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ABC do CDC

Direito do Consumidor no dia a dia.

Rizzatto Nunes
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A pessoa jurídica como consumidora - Parte II

Continuo desenvolvendo o artigo que iniciei na semana passada sobre a questão da pessoa jurídica como consumidora. Como coloquei, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros. Conforme também demonstrei, a situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço. Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. Por causa disse, aliás, conclui o artigo na semana passada dizendo que o despachante que adquiriu o laptop para seu uso profissional está protegido pelo CDC. Aliás, complemento os exemplos para lembrar que estão na mesma condição o dinheiro e o crédito obtido no sistema financeiro. Assim, quando uma pessoa jurídica faz um empréstimo num banco a relação é típica de consumo, pois ainda que ela utilize o dinheiro como bem de produção, como este é tanto produto de consumo como de produção, a situação é igual à do exemplo do laptop. Muito bem. Há ainda uma outra norma no CDC que justifica minha teoria para explicar a definição de consumidor na relação de consumo. É a do inciso I do art. 51, especificamente a segunda parte da proposição. Mas, antes de analisá-la, desde já acrescento uma constatação: o caput do art. 2º coloca a pessoa jurídica como consumidora. Ora, afinal o que é que uma pessoa jurídica pode consumir? Pessoa jurídica não come, não bebe, não dorme, não viaja, não lê, não vai ao cinema, não assiste a aulas, não vai a shows, não assiste a filmes, não vê publicidade etc. Logo, para ser consumidora, ela somente poderia consumir produtos e serviços que fossem tecnicamente possíveis e lhe servissem como bens de produção e que fossem, simultaneamente, bens de consumo. Com a análise do inciso I do art. 51 o ciclo de minha explanação se encerra. Vejamos. A disposição normativa da segunda parte do inciso I do art. 51 foi feita exatamente pensando no consumidor pessoa jurídica, que adquire produto ou serviço de consumo para fins de produção. Trata-se de previsão legal a permitir que o fornecedor em circunstâncias especiais justificáveis possa estabelecer cláusula contratual limitando seu dever de indenizar. Leia-se: "Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis".(grifei) Pergunto: por que é que a lei resolveu excetuar do amplo e expresso sistema de responsabilidade civil objetiva, no qual o fornecedor não pode, de maneira alguma, desonerar-se de seu dever de indenizar, exatamente um caso especial de aquisição de produto ou serviço quando o consumidor é pessoa jurídica? Justamente porque sabe que é possível adquirir produto e serviço de consumo para fins de produção. Explico. A regra geral é a do dever de o fornecedor indenizar por vícios e defeitos (arts. 12 a 14 e 18 a 20). Não pode ele, mediante cláusula contratual exonerar-se dessa obrigação, mesmo que seja em parte, por expressa disposição do caput do art. 25, que dispõe, verbis: "Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas Seções anteriores." Logo, essa é a regra geral para todas as relações jurídicas de consumo regulares. Mas a lei resolveu abrir uma exceção (a do citado inciso I do art. 51).  E não foi para os casos comuns, mas apenas os que envolvam o consumidor pessoa jurídica em "situações justificáveis". Quais seriam elas? A exceção legal de permissão para fixação de cláusula contratual limitadora do dever de indenizar pressupõe duas hipóteses para o atingimento de sua finalidade: a) que o tipo de operação de venda e compra de produto ou serviço seja especial, fora do padrão regular de consumo; b) que a qualidade de consumidor-pessoa jurídica, por sua vez, também justifique uma negociação prévia de cláusula contratual limitadora. Para o fornecedor exercer a prerrogativa de negociar a inserção de cláusula contratual limitadora de seu dever de indenizar é necessário que estejam presentes as duas situações previstas nas letras "a" e "b", simultaneamente. Examine-se a letra "a": Não basta que a compra seja fora do padrão para que ele possa incluir a cláusula. Por exemplo, se um consumidor-pessoa física quiser adquirir vinte microcomputadores para distribuir a seus amigos e parentes1, isso não é suficiente para a negociação e inclusão da cláusula. A compra está fora do padrão, mas não está presente o outro requisito. E, quanto à letra "b", o mesmo ocorre com duas alternativas: b.1) Não é suficiente que o consumidor seja pessoa jurídica fazendo uma aquisição regular. Por exemplo, a pessoa jurídica que adquire um microcomputador numa loja de departamentos ou diretamente do fabricante. Essa é uma aquisição comum, que recebe as garantias gerais do sistema de responsabilidade civil instituído no CDC. Não pode o fornecedor limitar sua responsabilidade. b.2) Não é suficiente que a compra seja fora do padrão. É necessário que a pessoa jurídica consumidora receba aconselhamento jurídico para que a cláusula limitadora possa ser negociada e inserida no contrato. Evidente que cada caso terá suas particularidades, na medida em que a norma está utilizando de termos indeterminados, que remetem a situações concretas variáveis. Mas é possível desde já dizer que pessoa jurídica "de porte", para os fins instituídos no inciso I do art. 51, é aquela que tem corpo jurídico próprio ou pode pagar consultor jurídico, que negocie em nome dela a cláusula contratual limitadora. Sem isso, isto é, sem que se estabeleça um equilíbrio prévio para a negociação da cláusula, esta não poderá ser inserida no contrato. Vê-se, pois, que o CDC abraça minha tese no sentido de que há bens de consumo (produtos e serviços) que são adquiridos com o fim de produção, sem que a relação jurídica estabelecida deixe de ser de consumo, tanto que recebe ela o tratamento diferencial da norma do inciso I do art. 51 comentado. Resumindo e concluindo: a) o CDC regula situações em que haja "destinatário final" que adquire produto ou serviço para uso próprio sem finalidade de produção de outros produtos ou serviços; b) regula também situações em que haja "destinatário final" que adquire produto ou serviço com finalidade de produção de outros produtos ou serviços, desde que estes, uma vez adquiridos, sejam oferecidos regularmente no mercado de consumo, independentemente do uso e destino que o adquirente lhes vai dar; c) o CDC não regula situações nas quais, apesar de se poder identificar um "destinatário final", o produto ou serviço é entregue com a finalidade específica de servir de "bem de produção" para outro produto ou serviço e via de regra não está colocado no mercado de consumo como bem de consumo, mas como de produção; o consumidor comum não o adquire. Por via de exceção, contudo, haverá caso em que a aquisição do produto ou serviço típico de produção será feita pelo consumidor, e nessa relação incidirão as regras do CDC. _____ 1 Ou qualquer outro motivo, que é de sua exclusiva esfera privada.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A pessoa jurídica como consumidora - Parte I

Como tenho visto algumas decisões judiciais e, também, posições doutrinárias que afirmam que pessoa jurídica não pode ser consumidora a não ser em situações muito especiais, resolvi voltar ao tema, visando deixar claro aquilo que está estabelecido na Lei, isto é, no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Para facilitar a leitura neste nosso querido espaço e tentar apresentar um panorama completo da questão, escrevo este artigo dividindo-o em  duas partes: uma nesta semana e o complemento na próxima. Farei um resumo do que escrevi em meus livros1. Começo abordando o previsto no caput do art. 2º do CDC: "Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". A Lei não deixa dúvida de que a pessoa jurídica é consumidora. Acontece que a mera interpretação gramatical dos termos da cabeça do artigo não é capaz de resolver os problemas que surgem. Todavia, devemos lançar mão dela, porquanto permitirá a explicitação da maior parte das questões. Diga-se, de início, o que decorre da obviedade da leitura. Consumidor é a pessoa física, a pessoa natural e, também, a pessoa jurídica. Quanto a esta última, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação, fundação etc. A lei emprega o verbo "adquirir", que tem de ser interpretado em seu sentido mais lato, de obter, seja a título oneroso ou gratuito. E não se trata apenas de adquirir, mas também de utilizar o produto ou o serviço, ainda quando quem o utiliza não o tenha adquirido. Isto é, a norma define como consumidor tanto quem efetivamente adquire o produto ou o serviço (ou seja, paga o preço) como aquele que, não o tendo adquirido, utiliza-o ou o consome. Assim, por exemplo, se uma pessoa compra cerveja para oferecer aos amigos numa festa, todos aqueles que a tomarem serão considerados consumidores. A norma fala também em "destinatário final". O uso desse termo facilitará, de um lado, a identificação da figura do consumidor, mas, por outro, trará um problema que tentarei resolver. Evidentemente, se alguém adquire produto não como destinatário final, mas como intermediário do ciclo de produção, não será considerado consumidor. Assim, por exemplo, se uma pessoa - física ou jurídica - adquire roupas para revendê-las, a relação jurídica dessa transação não estará sob a égide da lei 8.078/90. O problema do uso do termo "destinatário final" está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor? E um despachante que adquire num grande supermercado um laptop para desenvolver suas atividades, é considerado consumidor? Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinarei, detalhadamente, cada situação. Não se duvida do fato de que, quando uma pessoa adquire um automóvel numa concessionária, estabelece-se uma típica relação regulada pelo CDC. De um lado, o consumidor; de outro, o fornecedor. Em contrapartida, é evidente que não há relação protegida pelo Código quando a concessionária adquire o automóvel da montadora como intermediária para posterior venda ao consumidor. Nas duas hipóteses acima as situações jurídicas são simples e fáceis de ser entendidas. Numa ponta da relação está o consumidor (relação de consumo). Na outra estão fornecedores (relação de intermediação/distribuição/ comercialização/produção). O CDC regula o primeiro caso; o direito comum, o outro. Mas o que acontece se a concessionária se utiliza do veículo como "destinatária final", por exemplo, entregando-o para seu diretor usar? A resposta a essa questão é fácil: para aquele veículo a concessionária não aparece como fornecedora, mas como consumidora, e a relação está tipicamente protegida pela Lei protecionista (o que será confirmado pela exposição que se segue). Todavia, existem outras situações mais complexas. Quando, por exemplo, a montadora adquire peças para montar o veí­culo, trata-se de situação na qual as regras aplicadas são as do direito comum. São típicas relações entre fornecedores partícipes do ciclo de produção, desde a obtenção dos insumos até a comercialização do produto final no mercado para o consumidor: A visualização da hipótese é simples. Estamos diante de situações cí­clicas da produção, em que no polo final do ciclo aparece alguém adquirindo o produto como "destinatário final". Porém, vou recolocar o exemplo da usina: um fazendeiro resolve transformar-se em usineiro e, para tanto, encomenda uma usina para produção de álcool. Seria esse usineiro "destinatário final" da usina? Denotaria essa relação uma típica situação protegida pelo CDC? A situação parece diversa da anterior, porque, diferentemente da montadora, que envia as peças com o automóvel para o consumidor, na produção do álcool, este vai para o consumidor, mas a usina fica. Contudo, há coisas na montadora que também não vão para o consumidor. Por exemplo, o prédio utilizado para a montagem do veículo. Nesse caso, a montadora é "destinatária final" do prédio e, portanto, consumidora? Mas não são simplesmente a usina e o prédio "bens de produção", e, assim, não se pode querer aplicar ali a lei consumerista? O problema está em que o CDC não fala em bens de produção ou de consumo. Limitou-se a dizer "consumidor" como "destinatário final" e a definir o fornecedor (no seu art. 3º). Há meios, porém, de solucionar a pendência. Antes de tentar responder, analisemos um outro exemplo, o de uma pessoa que pretende constituir-se como despachante. Para isso vai a uma loja e compra um laptop, que utilizará para o exercício de seu trabalho. É o despachante "destinatário final" do aparelho e, portanto, consumidor? Passo, agora, às respostas, segundo meu ponto de vista. Poderíamos responder, no caso do álcool,  que o usineiro é "destinatário final" da usina e, assim, aquela relação estaria protegida pelo Código. Da mesma maneira, a montadora seria "consumidora" do prédio utilizado para montagem de veículos. E, assim, resolvido estaria o caso do despachante, que é "destinatário final" do laptop. Contudo, todos esses bens são típicos "bens de produção"? O laptop pode ser e pode não ser. Os outros dois são. Seria adequado dizer, então, que o Código regula aquelas três situações? Sem dúvida que não. Em casos nos quais se negociam e adquirem bens tí­picos de produção, o CDC não pode ser aplicado por dois motivos óbvios: primeiro, porque não está dentro de seus princípios ou finalidades; segundo, porque, dado o alto grau de protecionismo e restrições para contratar e garantir, o CDC seria um entrave nas relações comerciais desse tipo, e que muitas vezes são de grande porte. A resposta para o caso da usina e da montadora é, portanto, a aplicação do direito comum: Acontece que essa resposta não resolve o problema do despachante. Quer dizer, então, que o laptop é um bem de produção, e quando ele tiver vício o despachante não poderá utilizar-se da lei 8.078/90? Ora, que diferença existe entre o despachante como pessoa jurídica, que utiliza o laptop para preencher guias, e o despachante enquanto pessoa física, que leva o aparelho para casa e escreve uma carta de amor? A solução não pode ser a mesma que a da usina e a da montadora. Tem de ser outra. O Código ajuda em parte, pois o despachante é "destinatário final", mas o bem é de produção. Para encontrarmos uma solução, precisamos utilizar certos princípios do Código e transferi-los para a noção de bens. Com efeito, o CDC regula situações em que produtos e serviços são oferecidos ao mercado de consumo para que qualquer pessoa os adquira, como destinatária final. Há, por isso, uma clara preocupação com bens típicos de consumo, fabricados em série, levados ao mercado numa rede de distribuição, com ofertas sendo feitas por meio de dezenas de veículos de comunicação, para que alguém em certo momento os adquira. Aí está o caminho indicativo para a solução. Dependendo do tipo de produto ou serviço, aplica-se ou não o Código, independentemente de o produto ou serviço estar sendo usado ou não para a "produção" de outros. A situação é clara: não se compram "usinas" para produção de álcool em lojas de departamentos, ao contrário de laptops. Para quem fabrica laptops em série e os coloca no mercado de consumo, não é importante o uso que o destinatário deles fará: pode muito bem empregá-los para a prestação de seu serviço de despachante. Não podemos esquecer que, no mesmo sentido, uma simples caneta esferográfica pode ser "bem de produção", como da mesma forma o serviço de energia elétrica é bem de produção para a montadora de automóveis. Assim, posso responder que, como o despachante adquiriu o laptop produzido e entregue ao mercado como um típico bem de consumo, a relação está protegida pelo CDC. *** Continua na próxima semana. __________ 1 Por exemplo, no Curso de Direito do Consumidor (14ª. ed., 2022. São Paulo: Saraiva).
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Os desastres naturais e a responsabilidade do Estado

