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Elas no Processo

Temas atuais e relevantes de Direito Processual.

Flávia Pereira Hill, Cristiane Rodrigues Iwakura, Flávia Pereira Ribeiro, Renata Cortez e Fernanda Gomes e Souza Borges
Desde que o seu uso foi generalizado pelo art. 139, IV, do Código de Processo Civil de 20151, as chamadas medidas executivas atípicas, têm sido alvo de polêmicas tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Em fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 59412 a qual, dentre outros temas, questionava a constitucionalidade de quatro medidas atípicas: apreensão da carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir; a apreensão de passaporte; a proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em licitação pública. As medidas foram consideradas constitucionais pelo Tribunal, nos termos do voto do relator, Ministro Luiz Fux, desde que não avancem sobre os direitos fundamentais e que observem os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Segundo Fux, é inconcebível que o Poder Judiciário, destinado à solução de litígios, não tenha a prerrogativa de fazer valer os seus julgados. O Ministro destacou, contudo, que o juiz, ao aplicar as medidas, deve obedecer aos valores especificados no próprio ordenamento jurídico de resguardar e de promover a dignidade da pessoa humana (art.8º do CPC). Também deve observar a proporcionalidade e a razoabilidade da medida e aplicá-la de modo menos gravoso ao executado (art. 805 do CPC). Nessa direção, a adequação da medida deve ser analisada caso a caso, e qualquer abuso na sua aplicação poderá ser coibido mediante recurso3. A despeito da relevância deste julgamento, o principal palco de discussão acerca dos contornos do art. 139, IV, do CPC, considerado uma cláusula geral aberta, tem sido o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ao julgar o Habeas Corpus (HC) 711.1944, por exemplo, o Tribunal decidiu que as medidas executivas atípicas, quando coercitivas, não devem ter limitação temporal. Nessa direção, o Tribunal assentou que não deve haver um tempo pré-estabelecido fixamente para a duração da medida coercitiva, que deve perdurar pelo tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor, de modo a efetivamente convencê-lo de que é mais vantajoso adimplir a obrigação do que, por exemplo, não poder realizar viagens internacionais. E não é só. Encontra-se pendente na Corte a análise do Tema 1.1375, que vai definir, sob o rito dos recursos repetitivos, "se, com esteio no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil, é possível ou não, o magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade das medidas, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos". Foram selecionados dois Recursos Especiais, 1.955.539 e 1.955.574, como representativos da controvérsia. A relatoria do tema ficou sob a incumbência do ministro Marco Buzzi. Longe de ofuscar a futura análise do tema pelo STJ, o julgamento da ADI n.5941, que se limitou a proclamar a constitucionalidade do art. 139, IV, do CPC, ressalvando expressamente que sua aplicação deve observar casuisticamente os princípios processuais e constitucionais dos artigos 1º, 8º e 805, do CPC, deixou para o STJ a complexa missão de detalhar quais são os requisitos para a aplicação no caso concreto das medidas executivas ativas. Considerando o protagonismo do Tribunal da Cidadania na delimitação deste importante instituto, nosso singelo artigo se propõe a recuperar a trajetória das medidas executivas atípicas no mencionado Tribunal como forma de antever o resultado do julgamento do Tema 1.137. Assim, através da citação de 10 julgados envolvendo a aplicação das medidas executivas atípicas no âmbito do STJ, convidamos o leitor a percorrer novamente esse, desde sempre controverso, mas igualmente instigante, caminho, para, ao final, conhecer a nossa aposta quanto ao julgamento do Tema 1.137. Em junho de 2018, a 3ª Turma do STJ se deparou com o instituto pela primeira vez. O HC 97.8766 questionava a medida executiva atípica de retenção do passaporte. O relator do recurso, ministro Luiz Felipe Salomão, reconheceu a validade da utilização do uso do habeas corpus para questionar a apreensão de passaporte, uma vez quem, no seu entendimento, a medida limitava a liberdade de locomoção. O HC, no entanto, foi deferido, pois como não havia sido demonstrado o esgotamento dos meios tradicionais de satisfação, a medida não se comprovava necessária. Não obstante, a Turma firmou precedente importante no sentido de que seria ilegal e arbitrária a retenção do passaporte em decisão judicial não fundamentada e sem a observação do contraditório: "O reconhecimento da ilegalidade da medida consistente na apreensão do passaporte do paciente, na hipótese em apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica. A medida poderá ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência", registrou o voto do relator. Em dezembro de 2018, ao julgar o HC 99.6067, o Tribunal novamente enfrentou o tema e reconheceu a legalidade da decisão judicial que restringia a saída do país do executado como medida coercitiva indireta para pagamento do débito. Neste caso concreto, o devedor embora tenha alegado o princípio da menor onerosidade, deixou de indicar quais seriam os meios menos onerosos e mais eficazes para a quitação da dívida. A Ministra Nancy Andrighi, relatora do HC, entendeu que essa omissão seria uma conduta violadora aos deveres de boa-fé e de colaboração. Assim, a 3ª Turma denegou a ordem de habeas corpus ao devedor e ressalvou a possibilidade de modificação posterior da medida de constrição caso venha a ser apresentada sugestão alternativa de pagamento. Logo na sequência, em 2019, seguindo as diretrizes da doutrina, no julgamento do REsp 1782418-RJ8, o Tribunal delineou os requisitos necessários para a adoção de medidas atípicas pelo juízo, quais sejam: (i) esgotamento dos meios tradicionais para satisfação do crédito, (ii) devido processo legal, (iii) decisão fundamentada, (iv) não indicação de bens à penhora, (v) indícios de ocultação de patrimônio. Neste mesmo ano, 2019, no julgamento do AREsp 1.495.012/SP9, considerado paradigma, o STJ afastou a utilização das medidas executivas atípicas como penalidade processual, bem como determinou que as medidas atípicas de satisfação de crédito não poderiam extrapolar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, devendo respeitar ainda ao princípio da menor onerosidade ao devedor, previsto no art.805, parágrafo único, do CPC. Ainda em 2019, outro importante julgado, o HC 453.870/PR10, fixa o entendimento de que a apreensão de passaporte em execução fiscal é desproporcional e inadequada à busca da satisfação do crédito da Fazenda Pública. Já em 2020, no julgamento do REsp 1.864.19011, a 3ª Turma, na mesma direção do enunciado n° 12 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis (FPPC)12, ressaltou que as medidas executivas atípicas, previstas no art. 139, inciso IV, do CPC, tem caráter subsidiário em relação aos meios típicos e, por isso, o juízo deve observar  a presença de alguns pressupostos para autorizá-las, como por exemplo, indícios de que o devedor tem recursos para cumprir a obrigação e a comprovação de que foram esgotados os meios típicos para a satisfação do crédito. Em março de 2021, ao julgar o RMS 61717/RJ13, a ministra Laurita Vaz da 6ª ¨Turma, em importante julgado envolvendo a Facebook Brasil, assentou o entendimento, encampado de maneira unânime pela Turma, que é possível fixar medidas executivas atípicas no processo penal, no caso de descumprimento de obrigações judiciais impostas à terceiros.  Em junho de 2021, ao julgar o REsp 1.929.230/MT14, de relatoria do ministro Herman Benjamin, a 2ª Turma assentou o entendimento de que as medidas executivas atípicas são admitidas em casos em que o cumprimento da sentença busca a tutela da moralidade e do patrimônio público. O julgamento envolvia a fixação das mencionadas medidas em uma ação civil pública por ato de improbidade administrativa. No apagar de 2021, por meio do julgamento do REsp 1.951.176/SP15, de Relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, a 3ª Turma, por unanimidade, concluiu pela impossibilidade da quebra de sigilo bancário para a satisfação de um direito patrimonial disponível, tal como o adimplemento de obrigação pecuniária, de caráter eminentemente privado, mormente quando existentes outros meios suficientes ao atendimento dessa pretensão.   Recentemente, como ressaltamos ao introduzir nosso singelo artigo, a Terceira Turma, por meio do HC 711.194/SP16, teve que se pronunciar a respeito da limitação temporal das medidas coercitivas atípicas, tema até então inédito no STJ. A questão foi alvo de divergências. De acordo com o voto do ministro relator, Marco Aurélio Bellizze, a ordem de habeas corpus deveria ser concedida. Segundo o entendimento do ministro, não é possível que as medidas executivas atípicas sejam impostas por tempo indeterminado sem a demonstração de uma justificativa plausível, e que se revele apenas como uma penitência imposta ao devedor sem a potencialidade de coagi-lo ao adimplemento. Não obstante, o voto-vista da ministra Nancy Andrighi, que inaugurou a divergência, prevaleceu. Analisando detalhadamente as sutilezas do caso concreto, a ministra consignou que as medidas atípicas "devem ser mantidas enquanto conseguirem operar sobre o devedor restrições pessoais suficientes para tirá-lo da zona de conforto, especialmente no que se refere aos seus deleites, aos seus banquetes, aos seus prazeres e aos seus luxos, todos bancados pelos credores". Resta pendente, porém, à Corte a importante tarefa de definir, em sede de recursos especiais repetitivos, a possibilidade ou não do magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos, através do julgamento do Tema 1137, cuja decisão de afetação suspendeu todos os feitos e recursos pendentes que versem sobre idêntica questão. Depreende-se dos julgados elencados neste artigo que o STJ tem utilizado os seguintes critérios para avaliar a concessão ou não das medidas executivas atípicas: (i) ponderação; (ii) contraditório substancial; (iii) proporcionalidade;  (iv) observância dos valores em discussão;  (v) análise da existência de comportamento desleal para que não se configure medida de punição; (vi) adequação da medida ao caso concreto; (vii) existência de patrimônio; (ix) menor onerosidade do devedor e até mesmo (x) o equilíbrio entre as partes; sempre com o olhar no potencial satisfativo do crédito exequendo. É importante registrar que os critérios não são estanques, mas dinâmicos, pois podem oscilar, segundo a análise do caso concreto. Nessa direção, nos parece que o magistrado de primeira instância, por conhecer melhor os melindres e os desdobramentos da causa, é o sujeito processual mais adequado para fixar as medidas executivas atípicas. Considerando a trajetória das medidas executivas atípicas no Superior Tribunal de Justiça, apostamos que ao julgar o Tema 1137, a Corte  irá reiterar a jurisprudência do Tribunal que tem reconhecido que a adoção de medidas executivas atípicas é lícita e possível pelo magistrado, desde que exauridos previamente os meios típicos de satisfação do crédito exequendo e quando a medida se afigure adequada, necessária e razoável para efetivar a tutela do direito do credor em face do devedor, especialmente quando este demonstrar possuir patrimônio apto a saldar o débito em cobrança, mas intentar frustrar injustificadamente o processo executivo. __________ 1 Art.139, IV do CPC: O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. 2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5941. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília.  Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 3 Disponível aqui.  4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 711.194-SP (2021/0392045-2). 3ª Turma. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Relator para o acórdão: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, julgado em 21 jun. 2022.  Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023 5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. ProAfR no REsp n. 1.955.539/SP. Relator Ministro Marco Buzzi - Segunda Seção. julgado em 29/3/2022, Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 07 abr.2022.  6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 97.876-SP (2018/0104023-6). Relator: Min. Luis Felipe Salomão - 4ª Turma. Julgado em: 05 jun. 2018. Publicado em: 09 ago. 2018. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 99.606-SP (2018/0150671-9). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado: 13 nov. 2018. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.782.418-RJ (2018/0313595-7). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 23 abr. 2019. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no Recurso Especial n. 1949624-SP (2021/0223200-3). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 04 abr. 2022. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 10 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 453.870-PR (2018/0138962-0). Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho - 1ª Turma. Julgado em: 25 jun. 2019.Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.861.190-SP (2020/0049139-6). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 16 jun. 2020. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 12 Enunciado 12 FPPC: A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II. 13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança n. 61.717-RJ (2019/0257887-7). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 02 mar 2021. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 14 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.929.230-MT (2020/0165756-0) - Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 04 mai. 2021. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.951.176-SP (2021/0235295-1) - Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze - 3ª Turma. Julgado em: 19 out. 2021. Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023. 16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 711.194-SP (2021/0392045-2). Relatora: Ministra Nancy Andrighi - 3ª Turma. Julgado em: 21 jun. 2022.Disponível aqui. Acessado em 05.02.2023.
