIREDO, Cândido de. O Problema da Colocação de Pronomes. 6. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1937, p. 320.
quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Ou - E se um dos núcleos do sujeito for plural?

1) Um leitor, atento à questão de núcleos de sujeito unidos pela conjunção ou, traz a seguinte indagação: "E se a conjunção ou, indicando exclusão mútua, unir dois núcleos do sujeito, um no singular e outro no plural, como fica a concordância do verbo?" 2) Ora, costuma-se afirmar que, quando os elementos do sujeito vêm ligados pela conjunção ou, com ideia de exclusão, o verbo fica no singular. Exs.: a) "Pedro ou Paulo casará com Maria"; b) "A União, o Estado, ou o Município, oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não tenha o destino, para que se desapropriou" (CC/1916, art. 1.150). 3) Se, porém, não há a ideia de exclusão, mas sim de concomitância, de rigor é a concordância do verbo no plural. Ex.: "Pedro ou Paulo comparecerão à audiência". 4) Ao se pensar em tal regra com o ou indicando exclusão, entretanto, imaginam-se normalmente ambos os núcleos do sujeito no singular. O leitor, todavia, indaga como fica a concordância, em caso da ideia de exclusão, mas na hipótese em que um dos núcleos está no singular e o outro está no plural. 5) Em vez de se afirmar, como regra, que, em tal caso, o verbo fica no singular, é mais preciso dizer com Evanildo Bechara que, quando os núcleos do sujeito se unem pela conjunção ou e um de tais núcleos está no singular e o outro no plural, o verbo concorda com o núcleo que está mais próximo. Ex.: "Cantares é o nome que o autor ou autores do Cancioneiro chamado do Colégio dos Nobres dão a cada um dos poemetos...".1 6) De Domingos Paschoal Cegalla vem idêntica lição e exemplo, mesmo com o sujeito anteposto ao verbo: "O ladrão ou os ladrões não deixaram nenhum vestígio".2 7) Resumindo para o leitor: quando se está diante da conjunção ou que une núcleos do sujeito um no singular e outro no plural, o verbo concorda com o núcleo que estiver mais próximo, razão pela qual se propõem, adicionalmente, duas variáveis dos exemplos anteriores, ambos igualmente corretos: (i) "Cantares é o nome que dá o autor ou autores do Cancioneiro chamado do Colégio dos Nobres a cada um dos poemetos..."; (ii) "Não deixou o ladrão ou os ladrões nenhum vestígio". __________ 1 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974, p. 305. 2 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 302.
quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Obséquio e subsídio

1) Um leitor traz interessante questão sobre obséquio e subsídio: não lhe parece certo exigir uma única pronúncia para uma palavra, quando outra é muito usual. Por acaso - diz ele - não pronunciamos em São Paulo uma espécie de 'gi' em vez de 'de', uma espécie de 'chi' em vez de 'te'? Se fosse obrigatório sempre refletir na fala a escrita, diríamos 'obcéquio' em vez de 'obzéquio', como se admite correto para obséquio. 2) Ora, a fala do português (assim como de qualquer idioma) não é uniforme, quer quanto à entonação da frase, quer mesmo quanto à pronúncia dos vocábulos. Por isso, numa roda de representantes de todas as regiões de nosso País, facilmente se distinguirá alguém da região nordeste ao se lhe pedir que diga poder e academia; também se reconhecerá um sulista ou um paulistano tradicional apenas por pronunciar leite quente; um paranaense se condenará ao dizer titia; e um interiorano de São Paulo será identificado sem maior dificuldade, apenas por pronunciar porta aberta. 3) É o que se denomina sotaque, que é a pronúncia característica de uma região ou de um país. Isso, contudo, é bem diverso de pronunciar de modo correto os vocábulos na conformidade com as regras do idioma. 4) Considerando as dúvidas trazidas pelo leitor e começando pela palavra obséquio, pode-se dizer que, na Gramática tradicional, costuma-se ensinar que a regra é que o s apenas tem som de z entre duas vogais, mas permanece com o som de s entre uma consoante e uma vogal. 5) E também se ensina que a exceção a essa regra fica para o prefixo trans, quando se une a vocábulo iniciado por vogal, situação em que o s adquire som de z: transamazônico, transeunte, transitório, transoceânico. 6) Mesmo para o prefixo trans, porém, é preciso cuidado, porque, se ele se une a palavra já começada por s, a pronúncia resultante é de s, e não de z, independentemente dos aspectos gráficos das palavras: transecular (trans+secular), transiberiano (trans+siberiano), transubstanciação (trans+substanciação). 