Este é meu primeiro artigo do ano e, infelizmente, sou obrigado a voltar ao tema  da responsabilidade do Estado nas catástrofes climáticas. Aliás, todo início de ano as chuvas causam estragos e fazem vítimas, feridos e mortos, em dezenas de localidades brasileiras; e uma parte dessas catástrofes  são previsíveis. Os acontecimentos envolvendo o drama das pessoas nos alagamentos, deslizamentos de terras, quedas de barreiras, destruição de imóveis etc. em vários pontos do país são o retrato de uma política de omissão que, ao que tudo indica,  repetir-se-á no ano que vem, assim como já aconteceu no ano  passado e nos anteriores. Do ponto de vista jurídico, a questão principal da responsabilidade civil do Estado não envolve diretamente direito do consumidor - embora indiretamente sim, na questão da prestação dos serviços públicos essenciais. Mas, faço questão de apresentar, na sequência, um resumo dos direitos das pessoas afetadas e da responsabilidade dos agentes públicos.  A responsabilidade do Estado no caso de acidentes naturais derivados de enchentes e desmoronamentos As várias tragédias relativas a inundações provocadas por chuvas regulares e previsíveis, assim como por aquelas extraordinárias e também os desmoronamentos de encostas, prédios, casas e o soterramento de pessoas gerando mortos e feridos, são eventos de tamanha gravidade que, pode-se dizer,  passou muito da hora da tomada de posição séria pelas autoridades no que diz respeito à ocupação do solo e às necessárias ações preventivas visando à segurança das pessoas e de seu patrimônio.  De nada adianta ficar acusando as vítimas depois das ocorrências, como se vê em alguns casos, eis que, certo ou errado, elas já estavam vivendo nos locais conhecidos abertamente. Afinal, as pessoas precisam morar em algum lugar. É verdade que, quando surgem eventos climáticos não previstos, como, por exemplo, chuvas caindo em quantidade nunca vistas, acaba sendo possível justificar a tragédia por força do evento natural. Mas, naqueles casos em que os eventos climáticos são corriqueiros, ocorrem na mesma frequência anual e em quantidades conhecidas de forma antecipada  e, também, nas situações em que a ocupação do solo feita de forma irregular permitia prever a catástrofe, o Estado é responsável pelos danos e deve indenizar as vítimas e familiares. A legislação brasileira é clara a respeito. Lembro, pois, na sequência, um resumo dos direitos envolvidos. Responsabilidade civil objetiva A Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão de seus agentes (conforme  § 6º do art. 37). Essa responsabilidade civil objetiva implica que não se exige prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização. Basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis. Anoto que, quando se fala em ação do agente público, isto é, conduta comissiva, está se referindo ao ato praticado que diretamente cause o dano. Por exemplo, o policial que, extrapolando as medidas necessárias ao exercício de suas funções, agrida uma pessoa. Quanto se fala em omissão, se está apontando uma ausência de ação do agente público quando ele tinha o dever de exercê-la. Caso típico das ações fiscalizadoras em geral, decorrente do poder de polícia estatal. Nessa hipótese, então, a responsabilidade tem origem na falta de tomada de alguma providência essencial ou ausência de fiscalização adequada e/ou realização de obra  considerada indispensável para evitar o dano que vier a ser causado pelo fenômeno da natureza ou outro evento qualquer ou, ainda, interdição do local etc. Muito bem. Em todos esses casos de inundações, desmoronamentos, soterramentos etc. causando a morte e lesando pessoas o Estado será responsabilizado se ficar demonstrado que ele foi omisso nas ações preventivas que deveria ter tomado. Se, de fato, os agentes públicos deveriam ter agido para evitar as tragédias e não o fizeram, há responsabilidade. Tem-se que apenas demonstrar que a omissão não impediu o dano, vale dizer, a vítima ou seus familiares (em caso de morte) devem demonstrar o dano e a omissão para ter direito ao recebimento de indenização.  Caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima Antes de prosseguir, lembro que o Estado não responderá nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima ou terceiros. No entanto, os eventos da natureza que se caracterizam como fortuito são os imprevisíveis, tais como terremotos e maremotos e até mesmo chuvas e tempestades, mas desde que estas ocorram fora do padrão sazonal e conhecido pelos meteorologistas. Reforço esse último aspecto: chuvas sazonais em quantidades previsíveis não constituem caso fortuito porque as autoridades podem tomar as devidas cautelas para evitar ou, ao menos, minimizar os eventuais danos. A força maior, como é sabido, é definida como o evento que não se pode impedir, como por exemplo, a eclosão de uma guerra. E a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, como a própria expressão contempla é causa excludente da responsabilidade estatal porque elimina o nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do Estado. Aqui dou ênfase ao que importa: a exclusão do nexo e, consequentemente, da responsabilidade de indenizar nasce da exclusividade da culpa da vítima ou do terceiro.  Se a culpa da vítima for concorrente, ainda assim o Estado responde, embora, nesse caso, deva ser levado em consideração o grau da culpa da vítima para fixar-se indenização em valor proporcional. Dou como exemplo de culpa concorrente, o da construção de uma casa que exigia a tomada de certas medidas de segurança que foram desprezadas pelo agente de fiscalização e, também, pela vítima. ***  Torço para que, no próximo ano, eu possa começar a escrever meus artigos com algo mais ameno.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A parábola do Semeador

A parábola do Semeador é uma das poucas da qual o próprio Mestre deu explicação sobre seu sentido, a pedido de seus discípulos. Ela está em Mateus, em Marcos e em Lucas. Segue o texto de Marcos: "O semeador saiu a semear; quando semeava, uma parte da semente caiu à beira do caminho, e vieram as aves e comeram-na. Outra parte caiu nos lugares pedregosos, onde não havia muita terra; logo nasceu, porque a terra não era profunda, e tendo saído o sol, queimou-se; e porque não tinha raiz, secou-se. Outra caiu entre os espinhos; e os espinhos cresceram, e sufocaram-na, e não deu fruto algum. Mas outras caíram na boa terra e, brotando e crescendo, davam fruto, um grão produzia trinta, outro sessenta e outro cem. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça." (Marcos 4:3-9) Jesus contou essa Parábola quando discursou para uma grande multidão à beira-mar. Ele entrou num barco e a multidão ficou em pé na praia escutando suas palavras, mas explicou seu significado apenas aos seus discípulos.  Apesar da parábola apresentar um terreno material, ela simboliza um mundo espiritual. O terreno da alma humana. Ela cuida do livre-arbítrio. Cabe ao ser humano, com seu ato livre, aceitar, de forma incondicional, a semente que Deus manda. O campo fértil onde a semente pode ser plantada é o coração humano.  Eis a explicação de Jesus: Quando alguém ouve a mensagem do reino, mas não entende, o maligno vem e arrebata o que foi semeado em seu coração, tal como as aves comem as sementes que caem pelo caminho. Já o solo rochoso no qual algumas sementes caíram, representa aquela pessoa que, ao ouvir a mensagem, rápida e impulsivamente a recebe com alegria. Mas pela falta de raiz, isso dura pouco tempo. Logo que surge a aflição ou alguma perseguição por causa da mensagem, essa pessoa se ofende e a abandona. Há também aquela pessoa que ouve a mensagem, mas as preocupações deste mundo e a sedução das riquezas impedem que a aceite, tornando-a infrutífera. Essa é aquela que foi semeada entre os espinhos. Por fim, o exemplo da semente que foi semeada em bom solo representa aquele indivíduo que ouve e atende a mensagem. Daí, surge o fruto, produzindo, em um caso, a cem, noutro, a sessenta, e noutro, a trinta. A Parábola do Semeador traz lições muito importantes. Ela ensina que a semente do Evangelho alcança diferentes solos e apresenta resultados distintos em cada um deles. Algumas pessoas possuem um coração insensível que não responde positivamente ao convite do Evangelho. Essas pessoas nem mesmo refletem na mensagem anunciada. Outras possuem um coração impulsivo e no calor da emoção acabam recebendo superficialmente a mensagem. Uma vez que a emoção passa, essas pessoas voltam à sua antiga vida, muitas vezes em pecado. Outras pessoas possuem um coração muito ocupado com as coisas desta vida. Ludibriadas com desejos terrenos e ilusões de riquezas, essas pessoas desprezam o verdadeiro tesouro que poderiam encontrar. O que eu posso dizer? Sejamos nós como aquelas pessoas que possuem um coração bem preparado, um coração que responde positivamente à Palavra de Deus. Cabe a nós, ao recebermos essa Palavra, plantá-la no coração, fazendo-a germinar. Essa é nossa responsabilidade. Essa frutificação é a marca do verdadeiro cristão. Desejo Boas Festas para todas as leitoras e todos os leitores.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O abuso contra os consumidores continua

Eu pensava que no século XXI e mais ainda em 2021, nesta nossa sociedade capitalista, os empresários já tivessem aprendido a respeitar os direitos dos consumidores. Respeitar o consumidor, na verdade. Deviam ter apreendido que essa seria uma fórmula melhor de oferta de produtos e serviços e que isso geraria boas vendas. Houve avanços, admito. Alguns fornecedores modificaram o comportamento e conseguem atrair o consumidor sem violar seus direitos. Mas, infelizmente ainda há muitos abusos. Hoje comento um deles. O da venda de produtos via web com limitação dos meios de pagamento. Existem sites de vendas que não permitem que o consumidor escolha o melhor meio para pagar sua compra. Não oferecem a forma de pagamento via boleto bancário, aceitando apenas o uso do cartão de crédito, o que, evidentemente, é abusivo. Em primeiro lugar, diga-se que essa limitação viola o princípio da igualdade, pois há consumidores que não tem cartão de crédito. Depois, ter cartão de crédito é opção do consumidor. Nunca uma obrigação. E seu uso é opcional, jamais obrigatório. Quem escolhe a forma de pagamento, obviamente, é o consumidor! Digo mais: a utilização do boleto deve ser a primeira alternativa oferecida ao consumidor. As demais é que podem ser oferecidas como opção. O boleto permite, inclusive, que o consumidor que não tenha conta bancária possa fazer a compra e pagar em casas lotéricas ou nas agências dos bancos. Por isso, não oferecer a alternativa de pagamento via boleto bancário viola abertamente o direito do consumidor. Trata-se de prática abusiva, proibida pela lei. O Código de Defesa do Consumidor é claro nesse sentido. Vejamos. As chamadas "práticas abusivas" são ações e/ou condutas que, uma vez existentes, caracterizam-se como ilícitas, independentemente de se encontrar ou não algum consumidor lesado ou que se sinta lesado. São ilícitas em si, apenas por existirem de fato no mundo fenomênico. A ideia da abusividade tem relação com a doutrina do abuso do direito. A constatação de que o titular de um direito subjetivo pode dele abusar no seu exercício acabou levando o legislador a tipificar certas ações como abusivas. Pode-se definir o abuso do direito como o resultado do excesso de exercício de um direito, capaz de causar dano a outrem. Ou, em outras palavras, o abuso do direito se caracteriza pelo uso irregular e desviante do direito em seu exercício, por parte do titular. Para a hipótese em exame, a tipificação da conduta abusiva está prevista no inciso V do artigo 39 do CDC, nesses termos: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;" Logo, basta uma simples leitura do texto para verificar-se que vender produtos pela web/internet sem oferecer a alternativa de pagamento do preço via boleto bancário é prática abusiva, eis que impõe ao consumidor vantagem manifestamente excessiva. Aliás, se o consumidor não quiser ou não puder usar o cartão, fica impedido de fazer a compra. Algo absurdo. E, incrivelmente, não gera a venda querida... Será que um dia, aprenderão a respeitar o consumidor e a se beneficiar disso?    
quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Black Friday: O processo de controle do consumidor

Em matéria de capitalismo, os Estados Unidos da América são, realmente, poderosos e exemplares (e, apesar de toda resistência e atuação de outros centros importantes como é o caso da China, os EUA continuam no comando). Já de nossa parte, é fato conhecido que fomos catequizados e que adoramos copiar o que vem do estrangeiro. Passamos dezenas de anos fazendo isso e continuamos. Como já comentei aqui, somos copiadores vorazes, inclusive de leis que não nos dizem respeito - como é o caso simbólicor do regime dotal do casamento,  copiado da Europa e introduzido no vetusto Código Civil de 1916. Estamos a todo vapor com o halloween, que serve para empanturrar nossas crianças de açucares e gorduras. E, claro, acabamos de passar por mais uma edição da Black Friday. Como se sabe, o termo foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear a ação de vendas anual, que acontece sempre na última sexta-feira de novembro, após o feriado de Ação de Graças. Por lá, todo ano, o volume de vendas é muito alto, pois os descontos são realmente verdadeiros e os empresários norte americanos querem se livrar do estoque antigo e, no lugar, colocar as novas mercadorias para as vendas do período natalino que se inicia.   Mas, como não poderia deixar de ser, por aqui, nem tudo é desconto verdadeiro. Todo ano, os veículos de comunicação apontam dezenas de denúncias contra as enganações perpetradas por muitos  comerciantes, que usam uma tática antiga: aumentar o preço na véspera ou alguns dias antes e depois aplicar um desconto para chegar ao mesmo preço anterior ou próximo do que era (Aliás, prática essa que é adotada também nas liquidações sazonais). E estão utilizando, também, outras táticas ilegais. Aumentar preço num dia e oferecer desconto no dia seguinte (ou seguintes) para chegar ao mesmo preço ou próximo ao praticado anteriormente, falsificando, portanto, a existência de uma promoção ou liquidação é, como se sabe, publicidade enganosa prevista no CDC: "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços." Além disso, o ato caracteriza o crime de publicidade enganosa: "Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena: Detenção de três meses a um ano e multa." E ainda o crime de informação falsa ou enganosa, este tanto na forma dolosa como culposa: "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e multa. § 1º Incorrerá nas mesmas penas quem patrocinar a oferta. § 2º Se o crime é culposo; Pena: Detenção de um a seis meses ou multa." Para terminar, lembro apenas que, naturalmente, descontos são bons... Se precisamos do produto ou do serviço!
quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A linguagem do mercado e o controle dos consumidores