A legislação processual faz previsões abstratas e cabe aos operadores do direito a aplicação dessa norma ao caso concreto. O CPC de 2015 reforça a noção de justiça multiportas, especificando que o Poder Judiciário não é a única forma de resolução de um conflito, determinando que juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, estimulem a conciliação, mediação e outras formas de solução de conflito, inclusive no curso do processo judicial. A experiência de sucesso de algumas situações concretas pode auxiliar outros profissionais na aplicação da norma abstrata. Busca-se analisar se essas boas práticas têm sido utilizadas no sistema multiportas. As Boas Práticas surgem a partir da indeterminação, lacuna ou vagueza das disposições normativas processuais, viabilizando que os operadores do direito, sejam eles, juízes, advogados, membros do Ministério Público, defensores públicos, etc., encontrem soluções práticas e eficientes para a resolução de demandas sociais repetitivas, a fim de propiciar o correto desempenho do sistema de justiça e, de certa forma, promover a celeridade processual e estimular o aperfeiçoamento do uso das mais diversas portas de acesso à uma ordem jurídica justa. A análise das boas práticas revela que algumas têm se tornado verdadeiros costumes processuais e tendências dos Tribunais na resolução de uma determinada demanda social que se repete, enquadrando-se como soft law, ressaltando a sua importância para o processo civil1. Exemplos de boas práticas seriam as práticas em processos estruturais (audiências preliminares para conhecimento do caso); em julgamentos colegiados como o pré-anúncio do voto do relator, de modo a tornar a sustentação oral algo prescindível; na arbitragem internacional, como o dever de revelar circunstâncias que possam ensejar fundada dúvida sobre a imparcialidade do árbitro, como previsto nas diretrizes da IBA, e também o art. 14 da Lei nacional de Arbitragem (lei 9.307 de 23 de Setembro de 1996)2. As boas práticas passam a ser estudadas pela doutrina e por vários operadores do direito. O CNJ criou um portal de boas práticas processuais3 e já editou normas4 prestigiando-as. O Conselho Nacional do Ministério Público dedica um setor de sua página na web à disseminação e divulgação de boas práticas5. O STJ já promoveu evento para promover o intercâmbio de boas práticas6. Alguns tribunais já prestigiam as boas práticas, como o Tribunal de Contas do Paraná, que lançou curso de boas práticas em execução fiscal; o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo7, que possui um manual de boas práticas cartorárias8; o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que promove mostras de boas práticas há alguns anos9. As boas práticas, portanto, têm como característica basilar a inovação no âmbito da administração da justiça. Inovação como sinônimo de propor ideias que surgem através de demandas sociais identificadas através de uma visão ampla do sistema de justiça. Fredie Didier e Leandro Fernandez lecionam que para que a administração da justiça tenha uma verdadeira cultura de inovação, além dos estímulos da prática, há necessidade de permanente reflexão sobre a organização e funcionamento do sistema de justiça; de recursos para identificar problemas institucionais. Destacam os autores, ainda, a importância da "participação de integrantes da academia, e com meios para  a realização de testes das soluções concebidas (prototipagem)"10. São requisitos fundamentais para considerar uma boa prática: (i) a adequação de um caso, ou de um perfil de casos a uma determinada demanda social; (ii) conformidade com o ordenamento jurídico; (iii) caráter inovador da prática; e, (iv) promoção de determinado bem jurídico em extensão superior àquela assegurada pelos modelos básicos tradicionalmente adotados. A portaria 140/19 do CNJ define a boa prática no art. 4º, inciso I: "experiência, atividade, ação, caso de sucesso, projeto ou programa, cujos resultados sejam notórios pela eficiência, eficácia e/ou efetividade e que contribuam para o aprimoramento e/ou desenvolvimento de determinada tarefa, atividade ou procedimento do Poder Judiciário"11. As boas práticas podem ser enquadradas em duas modalidades: práticas com pretensão de institucionalização e práticas desenvolvidas para o atendimento das peculiaridades de um caso concreto. As primeiras são concebidas pelo CNJ, pelos tribunais ou por outras entidades como estratégias institucionais para a solução de problemas identificados no sistema de justiça ou para aperfeiçoar o seu funcionamento. Já as boas práticas para o atendimento de um caso concreto são pensadas de acordo com as peculiaridades de um determinado caso jurídico, tem como fito a resolução de um problema específico ou de um conjunto de problemas. Frisa-se que, por óbvio, uma boa prática elaborada para solucionar um caso concreto pode ser elevada ao status da institucionalização. Cabe ao Conselho Nacional de Justiça a função de observatório nacional das boas práticas judiciárias, compilando-as, divulgando-as e promovendo-as, e se for o caso levá-las à institucionalização por parte de tribunais, pelo próprio CNJ ou por outras entidades12. São características das boas práticas, trazidas por Fredie Didier e Leandro Fernandez13: a) A característica da inovação, isso porque as boas práticas não estão previstas como padrão de funcionamento ou de organização do Poder Judiciário. Elas são práticas lícitas construídas a partir dos espaços de criatividade permitidos dentro do ordenamento jurídico. Caso se constate seu sucesso, é bom que sejam incorporadas ao sistema jurídico e consagradas como políticas públicas vinculantes do Judiciário. b) A adequação, que também é um princípio que norteia a escolha da melhor "porta" a ser escolhida no sistema de justiça multiportas. Por meio desta característica deve se analisar a adaptação do processo ou a organização ou o funcionamento do judiciário às peculiaridades de certo perfil de casos ou de determinadas demandas sociais. Como exemplo, temos a autorização do juízo 100% digital em razão da demanda social que adveio da pandemia de Covid-19, através da Resolução 345/20 do CNJ. c) A conformidade com o ordenamento jurídico. Isto porque as boas práticas na administração da justiça devem respeitar as normas previstas no ordenamento jurídico. Sua adoção não pode, de maneira alguma, implicar em uma ameaça às garantias constitucionais e processuais das partes, ou às prerrogativas da advocacia e da magistratura. d) Promoção de determinado bem jurídico em extensão superior àquela assegurada pelos modelos básicos tradicionalmente adotados, como outro traço relativo às boas práticas, isto porque, elevar ao "status de boa prática" um conjunto de atos institucionais envolve que eles perpassem pelo crivo da eficiência. A eficiência de uma boa prática é analisada por alguns primas, quais sejam, o quantitativo, o qualitativo e o probabilístico. O órgão jurisdicional deve escolher como boa prática, uma prática que promova resultados significantes, este é o prisma quantitativo. Já o prisma qualitativo se depreende da análise de que não se pode escolher um meio que promova resultados negativos. O prisma probabilístico compreende o fato de que não se pode escolher como boa prática aquela que promove um resultado duvidoso, deve se escolher um meio que produza resultados certos e eficientes capazes de solucionar demandas sociais. d) Outra característica inerente a uma boa prática é a não definitividade. Tal característica é fundamental quando se pretende institucionalizar a boa prática. Esse atributo refere-se ao fato de que as boas práticas são concebidas em um modelo flexível de gestão dos processos e do judiciário, é entender que as boas práticas possuem uma natureza experimental, podendo compreender uma etapa de prototipagem em seu desenvolvimento. A escolha pela revisão, pelo abandono ou até mesmo pela institucionalização daquela prática compreende a verificação da sua aptidão ou eficiência no que tange ao alcance dos objetivos pretendidos. e) Caráter tendencialmente replicável: uma característica inerente a uma boa prática é que elas podem ser repetidas, utilizadas como parâmetro em outros tribunais ou juízos com as adaptações necessárias às suas especificidades o que culminará em novas experiências institucionais. Uma prática bem-sucedida raramente é utilizada em apenas em uma ocasião, ressalvados os casos de boas práticas criadas para o atendimento e resolução de um caso concreto, haja vista suas particularidades. O CNJ através da portaria 140/19 prevê como critério de identificação de uma boa prática, a exportabilidade, ou seja, a viabilidade de replicação desta prática em outras organizações. O Código de Processo Civil reforçou o modelo de sistema de justiça multiportas, incentivando e estimulando a resolução de disputas de forma não somente jurisdicional, mas considerando as diversas "portas" de acesso à justiça ou de acesso à uma ordem jurídica justa, como a mediação, a arbitragem, a conciliação, as ODR's14, os Dispute Boards, a negociação, dentre outros. Dessa forma, a demanda deve ser submetida à técnica ou ao método mais apropriado de solução daquele problema, ou seja, no momento da escolha do método de resolução da disputa, deve ser levado em consideração pelas partes o princípio da adequação a fim de propiciar uma tutela jurisdicional mais efetiva, célere e apropriada ao problema juridicamente proposto. O modelo de sistema de justiça multiportas veio para ressignificar o acesso à justiça, permitindo que tanto as partes quanto o operador do direito observem que não é somente o processo judicial, ou seja, o processo adjudicatório, o único meio hábil a solucionar aquele conflito que é trazido e que demanda uma solução, outros meios não jurisdicionais podem ser, inclusive, muito mais eficientes, para que se alcance a solução mais efetiva ao litígio. A justiça multiportas é uma metáfora em que se imagina um labirinto onde existem diversas porta de solução de um problema jurídico, tais como a porta da mediação, a da arbitragem, a da conciliação, a dos Dispute Boards, a das ODR`s, a negociação, etc. O Estatuto da OAB diz que o advogado deve estimular que as partes cheguem a um acordo, fomentando assim a negociação, e a tarefa do operador do direito é justamente a de diagnosticar o problema e através do princípio da adequação, encaminhá-lo à porta mais eficiente a resolvê-lo. Entender e compreender o modelo de sistema de justiça multiportas é compreender que nem sempre o caminho do judiciário é o mais adequado, embora seja ele uma das diversas portas existentes no sistema. O art. 3º do CPC eleva a solução adequada de conflitos ao status de norma fundamental do processo e as boas práticas podem auxiliar na efetivação de meios de solução de conflitos mais adequados. As boas práticas podem servir como meio de aperfeiçoamento do sistema de justiça multiportas pois elas cumprem o papel de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Em 2014, foi promovido Estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil, fruto de uma parceria entre a Secretaria de Reforma do Judiciário e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, teve coordenação de Ada Pellegrini Grinover, Maria Tereza Sadek, Kazuo Watanabe, Daniela Monteiro Gabbay e Luciana Gross Cunha15. O estudo analisou 5 casos concretos nas 5 regiões do Brasil e trouxe ao final diretrizes para boas práticas de mediação de conflitos. Nessa pesquisa, algumas boas práticas de mediação foram coincidentes em vários projetos como: (i) legitimação pelos atores do sistema de Justiça (Ministério Público, Cejuscs e Defensoria Pública foram os legitimadores em alguns casos de sucesso); (ii) importância da pré-mediação, acolhimento e adesão; (iii) supervisão; (iv) estabelecimento de parcerias com entes públicos e privados e sociedade. No Fórum Permanente de Processualistas Civis, (FPPC-XI) de 2022, em Brasília, foi aprovada como boa prática e como prática não jurisdicional de solução de conflito, a atuação concertada entre câmaras de autocomposição dos Estados e as respectivas Defensorias Públicas, que envolve os órgãos do Rio de Janeiro: Procuradoria de Métodos Adequados de Solução de Controvérsias e Direitos Humanos da PGE-RJ, a Secretaria de Estado de Saúde do RJ, e  a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; e órgãos no Pará quais sejam: a Procuradoria Geral do Estado (Câmara de Negociação, Conciliação, Mediação e Arbitragem) e a Defensoria Pública do Estado do Pará16. Esta boa prática aprovada pela plenária no XI FPPC em 2022, consiste na prevenção de litígios por meio das câmaras de autocomposição dos Estados, onde eventuais pleitos contra o Estado são levados pela Defensoria Pública à Câmara para eventual tratamento do litígio, sem a necessidade de submissão ao Judiciário. No Rio de Janeiro cerca de 18.000 demandas foram atendidas pela Câmara evitando sua judicialização. No estado do Pará é utilizado o processo administrativo eletrônico a fim de facilitar a comunicação e solução das demandas. Tal prática foi apresentada pelo grupo de práticas não jurisdicionais de solução de conflitos. São responsáveis pela prática: Procuradorias dos Estados do Rio de Janeiro e do Pará. Defensorias Públicas dos Estados do Rio de Janeiro e do Pará, defensores e servidores das secretarias envolvidas. No portal de boas práticas no portal do CNJ há diversos exemplos de práticas aplicadas a sistema multiportas. Podem-se citar como exemplos: Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), serviço oferecido pela comarca de Belo Horizonte; Conciliação em Domicílio, na Comarca de Governador Valadares; Sistema de Negociação Virtual implementado no sistema PROJUD na Bahia; Robô de atendimento por WhatsApp "Jefinho" em conciliações; PAPRE Posto de Atendimento Pré-Processual no TJMG; Adoção do processo negocial eletrônico (PNe) como método permanente e paralelo ao PJe17. Pensar em boas práticas e replicá-las em outros órgãos é algo muito recente, mas que tem um potencial imenso de propiciar meios de solução de conflitos ainda mais adequados. Várias práticas já foram colocadas à prova com sucesso, resta a institucionalização de algumas que são passíveis de serem reproduzidas nacionalmente. Aos operadores do direito que ainda são relutantes ao sistema multiportas é necessário deixar de lado a visão de que a única forma de resolver um conflito é o Poder Judiciário e dar uma chance a outras portas no caso concreto. Com o avanço da tecnologia, novas práticas devem surgir nos próximos meses e anos, transformando a prestação jurisdicional e possivelmente ampliando o acesso à justiça. Resta investir também em acessibilidade digital para que todos os jurisdicionados possam usufruir dessas inovações. --------- 1 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução ao estudo das boas práticas na administração da justiça: a relevância dogmática da inovação. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro 84, abr./jun. 2022, p. 2. 2 Idem ibidem. 3 Disponível em: https://boaspraticas.cnj.jus.br/portal 4 Pode-se citar como exemplo a Portaria 140/19 (Boas práticas do Poder Judiciário); Resolução 345/22 (juízo 100% digital); Resoluções 385/21 e 398/21 (Núcleo de Justiça 4.0); Resolução 395/21 (Política de Gestão da Inovação no âmbito do Poder Judiciário), etc. 5 Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/servicos/101-enasp/216-boas-praticas 6 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-10-09_17-45_Evento-promove-intercambio-de-boas-praticas-sobre-sistema-de-precedentes.aspx 7 Disponível em: https://www1.tce.pr.gov.br/conteudo/online-boas-praticas-execucoes-fiscais-medidas-judiciais-para-pesquisa-de-bens-curso-online/339886/area/59 8 Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/Corregedoria/Manuais/CartilhaBoasPraticas.pdf 9 Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/gestao-estrategica/mostra-das-boas-praticas. 10 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução ao estudo das boas práticas na administração da justiça: a relevância dogmática da inovação. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 84, abr./jun. 2022, 13. 11 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3021. 12 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, ob. cit. 13 DIDIER, Fredie; FERNANDEZ, ob. cit. 14 Plataformas de resolução de conflitos on-line (chamadas em inglês de ODR - Online Dispute Resolution). 15 Estudo qualitativo sobre boas práticas em mediação no Brasil. coordenação : Ada Pellegrini Grinover, Maria Tereza Sadek e Kazuo Watanabe (CEBEPEJ) , Daniela Monteiro Gabbay e Luciana Gross Cunha (FGV Direito SP) ; colaboradores : Adolfo Braga Neto ... [et al.]. - Brasília : Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, 2014. Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/6850/1/BOAS_PRATICAS_EM_MEDIACAO_NO_BRASIL.pdf 16 Disponível em: https://diarioprocessualonline.files.wordpress.com/2022/03/enunciados-fpcc-2022-1.pdf 17 Disponível em: https://boaspraticas.cnj.jus.br/por-eixo/9.