7) Apesar de a regra ser exatamente a exposta nas considerações anteriores, ocorre, porém, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, no site da Academia Brasileira de Letras, ao registrar o vocábulo obséquio, traz, entre parênteses, a pronúncia com z, e não com s), o que constitui uma segunda exceção à referida regra. A pronúncia oficial desse vocábulo, portanto, é obzéquio, e não obcéquio. 8) Já para subsídio, o site da ABL registra entre parênteses a pronúncia si. Sua pronúncia oficial, portanto, é subcídio. 9) Com esse quadro, nunca é demais lembrar que a autoridade para listar as palavras oficialmente existentes em nosso léxico, bem como sua grafia e sua pronúncia, está com o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, editado pela Academia Brasileira de Letras, órgão esse que tem a responsabilidade legal de controlar nosso vocabulário existente, em cumprimento à velha Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8/12/1900, bem como em obediência a diversos diplomas confirmadores posteriormente editados. 10) E, assim, se o VOLP determina um modo de pronunciar, esse há de ser tido como o oficial e legal, de modo que qualquer polêmica que se queira travar fica no campo da discussão científica. É o mesmo, aliás, que se dá com qualquer lei: pode-se discutir sua necessidade, sua adequação e diversos outros aspectos; mas a ela se deve prestar obediência, a menos que seja inconstitucional. Como se vê, não se trata de mera questão de sotaque, mas de pronúncia efetiva, que independe de outros aspectos. 11) Apenas para ilustrar em mesma esteira, são efetivos erros em nosso idioma, e não apenas questão de sotaque ou pronúncia, os seguintes vocábulos: púdico, rúbrica, ruim (ú). Diga-se e escreva-se corretamente: pudico (i), rubrica (i), ruim (i).
quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Lei ou Lei federal?

1) Um leitor traz vários exemplos: Lei federal 5.869/73, Lei estadual 6.789/2014, Lei municipal 789, Decreto federal 589/98, Decreto estadual 898/89, Instrução Normativa 78/2009, Medida Provisória 587/2002. E indaga sobre a obrigatoriedade desses adjetivos na identificação da lei e qual seria essa norma. Esclarece, em seguida, que muitas autoridades referem apenas o número da lei e o ano, sem mencionar a esfera e o órgão. E questiona se a ausência do adjetivo pode ser considerada um erro. 2) Diga-se, de início, que o art. 59, caput, da Constituição Federal de 1988, ao tratar do processo legislativo, especificou as modalidades de diplomas legais, ao discriminar que este "compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções". 3) E seu parágrafo único assim complementou, em termos práticos e de viabilização da determinação referida: "Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis". 4) Ora, para cumprir essa finalidade determinada pelo parágrafo único, foi editada a Lei complementar 95/1998, que dispõe sobre "a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona". 5) E, conforme seu art. 4º, a epígrafe "será formada pelo título designativo da espécie normativa, pelo número respectivo e pelo ano de promulgação". Assim, se a lei é complementar, ordinária ou delegada, nada impede que haja tal especificação. Como, todavia, as leis ordinárias são a regra, normalmente não há tal especificação para elas. Todavia, quando se fala em lei complementar, não é costume omitir a junção do mencionado adjetivo. 6) A indicação do órgão ou da esfera de poder em que é editada uma lei fica por conta do art. 6º da Lei Complementar 95/1998: "O preâmbulo indicará o órgão ou instituição competente para a prática do ato e sua base legal". Por isso é que, na própria Lei Complementar 95/1988, se esclarece no preâmbulo: "O PRESIDENTE DA REPÚBLICA  Faço saber  que  o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei Complementar". 7) Como não é difícil verificar, a esfera de poder em que é editada uma lei não faz parte de sua denominação ou especificação. Desse modo, como regra, não há necessidade de dizer lei federal, lei estadual ou lei municipal. Casos há, todavia, em que tal especificação se faz necessária para a compreensão do contexto em que se trava o debate, ou mesmo para enfatizar a esfera da discussão e a importância da distinção. Apenas para exemplificar: "A Lei municipal 320/2002 obviamente não pode sobrepor-se ao que determina a Lei federal 238/2001". E, em tal caso, impropriedade alguma há em expressar-se desse modo.
quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Jus sanguinis ou jure sanguinis?