Há muito tempo que se sabe que a chamada globalização é mais uma expressão inventada pelos países mais poderosos para impingir seu modo de produção e consumo para o resto da humanidade, especialmente no Ocidente, gerando riqueza (para eles) e custo (para os demais países). Antigamente, esse método chamava-se imperialismo.  Essa manipulação linguística é tão boa que pegou forte: todo mundo gostou. Os países ricos continuaram assim e os subdesenvolvidos foram "promovidos" a emergentes. Uma vitória simbólica. Vitória dos poderosos e não dos oprimidos, pois como diz o sociólogo francês Pierre Bourdieu, a base da violência simbólica está  presente nos símbolos e signos culturais, especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas, como por exemplo, a mídia, a religião, a publicidade etc. Por isso, a violência simbólica propriamente dita nem é percebida como violência, mas sim como uma espécie de indicação, uma permissão ou uma proibição  desenvolvida com base em um respeito ao que "naturalmente" se faz; ela se apresenta como um modelo de conduta a ser seguida1. A produção cultural e tecnológica dos países dominantes é desenvolvida e entregue aos países emergentes (eu ia dizer "imposta", mas a aquiescência  mansa e pacífica é tamanha que sou obrigado a abandonar esse verbo autoritário). Assim, na fase da globalização, a invasão não se faz em termos de territórios, mas de mercados. Toma-se conta do polo de consumo e, na medida em que os consumidores aderem aos produtos e serviços inventados e produzidos pela indústria dominante, passam a se comportar como esses detentores do poder global querem que eles se comportem. Quanto aos produtos e serviços, vale de tudo, desde um refrigerante até os chamados "produtos culturais", tais como filmes de cinema (hollywoodianos de preferência), enlatados de tevê como séries e programas etc. E um dos modos mais eficientes de dominação é o do uso da linguagem. Para ficarmos com a posição de Bourdieu, o uso de palavras e expressões pelos dominadores (os que vêm de fora ou que estão mesmo dentro da comunidade) é um dos modos mais eficientes de controle. Meu  amigo Outrem Ego gosta muito de brincar com esse poder que a língua  estrangeira tem, especialmente, o anglicismo (que no mais das vezes aparece  escondido no termo "estrangeirismo". É que cada vez mais por aqui o estrangeirismo tem uma única origem e direção: a língua inglesa). Numa conversa com sobre o tema, ele me disse: "Minha filha me contou que seu boyfriend foi até o shopping center de bike. Ela estava lá, esperando por ele, na pista de skate, que fica em frente a um outdoor. Quando ele chegou, foi que ela reparou que ele tinha um piercing na barriga, pois estava quase sem camisa por causa do vento. Parecia até que queira fazer strip tease. Brincando, ela perguntou se ele não queria fazer de vez um topless e aproveitar para arrancar o apetrecho do umbigo e colocar um band-aid no lugar. Ele riu e disse que estava tudo bem com ele, pois tinha feito um check up recentemente. Daí eles encontraram outro casal e entraram correndo para comer numa lanchonete fast food. Ela comeu um hamburger, no qual passou ketchup e bebeu uma coca-cola light. Ele deglutiu um cheeseburger bacon e tomou um milk-shake de chocolate. De sobremesa, ela comeu um cupcake de blueberry e ele um sundae de creme. Os outros dois amigos, que sentaram na mesma mesa da praça de alimentação, haviam ido a lugares diferentes: ela foi a um restaurante self-service e de lá levou uma caesar salad e um smoothie de morango. Ele variou: pegou um tuna wrap num lugar, uma porção de onion rings em outro e bebeu um suco detox. De sobremesa, ela tomou frozen yogurt e ele um cookie de chocolate". Eu, em flash back,  voltei ao meu tempo de adolescente, quando comia hot-dog com suco natural e comia banana-split de sobremesa... De fato, a linguagem é um sistema aberto e, naturalmente, cada língua, de um jeito ou de outro, recebe influência externa. Não há necessariamente um mal nisso até porque é inevitável. Muitas vezes, inclusive, a língua pátria acaba por fazer uma adaptação. No caso brasileiro, são muitas as palavras aportuguesadas (ou abrasileiradas), tais como abajur, futebol, purê, batom, chofer, baguete, ateliê, bife, boate, sutiã etc. Mas, chama a atenção a enorme quantidade de termos em inglês que passou a fazer parte do dia a dia do mercado de consumo brasileiro, com muita naturalidade, a indicar, como acima referi, de um lado o poder de controle dos americanos e ingleses e, de outro, uma aceitação passiva do modelo. Não é pouca coisa. Junto com os termos e expressões, vêm regras e comportamentos, nem sempre declarados. Eu mesmo aqui neste espaço já fiz, por exemplo, uma análise do Halloween no Brasil e sua capacidade de influência e direção para a aquisição de produtos esdrúxulos, além de porcarias e guloseimas que só fazem mal à saúde das crianças. Uma simples passada de olhos no mercado brasileiro mostra uma interminável sucessão de termos ingleses. Nem preciso ficar na tecnologia, com iphones, smarthphones, blue-rays etc. ou nos computadores e seus inputs, outputs, backups,  mouse, scanner, software, hardware, etc. ou, ainda, na internet e redes sociais com o skype, facebook, o twitter, as hashtags etc. (Aliás, permita-me um parêntese para mostrar nossa capacidade de assimilação ligeira. Essa palavra "hashtag" tão difícil de pronunciar é usada com orgulho por locutores nas rádios...).  Por falar em rádio, há uma empresa de TI, que faz uma propaganda, na qual diz mais ou menos isso:  "Nossa empresa conta com grande portfolio de clientes, storage, data center, service desk e field services". Na área dos automóveis e demais veículos é incrível: os automóveis possuem transmissão automática H-matic com shiftronix, freios ABS, ar condicionado com AQS (Air quality control system), tração 4X4 full time, air-bags, pneus radiais com banda larga all season passenger, blue tooth, bluemediatv, bancos de couro premium,  e muitos outros adereços, em inglês, claro. O Honda Fit permite uma acomodação dos bancos da seguinte forma: modo utility, modo tall, modo long e modo refresh. Capisce? Para terminar, conto a história de um professor de Direito que, num Congresso,  assistia a uma palestra de um outro professor. Este defendia que se usassem  mais expressões em latim na comunicação jurídica, por que isso era um  bem inominável e um patrimônio a ser preservado. O citado professor discordava disso. Daí, levantou a mão, pediu a palavra e com o braço estendido ao alto disse: "Prezado colega, permita-me discordar, data máxima vênia..." E ficou lá, parado, examinando sua própria fala em silêncio! __________ 1 O Poder simbólico. Lisboa: Edições 70, passim.
quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A criativo mercado de consumo

Atualmente fala-se bastante em fake news, como se a mentira na sociedade capitalista fosse uma novidade, mas não é. Não só nas questões que envolvem consumidor e capitalismo, mas em muitas outras como análises econômicas, pesquisas científicas, discursos políticos, promessas de candidatos etc. a falsidade tem sido propagada. Para piorar o quadro, como se sabe, estamos na época da pós-verdade, o que significa que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Isso facilita muito as coisas que envolvem falácias e mentiras, enganações explícitas e outras nem tanto. De há muito tempo que os consumeristas  descobriram que um dos fundamentos da sociedade capitalista de consumo é a mentira. Alguns setores empresariais  são desonestos na relação com seus clientes. Quem conhece um pouco de história do comércio, da indústria, da economia,  sabe muito bem que os segredos, as artimanhas, os conchavos, os acertos escusos estão na base da produção e distribuição de produtos e serviços. Transparência não é um termo muito conhecido ou utilizado e está na raiz do sistema de produção, distribuição e venda. Como diria Sócrates que aqui já referi, "mentir é pensar uma coisa e dizer outra". Parafraseando-o, posso dizer que no processo de produção capitalista se faz uma coisa, mas se mostra outra diferente. E é impressionante ver como há fornecedores que se especializaram em burlar as leis de proteção ao consumidor com o único e exclusivo objetivo de auferir lucro, mas uma espécie de lucro exagerado, sem fim. A ganância é mesmo uma das bases do sistema capitalista contemporâneo. E, atualmente,  os maiores violadores do sistema são exatamente aqueles que não precisariam fazê-lo, pois seus ganhos são por demais excessivos. Quanto aos consumidores, uma boa parte está tão absorvida pelo mundo do marketing e da publicidade, que não consegue se dar conta do que acontece. Eles vão sendo amaciados pelas imagens, textos e, muitas vezes, têm dificuldade de entender exatamente o que está sendo feito e oferecido. De fato, os fornecedores fazem esse tipo de trabalho com maestria. Dou um exemplo antigo: o das sacolinhas plásticas que passaram a não ser mais entregues gratuitamente nos supermercados do Estado de São Paulo. Com a desculpa de cuidar do meio ambiente - algo que ninguém pode ser contra - o setor supermercadista conseguiu emplacar a cobrança das sacolas que, como regra, o consumidor utiliza para levar os produtos adquiridos.  E a regra estabelecida vingou:  o consumidor tem que pagar pelas sacolinhas. E um exemplo atual: empresas produtoras de smartphone que passaram a vender aparelhos sem o carregador, pois seria a favor de um "consumo consciente". Pelo menos nesse caso, o absurdo é tão grande que os órgãos de defesa do consumidor estão agindo contra as fabricantes.
quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Halloween: festa importada e com bugigangas

Com a volta das atividades, o mercado já se prepara para mais um dia das bruxas, que se tornou parte do calendário comercial. Retorno, pois, ao tema.                    É lugar comum perguntar: o que é bom para os norte-americanos é bom para o resto do mundo? É bom para os brasileiros? Todos sabem que os gringos adoram impor seus produtos e serviços para os consumidores dos demais países e fazem isso muito bem, utilizando-se de várias técnicas, dentre as quais a da apresentação e entrega de seus projetos e modelos culturais, seus filmes, suas músicas, seus enlatados de tevê, sua língua.... Ok! (Ops...). Mas,  no caso do Halloween, sou obrigado a reconhecer que eles não têm responsabilidade (ao menos diretamente). Fomos nós, brasileiros, que, de livre e espontânea vontade, importamos a "festividade macabra". Como já lembrei aqui neste espaço, no meu tempo de criança ou adolescente (há cerca de cinquenta anos), seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente, há cerca de quinze/vinte anos, mais ou menos,  alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte-americano. Depois, no ano seguinte mais uma escola e mais outra etc. Com  a importação via tevê a cabo e também tevê aberta de, cada vez mais, filmes e mesmo programas jornalísticos que reproduzem a festa, aos poucos, os brasileiros foram se acostumando, como se ela também fizesse parte de nossa realidade. Daí, o "dia das bruxas" chegou às escolas de ensino fundamental; depois em baladas de adultos e,  enfim, na atualidade, parece que ela tem a ver conosco. Nas tevês a cabo, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico.   E as "bruxas e bruxos" do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma boa receita, vendem bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças. Essa forma de domínio capitalista, no final do século XX e início do XXI,  passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração, no que, claro, contam com a ativa participação dos consumidores.  É verdade que algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, começaram a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos EUA, instalou-se entre nós, de forma alegremente macabra (...).                          Lembro do texto recebido por meu amigo Outrem Ego, da administração do condomínio onde ele tem uma casa de campo. Era um convite intitulado "Gostosuras ou travessuras" para as crianças darem um passeio com paradas nas casas dos condôminos e lá pedirem doces. E estava escrito que no final do passeio haveria "a baladinha e o labirinto do terror". Eu, naquela oportunidade, insisti com ele que nossas comemorações de Páscoa e Natal, por exemplo, também são importadas. Ele concordou, mas esperava que nos dias atuais fosse mais difícil que se implantasse entre nós algo sem ligação cultural ou base social apenas e tão somente visando às vendas de produtos. "No caso, venda de doces e porcarias". Bem, no caso das comidas, até o Natal mereceu uma adaptação. Por muitos anos - e ainda até hoje - nas comemorações natalícias, em pleno verão tropical e escaldante, são ingeridas comidas gordurosas, doces etc., alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. E o coitado do Papai Noel é obrigado a trajar aquela roupa quente no calor de mais de 30 graus. O consolo é que, pelo menos, o Natal traz algum alento, especialmente para os que se lembram que nesta data é celebrado o nascimento de Jesus Cristo.  Realmente, a conscientização a respeito do controle exercido pelo mercado ainda é pequena. O consumidor, considerado como tal, aos poucos, passou a reclamar e reivindicar direitos. Mas, ainda não consegue compreender exatamente por que participa de certos eventos ou gasta seu dinheiro adquirindo produtos e serviços. Essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas. Se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e para a obesidade infantil.
quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Dia das crianças: momento para reflexão

Nesta semana, comemorou-se, mais uma vez, o dia das crianças. Com a trégua da pandemia, os pais voltaram às compras ou adquiriram presentes pela web mesmo. Eu, mais uma vez, vou aproveitar a data para propor uma reflexão sobre o tema.                           Nós, adultos,  em matéria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle.  Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo assustador que nos obriga a consumir, consumir e consumir é o da tomada de consciência do processo histórico, que se instituiu a partir das chamadas revoluções burguesa e industrial e que vem sendo vendida como um projeto de liberdade.  Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exercício se resume a adquirir produtos e serviços cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores. Vamos, pois, alguns de nós adultos, lutando contra o poder opressivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos se medem pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são? Claro que nem toda culpa é do mercado, mas com certeza o modelo que faz com que o indivíduo se aliene nas compras e acredite nas promessas da publicidade, o atordoa de tal modo que ele, jogado à própria individualidade, não sabe como agir. E as crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas? Certamente, com mais influência que em relação aos adultos. Mas, claro, há muitos pais absorvidos por todas as formas de consumo e que, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlar seus filhos, o que é uma pena. Não que seja fácil. Ainda que, por exemplo, os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco de tempo para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, mesmo que o filho ou a filha tenham seu tempo limitado de uso do smartphone ou da internet, são suficientes também apenas alguns minutos para a explosão de ofertas. E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Não é mesmo fácil. Mas, é lição de casa que precisa ser feita. Cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para  as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos. É comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. Pode ser um bom precedente para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. E, evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social. Os pais são, pois, os primeiros responsáveis por alertar seus filhos contra o assédio feito pelo marketing infantil hoje tão sofisticado e difundido.  Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero.  As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.
Quando vejo a discussão a respeito da política de preços da Petrobrás sempre lembro que no Brasil temos uma legislação específica para empresas como ela. Volto, assim, ao tema, eis que, ao que parece, não se tem levado em consideração vários aspectos que envolvem nossa querida estatal. Inicialmente, lembro: a Petrobrás não é uma empresa privada, que está no mercado para agir livremente obtendo o maior lucro possível a qualquer custo e independentemente das consequências de seus atos e estratégias. Não! Ela é uma empresa pública: uma sociedade de economia mista. E como tal, tem outros deveres, outras funções muito diversas, das que têm as empresas privadas. A sociedade de economia mista (SEM), como se sabe, integra a Administração Pública Indireta. Apesar disso, é, por força de lei, pessoa jurídica do direito privado sob a forma de Sociedade Anônima, regulada e estabelecida, pois, pela Lei das S.A. A SEM pode tanto explorar atividade econômica tipicamente privada de produção ou comercialização de produtos, como pode prestar serviços públicos. Mas isso não quer dizer que uma SEM -- a Petrobrás, por exemplo -- deva atuar no mercado como uma mera empresa privada, visando exclusivamente ao lucro, utilizando de métodos capitalistas tradicionais (e, muitas vezes, altamente reprováveis) apenas e tão somente por estar estabelecida como S.A. Seus limites estão estabelecidos no próprio texto constitucional. Com efeito, o caput do artigo 173 estabelece o imperativo de segurança nacional e de interesse coletivo: "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei" O § 1º do mesmo artigo, por sua vez, permite, como acima referi, a exploração da atividade privada e a da prestação de serviços públicos: "§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:..." Também como afirmei, a SEM tem características de pessoa jurídica de direito privado, o que está firmado no inciso II desse mesmo § 1º: "II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;" Todavia, a SEM mantém características próprias das pessoas jurídicas de direito público, tais como a fiscalização pelo Estado e pela sociedade, além da exigência de licitação para contratação de obras, serviços, compras e alienações de bens,  conforme fixado nos incisos I e III do mesmo §: "I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;                          III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;" Além disso,  ela deve se valer de concursos públicos para contratação de seus empregados (art. 37, incisos I e II da CF). Muito bem. É preciso admitir que algo tão importante como o preço dos combustíveis deve ser estabelecido não apenas com os problemas enfrentados no momento presente, mas também levando-se em consideração as consequências futuras. Não parece um equilíbrio fácil de se obter, mas que deve ser buscado de algum modo. Obviamente, não estou dizendo que a SEM pode ser usada para fins diversos daqueles para os quais foi criada. Ao contrário, quando isso ocorre, trata-se de abuso de direito. Esse abuso é caracterizado, por exemplo,  quando o acionista controlador, valendo-se de sua posição privilegiada, busca atingir objetivo estranho ao do objetivo legal estabelecido na empresa. Nesse caso, há desvio de finalidade. Há também abuso no exercício do poder, quando são ultrapassados os limites impostos por seu fim econômico ou social ou mesmo quando há violação ao princípio da boa-fé objetiva e até aos bons costumes. Mas, realço. Se, de um lado, há desvio ilegal quando o acionista controlador esquece que a SEM é uma empresa privada com fins econômicos específicos e somente age em função do bem comum ou social, de outro, a busca apenas do lucro como se fosse uma empresa privada comum é também um desvio ilegal. É do equilíbrio entre essas duas situações, legalmente estabelecidas,  que se pode identificar uma boa e correta administração de uma SEM. Esse deve ser o objetivo da administração de uma Sociedade de Economia Mista: estabelecer de forma clara e equilibrada a relação entre o interesse público e o privado. Aliás, se é para agir como se a SEM fosse uma empresa privada comum, ter-se-ia que, antes, alterar o texto constitucional. Quem diz que uma empresa como a Petrobrás pode agir sem esse freio legal, desconhece ou desconsidera as normas existentes. Sei, claro, que não é fácil obter esse equilíbrio entre o interesse público e o privado, mas pergunto, como já fiz antes aqui neste espaço: não é por isso que os dirigentes dessas empresas ganham vultosos salários? Para fazer jus aos polpudos vencimentos, não devem, eles, cumprir os comandos legais?  
Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispôs sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, do processo de revisão no caso da recuperação judicial do consumidor superendividado. A norma do art. 104-B diz que se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado. Ou seja, a conciliação pode se dar com todos os credores ou apenas parcialmente. O procedimento litigioso será instaurado contra todos (no caso da conciliação restar 100% infrutífera) ou contra apenas aqueles credores que não firmaram o acordo. O prazo para defesa é de 15 dias sendo que o credor poderá juntar documentos e deve indicar as razões para não ter aceito o plano de repactuação. O Juiz poderá nomear administrador para a fixação do plano de repactuação, desde que sem ônus para as partes. Caberá ao administrador apresentar plano de pagamento contemplando medidas que atenuem os encargos existentes. De todo modo, esse plano compulsório tem limites próprios: a) deve garantir o valor do principal devido, corrigido monetariamente pelos índices oficiais; b) preverá a liquidação total da dívida após a quitação do plano de pagamento firmado consensualmente (na audiência de conciliação regulada pelo art. 104-A) em, no máximo, 5 anos; c) a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 dias, contado da data da homologação judicial; o restante do saldo será devido em parcelas iguais, mensais e sucessivas. Anoto, também, que a nova norma (no art. 104-A) permitiu que os órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor possam, facultativa e concorrentemente, participar da fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas. Aliás, poderá fazê-lo mesmo sem a intervenção do Poder Judiciário. Isso porque a lei permite que a conciliação possa ser feita por intermédio de convênios específicos celebrados entre esses órgãos e as próprias instituições credoras ou suas associações. Como se sabe, integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), os Procons, o Ministério Público, a Defensoria Pública e as entidades civis de defesa do consumidor. Esses órgãos têm competência concorrente e atuam de forma complementar para receber denúncias, apurar irregularidades e promover a proteção e defesa dos consumidores. As entidades civis desenvolvem importante papel na proteção e defesa do consumidor. No entanto, para os fins de conciliação no processo de repactuação de dívidas a norma as deixou de fora. Somente os órgãos públicos poderão fazê-lo. Para deixar aqui consignadas as atribuições de cada um deles, lembro que os Procons são órgãos estaduais e municipais de proteção e defesa do consumidor, criados especificamente para este fim, com competências, no âmbito de sua jurisdição, para exercer as atribuições estabelecidas pelo CDC. São, portanto, órgãos que atuam no âmbito local, atendendo diretamente os consumidores e monitorando o mercado de consumo de seu território, tendo papel fundamental na execução da Política Nacional de Defesa do Consumidor. O Ministério Público e a Defensoria Pública, no âmbito de suas atribuições, também atuam na proteção e na defesa dos consumidores e na construção da Política Nacional das Relações de Consumo. O Ministério Público, de acordo com sua competência constitucional, além de fiscalizar a aplicação da lei, instaura inquéritos e propõe ações coletivas. E a Defensoria, além de propor ações, defende os interesses dos desassistidos, promovendo acordos e conciliações.  A conciliação poderá ser feita de forma global, a partir de reclamações individuais do consumidor. Neste caso, o órgão público designará audiência global de conciliação com todos os credores. No acordo firmado perante esses órgãos deverá necessariamente constar a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor dos bancos de dados e dos cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas.
quinta-feira, 2 de setembro de 2021