"Há vários caminhos até a montanha". A expressão, oriunda de um provérbio hindu, lembra-nos que o mesmo objetivo pode ser alcançado de várias formas e por diversos caminhos1. Diz o provérbio que "o único que perde tempo é aquele que corre ao redor da montanha, apontando a todos que o caminho deste ou desta pessoa é errado". É exatamente o que ocorre com a desjudicialização da execução civil (PL 6204/2019). Por que, em vez de sermos refratários a esta inovação, não a consideramos como um marco que nos convida a pensar em outros caminhos (portas) para a execução? Nosso sistema convive com modelos executivos extrajudiciais e desjurisdicionalizados desde a década de 60. Assim ocorreu com a recuperação de créditos ou de imóveis vendidos sob a égide do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) por meio da lei 4.380/1964. Como a própria estrutura do SFH planejava a reinserção do capital financiado, gerando novas operações de financiamento e novos empreendimentos imobiliários, em 21 de novembro de 1966, foi publicado o decreto-lei (DL) 70, criando um procedimento extrajudicial de recuperação de créditos2. De acordo com os artigos 31 e 32 dessa norma, não havendo o pagamento da dívida hipotecária, no todo ou em parte, ficaria a critério do credor comunicar os fatos ao agente fiduciário, solicitando a execução da dívida; permanecendo a inadimplência, esse agente privado poderia promover, de forma autônoma e sem qualquer intervenção judicial, o leilão do imóvel hipotecado3. Três anos depois, o decreto-lei 911/1969 alterou o artigo 66 da lei 4.728/1965, fazendo constar expressamente, no § 4.º desse dispositivo, que, no caso de inadimplência de obrigações contratuais garantidas por alienação fiduciária de bens imóveis, o proprietário fiduciário poderia vender a coisa a terceiros e aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da cobrança, entregando ao devedor o saldo porventura apurado, se houver. Há mais de 50 anos, portanto, o ordenamento jurídico brasileiro já previa a possibilidade de venda de imóvel em razão de dívida contratual, sem qualquer intervenção judicial ou extrajudicial, por iniciativa única e exclusiva do credor, como forma de desafogar o Poder Judiciário, dar maior celeridade ao procedimento e segurança jurídica aos contratos firmados mediante alienação fiduciária. A partir daí, há vários outros exemplos. Quinze anos depois, a lei 6.766/1979, que regula loteamentos e parcelamentos de terrenos urbanos - mais tarde alterada pela lei 13.786/2018 -, veio a permitir que, caso o devedor não pague as prestações, seja constituído em mora e tenha a averbação do loteamento cancelada (art. 32 e parágrafos), procedimento feito todo mediante o cartório de registro de imóveis, sem qualquer intervenção judicial. Em 1997, a Lei n.º 9.514 previu o procedimento extrajudicial de execução, ao dispor acerca da alienação fiduciária de imóvel, permitindo a constituição do devedor em mora e a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, sem a instauração do contraditório entre as partes. Portanto, há a transferência da propriedade do bem, feita diretamente pelo cartório de registro de imóveis, sem qualquer interferência ou análise do Poder Judiciário. Em movimentos mais recentes sobre a desjudicialização de atos para os cartórios brasileiros, pode-se citar a lei 10.931/2004, que trata da retificação do registro imobiliário. Apontam-se ainda: lei 11.441/2007, que alterou dispositivos da lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa; lei 13.484/2017, que alterou a lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos, permitindo a retificação de registro civil; CPC/2015, que institui o usucapião extrajudicial no seu artigo 1.071, alterando o Capítulo III do Título V da lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos). Assim, é possível perceber como a proposta de desjudicialização contida no PL 6.204/2019, para além de constituir uma novidade, apresenta-se como um novo e relevante passo nesse movimento de "extrajudicialização" de atos como forma de aprimorar a atividade jurisdicional. O sistema multiportas iniciou-se com os olhos voltados para a fase cognitiva do processo, na qual o jurisdicionado opta pelo meio mais adequado de resolução do seu problema, conforme as peculiaridades do caso concreto. Na estrutura da Multi-Door Courthouse, há uma forma de solução adequada para cada situação. Deve-se, portanto, dar um passo a mais e levar o sistema multiportas para a fase de satisfação do direito - a fase executiva -, conjugando-se o tradicional meio do processo estatal, com os demais mecanismos predispostos pelo ordenamento jurídico, para adequar-se às diferentes formas e especificidades da pretensão executiva, admitindo-se a coexistência de outras portas além de estatal: a descentralização, a desjudicialização e a desjurisdicionalização. Por que não se permitir uma abertura para a livre iniciativa4, por meio da participação de agentes de execução privados, como incentivo à livre concorrência? O agente de execução poderia ser tanto público quanto privado, de livre nomeação pelas partes, por convenção processual, ou nomeado pelo juiz,  podendo praticar todos os atos executivos que não estivessem atribuídos às serventias judiciárias ou que não fossem de competência exclusiva do juiz. Enfim, pode-se admitir que os atos executivos sejam realizados por agentes do próprio Estado (oficiais de justiça), por aqueles vinculados ao Poder Público por delegação (tabeliães de notas), ou mesmo por agentes privados sem qualquer ligação com o sistema estatal de justiça. Mas ainda há outras portas a serem abertas. Os negócios jurídicos processuais na execução também podem ser explorados no âmbito da extrajudicialização de atos, com a possibilidade das partes definirem quem desempenhará a função de agente de execução. Pode-se conjecturar a realização de convenções ou negócios jurídicos para que seja permitido às partes escolher quem figurará na condição de agente de execução, se um agente privado, público ou misto. Ora, se ao credor é dada a possibilidade de desistir da totalidade do seu crédito e da execução já ajuizada, sem precisar, via de regra, nem sequer da oitiva do devedor, pode-se admitir que as partes optem pelo agente responsável pelos atos executivos que lhes pareça mais adequado, por questões de custo, de eficiência, de proximidade geográfica etc., à semelhança do que já acontece em outros países5. E nem se trataria de uma novidade. Além de já termos exemplos em nosso sistema (DL 911/1969, lei 9.514/1997 e DL 70/1966), a ideia não é nova, tem seu embrião na própria Lei de Arbitragem6. Afinal, se o ordenamento jurídico brasileiro já admite a possibilidade de as partes escolherem um terceiro para conduzir totalmente o processo de conhecimento e proferir decisão de mérito, equiparável à decisão judicial, por que não se permitir ao exequente a escolha do agente de execução? É interessante lembrar que o Grupo de Trabalho, instituído pela Portaria 272/2020, do Conselho Nacional de Justiça, para diagnosticar e apresentar medidas voltadas para a efetividade da execução, no seu relatório final, concluído em 20227, recomendou procedimentos de execução mais eficientes e sistemas com base de dados integrados, que permitam uma melhor busca e localização de bens e recuperação de ativos de devedores. Por que, então, não se dar mais um passo e admitir, também, a possibilidade da implementação de novas ferramentas tecnológicas que transfiram para os sistemas automatizados ou mesmo de inteligência artificial a responsabilidade pela prática dos atos executivos? Nesse sentido, destaca-se os avanços já feitos nas relações negociais que utilizam as inovações tecnológicas como forma de efetivação material de direitos e praticam atos de execução e invasão patrimonial, como os smart contracts ou "contratos inteligentes". Tais "protocolos de transação computadorizada" executam os termos de um contrato (possuem autoexecutoriedade), inclusive a cláusula penal, por meio de um código de programação que é inserido em uma plataforma chamada Ethereum. Desse modo, todos os atos necessários para a implementação e a execução das cláusulas contratuais são realizados de forma automatizada via blockchain8. As inovações decorrentes dos smart contracts podem ser uma outra porta, no sistema multiportas de execução, inclusive com a possibilidade de reformular todo o sistema legal executivo9. A automatização e a transferência da competência dos atos executivos para uma ferramenta tecnológica tornam o inadimplemento contratual muito mais custoso para as partes, na medida em que, em vez de se discutir o descumprimento de uma obrigação, elas serão obrigadas a buscar a reversão de transações que já foram finalizadas10. Enfim, o PL 6204/2019 deve ser visto não como a única via de extrajudicialização dos atos executivos, mas como um marco para a coexistência de várias outras formas de extrajudicialização dos atos executivos, até mesmo com a possibilidade de o agente de execução ser uma ferramenta tecnológica, segura, transparente e automatizada. Em suma, devemos abrir outras portas para a execução - um sistema multiportas de execução amplo-, não apenas com a extrajudicialização de atos por agentes físicos (judiciais, extrajudiciais e privados), mas também com o uso de ferramentas tecnológicas. Afinal, "há vários caminhos até a montanha"11. __________ 1 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022. 2 CETRARO, José Antonio. A execução extrajudicial no SFH: do Decreto-Lei 70/66 à Lei 9.514/97. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 41, n. 84, jan./jun. 2018, p. 428. 3 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022. 4 ANDRADE, Juliana Melazzi; CABRAL, Antonio do Passo; PARIZIO, André; DUARTE, Larissa Carrasqueira; BOISSON, Eduarda. Anteprojeto de lei. Atribuição da prática de atos executivos para agentes de execução no cumprimento de sentença ou no processo de execução. Proposta de alterações ao Código de Processo Civil e à Lei de Execuções Fiscais. Civil Procedure Review, [s.l.], v. 12, n. 1, p. 207-234, jan./abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 3 dez. 2022. 5 Sobre as experiências e os modelos da atividade executiva em outros países, consultar: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Execução e desjudicialização: modelos, procedimento extrajudicial pré-executivo e o PL 6204/2019. Revista de Processo, São Paulo, v. 45, n. 306, p. 151-175, 2020. 6 A lei 9.307/1996, que dispõe sobre a arbitragem, prevê a possibilidade de as partes optarem, mediante convenção específica (art. 3.º), por um procedimento totalmente conduzido, instruído e julgado por um agente privado, que tenha a confiança das partes (art. 13.º) para dirimir seus litígios, desde que relativos a direitos patrimoniais disponíveis (art. 1.º). A sentença proferida pelo árbitro vincula as partes e seus sucessores, constituindo ainda título executivo judicial (art. 31 da Lei de Arbitragem e art. 515, VII, do CPC/2015). 7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Reunião do GT de Execução Civil: leitura do Relatório Final do GT de Execução Civil. Transmitido ao vivo em 15 de fevereiro de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 4 mar. 2022. 8 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022; PIMENTEL, Letícia de Carvalho. Os smart contracts como ferramenta de efetividade e fomento da execução extrajudicial de multas contratuais. Revista de Direito e as Novas Tecnologias, São Paulo, n. 10, ano 4, jan./mar. 2021, p. 11-12. Disponível aqui. Acesso em: 25 out. 2021. 9 NUNES, Dierle; VIANA, Antônio Aurélio de Souza; PAOLINELLI, Camilla. Um olhar iconoclasta aos rumos da execução civil e novos e-designs: como os smart contracts e as online dispute enforcements podem revelar inovações para a desjudicialização da execução. In: BELLIZZE, Marco Aurélio; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ALVIM, Teresa Arruda; CABRAL, Trícia Navarro Xavier (coord.). Execução civil - novas tendências: estudos em homenagem ao professor Arruda Alvim. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 231-232. 10 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022. 11 COSTA, Rosalina Moitta Pinto da; MOURA, João Vitor Mendonça de. Descortinando novos caminhos para um sistema multiportas de execução no Brasil: "há vários caminhos até a montanha". Revista de Processo, São Paulo, v. 47, n. 334, p. 413-437, dez. 2022. __________
Em meio às eleições de 2022 percebeu-se um número cada vez mais crescente de decisões judiciais determinando a suspensão de perfis em redes sociais pelo Supremo Tribunal Federal. Além da repercussão política gerada por estas decisões, instaurou-se uma discussão na doutrina e na jurisprudência acerca desses bens digitais. Embora a maioria das decisões tenha sido proferida em sede de juízo criminal, por meio de inquéritos instaurados pela Corte1, abre-se espaço para uma discussão mais ampla, em âmbito cível, referente ao cabimento de ações possessórias para a retomada da posse dos perfis em redes sociais. Os perfis em redes sociais estão enquadrados no conceito de bens digitais. Este conceito é relativamente novo no Brasil e pode ser definido como o conjunto de informações virtualmente registradas por alguém, com ou sem conteúdo econômico.2 Segundo Bruno Zampier, os bens digitais podem se apresentar sob a forma de: a) um correio eletrônico (todos os serviços de e-mail, tais como Yahoo, Gmail e Hotmail); b) uma rede social (Facebook, LinkedIn, Google+, MySpace, Instagram, Orkut, etc); c) um site de compras ou pagamentos (eBay e PayPal); d) um blog (Blogger ou Wordpress); e) uma plataforma de compartilhamento de fotos ou vídeos (Flickr, Picasa ou Youtube); f) contas para aquisição de músicas, filmes e livros digitais (iTunes, GooglePlay e Pandora); g) contas para jogos online (como o World of Warcraft ou Second Life) ou mesmo em contas para armazenamento de dados (serviços em nuvem, como Dropbox, iCloud ou OneDrive).3 Uma pesquisa realizada pelo blog SignalFire constatou que mais de 50 milhões de pessoas no mundo se consideram influenciadores digitais4 (termo utilizado para definir pessoas que se utilizam das mídias sociais para influenciar pessoas a adquirirem produtos ou serviços). O Brasil ocupa a segunda posição em número de influenciadores digitais no mundo, contendo mais de 14 milhões, perdendo, apenas, para os Estados Unidos, segundo pesquisa realizada pela plataforma Nielsen.5 Considerada como uma profissão, atualmente, os influenciadores digitais podem faturar muito com seus perfis em redes sociais. A título de exemplificação, a remuneração média por post no perfil do jogador de futebol Neymar é, em média, 4,12 milhões de reais no Instagram.6 Percebe-se, portanto, que a suspensão dos perfis em redes sociais pode causar enormes prejuízos aos usuários, de natureza material, inclusive. Porém, como o tema ainda é novo, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, ainda há pouco estudo sobre o cabimento de mecanismos para a retomada da posse destes bens digitais. O Código Civil de 2002 adotou a teoria objetiva em relação à posse, dispondo em seu art. 1.196: Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Assim, considera-se possuidor aquele que tenha o exercício de fato da coisa e possua algum dos elementos inerentes à propriedade (faculdade de usar, gozar, dispor ou reivindicar). As políticas para o uso das mídias sociais incluem, entre outros serviços, oferecer oportunidades personalizadas de criar, conectar, comunicar, descobrir e compartilhar7, ou seja, a utilização da mídia como um bem digital, em que o usuário seria seu possuidor, conforme as condições e termos de uso da empresa. Neste raciocínio, a empresa fornecedora da mídia social (Instagram, Facebook, WhatsApp, Twitter, YouTube...) é proprietária dos perfis e cede o uso da plataforma em um perfil ao usuário, segundo o contrato de adesão de seus usuários, considerados possuidores. Tradicionalmente, o ordenamento jurídico brasileiro adotou o posicionamento de que somente poderiam ser objeto da posse os bens corpóreos que tivessem materialidade e que fossem suscetíveis de valor econômico. Assim, não poderiam ser considerados objeto da posse os bens imateriais e intangíveis, como os direitos autorais, patentes e softwares. Entretanto, a doutrina vem defendendo a extensão da proteção possessória sobre os bens imateriais (incorpóreos e semicorpóreos). Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald argumentam: Vimos que o Código Civil vigente adota a teoria objetiva de Ihering. Por essa trilha a posse não implica necessariamente na apreensão material do bem, mas na exteriorização da propriedade, ou seja, na adoção pelo possuidor de um comportamento sobre o bem análogo àquele que ordinariamente qualquer proprietário assumiria. O que releva, portanto, não é o aspecto corpóreo, mas o elemento externo e objetivamente perceptível da destinação econômica imprimida ao bem.8 O STJ já reconheceu como objeto de posse o sinal de TV à cabo na esfera criminal: FURTO DE SINAL DE TV A CABO. TIPICIDADE DA CONDUTA. FORMA DE ENERGIA ENQUADRÁVEL NO TIPO PENAL. I. O sinal de televisão propaga-se através de ondas, o que na definição técnica se enquadra como energia radiante, que é uma forma de energia associada à radiação eletromagnética. II. Ampliação do rol do item 56 da Exposição de Motivos do Código Penal para abranger formas de energia ali não dispostas, considerando a revolução tecnológica a que o mundo vem sendo submetido nas últimas décadas. III. Tipicidade da conduta do furto de sinal de TV a cabo" (REsp. 1123747/RS, 5a T., Rel. Min. Gilson Dipp, Recurso Especial, DJe 1.2.2011). Portanto, segundo o ordenamento jurídico, são objeto de posse os bens corpóreos e os incorpóreos suscetíveis de apropriação e comercialidade. O objeto da posse não se identificaria pela materialidade do bem, mas sim pela sua delimitação e determinação.9 Em um mundo cada vez mais digital não há razão para não abranger o objeto da posse aos bens imateriais. Os bens digitais, como perfis em redes sociais, e-mails, nomes de domínio, são bens que, inclusive, podem ser objeto de direito sucessório e possuem valor econômico.10 Inegável, é, portanto, o cabimento de ações possessórias para a retomada do direito de uso dos perfis em redes sociais por meio de ações possessórias, com todos os seus institutos, inclusive possibilidade de concessão liminar da posse nos casos em que se demonstrarem presentes os seus requisitos. A doutrina e a jurisprudência precisam urgentemente atualizar seus entendimentos a respeito do tema, bem como promover a sistematização dos novos meios de tutela dos bens digitais. __________ 1 Ver Inquérito das Fake News n° 4.781/DF. Trata-se de inquérito instaurado pela Portaria GP Nº 69, de 14 de março de 2019, do Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente, nos termos do art. 43 do Regimento Interno desta CORTE. O objeto deste inquérito, conforme despacho de 19 de março de 2019, é a investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros. Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022. 2 Zampier, Bruno. Bens Digitais. Edição do Kindle. 2ª Edição. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 74. 3 Zampier, Bruno. Bens Digitais. Edição do Kindle. 2ª Edição. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 76. 4 Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022. 5 Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022. 6 Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022. 7 Ver os termos de uso do Instagram. Disponível aqui. Acesso em 21 dez. 2022. 8 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: direitos reais. Salvador: Ed. Jus Podivum, 2020, p. 117. 9 STJ, REsp. 769731/PR, 1a T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ 31.5.2007. 10 TAVEIRA JR, Fernando. Bens digitais (digital assents) e a sua proteção pelos direitos da personalidade: um estudo sob a perspectiva da dogmática civil brasileira. Porto Alegre: Revolução E-Books, 2018.  