1) Um leitor indaga: se o latim admite tanto o jus quanto o jure, o brocardo mais adequado à expressão "direito de/pelo/em razão do sangue" é jus sanguinis ou jure sanguinis? 2) O leitor traz à baila o polêmico e tormentoso problema de variação das palavras e expressões latinas utilizadas em nosso idioma, para o que não há regramento específico emanado dos órgãos competentes, de modo que o que se tenta aqui é solucionar a questão por um raciocínio cientificamente correto, com o acompanhamento do bom-senso que deve nortear soluções dessa natureza. 3) Esclareça-se, desde logo, que, no latim, as palavras, além do gênero (masculino, feminino e neutro) e número (singular e plural), também têm os casos (o que significa que, conforme a função sintática, a palavra deve ir para um caso específico). E se anota, em acréscimo, que as terminações dos casos são diferentes para o singular e para o plural. 4) Além disso, deve-se partir do princípio de que palavras e expressões vindas do latim podem-se cristalizar em português de maneiras diversas: a) campus veio na forma do nominativo (caso latino que serve para desempenhar a função sintática de sujeito); b) quorum sedimentou-se aqui na forma do genitivo (caso que serve para exercer a função do antigo complemento restritivo, hoje adjunto adnominal na maioria dos casos); c) a quo veio na forma do ablativo por influência da preposição antecedente (caso que normalmente serve para desempenhar a função de complemento circunstancial, hoje adjunto adverbial); d) ad quem, de igual modo por influência da preposição antecedente, veio no acusativo (que normalmente serve para a função de objeto direto). 5) Como não é difícil compreender, essa cristalização do vocábulo estrangeiro em nosso idioma e seu emprego em estruturas sintáticas vernáculas ocorrem (i) sem preocupação de qual seja sua função sintática na oração em português e (ii) sem vínculo com a estrutura sintática do latim. Exs.: a) "O jus sanguinis serve para embasar determinadas decisões" (sujeito); b) "A decisão exigiu o jus sanguinis como embasamento" (objeto direto); c) "A decisão precisava do jus sanguinis para embasamento" (objeto indireto); d) "A solução é o jus sanguinis" (predicativo do sujeito); e) "A decisão de jus sanguinis é a melhor para esta questão" (adjunto adnominal); f) "A decisão foi dada pelo jus sanguinis" (agente da passiva). 6) Ora, se alguém quer levar em conta essa preocupação de qual seja a função sintática do vocábulo na oração em português e proceder à correspondente adaptação em latim, então os exemplos acima deverão obedecer à função sintática específica e aos respectivos casos em latim, inclusive já considerando a variação para os plurais (o que, como se verá, se mostra um verdadeiro pandemônio). Exs.: a) "O jus sanguinis serve para embasar determinadas decisões" (sujeito); b) "A decisão precisava de juri sanguinis para embasamento" (objeto indireto); c) "A decisão de juris sanguinis é a melhor para esta questão" (adjunto adnominal); d) "A decisão foi dada pelo jure sanguinis" (adjunto adverbial); e) "Os jura sanguinis servem para embasar determinadas decisões" (sujeito); f) "A decisão precisava dos juribus sanguinis para embasamento" (objeto indireto); g) "A decisão dos jurium sanguinis é a melhor para esta questão" (adjunto adnominal). 7) Ante esse quadro, com o devido respeito por aqueles que pensam de modo diverso, a melhor síntese e solução para o emprego das palavras e expressões latinas em nosso idioma, quer no singular, quer no plural, parecem obedecer aos seguintes parâmetros: a) as palavras estrangeiras não devem ter acentos gráficos, já que estes não existiam em latim (caso contrário se deveria escrever sânguinis, que é proparoxítona, e toda proparoxítona deve ser acentuada em português); b) as palavras ou expressões estrangeiras devem ser grafadas em itálico, negrito, com sublinha ou entre aspas, para diferenciar das palavras vernáculas; c) as palavras citadas devem desvincular-se de sua função sintática de origem para efeito de suas flexões em português, seja de gênero (masculino e feminino), seja de número (singular e plural); d) a pluralização em português deve dar-se pela forma tradicional em nosso idioma, a saber, mediante a adição de um s, com eventuais adaptações, como é o caso da mudança de m em ns (essa observação é desnecessária no caso, uma vez que jus já tem s. 8) Respondendo diretamente à indagação do leitor, a expressão deve ser jus sanguinis, tanto no singular, como no plural, já que foi essa a forma com que a expressão se cristalizou em nosso idioma. Seguem idêntico caminho outras expressões similares: jus puniendi, jus soli.
quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Juízo "a quo" e Instância "a qua"?