A conciliação judicial no superendividamento

Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispôs sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, da conciliação judicial no superendividamento. O consumidor superendividado poderá ir a Juízo requerer uma espécie de recuperação judicial, conforme previsto no artigo 104-A. Penso que, certamente, antes do ingresso do pedido, o consumidor deverá ter orientação jurídica (de advogado e/ou órgão de proteção ao consumidor) e, também, de contador ou perito contábil. Isso porque a norma permite proposta de repactuação das dívidas para um prazo de até 5 anos. Além disso, há de ser preservado o mínimo existencial (que como demonstrei aqui na coluna de 15-7-21, exige melhor detalhamento1). E, a proposta, que envolve todos os credores, além de tudo, deve respeitar as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas. Nada muito fácil de ser feito, especialmente, envolvendo interesses de credores diversos que, por sua vez, venderam produtos e serviços diversos, com preços e prazos de pagamento diversos. Examinado o pleito, o juiz poderá instaurar o processo de repactuação de dívidas visando realizar a audiência conciliatória. Não é uma conciliação simples de ser executada ainda que as intenções sejam legítimas. O credor, por sua vez, tem obrigação de comparecer à audiência de conciliação ou enviar procurador com poderes para transigir, sob pena de suspensão da exigibilidade do débito existente e interrupção da contagem dos encargos da mora. Além disso, se o consumidor souber o montante devido a este credor que não compareceu nem se fez representar, ele (o credor) estará sujeito ao plano de pagamento que vier a ser fixado, mas receberá seu crédito somente após o pagamento feito aos demais credores que compareceram à audiência. A norma fala também do óbvio. Diz que havendo "conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada", algo natural e decorrente da sentença. De todo modo, a norma também impõe que a conciliação seja feita com certos parâmetros. Da sentença devem constar: a) as medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor e todas as demais alternativas negociadas visando o pagamento da dívida; b) referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso; c) a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e dos cadastros de inadimplentes. Esses elementos decorrem do estado de endividamento do consumidor no momento da conciliação. Mas, além deles, deve constar ainda da sentença a determinação para que o consumidor não faça novas transações nem se comporte de modo que possa gerar o agravamento de sua situação de superendividamento. E essa determinação é condicionante: o pacto amigável homologado tem seus efeitos ligados à essa abstenção do consumidor devedor. Importante realçar que nem todas as dívidas estão sujeitas à repactuação. São excluídas as operações oriundas de dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural. E estão excluídas também aquelas operações celebradas "dolosamente pelo consumidor, que as realizou sem o propósito de realizar o pagamento". Essa situação fatalmente exigirá apuração judicial, nem sempre fácil de executar. Por fim, a norma deixa claro que o pedido de repactuação não importa em declaração de insolvência civil e que somente poderá ser repetido após decorrido o prazo de 2 (dois) anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento orginalmente homologado. ____________ 1 ABC do CDC de 15-7-21, in Migalhas.com.br.
quinta-feira, 26 de agosto de 2021

As novas práticas abusivas

Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispôs sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, das novas práticas abusivas. Com efeito, O artigo 54-G trouxe novas práticas abusivas, além daquelas já previstas no artigo 39. Dispôs, exemplificativamente, que é vedado ao fornecedor do produto ou do serviço que envolva crédito, o seguinte: a) realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura, vedada a manutenção do valor na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação. Essa situação não é incomum e envolve compras não efetuadas, lançamentos de valores equivocados, cobrança de despesas e taxas indevidas etc. O conflito, se não resolvido amigavelmente, acaba indo ao Judiciário ou mesmo aos órgãos de proteção ao consumidor. É algo que sempre ocorreu e, tendo em vista a razoabilidade da demanda, muitos casos são resolvidos de forma direta e amigável ou por intermédio dos órgãos de proteção ao crédito ou mesmo pela via judicial. De todo modo, é bom que a lei expressamente assim o estabeleça. b) recusar ou não entregar ao consumidor, ao garante e aos outros coobrigados cópia da minuta do contrato principal de consumo ou do contrato de crédito, em papel ou outro suporte duradouro, disponível e acessível, e, após a conclusão, cópia do contrato. A determinação já está fixada no artigo 54-D, de modo que nem precisaria estar aqui transcrita como prática abusiva. c) impedir ou dificultar, em caso de utilização fraudulenta do cartão de crédito ou similar, que o consumidor peça e obtenha, quando aplicável, a anulação ou o imediato bloqueio do pagamento, ou ainda a restituição dos valores indevidamente recebidos. Tema que exigirá algum tipo de produção de prova, ainda que em fase amigável. De todo modo, quando a fraude for evidente, o fornecedor não poderá impedir ou dificultar a anulação da operação e/ou o imediato bloqueio do pagamento e, ainda, deverá devolver ao consumidor os valores indevidamente recebidos. O §1º do art. 54-G estipula uma ação ao fornecedor no que diz respeito aos empréstimos consignados. Como se sabe, o empréstimo consignado ou crédito consignado é aquele em que o modo de pagamento é efetivado de maneira indireta todos os meses, com a dedução do valor a receber pelo consumidor. Esse empréstimo pode ser feito por consumidores que possuam vínculo de empregado do setor privado ou já aposentados pelo INSS. A principal diferença do empréstimo consignado das demais formas de empréstimo é que suas parcelas são pagas por intermédio do desconto na folha de pagamento ou do benefício da aposentadoria. A norma fala que a formalização do contratação do empréstimo e a entrega da cópia do contrato relativo ao empréstimo consignado somente poderá ocorrer após a obtenção de informação oferecida pela fonte pagadora, da existência da margem consignável, que é de 35% (trinta  e cinco porcento)  da renda mensal líquida, sendo 30% para empréstimos consignados e 5% para uso de cartão de crédito consignado. Por fim, a norma fala novamente que o fornecedor deve oferecer previamente ao consumidor as informações estipuladas nos artigos 52 e 54-B, além de cópia do contrato após sua conclusão. Mera repetição de regra já firmada.
Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispôs sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, da parceria entre o fornecedor vendedor ou prestador do serviço e o fornecedor do crédito para a realização da transação. Com efeito, a norma do artigo 54-F coloca expressamente algo que sempre decorreu desse tipo de operação: a solidariedade entre o vendedor/prestador do serviço e o agente financiador da operação. É que sem o financiamento a transação não poderia ser efetivada. De todo modo, agora não há mais nenhuma possibilidade de discussão a respeito, pois a norma é expressa em dizer que são conexos, coligados ou interdependentes o contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento quando o fornecedor de crédito recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito e quando oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado. São típicas situações corriqueiras de compra e venda de produtos e serviços, cujos preços são pagos a prazo e feitas diuturnamente nos estabelecimentos comerciais ou via web/internet. A norma faz referência ao direito ao arrependimento previsto no art. 49 do CDC1, a cujos comentários remetemos o leitor. De todo modo, lembro que, evidentemente, no caso de exercício do direito de arrependimento sempre foi natural que o contrato principal fosse extinto assim como o contrato de financiamento garantiu a compra, quer fosse empréstimo, uso de cartão de crédito etc. Não teria, nem tem, nenhum sentido lógico ou jurídico extinguir o contrato principal com a devolução do produto adquirido e manter o contrato de crédito para o consumidor continuar pagando por algo que não adquiriu de fato. A esse respeito, ver meus comentários no subitem  35.11 supra. Além dessa explícita garantia em relação ao arrependimento, agora colocada no CDC,  a nova norma também fixou os mesmos direitos para o caso de inexecução de qualquer das obrigações do fornecedor do produto ou do serviço. Vale dizer, o consumidor poderá requerer a rescisão do contrato contra o fornecedor do crédito. E a lei até apontou duas situações: contra o portador do cheque pós-datado emitido para aquisição do produto ou do serviço e contra o administrador ou emitente do cartão de crédito ou similar, desde que  "o cartão de crédito ou similar e o produto ou o serviço forem fornecidos pelo mesmo fornecedor ou por entidades pertencentes a um mesmo grupo econômico", uma limitação que não precisaria existir. Por fim, a lei garantiu ao fornecedor do crédito nos casos de arrependimento ou inexecução, o direito de receber de volta os valores entregues inclusive com os tributos que foram pagos, o que também decorre logicamente da situação jurídica efetivada. __________ 1 Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.
Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispôs sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, das novas regulações da conduta do fornecedor direto e de seus parceiros. Com efeito, a regra do art. 54-D fixou alguns novos padrões de conduta para o fornecedor direto e de seus parceiros. Dispôs que deve ser informado e esclarecido "adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento". Cita novamente "idade", como se isso significasse de per si, algum elemento essencial. Naturalmente, só os maiores de idade podem transacionar sem representação ou assistência. Logo, não está falando dos menores. Tudo indica que  a norma esteja referindo, mais uma vez, o consumidor idoso. Repito: como ser idoso não é ser doente ou incapaz, tudo dependerá da situação concreta a ser examinada. A questão não é a idade, mas a capacidade de compreensão, a vulnerabilidade específica. No mais, a regra apenas manda que seja informado e esclarecido de forma clara e objetiva a natureza do crédito, os custos envolvidos, os demais dados já designados pelos artigos 52 e 54-B e, ainda, as consequências do inadimplemento, tanto em geral como para o caso específico daquela contratação.  Na sequência a norma, surpreendentemente, diz que o fornecedor deve "avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados." Bem, aqui volta a questão da consulta ou não aos cadastros de inadimplentes para a oferta de crédito e empréstimo. A norma fala "de forma responsável". O que será que ela quer dizer? Que o agente financeiro não deve ser "irresponsável" com o risco de seu negócio? Não parece ser isso, pois a norma que evitar o superendividamento. Logo, seria uma "irresponsabilidade" para que o consumidor não se superendivide. Mas, digo de novo: o risco de fazer o empréstimo e não receber de volta o valor emprestado é do agente financeiro. E, de outro lado, pode estar um consumidor que necessite urgentemente da importância. Ao invés de beneficiar esse consumidor que precisa, a norma irá prejudicá-lo. Além disso,  a nova norma manda identificar o agente financiador e entregar cópia do contrato ao consumidor, seu garante e demais coobrigados. E por fim, coloca uma punição ao fornecedor que não cumprir as regras estabelecidas nos artigos 52, 54-C  e 54-D, que dependerá também de apuração do caso concreto, eis que aponta para a condição de gravidade da conduta do fornecedor e das possibilidades financeiras do consumidor. A punição será a da redução de juros e custos e, ainda, da dilação de prazo para pagamento dos valores devidos, além de eventual pagamento de indenização por perdas e danos morais e patrimoniais. Tudo a exigir, portanto, ação judicial, na qual os elementos sejam avaliados pelo magistrado.  *** No próximo artigo, continuarei os comentários sobre as novas regras.
Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispôs sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, dos novos limites impostos aos fornecedores na oferta de crédito. Como mostrei nos comentários anteriores, o CDC já contemplava uma série de comandos para que o fornecedor pudesse oferecer créditos e empréstimos no art. 52. Agora, a regra do art. 54-C fixou alguns novos limites para os fornecedores no anúncio e oferta de crédito. Começo por essas duas: a) está proibido de indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor; b) não pode ocultar nem dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo. A primeira, ainda que possa, de fato, impedir que o consumidor já endividado possa se endividar mais ainda, na prática irá retirar uma forma de entrega de crédito ou empréstimo que aquele que já estivesse numa situação ruim e que pudesse  conseguir levantar  algum dinheiro no mercado ou crédito para alguma compra. Lembro que era - e sempre foi - risco do fornecedor oferecer crédito para consumidores em situação ruim de crédito. Se um banco quer entregar dinheiro para alguém que é inadimplente, negativado e, também,  que não tem condições de pagar as prestações (antigas e as novas) quem terá grande chance de perder algo é o próprio banco... É verdade que o consumidor se endividará mais. Todavia, conseguiria algum folego para poder tocar sua vida (e o risco, repito, seria integralmente do credor). Agora, na prática,  essa proibição legal impedirá que o fornecedor ofereça crédito para quem pode estar precisando muito. (O novo art. 54-D, que comentarei na sequência, obriga que seja feita consulta aos bancos de dados de proteção ao crédito). Ora, um consumidor perdeu seu emprego, está doente ou algum familiar seu próximo está, foi negativado etc., não terá alternativa para conseguir dinheiro. Pergunto, como já fiz quando falei do mínimo existencial: Quem é que vai socorrê-lo? Quem irá emprestar dinheiro para ele? Se o risco era de quem oferecia o dinheiro, o tiro saiu pela culatra: foi o consumidor nessas condições que saiu prejudicado. A segunda proposição é natural para toda e qualquer operação de crédito e empréstimo: o fornecedor não pode mesmo ocultar nem dificultar a compreensão a respeito dos ônus e dos riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo. Outro item trazido expressamente pela nova lei: o fornecedor não pode  "assediar" ou "pressionar" o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito. Definição fortemente subjetiva. O que seria "assédio" para a contratação? Um anúncio publicitário oferecendo conforto? Ou regalias? Ou promessas de uma vida melhor? Difícil dizer. Do mesmo modo a expressão "pressionar". A caracterização desse tipo de conduta demanda prova do fato. Talvez um vendedor ligando incessantemente para a casa do consumidor e falando, falando, falando que ele deveria contratar... A norma tem um complemento. Diz que o assédio ou o pressionamento se dará mais fortemente no caso de "consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio". Tirando a oferta de prêmio para a consecução do negócio e a do caso do analfabeto, algo simples de se constatar, as outras hipóteses exigem prova do fato de condição: a da doença e a do estado de extrema vulnerabilidade. Quanto ao idoso, anoto que também se exige prova de uma condição especial de vulnerabilidade do caso específico. Lembro que ser idoso não é ser doente. Este que escreve este texto neste momento é idoso em termos legais e posso garantir que tenho plena capacidade de discernir sobre como devo ou não obter crédito ou empréstimo. Aliás, posso muito bem orientar como se deve fazê-lo e se o legislador agiu bem ou não. Repito: o idoso não é doente apenas porque, por definição legal, seja assim intitulado. Por fim, nesse ponto, anoto que esse tipo de pratica já está caracterizada como abusiva no inciso IV, do  art. 39 do CDC e de forma menos preconceituosa. Leia-se: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:                (...) IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;" Continuando com o art. 54-C, está proibido que seja condicionado o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais. Até que enfim um ponto objetivo e claro. Mas, nem precisaria ser escrito porque, evidentemente, essa forma de condicionamento é típica prática abusiva enquadrada na hipótese do inciso V do art. 39 acima referido: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;" No próximo artigo, continuarei os comentários sobre as novas regras.
Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispôs sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, das novas determinações a respeito das informações prévias sobre a oferta de créditos e empréstimos que o fornecedor deve oferecer. O CDC já contemplava uma série de comandos para que o fornecedor pudesse oferecer créditos e empréstimos: preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional; montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; acréscimos legalmente previstos; número e periodicidade das prestações;  soma do total a pagar, com e sem financiamento (art. 52). E, claro, essas informações devem ser fornecidas previamente. Agora, o legislador foi mais específico. Cabe ao fornecedor indicar prévia e adequadamente: o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem; a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento; o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de 2 (dois) dias; seu nome e endereço, inclusive o eletrônico; o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito (art. 54-B). Antes de falar das novidades, anoto que se somam as determinações: agora cabe ao fornecedor oferecer as informações previstas no artigo 52 e, também, no artigo 54-B. E quais são as novidades? A questão do custo efetivo: cabe ao fornecedor informar e descrever detalhadamente quanto o consumidor gastará para fazer o empréstimo ou obter o crédito, incluindo o valor dos juros mensais e o total quando da quitação, as taxas incidentes, os impostos e toda e qualquer outra despesa existente. A norma anterior falava em "acréscimos legalmente previstos", do que se podia entender esses custos, taxas e impostos. De todo modo, agora está especificado. Terá que informar, também, o montante total das prestações. Além disso, a norma dispõe que o custo efetivo total da operação de crédito consiste na taxa percentual anual e compreende todos os valores que serão cobrados. A taxa efetiva mensal dos juros incidentes: pela regra do art. 52, a obrigatoriedade dizia respeito apenas à taxa efetiva anual. Desse modo, agora,  a informação deve contemplar a taxa efetiva anual e também a mensal. No que respeita ao inadimplemento, o fornecedor deve informar o percentual dos juros de mora e o total dos encargos incidentes em caso de atraso no pagamento das prestações. Todas essas informações devem constar da oferta, que terá prazo mínimo de validade de dois dias. E dela deve constar o nome do fornecedor e seus endereços físico e eletrônico. O § 2º do art. 52 já assegurava que o consumidor poderia fazer a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos. Agora, a regra do inciso V do art. 54-B especificou que o exercício desse direito é "não oneroso". Mas, de fato, mesmo antes sempre se entendeu que essa prerrogativa não poderia ser mesmo onerosa. E a nova regra determinou que a informação da possibilidade do exercício dessa opção deve constar da oferta.  A nova regra estipulou ainda que as informações firmadas no art. 52 devem constar de forma clara e resumida do contrato a ser firmado, de instrumento apartado ou da fatura, tudo com fácil acesso ao consumidor. São elas: preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional; montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de juros; acréscimos legalmente previstos; número e periodicidade das prestações;  soma do total a pagar, com e sem financiamento E a nova regra regulou, também, aspectos da publicidade enganosa ou abusiva, ao dispor que a oferta de crédito ou de venda a prazo ou a própria fatura mensal em  que a oferta apareça, deve indicar no mínimo o custo efetivo total, o agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento.
Continuo a comentar aspectos da lei 14.181, que introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Cuido, hoje, do conceito de superendividamento, previsto no novo art. 54-A. A lei definiu o superendividamento como sendo a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação (conf. o §1 do art. 54-A). Anoto, incialmente, que a norma protege apenas a pessoa natural. Pessoa jurídica devedora não recebe a mesma proteção. O texto é claro: está superendividado o consumidor que não consegue pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, vale dizer, entram na composição de suas dívidas apenas aquelas que envolvem relações de consumo. As dívidas tributárias estão fora. Estão fora, também, aquelas estritamente privadas, como, por exemplo, a compra de um veículo de um particular. A regra do § 2º apenas reforça o contido no § 1º, deixando claro que, inclusive,  estão incluídas na hipótese as dívidas relativas aos serviços de prestação continuada, tais como de planos de saúde, seguros em geral etc. Para a questão do mínimo essencial, indico meus comentários feitas no artigo de semana passada e aqui publicado1. E um outro item importante fixado na norma é o da conduta do consumidor, que para poder usufruir do direito posto há de ter agido com boa-fé. Naturalmente, essa boa-fé é a mesma que está estabelecida como princípio no inciso III do art. 4º e como cláusula geral no inciso IV do art. 51. Lembro, então, que na lei consumerista a boa-fé é objetiva, diversa da subjetiva. A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Nesse sentido, a boa-fé pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como, por exemplo, no art. 1.567, quando trata dos efeitos do casamento putativo2, nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé3, no art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc..4 Já a boa-fé objetiva, que é a que está presente no CDC, pode ser definida, grosso modo, como sendo uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, como pretendem alguns, mas o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desequilíbrio de forças. Daí que, para chegar a um equilíbrio real, o intérprete deve fazer uma análise global do contrato, de uma cláusula em relação às demais5.  A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor.  Deste modo, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes.  A boa-fé objetiva é uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal. Toda vez que no processo judicial o magistrado tiver de avaliar o caso para identificar algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal a priori, na qual as partes respeitam-se mutuamente, de forma adequada e justa.  Portanto, repito que para o consumidor gozar dos benefícios legais deve ter agido de boa-fé na contratação e execução do negócio de consumo.  Mas, após cuidar da boa-fé (objetiva, que é a regra do CDC), o legislador, no §3º resolveu realçar que o disposto na norma não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.  São dois temas diversos. O primeiro, envolve dolo do consumidor na fixação do negócio jurídico. Se, no caso da boa-fé objetiva, o magistrado, no caso concreto, deve verificar se o standart de conduta suposto para a relação foi cumprido ou violado, na hipótese do dolo, há que ser feita a prova da ação ilegal realizada pelo consumidor. Essa má-fé é, pois, subjetiva. A apuração há de ser feita no processo judicial, inclusive  com os benefícios da inversão do ônus da prova a favor do consumidor, conforme previsto no inciso VIII do art. 6º.  O segundo tema envolve a contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor. A intenção do  legislador foi a de, certamente, não dar guarida para compras supérfluas e de valores muito expressivos. Os conceitos são indeterminados: nos limites extremos, naturalmente, é mais fácil verificar se eles estão presentes como ocorre, por exemplo, em aquisição de joias caríssimas, peças de vestuário extraordinariamente caras, veículos de elevados preços etc. Mas, isso nem sempre será possível de ser determinado de pronto. Muitas vezes, deverá ser produzida prova no processo judicial para, na comparação com as posses do consumidor, sua renda e capacidade de pagamento, determinar-se o caso é, de fato, de aquisição de luxo de alto valor. __________ 1 ABC do CDC de 15-7-21, in Migalhas.com.br. 2 Código Civil: "Art. 1.561. Embora anulável, ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos civis até ao dia da sentença anulatória. § 1º Se um só dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão. § 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão". 3 Código Civil: "Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa. Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção. Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente". 4 "Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos. Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação." 5 O novo Código Civil também incorporou a boa-fé objetiva como base para as relações contratuais, como se pode ver do art. 422: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" e do art. 113: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".
quinta-feira, 15 de julho de 2021