"O homem a quem é negada a oportunidade de tomar decisões relevantes começa a enxergar como relevantes as decisões que pode tomar". (Northcote Parkinson. Escritor inglês. Parkinson's Law. 1958) A Emenda Constitucional n° 125/2022 inseriu os §§ 2º e 3º no artigo 105 da Constituição Federal de 1988, com vistas a exigir a relevância da questão de direito federal infraconstitucional no recurso especial. Ao tratarmos do tema, a pergunta preliminar que devemos, honestamente, nos fazer é: consideramos salutar haver um filtro de relevância para os recursos especiais? Em 1995, o Superior Tribunal de Justiça recebeu aproximadamente 80.000 processos e julgou um montante em torno de 60.000. Em 2021, por seu turno, o referido tribunal recebeu 408.770 processos e julgou 427.9061. Os dados revelam que a demanda da corte quintuplicou nesse ínterim, mantendo-se o mesmo contingente de 33 Ministros. Embora a produtividade do Superior Tribunal de Justiça tenha aumentado2, caso seja mantido o modelo atual, não vislumbramos condições para que essa difícil equação seja resolvida. Cumpre rememorar que o Superior Tribunal de Justiça concentra a competência, no Brasil, em matéria de cooperação jurídica internacional, cabendo-lhe, desde a Emenda Constitucional nº 45/2004, homologar todas as sentenças estrangeiras para que produzam efeitos no Brasil e conceder exequatur a todas as cartas rogatórias, sejam de 1ª ou de 2ª categoria. O volume de pedidos de cooperação jurídica internacional envolvendo o Brasil correspondia a 2.892 casos no ano de 2004, tendo aumentado para 6.396 em 2021, segundo dados do Ministério da Justiça3, significando que o volume mais que dobrou no período. Tais dados revelam o crescente afluxo de demandas para aquele tribunal superior em razão do incremento do volume de litígios com elemento de estraneidade na contemporaneidade. A título comparativo, na Itália, que conta com 59 milhões de habitantes, os tribunais locais possuem competência para cooperação jurídica internacional, enquanto, no Brasil, que conta com 215 milhões de habitantes, a competência está concentrada no Superior Tribunal de Justiça. Portanto, os próprios dados indicam a inviabilidade de o Superior Tribunal de Justiça assimilar o contingente gigantesco (e crescente) de demandas que lhe são dirigidas. Por ora, o Superior Tribunal de Justiça cria projetos de gestão estratégica, como o "Plano Estratégico Superior Tribunal de Justiça 2021-2026"4, voltado a incrementar a celeridade processual, e adota o sistema Athos para auxiliar no exame de admissibilidade recursal5, mas se trata, em verdade, de paliativos, que não possuem o condão de realmente solucionar a questão em sua origem. De tempos em tempos cogita-se aumentar o número de Ministros do Superior Tribunal de Justiça. Cremos, pessoalmente, que essa não seria a melhor solução, pois envolveria a alocação de recursos públicos vultosos, em um país em desenvolvimento, com grandes demandas de investimentos em diferentes setores, sendo certo que, a se manter o cenário atual, o volume de processos seguiria uma trajetória de incremento, o que, em tese, exigiria um aumento contínuo e proporcional do número de Ministros indefinidamente. Uma brevíssima notícia de direito comparado se mostra, a nosso ver, elucidativa. Dentre os Princípios de Direito Processual Civil Transnacional do American Law Institute e do Unidroit6, o artigo 27 prevê, como "estado da arte" da ciência processual, o cabimento de apenas um recurso para instância superior à prolatora da sentença, que permita tanto a análise de questões de direito quanto o reexame de provas. De modo semelhante, as European Rules of Civil Procedure7 dispõem, no artigo 157, a necessidade de haver um "first appeal", com ampla devolutividade e que propicie a revisão de questões de fato e de direito por instância superior. No artigo 158, prevê-se como meramente eventual um "second appeal", recurso com cabimento mais restrito do que o "first appeal" ("the scope of second appeal proceedings is narrower than that of a first appeal") e voltado apenas a rever questões de direito (material e processual). Traçadas tais balizas, entendemos que a exigência, no ordenamento jurídico brasileiro, da relevância com vistas a permitir o julgamento do recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça não nos parece violar a noção de acesso à justiça na contemporaneidade, considerando-se a previsão contida no artigo 1012 do CPC/2015, que dispõe sobre o cabimento do recurso de apelação, inclusive ostentando efeito suspensivo ope legis como regra. A exigência da relevância para acessar o Superior Tribunal de Justiça tem como suas finalidades: a) racionalizar a prestação jurisdicional, permitindo que a corte se debruce sobre um volume menor de recursos e, assim, aprimore a prestação jurisdicional; b) fortalecer o sistema de precedentes; e c) prestigiar a duração razoável do processo, com a redução do volume de recursos a serem julgados pelo tribunal e, dessa forma, permitir que sejam julgados mais rapidamente. Eduardo Arruda Alvim e Igor Martins da Cunha entendem que a adoção da relevância "terá grandes e positivas repercussões na atuação do órgão", garantindo que "possa efetivamente fixar, com atributos de alta qualificação, o último entendimento a respeito da lei federal, proferindo decisões efetivamente paradigmáticas que orientam a jurisprudência em âmbito federal"8. Em sentido semelhante, reconhecendo que a relevância traria impactos positivos sobre o perfil do Superior Tribunal de Justiça, estudo da Fundação Getúlio Vargas9 afirma que o tribunal tende a deixar de ser "corte de varejo", passando a apreciar teses, leading cases, com função nomofilática, ou seja, voltada a revestir o direito federal infraconstitucional de coerência e previsibilidade. Daniel Mitidiero ratifica que, com a relevância, o Superior Tribunal de Justiça deixa de ser corte de controle e passa a ser corte de interpretação, visando precipuamente à unidade do direito10. Considerando-se que ainda não foi editada, até o momento, lei regulamentadora da relevância, tendo sido apenas apresentado Anteprojeto pelo Superior Tribunal de Justiça11, discute-se qual modelo deveria ser adotado em nosso país. Um primeiro modelo possível seria aquele da repercussão geral do recurso extraordinário da competência do Supremo Tribunal Federal, que foi originalmente concebido como um filtro recursal individual, a ser analisado caso a caso, mas, atualmente, segundo o mencionado relatório da FGV, integra o microssistema dos recursos repetitivos. O Supremo Tribunal Federal aplica a técnica da suspensão dos processos que versam sobre a questão que envolva repercussão geral e, uma vez julgado o tema, este é aplicado aos casos suspensos. Daí por que se diz que a repercussão geral consiste, em verdade, em um filtro pluri-individual, pois, após a definição da matéria pelo Supremo Tribunal Federal, de forma concentrada, não há mais análise caso a caso. Outro modelo possível seria avizinhar-se da transcendência, exigida para a admissibilidade do recurso de revista da competência do Tribunal Superior do Trabalho, que é analisada pontualmente, caso a caso, sendo, por isso, considerado um filtro genuinamente individual12. Em nossa avaliação, consideramos que haja maior probabilidade de que a regulamentação da relevância se aproxime do modelo da repercussão geral13. O Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça14 sinaliza nesse sentido em diversas passagens, como, por exemplo, ao prever, na redação proposta para o §7º do artigo 1035-A do CPC/2015, que o relator no Superior Tribunal de Justiça poderá determinar "a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional", bem como ao contemplar que o Presidente ou Vice-Presidente do tribunal local deverá negar seguimento ao recurso especial que discuta questão infraconstitucional federal cuja relevância já tenha sido rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça (proposta de redação a ser dada ao artigo 1030, inciso I, alínea c, do CPC/2015) e encaminhar o processo ao órgão julgador para realização do juízo de retratação, caso o acórdão recorrido divirja do entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito da relevância da questão federal (proposta de redação para o artigo 1030, inciso II, do CPC/2015). Se assim for, consideramos desejável que a regulamentação do tema preveja expressamente a possibilidade de a parte arguir a distinção e requerer o prosseguimento do feito, o que, infelizmente, não está contemplado no Anteprojeto apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça. Uma vez negada a existência da relevância, o Anteprojeto de Lei15 propõe, na nova redação a ser dada ao parágrafo único do artigo 1039 do CPC/2015, que todos os recursos especiais sobrestados sejam automaticamente considerados inadmitidos, aproximando, mais uma vez, a relevância do modelo da repercussão geral. De igual modo, o artigo 5º do Anteprojeto16 dispõe que, reconhecida ou recusada a relevância, todos os efeitos do julgamento incidirão nos processos em andamento no tribunal superior e nas instâncias de origem, providência que tende a prestigiar a isonomia, a uniformidade interpretativa e racionalizar o estoque de demandas em curso no Superior Tribunal de Justiça. Um ponto positivo do Anteprojeto, que merece ser aplaudido, consiste na expressa previsão, no §5º do artigo 1035-A, da possibilidade de o relator, na análise da relevância da questão de direito federal infraconstitucional, admitir a manifestação de terceiros subscrita por procurador habilitado. Entendemos que a manifestação de terceiros, como é o caso da intervenção de amici curiae, favorece o contraditório ampliado, sendo um importante fator de legitimação e de aprimoramento qualitativo da decisão do Superior Tribunal de Justiça, mormente considerando-se o modelo de filtro pluri-individual adotado pelo Anteprojeto. De igual modo, entendemos oportuno que o Superior Tribunal de Justiça divulgue amplamente, em seu site, os seus julgamentos relativos à relevância, a fim de que toda a comunidade, conhecendo-os, evite incorrer na incabível interposição de recurso especial17, o que já vínhamos defendendo desde a edição da Emenda Constitucional e, em boa hora, está contemplado na proposta de nova redação para o §3º do artigo 979 do CPC/2015, prevista no Anteprojeto de Lei18. O Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça propõe a inclusão do inciso III-A no artigo 927 do CPC/2015, com a finalidade de prever expressamente o acórdão proferido em julgamento de recurso especial submetido ao regime da relevância da questão de direito federal infraconstitucional como uma das hipóteses de padrão decisório a serem observadas por juízes e tribunais19. Cabe cogitar se caberá reclamação em caso de inobservância do julgamento do Superior Tribunal de Justiça quanto à questão relevante, o que nos soa improvável, seja em razão do silêncio do Anteprojeto nesse particular, seja diante do entendimento restritivo que vem sendo adotado por esse tribunal20. Outro ponto que merece reflexão consiste na previsão, pelo constituinte derivado, nos incisos do artigo 105, §3º, da Constituição, de hipóteses de relevância presumida. Concordamos com Rodrigo Salomão, ao elogiar a relevância presumida para o recurso especial, ao argumento de que "a relevância da questão de direito não pode ser um filtro de seleção político e absolutamente discricionário", sendo interessante "a inserção de alguns critérios minimamente objetivos para melhor caracterização da relevância"21. Nesses casos, entendemos que, verificando-se que o recurso se enquadra em qualquer dos incisos, o requisito da relevância será tido como satisfeito, tratando-se de presunção absoluta22-23. Admitimos que, em tese, lei infraconstitucional possa trazer outras hipóteses além daquelas elencadas no §3º, sendo este um rol meramente exemplificativo, o que é, inclusive, ressalvado no seu inciso VI. No entanto, consideramos que o legislador infraconstitucional não poderá restringir as hipóteses de relevância presumida previstas na Constituição, visto que atentaria contra a amplitude do acesso à justiça definida legítima e textualmente na Carta Magna, e padeceria, portanto, de inconstitucionalidade. Os incisos do §3º trazem, por conseguinte, as hipóteses mínimas de relevância presumida, podendo haver ampliação a partir da legislação infraconstitucional que venha a regular o tema. De se consignar que o Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça não contempla outras hipóteses de relevância presumida, restringindo-se a se reportar àquelas previstas no artigo 105, §3º, da Constituição. Para além das hipóteses de relevância presumida previstas na Constituição Federal - e, eventualmente, na legislação infraconstitucional -, haverá, ainda, a possibilidade de relevância demonstrada, ou seja, poderá o recorrente, em seu recurso, demonstrar, no caso concreto24, que a matéria nele debatida ostenta relevância econômica, social, política ou jurídica que transcende os interesses subjetivos das partes diretamente envolvidas no processo, à semelhança do que dispõe o artigo 1035, §1º, CPC/15 para a repercussão geral junto ao Supremo Tribunal Federal e o artigo 896-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para a transcendência junto ao Tribunal Superior do Trabalho. Nesse caso, pairará sobre o recorrente um ônus argumentativo a mais. Embora a Emenda Constitucional n° 125/2022 não exija expressamente, José Rogério Cruz e Tucci entende, ad cautelam, que a relevância deveria ser arguida formalmente como preliminar do recurso25, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, por vezes, exige esse requisito formal para fins de arguição da repercussão geral em recurso extraordinário26. A propósito, cumpre consignar que o Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça27 prevê, no texto proposto para o §2º do artigo 1035-A, a ser inserido no CPC/2015, que o recorrente deva demonstrar a existência de relevância da questão de direito federal infraconstitucional em tópico específico e fundamentado. Tendo em vista que alguns tribunais já vinham exigindo a arguição de relevância nos recursos especiais imediatamente após a edição da Emenda Constitucional28, o Pleno do Superior Tribunal de Justiça adotou a salutar iniciativa de editar, em 19/10/2022, o Enunciado Administrativo 8, que dispõe que "a indicação, no recurso especial, dos fundamentos da relevância da questão de direito federal infraconstitucional somente será exigida em recursos interpostos contra acórdãos publicados após a data da entrada em vigor da lei regulamentadora prevista no artigo 105, §2º, da CF". O artigo 4º do Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça29, por sua vez, ratifica o teor do Enunciado Administrativo, sepultando quaisquer dúvidas sobre o descabimento de tal exigência imediatamente. A seguir, analisaremos brevemente - diante dos estreitos limites do presente artigo - as hipóteses de relevância presumida elencadas nos incisos do §3º, artigo 105 da Constituição Federal. Quanto ao inciso I, que contempla as ações penais, cumpre consignar que a Constituição não distingue ações penais públicas condicionadas, incondicionadas ou privadas, nem tampouco considera o potencial ofensivo, razão pela qual todas estão abarcadas neste inciso, inclusive os juizados especiais criminais, não podendo a lei infraconstitucional restringir. Com efeito, inciso I parece-nos assaz abrangente, pois, a rigor, admite a presunção de relevância de recurso