1) Um leitor envia a seguinte mensagem: "Gostaria de saber se, quando o tribunal faz referência ao Juízo de Primeiro Grau, pode empregar a expressão "instância 'a qua'", como feminino de "Juízo "a quo'". 2) O leitor, em última análise, traz à baila o polêmico e tormentoso problema de variação das palavras e expressões latinas utilizadas em nosso idioma, para o que não há regramento específico emanado dos órgãos competentes, de modo que o que se tenta aqui é solucionar a questão por um raciocínio cientificamente correto, com o acompanhamento do bom-senso que deve nortear soluções dessa natureza. 3) Esclareça-se, desde logo, que, no latim, as palavras, além do gênero (masculino, feminino e neutro) e número (singular e plural), também têm os casos (o que significa que, conforme a função sintática, a palavra deve ir para um caso específico, que tem uma forma própria). E se acrescenta que as terminações dos casos são diferentes para o singular e para o plural. 4) Além disso, deve-se partir do princípio de que palavras e expressões vindas do latim podem-se cristalizar em português de maneiras diversas: a) campus veio na forma do nominativo (caso latino que serve para desempenhar a função sintática de sujeito); b) quorum sedimentou-se aqui na forma do genitivo (caso que serve para exercer a função do antigo complemento restritivo, hoje adjunto adnominal na maioria dos casos); c) a quo veio na forma do ablativo por influência da preposição antecedente (caso que normalmente serve para desempenhar a função de complemento circunstancial, hoje adjunto adverbial); d) ad quem, de igual modo por influência da preposição antecedente, veio no acusativo (que normalmente serve para a função de objeto direto). 5) Como não é de difícil compreensão, essa cristalização do vocábulo estrangeiro em nosso idioma e seu emprego em estruturas sintáticas vernáculas ocorrem (i) sem preocupação de qual seja sua função sintática na oração em português e (ii) sem vínculo com a estrutura sintática do latim; (iii) e se deve observar que, no português, não existe o gênero neutro, que há em latim. 6) Ante esse quadro, se alguém quiser levar em conta a variação do vocábulo latino seguindo os parâmetros de nosso idioma, diversas circunstâncias vão ser tormentosas: (i) judicium (que é juízo em latim) é do gênero neutro, e isso foge ao nosso raciocínio, já que não temos esse gênero em português; (ii) a expressão a quo está no ablativo, e o português não tem os casos, que são próprios daquela língua; (iii) se quisermos usar alterar o gênero (porque o contexto pode dar a entender tratar-se de feminino), também deveremos alterar o caso (conforme seja a função sintática do vocábulo na estrutura). 7)  E, assim, fixem-se três importantes premissas para a expressão da consulta, que significa, em síntese, a instância, o juízo ou tribunal do qual se recorre: a) a quo é o ablativo singular masculino ou neutro do pronome relativo latino qui, quae, quod; b) tal expressão, embora continue latina, cristalizou-se no uso vernáculo desse modo, e em geral vem precedida de um substantivo (normalmente instância, juízo ou tribunal); c) contrapõe-se à expressão ad quem, que aponta o tribunal para o qual se recorre. Ex.: "A competência para analisar o mérito dos recursos, em regra, é do tribunal ad quem, e não do juízo a quo". 8) Para melhor didática, considerem-se, em português, os seguintes exemplos: a) "O tribunal do qual se recorre..."; b) "A instância da qual se recorre..."; c) "Os tribunais dos quais se recorre..."; d) "As instâncias das quais se recorre...". 9) Em todos os exemplos, a estrutura sintática é exatamente a mesma: a) qual é um pronome relativo; b) o pronome relativo, por conceito e comportamento, relaciona-se a um nome anteriormente mencionado e com ele concorda em gênero (masculino ou feminino) e número (singular ou plural), concordância essa que é perceptível quando o pronome é qual, já que o que é invariável; c) assim, se o antecedente é "tribunal", o pronome relativo concorda no masculino singular; d) se, porém, o antecedente é "instâncias", o pronome relativo vai para o feminino plural. 10) Se alguém quiser defender a variabilidade da expressão da consulta no latim, mesmo aqui não se pode esquecer que, por coerência, haverá a flexão não apenas para o feminino, mas também para o plural: a) "... o tribunal a quo..."; b) "... a instância a qua..."; c) "... os tribunais a quibus..."; d) "... as instâncias a quibus...". 11) E se vejam as implicações desse raciocínio: a) um emprego assim exige do usuário do vernáculo uma informação que ele normalmente não tem da língua de origem da expressão; b) ou seja, exige dele conhecimento razoável de latim; c) a par disso, além de não termos o gênero neutro em português, também não há correspondência absoluta de gênero em ambos os idiomas; d) isso quer significar que um vocábulo feminino em latim pode ter vindo para o masculino em português, e vice-versa; e) nesse quadro, variar o antecedente de um pronome relativo em latim por seu antecedente em português pode ser equivocado, ante o fato de que o gênero em latim pode ser outro. 