O superendividamento e as alterações no CDC

A lei 14.181, recentemente aprovada, introduziu no Código de Defesa do Consumidor uma série de normas visando aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. São várias as alterações. No artigo de hoje, cuidarei de examinar o conceito de "mínimo existencial" que aparece em cinco hipóteses: as dos incisos XI e XII do artigo 6º, a do §1º do art. 54-A, a do "caput" do artigo 104-A e do §1º do artigo 104-C. Em todos os casos o legislador colocou "nos termos da regulamentação" após o termo "mínimo existencial". E, de fato, será necessário algum tipo de regulamentação para tentar explicitar como a garantia poderá funcionar. Explico. Com a evolução do pensamento jurídico e da fixação de uma ampla garantia para os direitos humanos, consolidou-se a orientação de que os Estados implementem em seus sistemas legais uma série de direitos, a partir de um mínimo existencial. Isso aparece em termos internacionais nos documentos da ONU e, no caso brasileiro, está fixado no texto constitucional.  Com efeito, o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) dispõe, verbis: "1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social."  Posteriormente, em 1966, a ONU editou o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que assegurou como norma internacional a proteção contra a fome1 e, também, a educação como um direito social básico2. Essa ideia de um mínimo existencial garantido a todos os seres humanos é base de uma civilização que evolui. A realidade em todos os lugares do mundo mostra que há muito a realizar nessa direção, mas podemos dizer que, do ponto de vista jurídico, os textos legais estão bem posicionados. Trata-se, na verdade, da tentativa de garantir ao ser humano um "mínimo vital" de qualidade vida, o qual lhe permita viver com dignidade, tendo a oportunidade de exercer a sua liberdade no meio social em que vive. Esse mínimo existencial tem, portanto, relação direta com a dignidade de pessoa humana e, também, com o próprio Estado Democrático de Direito. No caso brasileiro, ele está contemplado na Constituição Federal, gerando um dever ao Estado para sua implementação concreta. No atual diploma constitucional, pensamos que o principal direito constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana[iii].  É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. Coloque-se, então, desde já, que, após a soberania, aparece no texto constitucional a dignidade como fundamento da República brasileira: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indis­solúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana.  E esse fundamento funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional. E, para tratar do assunto, o Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo usou a expressão "mínimo vital"4.  Diz o professor que, para começar a respeitar a dignidade da pessoa humana, tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna, que, por sua vez, está atrelado ao caput do art. 225.  Tais normas dispõem: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.  De fato, não há como falar em dignidade se esse mínimo não estiver garantido e implementado concretamente na vida das pessoas.  Como é que se poderia imaginar que qualquer pessoa teria sua dignidade garantida se não lhe fossem asseguradas saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade?  A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa.  Se - como se diz - é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não implica que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre.  Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem.  Retornando, agora, às normas introduzidas expressamente no CDC a respeito do tema. Como se trata de evitar o superendividamento, visando garantir o mínimo existencial, as situações concretas de cada consumidor exigirão um exame detalhado e cauteloso dos fatos que envolveram, envolvem e/ou envolverão ele e seu credor ou credores. Digo isso porque, haverá situações em que, apesar de dívidas, limites existenciais, problemas pessoais e sociais etc., o consumidor somente poderá (ou poderia) modificar sua situação para melhor obtendo empréstimo. Muitas vezes, somente fazendo dívidas, a pessoa consegue sair da situação ruim em que se encontra.  Seria diferente se, uma vez  constatada a grave situação de violação ao mínimo existencial, o Estado agisse diretamente oferecendo a saída à pessoa atingida. Mas, isso não ocorre, infelizmente. _____________ 1 Artigo 11, parágrafo 2º: §2. Os Estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para: 1. Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização 6 mais eficazes dos recursos naturais. 2. Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios. 2 Artigo 13, parágrafo 1º: §1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3 Consulte-se a respeito o "Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana", 5ª. edição, Salvador: Juspodivm. 4 O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil, São Paulo: Saraiva, 2000, passim.  
Com a entrada em vigor da A LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/18) existe uma expectativa de que os dados pessoais somente sejam utilizados após autorização expressa. De todo modo, o que se espera é que os dados possam favorecer os titulares. Aliás, como sempre se esperou, ainda antes da existência da LGPD. Já tratei do tema aqui e hoje retorno. Eu recebi um texto interessante sobre o sistema integrado de informações públicas e privadas da sociedade capitalista em que vivemos. Fiz algumas modificações e acréscimos e passo adiante com a pergunta: informações pessoais demais ajudam ou atrapalham? Segue:  O telefone toca: -- Alô! De onde falam? --  É do Google's Pizza. --  Ah, desculpe, foi engano. Aí não era a Pizzaria Mais Sabor? --  É aqui mesmo. A Google comprou. E as pizzas estão mais saborosas ainda... -- Então tá! Anote meu pedido, por favor. -- O senhor vai querer a de sempre? -- Sim... Bem, você tem marcado aí o que eu costumo pedir? -- Um momento. A planilha ligada a seu número de telefone aponta que nas últimas 8 chamadas, o senhor pediu uma grande, meia calabresa meia margherita, massa grossa. -- É isso mesmo que eu quero... -- Mas, um momento. Vejo que o senhor também pede por uma outra linha, a de final 8932. E por ali, nos últimos 4 pedidos, o senhor pediu uma grande de muzzarela. -- É da casa da minha mãe, e ela não gosta de calabresa. Mas, eu gosto. Pode mandar meia calabresa, meia margherita. -- Bem, posso sugerir, desta vez, uma mais leve? Tipo, meia ricota, meia rúcula com tomate seco, massa fina? -- Irgh! Cruz credo! Nem parece pizza! -- Não queremos ser estraga prazer... Mas, é que... Seu colesterol está elevado... -- Como você sabe? -- No cruzamento de sua linha com seu CPF e os cadastros de exames aos quais temos acesso, vejo aqui na sua planilha de saúde, que o senhor precisa se cuidar... Aliás, foi o que o cardiologista deve ter dito na consulta que o senhor fez no mês passado... -- Ok, mas eu quero minha pizza! Estou tomando os remédios direitinho. -- Desculpe-me, mas vejo que o senhor não tem tomado remédio regularmente. Pelo nosso banco de dados comerciais, faz 2 meses que o senhor adquiriu uma caixa com 30 comprimidos para colesterol com desconto na Rede Drogasil, onde é cadastrado. A receita médica mandava tomar 1 comprimido por dia. Logo, o senhor não está tomando seus medicamentos... -- Posso ter comprado em outra farmácia! -- Até pode, mas o senhor faz todos seus pagamentos com seu Cartão Mastercard Black, final 4804, e vejo que a última compra de medicamento foi mesmo há 2 meses -- Agora eu te peguei. Posso ter pago com cheque ou dinheiro! -- Cheque... O senhor retirou o último talão há mais de 1 ano. Foi há 14 meses e só foi passado um único cheque no valor de R$80,00 para pagar um almoço no Rascál. Nossos cadastros não falham... Provavelmente, naquele dia o senhor esqueceu o cartão de crédito em casa. E quanto ao dinheiro, só se pediu emprestado para alguém, pois o senhor não está acostumado a fazer retiradas no banco... -- Ah, agora você falhou. Eu retiro todo mês R$1.200,00! -- Sim, mas é para pagar sua ajudante doméstica. E, sem querer ser chato... o Senhor poderia aumentá-la um pouco. Faz tanto tempo que ela trabalha na sua casa... -- Como você sabe? -- Ora, os dados do e-social demonstram isso. -- Eu vou desligar. Não quero mais pizza! -- Calma, senhor. Nós utilizamos essas informações apenas com a intenção de ajudá-lo. -- Bem, mas não tá ajudando... -- Desculpe. Acho que deveria ter ido mais devagar com o senhor. Veja como nós nos preocupamos. Na última vez que o senhor passou no pedágio, a câmara lá instalada  deixou transparecer uma certa saliência em sua barriga... -- Como? -- E agora... Espere um pouco... Sim, pela câmara da padaria que o senhor frequenta, posso confirmar que sua barriga cresceu muito no último ano. Ah... Chegou a resposta: o senhor parou de ir à academia, porque agora tem que ir mais cedo ao seu trabalho... -- Chega. -- Espere mais um pouco. Eu tenho uma oferta pro senhor. A Google's Academia tem várias instalações e uma é bem pertinho de sua casa. O senhor pode começar a fazer esteira amanhã mesmo à noite. Nós oferecemos um bom desconto na primeira mensalidade. O senhor pode voltar a fazer esteira 3 vezes por semana, como fazia antes... -- Chega! Estou cheio de vocês. De Google, de Facebook,  de Twitter, de WhatsApp, dessa falta de privacidade. Vou fugir para uma ilha deserta no meio do pacífico, onde não haja nada disso! - Entendo senhor... Mas tem uma última coisa. - O quê??? - Seu passaporte está vencido!
quinta-feira, 24 de junho de 2021