especial que eventualmente nem sequer discuta propriamente questão penal, como, por exemplo, aquele que verse sobre honorários advocatícios em ação penal privada, apenas por ter sido interposto nos autos de uma ação penal. De se consignar que, segundo dados apurados por Ravi Peixoto, a maior parte dos processos dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça no período compreendido entre 2017 e 2021 versavam sobre matéria penal30, a indicar que, de fato, a presunção contida no inciso I pode representar forte impacto no volume de recursos que afluirão para julgamento pela corte superior. O inciso II, por sua vez, contempla as ações de improbidade administrativa. Há quem critique a ausência de previsão das ações coletivas lato sensu no inciso em comento. Entendemos, contudo, o recorrente tenderá a lograr demonstrar o preenchimento da relevância in concreto, por haver impacto social e, por vezes, político nas ações coletivas lato sensu. Sendo assim, embora não seja o caso de relevância presumida, há grandes chances de o recurso especial ser admitido em razão da relevância demonstrada concretamente. O inciso III prevê as ações cujo valor da causa ultrapasse 500 salários mínimos. Ao contrário da repercussão geral e da transcendência, que, quanto ao critério econômico, apenas preveem que incumbe ao recorrente demonstrar que o recurso trata de questão relevante do ponto de vista econômico, sem predefinir um valor mínimo estanque e deixando, portanto, ao tribunal superior analisar o conteúdo econômico no contexto do caso concreto, aqui, o constituinte derivado fixou um valor predefinido para fins de presunção de relevância, o que não nos parece acertado. Isso porque a hipótese acaba por chancelar desvios, como o caso em que o valor da causa, embora superior a 500 salários mínimos, seja até mesmo irrisório sob a perspectiva das partes litigantes e a ação tampouco ostente relevância jurídica, social ou política, sendo que, nesse caso, mesmo assim, será considerada preenchida a relevância31. O atrelamento ao valor da causa também deixa descoberto o caso em que o proveito econômico pretendido no recurso especial for muito inferior ao valor da causa em si. As causas que tenham valor igual ou inferior a 500 salários mínimos poderão sim ter a sua relevância reconhecida, apenas não estarão abarcadas pela presunção, cabendo ao recorrente demonstrar a relevância no caso concreto (relevância demonstrada). Pode-se criticar o fato de que o inciso III considera individualmente o processo no qual o recurso especial foi interposto, alheando-se de observar se a matéria ocorre em múltiplos processos que, se somados, alcançariam valor da causa superior a 500 salários mínimos, como é o caso de relações de consumo. No entanto, entendemos que tais hipóteses acabam por caracterizar impacto social que, uma vez demonstrado in casu, justifica a admissão do recurso (relevância demonstrada), embora, com efeito, não estejam abarcadas pela presunção de relevância. Há que se ter cuidado com eventuais condutas ardilosas da parte autora, que pretenda atribuir valor da causa superior a 500 salários mínimos especificamente com o propósito de garantir, desde já, estar abarcada pela presunção de relevância em um futuro recurso especial - o que pode lhe interessar, especialmente se tiver a intenção de ensejar a formação de um padrão decisório que possa ser ventilado em outros casos futuros de que também seja parte. Nessas circunstâncias, verificando o magistrado haver descompasso entre conteúdo econômico e valor da causa, cumpre-lhe corrigir de ofício o valor da causa, conforme artigo 292, §3º, do CPC/2015, e, até mesmo, condenar o autor por litigância de má-fé, com fulcro no artigo 80, inciso V, do CPC/2015. De se destacar que o inciso em comento não contempla a hipótese em que o valor da causa é reduzido, mas a condenação e o proveito econômico pretendido com o recurso especial são superiores a 500 salários mínimos32, razão pela qual, nesse caso, o recurso estaria fora do espectro de abrangência da presunção absoluta, exigindo demonstração pelo recorrente no caso concreto (relevância demonstrada, não presumida). O inciso IV prevê, de forma abrangente, as ações que possam gerar inelegibilidade, seja qual espécie de ação for. O inciso V, por seu turno, contempla as hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. Critica-se a expressão "jurisprudência dominante", por ser demasiadamente vaga, de difícil conceituação33, que, portanto, traria insegurança jurídica. Entendemos que seria recomendável que a regulamentação do tema densificasse melhor o conteúdo dessa expressão, por exemplo, reportando-se às hipóteses dos incisos I a V do artigo 927, CPC/15 ou definisse que se trata de um entendimento firmado em um número mínimo de julgados reiterados. José Henrique Mouta pondera que seria desejável que o legislador infraconstitucional preveja, ainda, a presunção de relevância quando o recorrente demonstrar haver conflito entre tribunais locais relacionado à interpretação da lei federal, o que nos parece, de fato, oportuno34. No entanto, tais questões não foram contempladas no Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça. O estudo da FGV, antes mencionado, apurou que o número de Recursos Especiais que se enquadram nas hipóteses de relevância presumida dos incisos I a IV corresponde a 15,33% do total de recursos especiais interpostos. Por conseguinte, ao menos esse percentual já teria a relevância considerada preenchida, o que começa a jogar luz sobre o potencial impacto do §3º para o volume de recursos especiais a ser absorvido pelo Superior Tribunal de Justiça. Cremos que questões relativas a políticas públicas, direitos de pessoas com deficiência, indígenas e meio ambiente, embora não estejam arroladas nos incisos do §3º do artigo 105 da Constituição Federal nem tampouco no Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça como hipóteses de relevância presumida, tendem a ser consideradas, quando arguidas, como preenchedoras do requisito, na análise do caso concreto pelo Superior Tribunal de Justiça (relevância demonstrada). A respeito da competência, de acordo com a Emenda Constitucional, compete ao próprio Superior Tribunal de Justiça examinar a relevância, não podendo, pois, as Vice-presidências dos tribunais locais se imiscuir no tema. No entanto, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, qual seria o órgão competente? Partindo-se da redação do artigo 105, trazida pela Emenda Constitucional n° 125/2022, que dispõe que a relevância só pode ser afastada pela manifestação de 2/3 dos membros "do órgão competente para o julgamento"35, entendemos que o órgão interno do Superior Tribunal de Justiça que seja competente para julgar o respectivo recurso especial que será igualmente competente para examinar a relevância. Eduardo Arruda Alvim e Igor Martins concordam que "ao contrário do Supremo Tribunal Federal, em que a repercussão geral é analisada pelo Pleno (Plenário Virtual)", o exame da relevância vai depender de qual é o órgão competente para o julgamento do recurso em si36-37. Ousamos afirmar que qualquer previsão infraconstitucional dissonante, que cinda a competência para a verificação da relevância da competência para o julgamento do recurso especial, no nosso entender, afrontaria previsão constitucional expressa. De se consignar que a relevância somente poderá ser afastada pelo quórum qualificado de 2/3. Ou seja, a regra é que o recurso especial ostentará relevância, salvo se esta for afastada por 2/3 do órgão competente para o julgamento do respectivo recurso. Não poderá, contudo, haver afastamento da relevância, se o caso estiver enquadrado em uma das hipóteses de presunção elencadas no §3º do artigo 105 da Constituição Federal, por se tratar de presunção absoluta. A versão atual do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça prevê, no artigo 13, inciso VI, que a turma é competente para julgar os recursos especiais e o artigo 11, inciso XVI, prevê que o recurso repetitivo é da competência da Corte Especial. O artigo 14 do referido Regimento Interno, por seu turno, autoriza que a turma remeta o julgamento do recurso à Seção se houver relevância da questão e para prevenir divergência entre as turmas da mesma Seção. Parte da doutrina considera desejável que o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça passe a prever a competência da Seção ou da Corte Especial para o exame da relevância, a fim de evitar divergência entre as turmas ou, até mesmo, que se considere que a negativa de relevância por parte de uma turma vincula todo o Superior Tribunal de Justiça38. Por outro lado, há quem externe preocupação de que seja atribuída a competência para a apreciação da relevância à Seção ou à Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por entender que esvaziaria as turmas e exigiria maiores esforços daqueles órgãos39. Trata-se, portanto, de questão delicada, para a qual não há solução perfeita. Acompanhemos as modificações no Regimento Interno que decerto virão. Seja como for, mantemos a ressalva antes feita, a respeito da inconstitucionalidade de eventual cisão da competência para o exame da relevância daquela para o julgamento do recurso. O Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça40 propõe, na nova redação a ser dada ao artigo 1042 do CPC/2015, a irrecorribilidade da decisão do STJ que não conhecer do recurso especial em razão da ausência de relevância da questão de direito federal nele debatida, medida que decerto contribuiria para corroborar a racionalização do volume de recursos no referido tribunal, com a contenção do número de agravos. De se indagar se poderá o relator apreciar a relevância monocraticamente e, no caso de vir a negá-la, se caberia ao colegiado, por 2/3, apenas confirmar a negativa de relevância. Nesse caso, cremos que caberia, antes de mais nada, perguntar: será que não haveria um "retrabalho"? Em qual medida seria realmente produtiva essa previsão? Além disso, ainda que o relator considere preenchida a relevância - o que tornaria, em tese, despicienda a submissão da questão ao colegiado -, tal sistemática jamais nos permitiria saber se o colegiado, caso tivesse se debruçado sobre o tema, teria considerado a relevância ausente por 2/3 de seus membros, restando vencido o relator. Por tais razões, em apertada síntese, tendemos a sustentar que não seria adequado atribuir ao relator a competência para, monocraticamente, examinar a relevância41. O Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, não atribui ao relator a competência para a análise da relevância, cingindo-se a, na proposta de redação do artigo 932, inciso IV, alínea b e inciso V, alínea b, do CPC/2015, lhe autorizar a admitir ou inadmitir o recurso especial cuja relevância da questão de direito federal infraconstitucional já tenha sido previamente reconhecida pela corte superior, o que nos parece adequado, visto que se harmoniza com as atividades desempenhadas pelo relator e não afronta o texto constitucional. O aludido Anteprojeto de Lei propõe, na nova redação a ser dada ao parágrafo único do artigo 998 do CPC/2015, que, à semelhança do recurso extraordinário cuja repercussão geral tenha sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, a desistência do recuso especial com relevância reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça não impeça a análise da questão. Isso indica que o STJ efetivamente pretende aproximar a relevância do modelo da repercussão geral e salientar que o julgamento do mérito do recurso especial que ostenta relevância transcende o interesse individual da parte recorrente, até mesmo porque, conforme aventado no §7º do artigo 1035-A do Anteprojeto de Lei, o reconhecimento da relevância da questão de direito federal poderá ter ensejado, por determinação do relator, a suspensão de uma multiplicidade de processos país afora que versem sobre a mesma questão. Por todo o exposto, entendemos que o saldo, até o momento, parece-nos positivo. A relevância, estando expressa e claramente prevista na Constituição e regulamentada no âmbito infraconstitucional, logra racionalizar a prestação jurisdicional pelo Superior Tribunal de Justiça, com deferência à isonomia e à segurança jurídica, com um modelo bifronte, composto por relevância presumida (presunção absoluta) e relevância demonstrada. A relevância se adequa, como visto ao início deste trabalho, aos parâmetros internacionais de acesso à justiça, que preconizam o cabimento de apenas um recurso com ampla devolutividade, permitindo reexame de questões de fato e de direito por tribunal hierarquicamente superior ao prolator da decisão recorrida, o que é garantido em nosso ordenamento jurídico-processual no artigo 1012 do CPC/2015, com a previsão do recurso de apelação. A médio prazo, entendemos que a relevância pode ter o condão de valorizar o julgamento dos tribunais locais42-43 e ensejar maior cobrança, por parte da própria sociedade, em relação à qualidade da função jurisdicional prestada no âmbito local, embora, não sem razão, se tema o risco à unidade de interpretação da legislação infraconstitucional em nosso país. A título ilustrativo, Rodrigo Salomão esclarece que, no Brasil, há "baixo índice de reforma das decisões dos tribunais de segundo grau", gravitando em torno de 14% apenas44, o que acaba por mitigar o receito de muitos a respeito da alegada redução do acesso ao Superior Tribunal de Justiça em decorrência da exigência de relevância. Por fim, não poderíamos encerrar a abordagem do tema sem consignar o alerta sobre a importância da criação de mecanismos, na legislação regulamentadora, que permitam a revisão ou superação do entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça quanto à relevância, com vistas a evitar o seu engessamento - que seria antidemocrático e, por isso, altamente indesejável. Aproveitemos a oportunidade surgida com a edição da Emenda Constitucional n° 125/2022 para que possamos debater a melhor forma de regulamentar a relevância no recurso especial e, assim, avançar mais um passo rumo a uma prestação jurisdicional, pelo Superior Tribunal de Justiça, que seja, tanto quanto possível, a um só tempo, eficiente, com legitimidade democrática e de elevada qualidade. Que a exigência formal da relevância, ao reduzir o volume de recursos especiais julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, conduza à crescente relevância, sob o prisma qualitativo, das decisões proferidas por esse tribunal superior. Talvez, aqui, como em tantas outras searas, menos é mais. __________ 1 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. "STJ ultrapassa 2 milhões de recursos especiais em meio a esforço para resgatar sua missão constitucional". Disponível aqui. Consulta realizada em 01/11/2022. 2 Rodrigo Salomão salienta que "Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça fez história ao julgar mais de meio milhão de processos. De acordo com notícia publicada no final daquele ano, ao todo, foram julgados 511.761 processos em 2018, média de 15.508 para cada um dos 33 ministros, ou 1.402 julgamentos por dia, ou ainda 58 por hora. Isto é, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA julgou praticamente um processo por minuto no ano de 2018. Por óbvio, a enorme quantidade de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça contraria a sua real função no ordenamento jurídico brasileiro, pois é inconcebível que uma corte de uniformização profira em torno de 400 mil decisões monocráticas e 100 mil colegiadas em um único ano". SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. A relevância da questão de direito no recurso especial. Curitiba: Juruá. 