12) Por tudo isso, com o devido respeito pelos que pensam de modo diverso, a melhor solução parece obedecer aos seguintes parâmetros para o emprego de palavras e expressões latinas em português: a) tais palavras e expressões estrangeiras não devem ter acentos gráficos ou hifens, já que estes não existiam na língua de origem; b) devem ser grafadas em itálico, negrito, com sublinha ou entre aspas, como todas as palavras que não pertencem a nosso idioma; c) devem desvincular-se de sua função sintática de origem para efeito de suas flexões em português, quer quanto ao gênero (masculino e feminino), quer quanto ao número (singular e plural); d) devem ser empregadas como vieram sedimentadas para o uso no português, sem variações como as pretendidas na consulta: i) "... o tribunal a quo..."; ii) "... a instância a quo..."; iii) "... os tribunais a quo..."; iv) "... as instâncias a quo...". 13) Qualquer outra solução desrespeita a etimologia, fere os critérios mínimos científicos e marginaliza o próprio bom-senso, além de tornar o emprego em português um tormento adicional gravíssimo para o usuário médio do idioma.
quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Isonomia - É sinônima de igualdade?

1) Um leitor quer saber se isonomia é verdadeiramente palavra sinônima de igualdade. E se os adjetivos igual, isonômico e équo podem ser tidos como sinônimos. 2) Em linhas gerais, pela própria etimologia (syn = conjunto + onymia = nomes), uma palavra sinônima é aquela que pertence a um mesmo conjunto semântico, ou que tem significação idêntica ou aproximada de outra. Dizendo com os dicionaristas, é aquela "que tem com outra uma semelhança de significação que permite que uma seja escolhida pela outra em alguns contextos, sem alterar a significação literal da sentença".1  Dizendo de outro modo, "é a palavra ou locução que tem a mesma ou quase a mesma significação que outra".2 3) A partir dos próprios conceitos alinhados, uma diferenciação precisa ser feita: há os sinônimos absolutos (ou perfeitos) e os sinônimos relativos (ou imperfeitos). Os primeiros são termos de significação praticamente idêntica e, portanto, intercambiáveis, podendo ser substituídos um pelo outro em todo e qualquer contexto (como morrer e falecer, após e depois); já os segundos têm uma relação de sentido muito próxima, abrindo na conceituação a noção de sinonímia, mas não se pode afirmar que haja entre eles real identidade de conteúdo semântico (como casa e lar, feliz e alegre, trabalho e emprego). 4) Veja-se, apenas para ilustrar com mais clareza, que os dicionaristas atribuem à palavra cachaça a extensa sinonímia de mais de 400 palavras em nosso idioma. Uma análise mais acurada dessa lista, todavia, revela que o emprego desses vocábulos depende de diversos critérios, de modo que cada qual acaba por adquirir uma conotação peculiar quando de seu emprego, tudo a depender do prisma de consideração do usuário: se o foco de conceituação se dá pelo plano científico ou leigo; se há intento de ironia ou não; se o nível da conversa é elevado ou plebeu; se o fim é atribuir ao vocábulo um uso ofensivo ou não... 5. Com essas considerações genéricas a título de premissas, passa-se à indagação da consulta. 6. Isonomia (do grego iso = igual + nomia = o que é de lei) tem os seguintes conceitos trazidos pelo Dicionário Houaiss: (i) "estado dos que são governados pelas mesmas leis"; (ii) com especificidade para o campo do Direito, é "o princípio geral do direito segundo o qual todos são iguais perante a lei, não devendo ser feita nenhuma distinção entre pessoas que se encontram em mesma situação".3  As considerações do Dicionário Aurélio apontam para o mesmo sentido. 7) Já igualdade vem assim tratada pelos dicionaristas: (i) "fato de não apresentar diferença quantitativa"; (ii) "fato de não se apresentar diferença de qualidade ou valor, ou de, numa comparação, mostrar-se as mesmas proporções, dimensões, naturezas, aparências, intensidades; uniformidade; paridade, estabilidade"; (iii) "princípio segundo o qual todos os homens são submetidos à lei e gozam dos mesmos direitos e obrigações"4 ; (iv) "qualidade ou estado de igual; paridade"; (v) "uniformidade, identidade"; (vi) "equidade, justiça".5 8) Uma comparação entre as noções trazidas pelos dicionários permite extrair ilações importantes: (i) para isonomia, os dicionaristas se apegam ao conceito técnico-jurídico do vocábulo; (ii) nem mesmo indiretamente há menção a um sentido extrajurídico, para abranger a significação leiga de paridade ou de estabilidade, que tem sido fixada por uma transposição semântica pelos usuários da língua; (iii) já para igualdade, os dicionaristas privilegiam o sentido leigo de uniformidade, paridade ou estabilidade, apenas lançando, ao final, como significação indireta, a noção de princípio que submeteria todos, sem distinção, ao regramento da lei, com os mesmos direitos e obrigações; (iv) e isso faz concluir que, embora estejam num círculo indicativo de uma relação próxima, não se pode afirmar que haja efetiva identidade de sentido entre si, a ponto de se passarem por termos intercambiáveis; (v) são, portanto, sinônimos relativos (ou imperfeitos), e não absolutos (ou perfeitos). 