A ilusão do consumidor no mercado de consumo

No artigo anterior, mostrei o poder que têm as empresas no mercado de consumo. E agora confirmo que uma forma de dominar os consumidores para que as compras sejam feitas é a exploração de seus anseios, sonhos e esperança. Este é tema do artigo de hoje. É fato conhecido que muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população, muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis e, fruto desses financiamentos facilitados, milhares se endividam ou, pior, se superendividam. Pensemos  num elemento psíquico. Os bens de difícil aquisição como, por exemplo, a casa própria, acabam gerando frustração no consumidor que sonha, mas não adquire o bem desejado ou tem muita dificuldade em conseguir fazê-lo. Aliás, há quem entenda que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa  - vã - de apaziguar sua alma. Além disso, como esse consumidor - já frustrado ou que ainda se frustrará - é um ser humano, tem, dentro de si, uma coisa chamada esperança. Daí, vive a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho - qualquer que seja ele: alguns mais difíceis como o do exemplo da aquisição da casa própria perfeita; outros nem tanto, como comprar certos automóveis ou empreender lindas viagens. Mas o fato é que,  de frustração em frustração,  o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança. Se olhasse para trás, veria o quanto não conseguiu obter. Acontece que, a esperança é forte e a ilusão também. Por isso, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de "jogos de azar"): loterias,  cassinos (quando e onde há), concursos de todo tipo,  promoções, sorteios etc.. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência,  obtida rápida e facilmente. Visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem nos vários tipos de produtos e serviços oferecidos: a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita;  ou a de  fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos e muitos outros, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; a esperança de garantir o próprio futuro e, também, o da família pagando prêmios de seguros; e a de chegar nesse futuro, se aposentar e ter tempo ainda de gozar a vida, poupando de forma adequada; etc. etc. Realmente, o mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Mas, como disse acima,  o consumidor tem pressa. E nunca teve tanta como nos dias que correm. E foi o mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não há tempo para nada; nem se pode perder tempo algum. Recebe-se à vista e paga-se a prazo, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem  de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para  qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Como é que diz mesmo a propaganda?: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável. Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o  empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. Claro que nem tudo é responsabilidade do fornecedor. Afinal, o consumidor compra por que quer e exercendo sua liberdade para tanto. Pergunto:  Será que o consumidor precisa adquirir muitos bens para ser feliz? E a que preço? O capitalismo não esconde suas intenções: produz e quer vender. O consumidor, cada vez mais, está sintonizado com o sistema, vivendo a esperança de um futuro  de bem-estar que decorre da aquisição de produtos e serviços. Como diz meu amigo Outrem Ego: "Será que não chegou a hora do consumidor ter menos pressa e pesquisar para descobrir melhores alternativas para uma vida mais tranquila e feliz, sem ter que ficar comprando produtos e serviços sem parar?".
quinta-feira, 17 de junho de 2021

Quem manda no mercado de consumo?

Há muitas teorias sobre o funcionamento e o exercício do poder. Poder real, efetivo, de fato e não apenas formal. Ou, em outros termos, poder de quem realmente manda e não de quem parece que manda.  E é comum usar-se a expressão "o poder do mercado"  para referir o mercado capitalista. Nesse caso, estar-se-ia falando do poder dos fornecedores sobre o consumidor e sobre  mercado em si. A história mostra que ele existe mesmo, sendo capaz de fazer coisas boas e más; coisas belas e sujas. Basta ficar com a crise financeira de 2008/2009 para  apontar um exemplo de coisa suja feita no mercado dominado por administradores inescrupulosos e jogadores de todo tipo. Pessoas que detinham o poder para fazê-lo. E o poder dessas pessoas e desses bancos e demais instituições financeiras era tamanho, que em outubro de 2008, o governo americano forneceu 700 bilhões de dólares para socorrê-las.1  Os administradores dessas instituições haviam criado uma situação tal que não permitia que eles falissem. O controle por eles exercido e a maneira como eles se envolveram em amplos aspectos da vida econômica e social impedia, como impediu, sua quebra, pois esta afetaria todo o sistema financeiro, econômico, produtivo e social. Eles conseguiram tornar-se "grandes demais para falir".2 Mas, esse comando exercido por esses administradores e banqueiros estava garantido de que modo? Era consubstanciado no quê, propriamente? Não faço a pergunta pensando nos aspectos econômicos, financeiros ou produtivos. Faço-a sob a perspectiva do poder. Como é que eles fizeram o que fizeram, escaparam ilesos (e muitos deles milionários)? Como esse enorme poder no mercado tornou-se  possível? Há, naturalmente, muitas explicações e que envolvem os produtos oferecidos, os aspectos da desregulamentação do sistema financeiro americano, os empréstimos de alto risco, a questão dos subprimes, o (super) endividamento dos consumidores etc. Mas, isso não me interessa aqui. Gostaria de abordar o aspecto menos visível, o do poder existente e como ele se tornou e se torna possível no mercado de consumo. (Estou usando o exemplo da crise financeira de 2008/2009 apenas para mostrar, desde logo, que os empresários exercem forte poder na sociedade). Dentre as várias possibilidades de análise existentes, ficarei com alguns aspectos teóricos que envolvem a estrutura do poder, para que possamos refletir a respeito. O poder quando é grande mesmo, não se utiliza da força, a não ser em situações especiais e não rotineiras. Ou, dizendo em outros termos, a força de quem detém um poder de verdade, forte, enorme, deve ser ocultada. Aquele que usa demais a força para conseguir obediência perde em legitimidade e, também, em poder. Pense-se no comando exercido por um pai ou uma mãe sobre o filho. Quanto menos força for usada mais poder e legitimidade haverá. Se um pai ou uma mãe apenas fala e o filho obedece, seu poder é enorme. Mas, se para obter obediência ele ou ela castiga o filho, tranca-o em casa, limitas suas ações, proíbe quase tudo, isto é, se exerce força física, então tem pouco poder. Se ela ou ele fala emitindo um comando e não consegue resposta (obediência), então terá sempre de recorrer à força física. Logo, vê-se a figura de um pai ou mãe fracos. No mesmo exemplo, mas com uma  variável:  se uma mãe ou um pai,  para obter aquiescência do filho tem de mandar, depois ameaçar, depois chantagear ou dar um prêmio para conseguir obediência, seu poder também se esvai. Aliás, se a mãe ou o pai só consegue obediência do filho dando alguma coisa em troca, então quem tem poder é o filho e não a mãe ou o pai. Dá para ver, por exemplo, o poder que teria um professor que pudesse entregar as provas para os alunos e dissesse: "Não colem. Vou ao banheiro e já volto". Depois saísse da sala e se, ao retornar, ninguém tivesse colado, realmente, teria muito poder. (Há muitas nuances nos casos que estou trazendo e que permitem mais ampla abordagem. Por exemplo, o professor pode ter mais ou menos poder, dependendo da instituição a que ele pertença,  pois esta pode já inspirar confiança nos alunos e daí comando e  obediência. Do mesmo modo, a relação pai, mãe e filho não tem apenas aqueles estritos limites; há muito mais; há amor, carinho e proteção, por exemplo. Extraí apenas certos pontos para fincar a análise em alguns aspectos relevantes para nossa reflexão neste limitado espaço do artigo). Dos fatos apresentados, outra ilação pode ser retirada: a relação de poder implica confiança. Quem tem poder de verdade manda e confia na obediência e quem obedece confia em quem manda. Aliás, é por isso que se diz que os filhos precisam de limites; necessitam que os pais imponham certos parâmetros de ação. Em certo sentido, os filhos pedem o comando, pois isto lhes dá segurança. Daí que, confiança e poder geram segurança dos dois lados. Quem tem poder é seguro da obediência que receberá. Uma mãe que confia no filho, não fica perguntando toda hora o que ele faz ou fez. Mas, sabe que,  se ele fizer algo importante ou considerado errado, chegará em casa e contará para ela. Destarte, os aspectos teóricos explicam que aquele que tem poder age com inteligência e conhecimento. Ele sabe muito bem quais são as possiblidades de ação do outro (daquele que vai obedecer ou não) e por ter essa sapiência sabe também quais são seus próprios limites: há coisas que ele nunca pode pedir nem mandar. No que respeita ao mercado, os administradores bem formados e bem informados já de há muito tempo desenvolveram alta tecnologia de arquivamento de dados que envolvem  não só os consumidores como seus concorrentes - quando estes existem. Esses dados, bem coletados e bem estudados, permitem a tomada de decisão para os caminhos que a empresa deve tomar visando conquistar sua fatia de mercado (market share)  inicialmente, para fazê-lo crescer ou para consolidá-lo. Isso se faz, certamente, conhecendo muito bem os consumidores,  os concorrentes e também a si mesmo: seus produtos, seus serviços e a comunicação a ser feita a partir desse saber. Note-se que as estratégias de marketing desenvolvem em larga medida a ideia de segurança (na marca, no produto, no serviço, na qualidade, no atendimento etc.), buscando firmar uma base de confiança (na empresa e em seus produtos e serviços). O poder de uma empresa no mercado, portanto, está em larga medida ligada a capacidade que ela tem de se conhecer a si mesma (seus produtos, seus serviços, seus métodos de comunicação, de administração etc.), de conhecer profundamente os consumidores de seu público alvo (seus hábitos, seus desejos, suas necessidades etc.)  e ao mercado como um todo. Tanto no passado, como no presente e projetando perspectivas para o futuro. Esse tipo de tecnologia do conhecimento e da informação é um caminho na direção do poder no mercado, do controle das ações dos consumidores, dos concorrentes e, também, dos demais atores políticos e sociais que existem na sociedade. __________ 1 Ver a respeito desse assunto, por exemplo, Michael J. Sandel, Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 8ª. Ed., 2012, p. 21. 2 Idem, ibidem, mesma pág.
quinta-feira, 10 de junho de 2021

O consumidor nem sempre quer proteção

Todo ano a Caixa Econômica Federal (CEF) promove o Feirão da Casa Própria em várias cidades pelo Brasil, evento que atrai milhares de consumidores que vão atrás de, também, milhares  de imóveis novos e usados. Normalmente, são fechados dezenas de milhares de contratos, gerando movimento de bilhões de reais. Neste ano, o Feirão será virtual.1 Eu já tratei anteriormente desse assunto, que implica numa situação inusitada: a aquisição pelo consumidor do bem mais importante de sua vida, a casa própria, sem a investigação prévia que se espera para esse tipo de transação. Fica difícil tentar proteger o consumidor que não quer ser protegido. Aliás, esse é um bom exemplo de que excesso de proteção não ajuda em nada. Nossa legislação é protecionista; os órgãos de defesa do consumidor produzem proteção o tempo todo; o Poder Judiciário, na dúvida, como não poderia deixar de ser, decide a favor da parte vulnerável, isto é o consumidor; enfim, sobra proteção. Mas, não é que o consumidor age de maneira estranha e abre mão de todo esse aparato protecionista? Há motivos psicológicos, claro, e os fornecedores conhecem bem o perfil de seus clientes, mas alguns comportamentos dos consumidores são um pouco fora da curva. A participação nesses "feirões" parece-me um bom exemplo. Com efeito, o chamado "feirão da casa própria", promovido regularmente todos os anos, é um esquema de vendas que acabou vingando. A CEF promove, por intermédio de anúncios espalhados na mídia, um tipo de oferta que envolve o consumidor em seus temores, anseios e esperanças. Ademais, nessa questão, surge o problema da desinformação, pois o comprador está agindo contra as cautelas normais e necessárias que se exige nesse tipo de transação. E com a agravante de tirar mercado dos advogados. Comprar um imóvel sem o aconselhamento de um advogado é um erro grave! Uma casa ou um apartamento não deveriam jamais ser comprados numa exposição de fim de semana, como se a pessoa estivesse comprando frutas na feira livre ou numa liquidação tipo queima de estoque de roupas ou sapatos.  A casa própria é, para a grande maioria dos consumidores, repito, o mais importante (e mais caro) negócio da vida inteira. É a realização de um sonho e, por isso, deve ser tratado com a reflexão e o carinho que merece. Indo numa dessas "promoções" (reais ou virtuais), o consumidor corre o risco de comprar um imóvel por impulso, sem qualquer avaliação objetiva, pois, quando chega ao local, sofre todo tipo de pressão e influência dos vendedores, cujo maior interesse é vender, fechar um bom negócio com polpudas comissões. Para o comprador, fica, às vezes, a frustração (mais uma e essa praticamente definitiva) de morar onde não tinha exatamente planejado e, ainda por cima, endividado pelo compromisso assumido de longo prazo (10, 15, 20 anos ou mais). Ora, sabe-se que, antes de se comprar um imóvel, é preciso conhecê-lo, examinando-o para ver se ele atende às necessidades e expectativas. Deve-se vistoriá-lo não só de dia, no horário marcado pelo corretor ou vendedor, mas também em  outro período, procurando conhecer as condições da vizinhança à noite - barulhos, trânsito etc. É importante conhecer a região para ver se ela oferece aquilo que o comprador precisa, como escolas, farmácias, supermercados etc. Aliás, como disse, esse tipo de operação rouba mercado dos próprios advogados, que deveriam ser sempre consultados antes do fechamento desse negócio. Não só há necessidade da produção e exame de certidões forenses e do Cartório do Registro Imobiliário, como da avaliação de todas as peculiaridades daquela específica operação jurídica. Por exemplo, a compra de imóvel por empreitada ou preço de custo ou feita pelo Sistema Financeiro de Habitação etc. envolve aspectos bem diferenciados. Em alguns casos é preciso inclusive checar se não há projeto para desapropriação do local: se o imóvel está localizado numa rua importante ou perto de estrada ou área de manancial etc. É preciso saber, ainda, em alguns casos, se a área não é de proteção ambiental etc. Lembro, naturalmente, que cada situação comporta componentes próprios de avaliação que devem ser levados em consideração, além das preliminares e genéricas que apresentei. As questões concretas e particulares devem, por isso,  ser levadas a um advogado especialista. É uma pena. O capitalismo é muito selvagem, ganancioso e egoísta e o consumidor apresenta-se cada vez mais abertamente frágil  em seus comportamentos e ações.   __________ 1 Disponível aqui. Serão oferecidos 180.000 imóveis.
quinta-feira, 27 de maio de 2021