2021. P. 153. 3 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPARTAMENTO DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS E COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. Indicadores DRCI/SENAJUS/MJSP - 2021. Brasília: 2021. Disponível aqui. Consulta realizada em 11/01/2023. 4 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Plano Estratégico 2021-2016. Brasília: 2022. Disponível aqui. Consulta realizada em 01/11/2022. 5 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Iniciativas estratégicas. Disponível aqui. Consulta realizada em 01/11/2021. 6 AMERICAN LAW INSTITUTE. UNIDROIT. Principles of transnational civil procedure. Disponível aqui. Consulta realizada em 01/11/2022. 7 EUROPEAN LAW INSTITUTE. UNIDROIT. European rules of civil procedure. Disponível aqui. Consulta realizada em 02/11/2022. 8 ALVIM, Eduardo Arruda. CUNHA, Igor Martins da. "A relevância da questão federal no recurso especial". Migalhas. Consulta realizada em 21/07/2022. 9 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Relatório preliminar sobre a Relevância da questão de direito federal: histórico, direito comparado, instrumentos semelhantes e impacto legislativo. Coordenador Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília: 2022. 10 MITIDIERO, Daniel. Relevância no recurso especial. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2022. Pp. 46-47. 11 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei, que insere dispositivo à Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a altera, a fim de regulamentar o § 2º do art. 105 da Constituição Federal, e dá outras providências. Disponível aqui. Consulta realizada em 09/01/2023. 12 CÔRTES, Osmar Paixão. "A relevância da questão de direito federal no recurso especial será um filtro individual?". Migalhas. Disponível aqui. Consulta realizada em 03/11/2022. 13 ARAÚJO, José Henrique Mouta. "Relevância da questão federal no recurso especial: observações acerca da emenda constitucional 125". Migalhas. Consulta realizada em 20/07/2022. 14 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei. Op. Cit. 15 Idem, ibidem. 16 Idem, ibidem. 17 Idem, ibidem. 18 Idem, ibidem. 19 Preocupação semelhante é externada por Rodrigo Salomão. SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. Op. Cit. P. 162. 20 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. "STJ reafirma que reclamação não é via adequada para questionar não aplicação de repetitivo". Disponível no site. Consulta realizada em 20/07/2022. 21 SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. Op. Cit. P. 160. 22 PEIXOTO, Ravi. "A relevância da questão de direito federal no recurso especial e o dia depois de amanhã (ou o que fazer na lei regulamentadora". MARQUES, Ministro Mauro Campbell. FUGA, Bruno Augusto Sampaio. TESOLIN, Fabiano da Rosa. LEMOS, Vinicius da Silva (Coords). Relevância da questão federal no recurso especial. Londrina: Thoth. 2023. p. 439. 23 ALVIM, Teresa Alvim. UZEDA, Carolina. MEYER, Ernani. "O funil mais estreito para o recurso especial". Migalhas. Disponível no site: www.migalhas.com.br Consulta realizada em 20/07/2022. 24 ALVIM, Teresa Alvim. UZEDA, Carolina. MEYER, Ernani. Op. cit. 25 TUCCI, José Rogério Cruz e. "Relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do Resp". Consultor Jurídico. 27 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei, que pretende regulamentar o §2º do artigo 105, da Constituição Federal. Op. cit. 28 Entendendo que, no momento, seria desnecessária a abertura de preliminar, ALVIM, Teresa Alvim. UZEDA, Carolina. MEYER, Ernani. Op. Cit. 29 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei. Op. cit. 30 PEIXOTO, Ravi. "A relevância da questão de direito federal no recurso especial e o dia depois de amanhã (ou o que fazer na lei regulamentadora". Op. cit p. 438. 31 Tecendo crítica semelhante, KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. FLUMIGNAN. Silvano José Gomes. "Primeiras reflexões sobre a futura regulamentação da relevância da questão de direito federal". MARQUES, Ministro Mauro Campbell. FUGA, Bruno Augusto Sampaio. TESOLIN, Fabiano da Rosa. LEMOS, Vinicius da Silva (Coords). Relevância da questão federal no recurso especial. Londrina: Thoth. 2023. P. 241. 32 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Op. Cit. 33 Idem, ibidem. 34 Idem, ibidem. 35 De se consignar que o artigo 1035-A, §6º, do Anteprojeto de Lei apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça ratifica que a competência para a inadmissão do recurso especial em razão da ausência de relevância será "do órgão competente para o julgamento". SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei, que pretende regulamentar o §2º do artigo 105, da Constituição Federal. Op. Cit. 36 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Op. Cit. 37 Idem, ibidem. 38 PEIXOTO, Ravi. "A relevância da questão de direito federal no recurso especial e o dia depois de amanhã (ou o que fazer na lei regulamentadora". Op. cit. p. 439. 39 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Palestra proferida no evento "O instituto da relevância das questões de direito federal infraconstitucional no recurso especial", promovido pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro no dia 04/11/2022. Disponível no endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=3dyk6jvftfe&list=plkgnxxdlayqbv1brlyqsz_y28gf2yrx21&index=2 Consulta realizada em 10/11/2022 40 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Anteprojeto de lei, que pretende regulamentar o §2º do artigo 105, da Constituição Federal. Op. Cit. 41 Em sentido semelhante, PEIXOTO, Marco Aurélio. BECKER, Rodrigo. O relator pode reconhecer individualmente a ausência de repercussão geral? Jota.  42 "O posicionamento e função desempenhada pelos tribunais estaduais e regionais federais passam a ter maior destaque e repercussão, considerando que darão a última palavra sobre matérias federais 'sem relevância', portanto, terão a responsabilidade de determinar a adequada interpretação da lei federal. (...) Tal realidade pode redundar na fragmentação do direito federal, colocando-se em risco a unidade do direito nacional". WELSCH, Gisele. "A relevância no recurso especial: controvérsias e perspectivas para a regulamentação e aplicação do filtro recursal previsto na EC 125/22". MARQUES, Ministro Mauro Campbell. FUGA, Bruno Augusto Sampaio. TESOLIN, Fabiano da Rosa. LEMOS, Vinicius da Silva (Coords). Relevância da questão federal no recurso especial. Londrina: Thoth. 2023. p. 278. 43 Em sentido semelhante, opina Garcia Medina: "Ao fim e ao cabo, tudo dependerá da interação que se der entre o STJ e os tribunais locais. Quanto maior a restrição ao cabimento do recurso especial, mais os tribunais locais se sentirão à vontade para dar à lei federal um sentido próprio, em seu âmbito de atuação, ainda que distante do dado por outros tribunais locais. O direito federal poderá restar, com o passar do tempo, bastante fragmentado, e limites haverão de ser levados em consideração, para não se colocar em risco a unidade do direito nacional. De todo modo, a limitação do âmbito de atuação do STJ implicará o inevitável redimensionamento do papel desempenhado pelos tribunais locais". MEDINA, José Miguel Garcia. "Alteração do desenho institucional dos tribunais após relevância para Resp". Consultor Jurídico.  44 SALOMÃO, Rodrigo Cunha Mello. Op. Cit. P. 165.
Nossa Constituição Federal prima por seu garantismo e pelo real intuito de proteção dos direitos individuais e, dentre eles, destacamos a previsão contida no art. 5º, LXXIV, da CF/88 de que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Logicamente, considerando a enorme demanda processual frente ao perfil contencioso apresentado pelos jurisdicionados, as pessoas (ou agrupamentos sociais) em situação de vulnerabilidade podem não ter acesso ao Judiciário no intuito de pleitear determinado direito. No entanto, pontuamos aqui que, nem sempre o acesso à justiça somente se personifica mediante a proposição de ação individual. O Código de Processo Civil trouxe em seu bojo, o incidente de resolução de demandas repetitivas - IRDR, instituto processual que se inspirou no direito alemão diante do similar musterverfahren, sofrendo influências ainda do sistema de agregação de causas no direito português e, finalmente do modelo de decisões de litígio de grupo (group litigation order) e demanda-teste (test-claim) do direito inglês (MENEZES, 2018). O cabimento do IRDR se dá quando se tem, de forma concomitante, uma efetiva repetição de processos tratando de semelhante controvérsia acerca de questão unicamente de direito e que, inclusive, possua o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, conforme determina o art. 976 do Código de Processo Civil de 2015. Portanto, poderíamos considerar que o IRDR seria um incidente legítimo apto a discutir litígios de interesse coletivo com legitimidade superior à própria ação civil pública? Pontua-se que o IRDR pode tratar de casos que estão em discussão e que ainda possam surgir, tendo a Ação Civil Pública, por exemplo, a previsão, pelo menos a princípio, da existência de um dano que, contudo, tornará prevento o juízo para eventuais novas ações. No entanto, embora a Lei nº 7347/85 traga restrições à própria propositura da ação, situação semelhante não ocorre no âmbito do IRDR, pois além do alcance a que se pode dar das decisões proferidas, o Código de Processo Civil prevê diversas particularidades que trazem a discussão a ser realizada no incidente à valorada temática da teoria geral dos precedentes. Diante dessa nuance, pode-se afirmar que o IRDR se torna importante mecanismo de acesso à justiça, mas não se constitui como técnica processual a se estabelecer como sucedâneo de ações coletivas. E o CPC/2015 apresentou a possibilidade dos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, verdadeiro aparato processual também a tutelar os direitos dos hipossuficientes de forma a consolidar o entendimento repetitivo proferido com busca à garantia da segurança jurídica, da uniformidade de entendimentos e da igualdade. Outrossim, trouxe a nova norma, em seu art. 977, a possibilidade da Defensoria Pública, no exercício de suas atribuições da promoção dos interesses individuais e coletivos dos necessitados (art. 185 do CPC/2015), a instauração do incidente diretamente ao presidente de tribunal. Importante pontuar valiosa colocação da defensora pública Luciana Jordão, ao tratar da importância da atuação da Defensoria nesta seara, perante a qual destaca que esta é instituição pública voltada à implementação de política pública de acesso à justiça, à avaliação técnica a respeito da maximização dos resultados, que podem gerar benefícios ao maior número de cidadãos e, como tal, sugerimos que pode, portanto, o instrumento do IRDR assumir protagonismo nesta prática qualificada. Em complemento, cabe destacar que o IRDR se caracteriza como incidente processual, considerando que pode ser instaurado por meio de um pedido, exigindo sempre um prévio processo judicial instaurado (MENDES, 2021). Outrossim, as particularidades apresentadas no CPC/2015 relacionadas ao IRDR trazem inúmeros benefícios em sua tramitação, tais como: a previsão do caput do art. 980, que determina o prazo de prazo de 1 (um) ano para julgamento; e,  a suspensão dos processos pendentes, conforme previsto no art. 982, I. E acrescenta-se que, a inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, possa ser o incidente novamente suscitado (Art. 976, §3º). A participação social, a realização de audiências públicas, os amici curiae serão ferramentas importantes para consolidar o acesso à justiça, podendo contar, agora, com a competência da Defensoria Pública para imiscuir-se em tais questões, através do IRDR, podendo a referida discussão ser levada, inclusive, para o âmbito dos Tribunais Superiores e, quiçá, ter a modulação de efeitos também como instrumento de concretização de direitos. Em breve pesquisa no Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios é possível afirmar que a sistematização de informações dos IRDR não permite saber se a defensoria pública foi a postulante na busca pela promoção dos direitos humanos, ou então pela defesa dos direitos coletivos dos necessitados, conforme determina o art. 185 do CPC/2015. Com isso, a ausência de informações detalhadas obsta o acompanhamento da defesa dos mais necessitados na criação de precedentes qualificados por meio de julgamento de demandas repetidas. Seria o caso, portanto, quanto ao ponto, de sugerir ao CNJ (órgão regulador da atividade judiciária conforme esta autora já pontuou em obra anterior) que possa disponibilizar filtros cada vez mais detalhados a fim de facilitar o controle e a consequente melhoria na prestação jurisdicional no que tange aos direitos dos hipossuficientes frente às demandas contidas em IRDR perante todos os tribunais. Por conseguinte, destaca-se que, funcionando a Defensoria Pública como postulante lhe é conferido melhor meio para desenvolver a tese e levar ao judiciário no tempo adequado às possibilidades de atuação deste órgão. Guedes (2018) expõe neste sentido: Tal participação é tão importante quanto a atuação nas demandas individuais, pois, a partir da entrada em vigor do novo CPC, há grande tendência de que todas as questões repetitivas passem a ser decididas por meio do julgamento de IRDR, sendo, então, proferidas decisões e escolhidas as teses jurídicas que vincularão todos os juízes subordinados hierarquicamente ao tribunal. Em síntese, a consolidação da atuação da defensoria pública como participante da criação de precedentes qualificados deve ficar destacada vez que funciona como guardiã dos interesses da população hipossuficiente de fato. Com efeito, a defensoria pode, então, identificar tema que possa ser objeto de discussão por meio do IRDR, promovendo a discussão dos direitos dos vulneráveis diante da previsão processual de apresentação de petição, a qual conterá pedido de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas tal como preceitua o art. 977 do CPC/2015, inaugurando uma nova era na temática dos precedentes frente à proteção do direito dos hipossuficientes. __________ BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível aqui. BRASIL. [CPC (2015)]. Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível aqui.  CARVALHO, Luciana Jordão da Motta Armiliato. A Defensoria Pública e o IRDR: reflexões sobre desafios e caminhos para a consolidação do instituto. In: Acesso à justiça em contexto de litigância repetitiva. DELCHIARO, Mariana Tonolli Chiavone; MAIA, Maurilio Casas. (org.). Belo Horizonte, São Paulo: Editora D'Plácido, 2022. GUEDES, Cintia Regina. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o papel da Defensoria Pública como porta-voz dos litigantes individuais na formação da tese jurídica vinculante. REVISTA DE DIREITO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Nº 28 - 2018. Disponível aqui. MENDES, Bruno Cavalcanti Angelim. Julgamento de casos repetitivos: critérios de seleção dos casos paradigmáticos e formação de precedentes. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021. MENEZES, André Beckmann de Castro. O IRDR Como Política Pública Judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018. PAULINO, Ana Flávia Borges. CNJ: o regulador da atividade judiciária. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021.