9) Pode-se dizer o mesmo dos adjetivos trazidos pelo leitor em sua consulta. São termos que se relacionam de modo relativo ou imperfeito, de modo que não podem ser classificados como sinônimos absolutos ou perfeitos. E isso vale dizer que os adjetivos por ele trazidos não são termos que possam ser tidos como intercambiáveis. 10) A esta altura, parece importante tecer considerações finais sobre os sinônimos nas peças processuais e forenses: (i) os termos das realidades jurídicas e forenses pertencem à Ciência do Direito, de modo que são portadores de significação fixa e científica; (ii) como em toda e qualquer ciência, o usuário não deve e não pode ter a preocupação de variar o emprego das palavras, a pretexto de inovar na linguagem ou de evitar repetições; (iii) dizendo de outro modo, se há termos técnicos determinados pela legislação, então não há como fugir a seu uso; (iv) assim, não se deve substituir, a pretexto de inovação, petição inicial por exordial, prefacial ou peça vestibular; (iv) de igual modo, se a terminologia correta é Código Penal, Código de Processo Civil, Código Penal Militar e Lei das Sociedades Anônimas, não se há de querer inovar, respectivamente, com estatuto repressivo, estatuto adjetivo civil, ou, o que beira ao ridículo, pergaminho repressivo castrense, ou mesmo diploma do anonimato. __________ 1 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 2.581. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 1.940. 3 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 1.657. 4 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, 1.567. 5 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 1.122.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Inobservar - Existe?

1) Um leitor anota que este autor, em suas colunas, afirma frequentemente que o VOLP é a autoridade incumbida de determinar a existência de vocábulos em nosso idioma. E segue em seu raciocínio para dizer que, em consulta àquele, notou que lá se registra a palavra inobservar. Terceira pessoa, com base em consulta negativa ao Dicionário Aurélio, insiste em que não existe tal verbo. Então indaga se pode empregar tal termo e, em caso positivo, se seu significado é o de "não se verificar" ou de "não se observar". 2) Pode-se dizer, em termos bem práticos, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa é, assim, uma espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia oficial. 3) Também conhecido pela sigla VOLP, seu objetivo é reconhecer a existência e consolidar a grafia dos vocábulos, além de classificá-los pelo gênero (masculino ou feminino) e categoria morfológica (substantivo, adjetivo...). 4) Difere dos dicionários convencionais, por não explicar usualmente o significado dos termos que registra. 5) É elaborado pela Academia Brasileira de Letras, que tem a delegação e a responsabilidade legal de editá-lo, desde a vetusta Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8 de dezembro de 1900. 6) Sempre é oportuno reiterar que, incumbido por lei específica para sua confecção, quem o elabora goza de autoridade para, nesse campo, dizer o Direito, motivo por que, ao consultá-lo, legem habemus e devemos prestar-lhe obediência, como devemos fazer com respeito aos demais diplomas legais. Qualquer discussão ou eventual divergência entre o VOLP e os dicionaristas há de ficar para o plano da ciência, não consistindo, todavia, em válvula que permita o descumprimento de suas determinações 7) Em comunhão com tal pensamento, para José de Nicola e Ernani Terra, esse vocabulário "é a palavra oficial sobre a ortografia das palavras da língua portuguesa no Brasil"1, não se podendo olvidar que também é a palavra oficial no que concerne à própria existência dos vocábulos em nosso idioma. 8) Com respeito à dúvida trazida pelo leitor, uma consulta ao site da ABL mostra que o VOLP registra, sim, inobservar. E isso faz concluir que tal vocábulo existe oficialmente em nosso idioma. Seu conteúdo semântico é o oposto de observar, de modo que coincide com o que o leitor apontou: seu significado é o de "não se verificar" ou de "não se observar". 9) É certo que o Dicionário Aurélio, na edição consultada (quinta, de 2010), não registra o mencionado vocábulo, o que também se dá com o Dicionário Houaiss (1ª edição, 2001). Mas aqui, mais uma vez, é preciso realçar que os estudiosos da língua e os dicionaristas, sem sombra de dúvida, prestam relevantes serviços ao vernáculo. Não são eles, porém, as autoridades para dizerem, com valor oficial, acerca da existência ou não de algum vocábulo em nosso idioma, bem como acerca de sua grafia e de suas peculiaridades, ou mesmo de sua correção no idioma. Essa atribuição cabe, com exclusividade, à Academia Brasileira de Letras, de modo que, na divergência entre os gramáticos, filólogos e dicionaristas de um lado, e o VOLP de outro, há de prevalecer, nesse campo, o que registra este último. __________ 1 NICOLA, José de; TERRA, Ernani. 1.001 Dúvidas de Português. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 231.
quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Gazetar - Existe?

1) Um leitor traz a seguinte dúvida: "A forma verbal gazetar, no sentido de matar aula, é válida? Não a encontrei na maioria dos dicionários de Língua Portuguesa e considerei que essa forma verbal só existe na fala popular, coloquialmente. Porém, uma colega professora encontrou tal verbete no Dicionário da Academia Brasileira de Letras, com este sentido (matar aula) e me disse que, por tal razão, a forma verbal é válida. Estou em dúvida se sigo a orientação da ABL, dos demais dicionários ou do VOLP". 2) Em termos bem práticos, como primeira premissa, pode-se dizer que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa é uma espécie de dicionário que lista as palavras reconhecidas oficialmente como pertencentes à língua portuguesa, bem como lhes fornece a grafia oficial. 3) Também conhecido pela sigla VOLP, seu objetivo é reconhecer a existência e consolidar a grafia dos vocábulos, além de classificá-los pelo gênero (masculino ou feminino) e categoria morfológica (substantivo, adjetivo...). 4) Difere dos dicionários convencionais, por não explicar usualmente o significado dos termos que registra. 5) É elaborado pela Academia Brasileira de Letras, que tem a delegação e a responsabilidade legal de editá-lo, desde a vetusta Lei Eduardo Ramos, de n. 726, de 8 de dezembro de 1900. 6) Oportuno é reiterar que, incumbido por lei específica para sua confecção, quem o elabora goza de autoridade para, nesse campo, dizer o Direito, motivo por que, ao consultá-lo, legem habemus e devemos prestar-lhe obediência, como devemos fazer com respeito aos demais diplomas legais. Qualquer discussão ou divergência há de ficar no plano da ciência, não consistindo, todavia, em válvula que permita o descumprimento de suas determinações. 7) Em comunhão com esse pensamento, José de Nicola e Ernani Terra conceituam esse vocabulário como "a palavra oficial sobre a ortografia das palavras da língua portuguesa no Brasil"1, não se podendo olvidar que também é a palavra oficial no que concerne à própria existência dos vocábulos em nosso idioma. 8) No caso da consulta, noticia o leitor que o vocábulo gazetar consta do VOLP, mas não de alguns dicionários de renome. E indaga que orientação deve seguir. 9)Ora, antes de começar a resposta ao leitor, faça-se uma pequena correção: o verbo registrado pelo VOLP é gazetear, e não gazetar.2  O Dicionário Aurélio também registra gazetear, mas não gazetar, e lhe confere o significado de "faltar às aulas ou ao trabalho para vadiar".3 Em mesma trilha, o Dicionário Houaiss também o registra com idêntico sentido.4  E, contrariamente aos demais, este último, com o mesmo significado, registra, sim, gazetar.5 10) E, ante essa realidade de fato, é importante observar que, por força da autoridade da ABL e do VOLP que ela edita, deve-se esclarecer que os estudiosos da língua e os dicionaristas, sem sombra de dúvida, prestam relevantes serviços ao vernáculo. Não são eles, porém, as autoridades para dizerem, com valor oficial, acerca da existência ou não de algum vocábulo em nosso idioma, bem como acerca de sua grafia e de suas peculiaridades, ou mesmo de sua correção no idioma. 11) A atribuição para dizer oficialmente se um vocábulo existe ou não em nosso idioma cabe, com exclusividade, à Academia Brasileira de Letras, e esta a exerce por via da edição do VOLP. Desse modo, na divergência entre os gramáticos, filólogos e dicionaristas de um lado, e o VOLP de outro, há de prevalecer, nesse campo, o que registra este último com toda a sua autoridade oficial. 12) Com essas observações, volta-se à dúvida do leitor: (i) se o VOLP registra gazetear, e algum dicionarista não o faz, o vocábulo existe em nosso idioma; (ii) se o VOLP não registra gazetar, tal vocábulo não existe em nosso idioma, não importando se algum dicionarista o faz. __________ 1 NICOLA, José de; TERRA, Ernani. 1.001 Dúvidas de Português. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 231. 2 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 2. ed., reimpressão de 1998. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1999, p. 398. 3 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 1.021. 4 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 1.437. 5 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 1.437.