A imagem da pessoa jurídica

No Brasil, a partir da edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC), não há qualquer dúvida de que a pessoa jurídica é, além de fornecedora -- fabricante, importadora, produtora, prestadora de serviços etc. - consumidora por expressa designação legal (Art. 2º, CDC). E, como a norma não faz distinção, trata-se de toda e qualquer pessoa jurídica, quer seja uma microempresa, quer seja uma corporação multinacional, pessoa jurídica civil ou comercial, associação etc. Ela goza dos mesmos direitos e garantias atribuídos aos consumidores pessoa física. Mas, subindo um degrau na hierarquia legal, no que diz respeito à imagem, pergunto: em relação às garantias estabelecidas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal (CF), a pessoa jurídica está abrangida? Vejamos, primeiramente, o texto normativo da CF: "Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". A doutrina e a jurisprudência são consensuais na resposta: sim, no quadro de proteção da norma constitucional em análise, a pessoa jurídica está incluída. Contudo, há algumas limitações de ordem prática: a) A pessoa jurídica não sofre dano estético, pois este diz respeito ao aspecto físico, mecânico e fisionômico do corpo humano; b) Não pode ser violada em sua honra, eis que esta somente pode ser atribuída ao indivíduo. Anoto que, quando se fala em honra de uma instituição, tal conceito aparece em sentido meramente figurativo: estar-se-á referindo tecnicamente à imagem. É, na verdade, reputação, garantida constitucionalmente pela imagem-atributo (que tratarei adiante); c) Não sofre, também, propriamente, dano moral, uma vez que sentir dor é uma exclusividade humana. É verdade que parte da doutrina fala em dano moral da pessoa jurídica e muitas decisões judiciais fazem o mesmo. No entanto, cuida-se de uma impropriedade do uso do termo. Sempre que se fala em dano moral da pessoa jurídica ou de indenização pelo dano moral causado à pessoa jurídica, está-se abordando a violação à sua imagem. Não devemos esquecer que há consenso no Brasil de que dano moral implica dor, constrangimento excessivo, angústia, sofrimentos de vários tipos etc., sentimentos que somente a pessoa natural pode experimentar; d) A pessoa jurídica não goza das garantias relativas à intimidade, essa esfera mais concêntrica dentro da órbita privada. Apenas para a pessoa humana é que se pode falar em vida íntima e intimidade. Por outro lado, porém, a pessoa jurídica goza de privacidade. Privacidade, que, oposta à publicidade, garante-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente (além de decisões internas, reuniões de diretoria etc.). Esses são os elementos que compõem sua esfera privada. De resto, a característica básica de atuação da pessoa jurídica é sempre pública, independentemente de sua natureza jurídica (pública, privada, sociedade civil, comercial etc.). Isto porque a ação da pessoa jurídica no que tange aos consumidores, demais pessoas jurídicas,  autoridades e órgãos governamentais etc. se dá no meio social: no mercado ou na ação política governamental. Ela é, por isso, essencialmente pública. A pessoa jurídica tem, também, imagem. Apesar da discussão que já se fez a respeito, atualmente não resta dúvida de que a imagem da pessoa jurídica é protegida constitucionalmente. Para se compreender em que consiste essa imagem, eu recorro à mesma classificação que adoto para pessoa física1. Ela tem imagem-retrato, representada por seu nome, sua marca, seu logotipo, seus produtos, seus serviços, enfim, por tipos, sinais, letras e símbolos que a representem. Obviamente, coloco aqui a pessoa jurídica como possuidora de uma imagem-retrato de forma figurativa, por analogia ao conceito de imagem-retrato da pessoa física2. Todavia, o tipo "imagem-retrato" encaixa-se como uma luva, quando se quer entender o que está ocorrendo no uso sem autorização de uma marca ou na violação de um logotipo ou mesmo de um produto ou serviço. Percebe-se que no caso do produto há várias circunstâncias que envolvem não só o nome do produto, mas também sua embalagem, seu conteúdo, a ligação de tudo isso ao nome do fabricante e sua respectiva imagem etc. Além disso, a pessoa jurídica possui imagem-atributo3. E é aqui que reside certa confusão, no caso, não só para admitir a outra, a imagem-retrato, como para entender a distinção entre os dois tipos. Com efeito, a imagem-atributo é construída pelo meio social. Ela é, pode-se dizer, mais o que os outros reconhecem na pessoa jurídica do que sua própria designação ou construção. É uma espécie de "reputação" da pessoa jurídica. Por isso,  embora a imagem-retrato guarde em alguns casos relação com a imagem-atributo, com ela não se confunde: é que a imagem-retrato é criada pela própria pessoa jurídica tão logo ela passe a existir. Por exemplo, o nome. Mas a imagem --atributo depende da atuação dessa pessoa jurídica - desse nome - no meio social. Quando se disser que esse nome ou essa marca tem alta credibilidade, estar-se-á diante da imagem-atributo. E o texto constitucional protege a ambas: a) a imagem-retrato de uma simples e inócua empresa de contabilidade, conhecida apenas por seu único cliente ou que ainda não tenha nenhum. Ninguém pode usar aquele nome sem autorização; b) a imagem-atributo daquela mesma empresa, que formou a maior auditoria do País, com notável reputação ou credibilidade. Ninguém poderá usar seu nome sem autorização, nem poderá denegrir sua imagem e reputação. Por fim, não posso esquecer-me de dizer, embora já o tenha adiantado no aspecto do CDC, que a Constituição Federal não faz distinção de pessoa jurídica: esta pode ser nacional ou estrangeira, pública ou privada, sociedade comercial ou civil, fundação, associação sem fins lucrativos, enfim, qualquer figura reconhecida como pessoa jurídica. Por extensão, garante-se a imagem do ente despersonalizado, como a "massa falida". __________ 1 Acompanho neste ponto o Professor Luiz Alberto David Araújo, A proteção constitucional da própria imagem: pessoa física, pessoa jurídica e produto. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 2 Diz o professor Luiz Alberto David Araújo que o direito à imagem possui duas vertentes: a primeira delas é a relativa à reprodução gráfica, como o retrato (fotografia),o desenho, a filmagem. Esta tem o nome de "imagem-retrato" (ob. cit., p. 27-30). 3 Continuando a exposição da nota anterior do Prof. Luiz Alberto, anoto, então, que a segunda vertente é a que revela as características do conjunto de atributos cultivados pelo indivíduo e que são reconhecidos pelo corpo social. Esta tem o nome de "imagem-atributo" (ob. cit., p.31-32).
Vivemos tempos difíceis. Nem preciso referir o drama enfrentado por todos por causa da pandemia da Covid-19. Quero cuidar das comunicações ligadas à ciência. Há informações seguras e muita polêmica. Vacinas que funcionam, mas não totalmente. Tratamentos com medicamentos que uns adotam e outros não. Enfim, há, de fato, muita dificuldade em se conhecer a verdade científica e quais são os interesses mercadológicos (e, neste caso, também políticos) que afetam as informações oferecidas. Volto, pois, ao assunto do controle exercido sobre os consumidores no mercado. Usarei um exemplo antigo, que aqui já dei, para mostrar que ciência e mercado podem andar juntos para impingir certos comportamentos aos consumidores, mas, na esperança de que no caso desta pandemia o interesse seja autêntico na direção de cuidar da saúde de todos. No livro "Adoro Problemas" de Michael Moore1, dentre tantos casos narrados, há uma história intrigante. Eis o fato narrado com humor pelo autor: Disse ele que, quando nasceu, na década de 1950, estando na maternidade, descobriu que ao invés dos seios de sua mãe, impingiram-lhe e também a seus colegas bebês mamilos falsos de borracha: "Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas de que ser 'moderna' significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!"2 "Convenceram nossas mães de que se um alimento vinha numa garrafa - ou numa lata, caixa ou saco de celofane -, então ele era de alguma forma melhor para você do que quando vinha grátis via mãe natureza." Depois, espantado, o cineasta americano pergunta: "Era, de fato, assim tão fácil enganar nossos pais? Se eles podiam ser enganados de modo tão fácil a esse respeito, o que mais eles podiam ser convencidos a testar? Creme de milho em lata? Grama artificial?3 E, de fato, como é possível que isso tenha ocorrido? Ao que consta, é sabido por todos, com muita tranquilidade, da importância do aleitamento materno, mas pude constatar que, realmente, naquele período dos anos cinquenta, era "moda" usar mamadeira, desprezando-se o leite que a mãe podia oferecer. Pensei, então, que a análise do caso narrado por Michael Moore poderia permitir a elucidação do modus operandi de alguns setores do mercado capitalista no processo de enganação, controle e alienação dos consumidores, a partir da análise das técnicas implementadas pela indústria de leite como substituto do leite natural. Meu caro leitor, veja o que encontrei. Maria Lúcia Magalhães Bosi e Márcia Tavares Machado, no artigo intitulado "Amamentação: um resgate histórico"4, apresentam um panorama que permite uma análise. Inicialmente, transcrevo o que se sabe, realçado pelas pesquisadoras: "O leite materno é o alimento adequado para as crianças nos primeiros meses de vida, tanto do ponto de vista nutritivo e imunológico quanto no plano psicológico, além de favorecer o vínculo mãe-filho quando o ato de amamentar é bem vivenciado pelas mães."5 No início do Século XX, já estavam em pleno desenvolvimento as pesquisas e a produção de alimentos que pudessem substituir o leite materno durante o período de desmame. Várias alternativas de leite de vaca, com adição de açúcar, água, cremes etc., que permitiam uma melhor digestão, foram oferecidas. "Os médicos passam a aderir às novas alternativas, prescrevendo-as como benéficas para a alimentação infantil. Essas práticas associam-se a um forte marketing focalizado nos pediatras, que passariam a desempenhar um papel decisivo como influenciadores de um novo movimento na sociedade: a 'cultura da mamadeira'."6 As autoras relatam que as indústrias de alimentos realizavam campanhas publicitárias em jornais médicos e paramédicos, visando - e conseguindo - influenciar os médicos que prescreviam as fórmulas para as mães. Assim, aos poucos e incessantemente, os produtos foram se tornando confiáveis: "No final dos anos 40, iniciando os anos 50, os produtos são apresentados como uma opção para facilitar a tarefa dos médicos que passam a prescrevê-los indiscriminadamente às mães, como a forma mais prática e viável para seus filhos."7 Nos anos seguintes, o leite em pó passou a ser recomendado e utilizado tão logo o bebê nascia. Como apontam as autoras, as estratégias para criar essa cultura da mamadeira envolviam o fornecimento de produtos lácteos aos profissionais de saúde (médicos e nutricionistas), o patrocínio de reuniões científicas, cursos de atualização e congressos, a contribuição para manutenção de revistas científicas, nas quais eram publicados anúncios constantemente etc. É de se prestar bastante atenção no esquema, que não só vingou como é utilizado abertamente pelas  grandes corporações até os dias atuais. Alguns produtos para serem aceitos pelos consumidores passam por um largo processo de "convencimento". Talvez num primeiro momento os consumidores não se interessem, como se deu no caso narrado. "Leite em pó, com água e outros componentes numa mamadeira?", devem ter dito as mães num primeiro momento. "Não quero, prefiro que meu filho tome o que eu tenho para dar e que já está pronto". Talvez. Daí é que, então,  a indústria desenvolveu seu plano estratégico. Era preciso dar autenticidade ao produto; havia que se mostrar suas qualidades. Quem melhor que os cientistas para fazê-lo? Ou, na hipótese, os médicos e nutricionistas. Como os pais poderiam deles duvidar? Para convencer esses cientistas, que tal patrocinar reuniões, cursos, congressos? Subsidiam-se esses eventos, pagando-se muito bem para que os palestristas convençam o público presente da qualidade dos produtos. Esse público que, claro, já está grato por estar participando do evento de forma gratuita e que envolve passeios, jantares etc. Para edulcorar o novo conhecimento que estava surgindo, que tal manter revistas científicas, pagando caros anúncios em suas páginas?  E, ao mesmo tempo, fazer publicidade em muitos outros veículos? Com esse assédio vindo de todos os lados, reforçados por frases que têm um forte apelo de verdade porque saem da boca de técnicos, cientistas, médicos e nutricionistas, ladeadas por belos anúncios publicitários que apresentam as vantagens do aleitamento artificial e com o apoio da sempre necessidade do consumidor de não estar "por fora", de andar "na moda", de estar "na onda", acaba dando certo. E esse caso é, de fato, exemplar porque mostra o poder de convencimento dos fornecedores. Se eles conseguiram convencer pais e mães que leite em pó, cheio de produtos artificias, servidos numa garrafa plástica ou de vidro era melhor que o peito da mãe, que tinha pronta-entrega do leite ideal produzido por ela mesma, podem mesmo convencer as pessoas a consumirem quase tudo. É um poder incrível.  Claro que não foi tarefa fácil convencer pais e mães de que era possível abandonar a mãe-natureza no que ela tinha de próprio para os bebês e preferir o alimento artificial. Mas, funcionou, especialmente porque a tática conseguiu atrelar um produto industrial à ciência, criando uma imagem positiva e dando credibilidade às prescrições e ofertas. Eis aí, pois, mais um exemplo que tem de tudo quanto os fornecedores aprenderam e usam no esquema de oferta e venda de seus produtos e serviços. Vê-se que não se trata apenas de publicidade, mas de um largo projeto de marketing que envolve a ciência e seus profissionais, as escolas, os meios de comunicação em geral, os depoimentos de autoridades e pessoas com prestígio social - os confessionais - etc., num longo e árduo trabalho de convencimento que, quando funciona atordoa o consumidor final, de modo que ele acaba não percebendo que foi enganado. Durou, mas mudou. Ainda bem: No Brasil, por exemplo, a partir dos anos oitenta do século XX, ressurgiu a lógica e o caráter verdadeiramente científico do discurso que mostra as vantagens do aleitamento materno. __________ 1 São Paulo: Lua de Papel, 2011. 2 Ibidem, p. 40. 3 Idem, p. 41 4 Cadernos ESP - Escola de Direito Público do Ceará, V. 1, Nº 1, Julho-Dezembro - 2005. 5 Ibidem, fl. 1. 6 Ibidem, fl. 5.   7 Ibidem, fl. 6.  
Com a liberação gradual do comércio, tudo indica que as pessoas poderão fazer compras para o Dia das Mães com mais tranquilidade. De todo modo, com aquisições via web ou pessoalmente nas lojas de rua e de Shopping Centers, é preciso cuidado com as armadilhas do mercado. Lembro, pois, de algumas cautelas necessárias para as boas compras, eis que a data é especial e, por isso mesmo, a compra é emocional e irresistível. Aliás, como sempre digo, qualquer que seja o dia a ser comemorado, seja o das mães, dos pais, das crianças, dos namorados, Natal, aniversário de alguma pessoa querida etc., em todos o consumidor está mais fragilizado, pois é um momento de compra compulsória. Até aí, tudo bem. Mas, os vendedores sabem disso. Por isso, os cuidados devem ser maiores e a escolha deve ser a mais racional possível. Em primeiro lugar e, como regra geral, não se deve comprar um produto sem antes fazer uma pesquisa de preços. Os preços variam muito de vendedor para vendedor. As diferenças entre os estabelecimentos às vezes são tão grandes que permitem a aquisição de dois presentes em vez de um. Nos dias atuais, com todas as facilidades oferecidas pela internet, naturalmente, é  por ela que a pesquisa de preços deve ter início. Há até sites de busca especializados em procurar e encontrar o menor  preço. Mas, claro, depois de obtê-lo, é ainda necessário checar estoque, qualidade e condições de entrega para ver se vale a pena mesmo, o que pode ser feito pela própria web, pelo telefone ou pessoalmente. No entanto, dependendo do tipo de produto que se deseja comprar, a pesquisa haverá de ser feita "in loco". Daí o jeito é bater perna (e sempre usando máscara!), mas, nunca se deve pesquisar preços num só local. Por exemplo, apenas numa mesma rua ou num único shopping center. Isso porque, da mesma forma que o consumidor pesquisa, os lojistas também o fazem. E assim, pode acontecer que numa mesma rua, principalmente em lojas próximas, os preços não sejam tão diferentes. E, com os preços em baixo do braço, é possível exercer um direito básico do consumidor: o de pechinchar. Vale a pena pedir descontos e negociar com o comerciante. Uma tática bastante atraente e enganosa é a da oferta de descontos. Há lojas virtuais e reais que estão sempre fazendo promoções, oferecendo vantagens. Algumas usam essa "técnica" de vendas o ano inteiro! Ora, se a promoção é permanente, então, na verdade, ela é falsa: é tática enganosa da loja para atrair o consumidor pelo desconto e não pelo preço. Por isso, não se deve confiar cegamente nesse tipo de oferta; a preocupação deve estar centrada no preço final do produto. O percentual de desconto não significa nada. Dez, vinte, trinta, cinquenta por cento são apenas atraentes aos olhos. O que vale é quanto custa o produto realmente após o abatimento, isto é, o que interessa mesmo é quanto o consumidor irá desembolsar. Há mais enganações. Por exemplo, existem anúncios que dizem: "Pague à vista com 20% de desconto ou em 3 x sem acréscimo". Ora, se à vista tem desconto, quando o preço é dividido em três prestações, o valor do desconto está incluído. Portanto, há acréscimo, sim: ele é o correspondente ao montante do desconto. Um outro exemplo é o chamariz: o das lojas que colocam na vitrine produtos com preços bem atrativos, mas, quando o consumidor se interessa e entra para comprar, o vendedor diz que o estoque acabou ou, em caso de roupas, que a numeração não existe. E, em seguida, o vendedor oferece produto similar bem mais caro. É um método grosseiro de atrair o consumidor e tentar vender o produto pelo constrangimento causado. Ademais, e por falar em relação pessoal, é bom tomar cuidado com  a conversa do vendedor que, claro, está preparado para falar coisas agradáveis e fechar o negócio. É preciso, pois, refrear o impulso da compra e refletir bem antes de se decidir por fazê-la. Comprar presentes é uma arte. É sempre difícil descobrir "aquilo" que o presenteado gostaria de ganhar. Tanto mais quando a pessoa é muito querida. Felizmente, as trocas dos presentes repetidos ou dos que não serviram, como, por exemplo, sapatos muito grandes, camisas pequenas, bolsas repetidas etc., podem ser feitas na maioria dos estabelecimentos comerciais. Todavia, é preciso prestar atenção aos produtos que não podem ser trocados. Algumas lojas, às vezes, não aceitam trocas porque o produto é de fim de linha, fim de estação, ponta de estoque etc. E, como a troca é um direito que nasce na oferta feita pelo vendedor, vale a pena perguntar antes de comprar se a troca pode ser feita e em quais condições. Há ainda um outro problema que às vezes ocorre: o da exigência de nota fiscal para a troca. Nem sempre quem dá o presente gosta de entregar a nota fiscal ao presenteado, pois lá consta o preço. Sem alternativa, é melhor guardar a nota fiscal para se for necessário, utilizá-la. A boa notícia é que, atualmente, a maior parte das lojas entregam senhas, documentos separados, etiquetas especiais etc., o que facilita a troca. Outro aspecto que se deve ter em conta diz respeito às etiquetas. Há estabelecimentos que se negam a trocar o produto se a etiqueta for removida. É uma exigência abusiva, mas para evitar aborrecimentos, aconselha-se que a etiqueta não seja removida até que o presente seja experimentado e aprovado. Para finalizar, lembro que, como sempre, em qualquer compra, é importante pedir e guardar a nota fiscal.
O século XXI exige uma mudança de paradigma das relações sociais em geral, na direção da solidariedade, da busca da igualdade, da concretização da Justiça etc. E, no que respeita às relações jurídicas de consumo, um dos lemas mais importantes é o da harmonização, esta que foi expressamente prevista no Código de Defesa do Consumidor como princípio (conf.  caput e inciso III do art. 4º). A ideia de harmonização envolve alguns parâmetros. Por sua relevância, destaco, mais uma vez,  o princípio da boa-fé objetiva. A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise  da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação;  os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como "topói", isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem  utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto.1 Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário. Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Mas, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver o problema estudado, ele lança mão de fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução da questão. Dentre as várias alternativas, chamo atenção para certos "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "ser humano comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum" etc. É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente - intuitiva - um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável.  E a boa-fé objetiva é um "topos" fundamental que, como disse, no Brasil, acabou por ser erigida a princípio no Código de Defesa do Consumidor. Anoto que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembro os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.561, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé, do art. 879, que  se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido etc. Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mau intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida. Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes.  Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes envolvidas a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado na transação, realizando o interesse das partes. Em matéria de relações de consumo, o CDC estabeleceu expressamente a harmonia como um princípio (no caput do art. 4º e no seu inciso III). A pretendida harmonia das relações de consumo nasce dos princípios constitucionais da isonomia, da solidariedade e dos princípios gerais da atividade econômica e no contexto do CDC ela é amparada pelos princípios da boa-fé e equilíbrio (mesmo inciso III do art. 4º).2   Então, a lei pretende que haja entre fornecedor e consumidor um tipo de relação que seja justa na contrapartida existente entre ambos. Lembro que, a boa-fé objetiva é parâmetro também para o comportamento do consumidor, que deve agir sob a égide do mesmo modelo. E, tenho de admitir que, neste século XXI,  muitas empresas têm se esforçado para manter o equilíbrio, buscando a harmonização, respeitando seus clientes e agindo na direção da boa-fé. Naturalmente, essa mudança de postura  reflete a maior consciência do consumidor a respeito de seus direitos e também a ampliação do leque de oportunidades para reclamações que surgiram pelas redes sociais e sites de internet, além da força da concorrência (quando ela existe). Isso é verdade. Mas, há mais: aos poucos, começa a surgir uma consciência empresarial que percebe que vale a pena respeitar a lei; que isso é a favor, não contra. E que buscar a harmonização é fundamental para os negócios. A boa-fé objetiva é, pois,  um paradigma de conduta fundamental para o atingimento da harmonização das relações de consumo. Por isso, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o Magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso (por qualquer das partes), deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado como adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas. __________ 1 Ver a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasília, UNB, 1980, "passim". 2 E o Código Civil   incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422 [ii] e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos[ii]. Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio - tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto -, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em  cada relação jurídica.
quinta-feira, 15 de abril de 2021