No dia 13 de dezembro de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou à Corte Especial os Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM, de Relatoria do Ministro Moura Ribeiro, pretendendo levar à composição máxima do Tribunal o debate acerca do cabimento ou não da fixação de honorários equitativos em causas de valor elevado a partir dos dispositivos do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) que regulamentam o tema. É importante recordar que a matéria já foi objeto de análise pela Corte Especial do STJ em março de 2022 (acórdão publicado em maio), no julgamento do Tema nº 1.0761, em que foram assentadas as seguintes teses: 1) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda, forem elevados. É obrigatória, nesses casos, a observância dos percentuais previstos nos parágrafos 2º ou 3º do artigo 85 do Código de Processo Civil (CPC) - a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa. 2) Apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo. Apesar do efeito vinculante das teses fixadas no Tema 1.076, a temática da fixação dos honorários por equidade continua sendo debatida nos tribunais brasileiros e, em consequência, chegando ao STJ. Daí porque, no julgamento dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM, a Terceira Turma, por maioria, decidiu afetar novamente a questão à Corte Especial, que teria por finalidade estabelecer uma hipótese de distinguishing em que o enunciado não teria aplicabilidade. No julgamento da questão preliminar, a Ministra Nancy Andrighi destacou que: "Essa dissidência não está acontecendo só na 3ª turma, está acontecendo inclusive nas turmas de Direito Público. A Corte precisa parar para rever se está certo ou errado, se confirma ou não confirma essa decisão". O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva também ressaltou que "É um tema delicado. A desproporção é flagrante"2. No dia seguinte, 14 de dezembro, conforme noticiado pela imprensa3, após o Ministro Raul Araújo propor a desafetação do REsp 1.822.171, que seria julgado pela 2ª Seção com a mesma discussão, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva esclareceu que o propósito da afetação dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM à Corte Especial não é rediscutir a tese e nem promover a superação da tese estabelecida no Tema 1.076, mas definir e uniformizar a interpretação sobre possíveis distinções nas quais a tese não deve ter incidência, garantindo a estabilidade e a coerência das decisões sobre a matéria. A questão envolve pelo menos dois temas relevantes para o direito processual: (i) preliminarmente, em prol da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, a manutenção da jurisprudência íntegra, estável e coerente; (ii) o acerto da Corte Especial ao decidir sobre a fixação equitativa de honorários advocatícios em causas de elevado valor a partir das disposições do CPC/2015 e a desnecessidade de revisitação da matéria. Com a edição do CPC/2015, pode-se dizer que há um sistema de pronunciamentos qualificados, ou de jurisprudência e precedentes definidos legalmente, com caráter vinculativo no sentido vertical e horizontal4, isto é, tanto no que diz respeito aos precedentes formados pelos órgãos hierarquicamente superiores como aos próprios precedentes. A vinculação prevista no artigo 927 do CPC/2015 é um elemento fundamental do sistema estabelecido por lei e está em consonância com o primado da lei fixado na Constituição5.  A ratio é a observância dos precedentes pelos juízes e pela sociedade, "porque não se trata de opção subjetiva do magistrado, mas de aplicação e de interpretação das leis pelos tribunais, em cumprimento de uma função prevista na Constituição"6, que deve ser feita por meio da adequada instrumentalização da técnica de julgamento pelos tribunais7, para que se possa atingir uma jurisprudência uniforme, íntegra, estável e coerente consagrada no artigo 926 do diploma processual. Um sistema de precedentes com eficácia vinculante garante julgamentos com margem de previsibilidade e contribui para o fortalecimento institucional e democrático do próprio Poder Judiciário e, por via de consequência, do próprio Estado e da sociedade.   A observância dos precedentes assegura também a isonomia aos jurisdicionados, evitando-se uma dispersão de entendimentos acerca de uma mesma questão de direito. Encontra, portanto, amparo e justificativa na necessidade de proteção da confiança, elemento essencial da segurança jurídica. É certo que o sistema jurídico brasileiro adotou a técnica de vinculação a precedentes judiciais, própria dos países de common law8, a partir da promulgação do CPC/2015, com a disciplina dos artigos 926 a 928. Inobstante, ainda se verifica, na prática forense, a dificuldade de outorga efetiva de integridade do Direito por meio da uniformização da jurisprudência, em função da não observância e aplicação adequada pelo Poder Judiciário das técnicas e mecanismos disponibilizados pelo sistema, além da ainda insatisfatória função prospectiva realizada pelos Tribunais Superiores. Para além da previsão do art. 926 do CPC/2015 relativa ao dever de uniformização da jurisprudência pelos tribunais e da manutenção da estabilidade, integridade e coerência, é essencial que o Poder Judiciário (e todos os agentes envolvidos), além de produzir precedentes de eficácia vinculante, maneje adequadamente as técnicas de operacionalização desses precedentes, como a distinção e a superação de entendimentos. Dessa forma, em prol da manutenção e otimização da segurança jurídica, é preciso que se observem critérios quando há a efetiva necessidade de desenvolvimento e alteração do direito, por meio da mudança de orientação dos tribunais. Não se pode confundir a necessidade de adaptação do direito às mudanças sociais ou eventual correção de erro com alteração de entendimento e opinião dos julgadores em função da mudança de composição de magistrados do tribunal9 ou de pensamento por parte dos julgadores que os compõem. As funções contemporâneas do Poder Judiciário são fundamentais no sentido de orientar a sociedade diante de novos fatos, da ausência de regras específicas ou da controvérsia estabelecida em relação à interpretação das normas10, mas sempre em consonância com o contexto do Estado Constitucional. Os órgãos judiciários servem para propiciar a solução dos conflitos e não para fomentá-los, tendo-se a ideia de respeito ao precedente firmado, salvo hipótese de distinção do caso em relação ao precedente e de sua superação, que deve ser feita com a devida cautela, mais amplo respeito ao contraditório e possível modulação, conforme artigo 927, §2º a §4º. Desta forma, merece destaque que, após a definição da tese com efeito vinculante, é possível que haja divergência considerável entre os órgãos jurisdicionais a respeito das situações de distinção hábeis a afastar a sua incidência, revelando-se possível a atuação do tribunal responsável pela fixação da tese para uniformizar a interpretação acerca das hipóteses de distinguishing. A técnica de distinção é uma forma de verificar se existem diferenças relevantes entre dois casos ao ponto de se afastar a aplicação de precedente invocado, a qual pode ser realizada por qualquer juiz ou tribunal11. É o que diz, inclusive, o Enunciado n.º 174, do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): a realização da distinção compete a qualquer órgão jurisdicionado, independentemente da origem do precedente invocado. A Recomendação nº 134/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito Brasileiro, prevê, em seu art. 14, que "poderá o juiz ou tribunal, excepcionalmente, identificada distinção material relevante e indiscutível, afastar precedente de natureza obrigatória ou somente persuasiva, mediante técnica conhecida como distinção ou distinguishing". Há uma série de recomendações relativas à distinção, quais sejam: a) explicitação pelo órgão julgador, de maneira clara e precisa, da situação material relevante e diversa capaz de afastar a tese jurídica (ratio decidendi) do precedente tido por inaplicável; b) a técnica não deve ser utilizada com a finalidade de afastar a aplicação da legislação vigente nem para estabelecer tese jurídica heterodoxa e em descompasso com a jurisprudência consolidada sobre a matéria; c) não confundir a distinção e nem utilizar a técnica como mecanismo de recusa à aplicação da tese consolidada; d) considerar a impropriedade da utilização da técnica como via indireta de superação dos precedentes. Há também orientações importantes na Recomendação 134 do CNJ relativas ao procedimento que deve ser levado a efeito pelos tribunais quando houver distinguishing em relação a seus precedentes (arts. 22 e 23): a) a adoção do procedimento do recurso especial ou extraordinário representativo da controvérsia em situações que indiquem distinção, com a admissão de 2 (dois) ou mais processos e o sobrestamento dos demais feitos com mesma questão jurídica possivelmente distinta; e b) prioridade da análise de casos repetitivos em que se discuta a distinção em relação a precedentes relevantes e a avaliação da possibilidade de instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas. Feitas essas considerações, quando se analisa o julgamento do Tema nº 1.076 pelo STJ, decidido no dia 16 de março de 2022 e com acórdão publicado no dia 31 de maio, verifica-se que houve intensos debates na Corte Especial, que acabou decidindo, por maioria, pela impossibilidade da fixação dos honorários por apreciação equitativa quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda forem elevados, impondo-se a aplicação dos parâmetros previstos nos §§2º e 3º do art. 85 do CPC/2015. Divergiram as Ministras Nancy Andrighi, Maria Isabel Gallotti, Laurita Vaz, Maria Thereza de Assis Moura e o Ministro Herman Benjamin. O tema foi analisado com profundidade e no acórdão restaram consignados diversos fundamentos, dentre os quais destacam-se os seguintes: (i) "não se pode alegar que o art. 8º do CPC permite que o juiz afaste o art. 85, §§ 2º e 3º, com base na razoabilidade e proporcionalidade, quando os honorários resultantes da aplicação dos referidos dispositivos forem elevados"; (ii) "O julgador não tem a alternativa de escolher entre aplicar o § 8º ou o § 3º do artigo 85, mesmo porque só pode decidir por equidade nos casos previstos em lei, conforme determina o art. 140, parágrafo único, do CPC"; (iii) "A suposta baixa complexidade do caso sob julgamento não pode ser considerada como elemento para afastar os percentuais previstos na lei"; (iv) "O art. 20 da "Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (...) prescreve que, "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Como visto, a consequência prática do descarte do texto legal do art. 85, §§ 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 8º, do CPC, sob a justificativa de dar guarida a valores abstratos como a razoabilidade e a proporcionalidade, será um poderoso estímulo comportamental e econômico à propositura de demandas frívolas e de caráter predatório"; (v) "a postura de afastar, a pretexto de interpretar, sem a devida declaração de inconstitucionalidade, a aplicação do § 8º do artigo 85 do CPC/2015, pode ensejar questionamentos acerca de eventual inobservância do art. 97 da CF/1988 e, ainda, de afronta ao verbete vinculante n. 10 da Súmula do STF". Como se pode constatar, a questão foi decidida este ano, com eficácia vinculante, com clareza e respeito ao contraditório, considerando não só o teor do artigo 85 do CPC/2015, mas tomando por base uma interpretação do ordenamento jurídico em consonância com a visão de um Estado Democrático de Direito, no qual devem prevalecer o respeito à vontade da maioria, a valorização da Advocacia e de sua forma de remuneração através dos honorários, sem esbarrar no respeito aos direitos fundamentais de todos. A adequada fixação de honorários, como analisada pela Corte Especial do STJ em março de 2022, permite a promoção da máxima de que o processo deve ser instrumento para a tutela e efetivação de direitos12, evitando-se a litigância frívola, com demandas aventureiras que sobrecarregam de forma desnecessária o Poder Judiciário. É certo que o tema ainda está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), no RE 1.412.073, de forma que a abordagem constitucional da matéria poderá ensejar mudanças na aplicação dos §§2º, 3º e 8º do art. 85 do CPC/2015. Entrementes, em relação ao entendimento fixado pelo STJ, tem-se que os fundamentos contidos no Tema 1.076 são adequados e suficientes para o deslinde da questão, devendo-se pontuar que, quanto mais especificada uma tese jurídica, maior a precisão de sua aplicação ao caso concreto. Destarte, o que se espera é que, em um curto espaço de tempo, não haja a superação do julgamento da Corte Especial realizado em março de 2022, sob pena de se violar a proteção da confiança e de se estabelecer a insegurança jurídica. Dito de outro modo, ainda não se verifica um quadro de alteração substancial de realidade social a ensejar a superação do entendimento já sedimentado. No que concerne ao argumento de que a finalidade seria a de uniformizar a interpretação acerca das hipóteses de distinguishing nas quais a tese não deve ter incidência, o fato é que, em relação ao Tema 1.076, o que tem se verificado nos tribunais e no próprio STJ é uma discordância em relação à ratio do precedente firmado, de modo que a técnica da distinção tem sido empregada para fins de recusa e afastamento da aplicação da tese estabelecida, em contrariedade à teoria dos precedentes e à Recomendação 134 do CNJ. Por isso, revela-se preocupante o retorno da matéria à Corte Especial: pretende-se efetivamente uniformizar as situações de distinção relativas ao Tema 1.076 ou promover, por via transversa, a superação do precedente? Nesse último caso, haveria desrespeito flagrante à estabilidade e à proteção de confiança necessárias para a efetividade de um sistema de precedentes, que deve primar pela estabilidade e pela unidade do Direito. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), enquanto órgão máximo competente para análise da legislação federal, deve assegurar a máxima eficácia do artigo 926 do CPC/2015. Portanto, no que pertine ao Tema 1.076 e à afetação dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM à Corte Especial do STJ, espera-se que o argumento da uniformização da interpretação a respeito das situações de distinção não esteja sendo utilizado como pretexto para a superação das teses fixadas e que sejam seguidas à risca as orientações da Recomendação nº 134/2022 do CNJ, inclusive com a utilização do rito dos repetitivos para fins de propiciar a ampliação da discussão acerca das hipóteses de distinção identificadas, a fim de uniformizá-las e de preservar os precedentes firmados, propiciando segurança jurídica e previsibilidade ao jurisdicionado. Nesse ponto, cabe uma reflexão final sobre o sistema jurídico brasileiro de precedentes. Não se pode ter a ilusão de que apenas a previsão legal de institutos processuais e técnicas de julgamento visando à celeridade e isonomia de tratamento a casos análogos tornarão o Judiciário mais célere, imprimindo maior segurança jurídica. Dessa forma, é nítida a necessidade de mudança cultural e operacional da comunidade jurídica para que as reformas legislativas possam colher positivos resultados quanto à obtenção de estabilidade e unidade do Direito13. __________ 1 O Tema nº 1.076 do STJ pode ser consultado em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1076&cod_tema_final=1076. Acesso em 14 dez. 2022. 2 Os destaques em questão estão disponíveis em notícia trazida pelo Migalhas: MIGALHAS. Corte Especial deve analisar casos de honorários fixados pelo CPC. Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/378551/stj-3-turma-afeta-a-corte-especial-casos-de-honorarios-milionarios. Acesso em 14 dez. 2022. 3 CONJUR. Afetação de casos sobre honorários é para uniformizar distinções, diz ministro. Acesso em 15 dez. 2022. 4 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 97. 5 FUX, Luiz; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; FUX, Rodrigo. Sistema brasileiro de precedentes: principais características e desafios. Revista Eletrônica de Direito Processual, vol. 23, n. 3, set.-dez. 2022, p. 227. 6 FUX, Luiz; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; FUX, Rodrigo. Op. Cit., p. 227-228. 7 WELSCH, Gisele. A autoridade dos precedentes judiciais e a unidade do direito: uma análise comparada Brasil-Alemanha (II). Revista de Processo, vol. 13, mar. 2021, versão eletrônica. 8 No common law, os precedentes judiciais são dotados de força vinculante e figuram como a mais importante fonte do direito: pelo princípio da stare decisis, a decisão anterior cria o direito. Nessa órbita, os juízes do common law têm o dever funcional de seguir os precedentes de casos análogos, não bastando que os utilize como relevantes subsídios persuasivos. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 13). 9 WELSCH, Gisele. Op. Cit. 10 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Op. Cit., p. 118. 11 PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 212. 12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 5260. 13 WELSCH, Gisele Mazzoni. Precedentes Judiciais e Unidade do Direito. Análise comparada Brasil-Alemanha. Londrina, PR: Thoth, 2021. p. 66.