terça-feira, 6 de setembro de 2022

Poça - (ô) ou (ó)?

1) Um redator de jornal eletrônico indaga, em síntese, como se deve pronunciar a palavra poça: com a vogal tônica fechada (ô) ou aberta (ó)? 2) Ora, o que se vai fazer aqui, mais uma vez, é, em última análise, lançar um roteiro de como proceder em situações como esta, em que se quer saber qual a pronúncia correta e oficial de um vocábulo em nosso idioma. E, com esse roteiro até certo ponto alongado, a ideia é deixar o leitor autônomo, autossuficiente e capacitado para resolver questões dessa natureza por si próprio. 3) E, assim, quando se tem em vista uma indagação dessa natureza, o primeiro passo é lembrar que, entre nós, a Academia Brasileira de Letras é o órgão incumbido, desde a edição da Lei 726/1900, de definir, com autoridade oficial, a existência, a grafia oficial, o gênero e as peculiaridades dos vocábulos em nosso idioma. 4) E a ABL, para atender a essa incumbência legal, o faz oficialmente pela edição, de tempos em tempos, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Mais modernamente, ela também tem disponibilizado, em seu site pela internet, o rol dessas palavras e expressões oficialmente existentes, bem como tem registrado as demais peculiaridades dos vocábulos.1 5) Sintetize-se, então, que o primeiro passo para solucionar o desafio é consultar o VOLP, a fim de saber se lá existe algum elemento que possa solucionar a dúvida. Lembre-se, nesse campo, que a última edição física disponível do VOLP pode estar desatualizada. Em seguida, como segundo passo, no Google, busque por Academia Brasileira de Letras, ou simplesmente ABL. Na sequência, clique em Busca no Vocabulário e digite o vocábulo pretendido. 6) No caso prático, uma consulta à edição eletrônica do VOLP vai comprovar que, atualmente, ambas as formas são aceitas em vernáculo, já que o resultado é o seguinte: "poça (ô ou ó)". 7) Um alerta adicional precisa ser feito a esta altura: em tarefa dessa natureza, não confie nos dicionários nem nos gramáticos. Os estudiosos da língua e os dicionaristas, sem sombra de dúvida, prestam relevantes serviços ao vernáculo. Não são eles, porém, as autoridades para dizerem, com valor oficial, se uma palavra existe ou não no idioma, bem como qual seja sua grafia, suas peculiaridades, ou mesmo sua correção. Essa atribuição cabe, com exclusividade, à Academia Brasileira de Letras, de modo que, na divergência entre os gramáticos, filólogos e dicionaristas de um lado, e o VOLP de outro, há de prevalecer, nesse campo, o que registra este último. __________ 1 Mais recentemente, a ABL tem tomado duas providências interessantes, para as quais o leitor deve estar atento, a fim de não incorrer em deslizes gramaticais: a primeira, a Academia não mais tem editado fisicamente o VOLP, mas apenas tem disponibilizado as novas edições por aplicativos específicos; a segunda, tem ela atualizado sua lista de novos vocábulos à medida que sua Comissão de Lexicologia e Lexicografia os aprova como novos integrantes do idioma, e não necessariamente em bloco e de tempos e tempos. Assim, na dúvida sobre a existência de qualquer palavra, é um bom hábito consultar com frequência a listagem eletrônica respectiva.