O isolamento e a esperança do consumidor

Volto ao tema da esperança, neste momento de isolamento de milhares, milhões de pessoas. A esperança é uma componente importante de ordem psíquica para a venda de muitos produtos e serviços. Os marqueteiros sabem muito bem como utilizá-la em suas formulações e comunicações.   Caro leitor, veja esse ponto: muitos consumidores jamais poderão adquirir a maior parte dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo. Por mais que o sistema financeiro consiga, cada vez mais, oferecer crédito para uma ampla camada da população, muitos objetos do desejo dos consumidores continuam e continuarão inacessíveis. Pensemos  no elemento psíquico. Os bens de difícil aquisição, alimentam, de fato, a frustração do consumidor que sonha, mas não adquire o bem desejado ou tem muita dificuldade em conseguir fazê-lo. Aliás, há aqueles que entendem que a frustração é boa para o mercado, pois, como o consumidor não consegue preencher seu "espaço interior" adquirindo mercadorias, nunca para de comprar, na tentativa  - vã - de apaziguar sua alma. Além disso, como esse consumidor - já frustrado ou que ainda se frustrará - é um ser humano, tem, dentro de si, uma coisa chamada esperança. Daí, vive a ilusão da possibilidade de um dia realizar seu sonho - qualquer que seja ele: alguns mais difíceis como, por exemplo, o da aquisição da casa própria perfeita; outros nem tanto, como comprar certos automóveis ou empreender lindas viagens. Mas o fato é que,  de frustração em frustração,  o consumidor vai preenchendo o vazio de sua esperança; se olhar para trás, verá o quanto não conseguiu obter. Acontece que, a esperança é forte e a ilusão também. Por isso, ele acredita na sorte e participa de todo tipo de jogos para ganhar prêmios (estes ironicamente chamados de "jogos de azar"): loterias,  cassinos (quando e onde há), entra em concursos de todo tipo, adora promoções, sorteios etc.. Isto é, o consumidor é presa fácil das ofertas que prometem uma vida melhor e, de preferência,  obtida rápida e facilmente. Por isso é que já disse aqui neste espaço: visto desse modo, é possível afirmar que a esperança é uma espécie de "produto" não declarado e escondido por detrás das ofertas que abundam no mercado, dando sustentação à mensagem nos vários tipos de produtos e serviços oferecidos: a esperança de, usando uma certa roupa, ficar mais bonito ou mais bonita;  ou a de  fazer sucesso com o carro novo; a esperança de, com todos esses apetrechos e muitos outros, conseguir conquistar um grande amor; e depois constituir família; daí, adquirir a casa própria; a esperança de garantir o próprio futuro e, também, o da família pagando prêmios de seguros; e a de chegar nesse futuro, se aposentar e ter tempo ainda de gozar a vida, poupando de forma adequada; etc. etc. Realmente, o mercado oferece o futuro de uma vida melhor. Antes dessa pandemia, que já dura muitos meses e que, em alguns lugares, de fato, gerou um enorme isolamento das pessoas, o que se percebia era que, cada vez mais, o consumidor tinha pressa. A aceleração por aquisição de produtos e serviços veio crescendo fortemente desde os anos 80 do século XX e ingressou no século XXI em alta velocidade. E foi o mercado que aumentou a velocidade das coisas, das compras e da própria vida a ser vivida: velocidade real e virtual; não havia tempo para nada; nem se podia perder tempo algum. Apesar dessa questão do Covid, ainda é assim: recebe-se à vista e paga-se a crédito, a perder de vista. Não é incomum que o consumidor adquira um presente para o dia das mães num ano e acabe de pagar no mês anterior ao dia das mães do ano seguinte, quando, então, tem  de entrar em novo crediário. E, claro, isso vale para  qualquer data e muitos produtos. Há consumidores que já nem tem mais o próprio automóvel, que foi vendido para fazer frente às dívidas por ele - automóvel - criadas e continua pagando as prestações de seu financiamento. Ou, como diz a propaganda: "Compre agora e só comece a pagar daqui a três meses". Esperança, com alguma coisa palpável. Essas características são muito conhecidas dos fornecedores, o que torna o comportamento dos consumidores previsível. Ao calcular uma campanha promocional ou um grande evento, o  empreendedor sabe, de antemão, com alto grau de probabilidade, qual será o comportamento do consumidor. Ele sabe, por exemplo, que, se mexer com certos pontos dos desejos, necessidades e interesses dos seus potenciais compradores obterá êxito na empreitada. E mesmo em tempos de pandemia, as táticas prosseguem. Além disso, nos dias que correm, o consumidor sonha com dias melhores, quero dizer, todos nós sonhamos! Claro que nem tudo é responsabilidade do fornecedor. Afinal, o consumidor compra por que quer e exercendo sua liberdade para tanto. Pergunto:  Será que o consumidor precisa adquirir muitos bens para ser feliz? E a que preço? O capitalismo não esconde suas intenções: produz e quer vender. O consumidor, cada vez mais, está sintonizado com o sistema, vivendo a esperança de um futuro de bem-estar que decorre da aquisição de produtos e serviços. Como diz meu amigo Outrem Ego: "Será que não chegou a hora do consumidor ter menos pressa e pesquisar para descobrir melhores alternativas para uma vida mais tranquila e feliz, sem ter que ficar comprando produtos e serviços sem parar? Quem sabe, no isolamento, o consumidor possa refletir sobre isso".
quinta-feira, 8 de abril de 2021

Os limites da coisa julgada na ação coletiva

A questão dos limites da coisa julgada na Ação Coletiva vem sendo discutida há muitos anos. No âmbito do Poder Judiciário, o entendimento era oscilante sobre o tema: ora aceitava a abrangência nacional, ora a restringia. A dúvida estabelecida a respeito da abrangência da coisa julgada na ação coletiva surgiu a partir da inusitada modificação do texto do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública (LACP - lei 7.347, de 24-7-85) que, a partir de setembro de 1997, passou a ter a seguinte redação: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova" Essa modificação legal, se aplicada, restringiria os efeitos da sentença coletiva aos limites territoriais do Tribunal que proferiu a sentença. Ou seja, uma decisão dada por um juiz no Estado de São Paulo, só valeria nesse estado.  Em novembro de 2016 foi publicada uma decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ),  que definiu que a sentença de uma ação civil pública (ACP) tinha abrangência nacional e não podia ser limitada ao Estado onde o processo foi julgado. Essa decisão atendeu a um recurso apresentado pelo Idec em uma ação sobre financiamento habitacional, que envolvia as principais instituições financeiras do país1. Atualmente, está em curso o julgamento do mesmo tema no Plenário do Supremo Tribunal Federal. Por enquanto, seis ministros votaram fixando o entendimento de que é inconstitucional artigo 16 da lei da ação civil pública, que limita a eficácia da sentença à competência territorial do órgão que a proferir. Já há maioria, portanto, nesse sentido.2  Pelo que penso, a decisão do STF está indo na correta direção. Como já tive oportunidade de referir, a questão da amplitude da coisa julgada na Ação Coletiva tem relação direta com a extensão do dano: se este é nacional, a amplitude também é. Não teria nenhum sentido que, por exemplo, consumidores paulistas não sejam violados, mas se permita que o mesmo ato abusivo atinja consumidores de outros Estados-membros.3 Os que pensam diferente argumentam que seria "inadmissível que sentença com trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeitos sobre todo o território nacional". Mas, a meu ver, sem qualquer razão. Todos sabem que, por exemplo, mesmo a sentença de falência de uma empresa (grande ou pequena, não importa), proferida numa pequena cidade do interior do país, faz efeito em todo o território nacional. E mais: se uma indústria de medicamentos com sede numa pequena cidade comercializa remédio que gera a morte de pessoas, todos esperam que a sentença proferida pelo juiz naquela pequena localidade possa impedir a comercialização em todo o país. Não haveria base alguma - lógica nem jurídica - decidir-se por salvar a vida das pessoas numa cidade ou Estado e permitir-se conscientemente que pudesse ocorrer a  morte de outras nos demais lugares. Isso feriria o princípio da racionalidade e da razoabilidade do sistema jurídico constitucional e, no caso, o superprincípio da dignidade da pessoa humana. A verdade é que, como bem decidiu o STJ e agora o STF, o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública não tem como vingar no sistema jurídico constitucional brasileiro, uma vez que está em plena contradição com as normas e princípios do Código de Defesa do Consumidor. Aliás, ele contradiz a própria estrutura da LACP, enquanto o Código de Defesa do Consumidor é firme, claro e coerente ao dizer que os efeitos são erga omnes e, pois, estendem-se a todo o território nacional, gerando conteúdo formal adequado e condizente com os princípios e normas constitucionais e para além dos limites de competência territorial do órgão prolator da decisão. __________ 1 Para ver a decisão, clique aqui.  2 Ver aqui.  3 Ver, por exemplo, meu Comentários a Código de Defesa do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 8ª.edição, 2015, pág. 987 e segs.