Mudanças à vista no mar de processos das varas de família. É que o STJ começou a "desnormalizar" a máquina de gerar processos de execução por uma mesma obrigação: a de pagar alimentos. A discussão é antiga, mas alguma coisa mudou depois da pandemia e o REsp 1.930.593/ MG sinaliza essa nova direção. O assunto é da maior relevância. Os processos em varas de família ocupam o 3º e o 4º lugar na Justiça Estadual, conforme o Justiça em Números/ 20221, e as cobranças alimentícias contribuem bastante. Mesmo que a lei determine o cumprimento nos próprios autos, surgem "filhotes processuais" em execuções autônomas, diante do alto potencial de litigiosidade da obrigação mensal. Vamos lembrar que a dívida alimentícia a justificar a prisão, é apenas aquela devida nos 3 meses anteriores ao ajuizamento da ação e todas que vencerem em seguida. As prestações mais antigas, diante da inércia do exequente, perdem o elemento sobrevivência e deixam de justificar a prisão, conforme a Súmula 309 do STJ, positivada no CPC/2015 pelo §7º do art. 528. A possibilidade de prisão foi, e ainda é, o elemento utilizado para distinguir uma suposta existência de diferentes ritos, mesmo que a lei alerte que o cumprimento da pena de prisão não exime o executado do pagamento. É uma diferenciação feita, portanto, na largada e não na chegada do procedimento, pois poderá haver penhora para ambas as dívidas. A diferença é que se houver pedido de prisão, este adiará o pedido de penhora2, em uma lógica de sequência. Em contexto histórico, apesar das reformas sobre execução no CPC/73, a de alimentos sofreu certo abandono legislativo. Isso forjou gerações de advogados que diante da urgência de seus clientes em receberem os créditos, não deixavam de perguntar "como o juiz daqui faz?". Sinceramente, a melhor "técnica processual", sempre foi - e ainda é - conversar com o juiz ou o chefe de serventia, para que se entenda o "CPC da Comarca", antes de formular qualquer pedido. No CPC/73, em geral, predominou a aplicação do art. 732 para cumprimento de sentença (adequado ao art. 475-J) e o art. 733 como processo autônomo (ou vice-versa). E assim a comunidade jurídica acostumou-se à proliferação de processos para uma mesma obrigação com um monte de discussão sobre processo e/ou procedimento, fundamentado numa suposta celeridade do rito destinado à dívida de "caráter alimentar", com prazo de resposta menor, de 3 (três) dias para a justificativa, diferente do prazo maior, de 15 (quinze) dias, para a impugnação da dívida pretérita. O CPC/2015, no capítulo sobre cumprimento de sentença de alimentos podia ter ajudado a clarear as coisas, mas o 8º do art. 528 manteve a limitação da utilização do rito do cumprimento de sentença no caso de pedido de prisão. Supostamente uma limitação bem-intencionada, destinada a proteger o menor da opção menos célere, ao mesmo tempo que não diminui o prazo de defesa no caso da penhora. Ocorre que, na prática, em especial para a população de mães solos e pobres que movimentam a Justiça, importa o acompanhamento de tudo em dobro, em 2 (dois) processos, o que é difícil de explicar pra quem quer simplificar uma vida já bem complexa. Também na prática, após a rapidez na apresentação da justificativa, é necessária nova oitiva do credor seja sobre um pagamento integral, uma proposta de acordo ou sobre uma total inércia a justificar a prisão. No correr comparativo do tempo dos dois processos, um acaba alcançando o outro, e na época em que o juiz vai decidir no rito da penhora, em geral, já é a hora de decidir no de prisão também, sendo incompreensível a dicotomia de processos. O concatenar desses tempos processuais, porém, pode ser encaixado com a previsão de flexibilização de procedimentos do § 2º do art. 327 e do parágrafo único do art. 1.049, viabilizando técnicas especiais no procedimento comum3, trazido pelo CPC/2015. E o art. 531, §2º, anterior à pandemia e digitalização, reforça muito essa ideia: "o cumprimento definitivo da obrigação de prestar alimentos será processado nos mesmos autos em que tenha sido proferida a sentença." A palavra "processado" é importante, e talvez seja a fechadura, pra a qual faltava uma chave, que foi encontrada com a virada tecnológica da digitalização do processo4. Enquanto predominava o processo físico, as argumentações metajurídicas sobre a junção dos processamentos eram praticamente invencíveis: reunir as duas execuções "dá muita confusão", diria o serventuário processante, o que na decisão do juiz virava "tumulto processual", e assim esse conceito jurídico indeterminado fundamentou a necessidade de processos apartados. Maria Berenice Dias, certeira como sempre, já alertava sobre o problema do processamento para defender a dicotomia dos processos: "A diversidade de rito entre as duas formas de cobrança certamente retardaria o adimplemento da obrigação se processadas em conjunto".5 Nessa análise retrospectiva, fica claro que a discussão envolvendo argumentos teóricos bem sofisticados, ao fim e ao cabo, acabava por sucumbir ao argumento prático da dificuldade do processamento simultâneo de técnicas em um mesmo processo. A indisponibilidade do processo (físico) era um argumento forte e simples: tirar cópias para um Habeas Corpus, quando o processo estava no processamento para a penhora on line, tumultuava mesmo. Não raro, horas depois de apensados "por linha" os processos, literalmente cortava-se o barbante que os unia, para permitir o processamento apartado. Era assim. Mas não é mais. A possibilidade de se processar com rapidez um único processo em fase de execução que envolva mais de uma técnica executiva simultânea, pode finalmente emplacar. Não estamos falando nem de processo tampouco de procedimento, que com a virada tecnológica e o processo eletrônico, deixam se ser limitados pelo antigo processamento estanque. Processamento são os atos de documentação do processo, de organização das informações, dos dados. Quando o juiz decide que vai prender, é o serventuário processante que irá - pelo menos enquanto não se aprimoram ferramentas de automação - preparar o mandado, remeter e-mail e outros atos que, necessariamente, devem ser documentados dentro do processo. Enquanto o processo físico possuía uma lógica de sequência de atos estanques, em necessária sequência, o processo eletrônico possui a lógica do concomitante, com os atos acontecendo simultaneamente. Enquanto o processo físico é linear, indisponível para duas pessoas ao mesmo tempo, o processo eletrônico bifurca para dois processantes independentes. O processo eletrônico ao invés de permitir atos em cascata, permite atos em enxurrada, e isso muda muita coisa nos comportamentos repetitivos, acostumados com esses atos em sequência. No espírito deste tempo que o Núcleo de Assistência Jurídica da Universidade Federal de Ouro Preto (NAJOP), antes da pandemia, recorreu ao STJ para permitir a concomitância de duas técnicas executivas num mesmo procedimento. No RESP 1.930.593/ MG, a questão é até mais sofisticada: foi pedida a execução concomitante da dívida alimentar recente e pretérita, com o pedido de prisão para a primeira e o pedido de desconto em folha (que não é penhora) para a segunda, no mesmo processo e com o mesmo procedimento (aí a novidade!), nos exatos termos do art. 528, §§ 1º, 3º e 7º, e 529, §3º do CPC. Foi preciso desmistificar que o art. 528 restringiria, no caput, o procedimento ali previsto somente às 3 prestações anteriores ao ajuizamento da execução e seguintes. Para além do senso comum, defendeu-se que o rito se aplique às prestações mais antigas, com caráter não alimentar, usando a técnica de protesto do título e de desconto em folha. O TJ/MG cravou o velho: "mostra-se inapropriada a cumulação, nos mesmos autos, de execuções utilizando simultaneamente as duas técnicas". Mas o STJ apontou o novo: "a possibilidade de cobrança de alimentos, com a cumulação das técnicas executivas da prisão civil quanto da expropriação, no mesmo procedimento executivo." O Min. Luís Felipe Salomão primeiro assentou o que envolve cumular procedimentos em um processo; depois avançou para cumular os próprios procedimentos, com utilização de técnicas executivas, na visão mais avançada de processo civil6. Na ementa, de novo, a palavra "processamento": "Na hipótese, o credor de alimentos estabeleceu expressamente a sua "escolha" acerca da cumulação de meios executivos, tendo delimitado de forma adequada os seus requerimentos. Por conseguinte, em princípio, é possível o processamento em conjunto dos requerimentos de prisão e de expropriação, devendo os respectivos mandados citatórios/intimatórios se adequar a cada pleito executório". O acórdão discorre sobre a história, a doutrina moderna e diversos julgados de Tribunais do Brasil, em especial o IRDR do TJ/ AM7. Leitura obrigatória8! Apesar dos argumentos, nos parece que o mais forte (e que não consta do acórdão) é: não faz nenhum sentido, no processo digital, manter o mesmo comportamento do processo de papel. A virada tecnológica serve à superação de paradigmas. Essa evolução decorre do processo eletrônico e também da percepção de que as execuções de alimentos são processos simples nos quais, em geral, apura-se o que é devido e o que é pago numa planilha para determinar uma ordem (prisão, desconto em folha, penhora, etc.). Agora, aliás, temos a "teimosinha", uma função do SisbaJud que busca autonomamente valores em contas bancárias9, o que é possível diante do avanço das tecnologias aplicadas ao processo. Questões podem surgir sobre prestação de alimentos in natura e da divisão igualitária de tempo parental, com a fixação de divisão de custos ao invés de alimentos. Mas isso já acontecia antes, e quando se reúnem as execuções, fica até mais fácil compreender os fatos. Também podem surgir questões sobre a possibilidade de prisão civil, mas nos casos extremos a discussão se desloca para a arena do Habeas Corpus. Em um país onde até 70% por cento dos brasileiros recebem até 2 salários-mínimos10, há dois aspectos importantes: a urgência em receber alimentos e execuções não complexas. No passado, estes processos poderiam até ser qualificados como difíceis, mas hoje em dia, são fáceis. Fazem parte do "inferno conhecido" dos processos que abarrotam as prateleiras (virtuais) do sistema: se for possível um link, ao invés de dois, talvez a confusão diminua. Alguns poderão dizer que juntar processamentos dificultará o que era fácil. Contudo, parece boa a aposta de que a agregação de processos/procedimento/processamento pode melhorar o que, no mérito, já deixou de ser difícil, e agora precisa ser feito com mais agilidade na forma. É preciso compreender o fenômeno de simplificação e agregação diante das análises de comportamentos repetitivos e padrões. Muitas repetições permitem fusões e assimilações a serem aprendidas naturalmente. Inclusive, essas são diretrizes - para o bem e para o mal - tanto do aprendizado humano, quanto do "machine learning": aprendizado por repetição e observação de padrões11. Assim, o que era feito em dois ou três processos, poderá ser feito em um. Imagine o ganho em escala disso nas numerosas varas de família. É um movimento mais simples, por exemplo, que as ainda inovadoras técnicas de coletivização12 em processos complexos, mas fundadas no mesmo espírito de gestão otimizada de recursos judiciais disponíveis. Começar pelo mais simples pode abrir frente para o que parece mais difícil. "Reduzir litigiosidade" é um discurso corrente no Brasil. No caso, a quantidade de processos vai diminuir e, em princípio, a qualidade permanecerá a mesma, somente com a reunião de duas decisões antes apartadas em uma só. Não se pode descartar, porém, que a redução da quantidade retroalimente a diminuição qualitativa da litigiosidade, com entendimento fático em processo único. Aliás, perceber que a própria defesa pode ser cumulada em uma peça única dividida por capítulos, foi sugerido pelo Min. Salomão: "A defesa do requerido, por sua vez, poderá ser ofertada em tópicos ou separadamente, com a justificação em relação às prestações atuais e com a impugnação ou os embargos a serem opostos às prestações pretéritas." A conferir qual nossa maturidade diante de mudanças. Um cenário trágico seria imaginar um tema de IRDR: "a decisão deve ser dada em dois parágrafos na mesma folha, ou em duas folhas com um parágrafo cada?" Toda alteração de rotina é difícil, e se desvencilhar de regras comportamentais familiares pode aprisionar as vítimas das pilhas processuais e das metas de (im)produtividade. Tomara que eventuais resistências, naturais quando se avizinham mudanças, sejam breves e que rapidamente ocorra a aceitação e a ação em prol de um processo que naturalmente evolui para ser mais efetivo. __________ 1 Disponível aqui.  2 Com a pandemia, essa lógica de sequência (primeiro a prisão, e residualmente a penhora) em um dos ritos foi balançada com a proibição da prisão pela lei 14.010/20 e as Resoluções 62 e 78 do CNJ. Vide STJ - REsp 1.914.052-DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/06/2021. 3 TARTUCE, Fernanda. Cumulação de requerimentos de prisão e penhora no cumprimento da sentença que fixa alimentos. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 10, n. 1, p. 257-268, abr. 2022.  4 NUNES, Dierle. Virada tecnológica no direito processual (da automação à transformação): seria possível adaptar o procedimento pela tecnologia. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique Santos; WOLKART, Erik Navarro. (org.) Inteligência artificial a direito processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. 5 DIAS, Maria Berenice. A execução dos alimentos frente às reformas do CPC. Disponível aqui. 6 DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais: dos procedimentos às técnicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. 7 Tese firmada no IRDR 0004232-43.2018.8.04.0000: "é possível a cumulação, nos mesmos autos, dos ritos da prisão e da expropriação para o cumprimento de sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos, nos termos do art. 531, §2º, do Código de Processo Civil".  8 Vale a leitura também das ponderações da Min. Maria Isabel Galloti, que refutou qualquer possibilidade de penhora dentro do rito do art. 528, e foi mais conservadora sob uma suposta impossibilidade de reação do executado. A preocupação ocorreu referenciando a penhora de bens imóveis. O curioso é que essa é uma fase até mais gradativa da expropriação do que o desconto em folha, e também menos imediata do que a prisão, nos quais não há menção à impossibilidade de defesa.  9 Disponível aqui.  10 Dados do Pnad do IBGE. Informativo disponível aqui.  11 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. P. 706.  12 ZANETTI, Giulia; PASCHOAL, Thaís Amoroso. Por um tratamento eficiente da prova: notas sobre o multidistrict litigation enquanto técnica coletiva de gestão de processos. Revista eletrônica de direito processual, v. 22, p. 409-428, 2021.
O presente artigo tem como escopo analisar a possibilidade jurídica de ser realizada a aplicação das medidas executivas atípicas, sub-rogatórias e coercitivas, em caráter principal, nos processos sob a égide da Lei 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor. O Código de Processo Civil de 2015 inovou ao prever a possibilidade de haver meios executivos atípicos, isto é, não previstos em lei. Através da cláusula geral de atipicidade o magistrado pode-se valer de medidas sub-rogatórias e coercitivas como forma de favorecer o cumprimento do princípio da efetividade da execução. Nesses termos, dispõe a legislação: Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente. § 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial. Embora o limite da atipicidade trate-se de matéria controversa, já que não existe consenso na doutrina, tampouco na jurisprudência, é pacífico o entendimento acerca da subsidiariedade da medida, ou seja, as medidas atípicas são sempre secundárias e sua utilização só é permitida se ficar demonstrado o exaurimento dos meios típicos executivos. Nesse raciocínio manifestou-se o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Resp 1.782.418/RJ: De se observar, igualmente, a necessidade de esgotamento prévio dos meios típicos de satisfação do crédito exequendo, tendentes ao desapossamento do devedor, sob pena de se burlar a sistemática processual longamente disciplinada na lei adjetiva" (DJe 26/04/19).1 O FPPC também já se posicionou através do enunciado de número 12: A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II (grifo nosso). O raciocínio dominante é muito simples: não existe motivo para o magistrado utilizar mecanismos não previstos em lei, correndo o risco de violar a segurança jurídica do jurisdicionado, se a legislação prevê um rol exaustivo de formas para se fazer cumprir a execução. O art. 4º do CPC traz como norma fundamental do processo civil brasileiro o direito à atividade satisfativa, ou seja, o direito à execução ao estabelecer que: "as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa". Marcelo Lima Guerra defende que a tutela executiva exige um sistema jurisdicional como "deveres": a) a interpretação das normas que regulamentam a tutela executiva tem que ser feita no sentido de extrair a maior efetividade possível; b) o juiz tem o poder-dever de deixar de aplicar uma norma que imponha uma restrição a um meio executivo, sempre que essa restrição não se justificar como forma de proteção a outro direito fundamental; c) o juiz tem o poder-dever de adotar os meios executivos que se revelem necessários à prestação integral de tutela executiva2. No entanto, apesar de louvável o entendimento, não se pode ignorar que não são raras às vezes que o direito buscado através da execução típica não se materializa. De acordo com dados do CNJ, a fase de conhecimento do processo dura em média cinco anos e quatro meses, enquanto a fase executiva dura seis anos e nove meses3, de modo que se verifica de forma muito clara que a fase de certificação do direito no qual, em regra, demanda a necessidade dilação probatória, é mais curta do que a efetivação no plano material desse mesmo direito já reconhecido. Nas relações de consumo, esse problema assume um contorno ainda maior em virtude da natureza dos direitos discutidos, além da vulnerabilidade técnica e econômica do consumidor (art. 4º CDC) evidenciadas, principalmente, em razão da discrepância entre os litigantes e da clara hipossuficiência do consumidor.   Na prática forense, alguns tribunais chegam a exigir a demonstração da utilização prévia das vias administrativas para a propositura da ação judicial, como prova do "interesse de agir". Existem decisões que chegam a impor ao consumidor que procure a plataforma consumidor.gov.br, aguarde o prazo para manifestação da empresa e só depois inicie a ação judicial, como já ocorreu, por exemplo, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais4 e no Tribunal de Justiça do Maranhão5.  Após a referida diligência, deve-se aguardar um moroso processo judicial e havendo a negativa de cumprimento voluntário da obrigação, se iniciar mais uma longa fase executiva, por vezes, inexitosa. Só após o exaurimento das vias típicas (que pode durar anos) que o consumidor pode se valer das medidas atípicas para ver satisfeito o seu direito, mesmo quando se trata de serviços ou bens essenciais. Isso tudo ganha destaque se analisada a posição ocupada pelos fornecedores. Na maioria esmagadora dos casos, trata-se de grandes empresas que possuem sofisticada blindagem patrimonial, além do fato de serem amparadas por corpo jurídico especializado - o que só demonstra a disparidade de forças dos sujeitos de direito envolvidos na relação de consumo. Por exemplo, as construtoras, a cada lançamento de uma obra, criam uma SPE diferente: ao se ingressar com processo judicial contra tal SPE não se localiza bens passiveis de penhora, fazendo com que o consumidor ingresse em uma investigação patrimonial longa e cansativa, jogando com a sorte para conseguir demonstrar sucessão empresarial, grupo econômico, confusão patrimonial e outras. Diante da premissa de que existe um direito fundamental à tutela executiva, sendo indispensável que o Judiciário, diante de um cumprimento de sentença ou execução em que o credor é um consumidor em busca incessante de patrimônio do fornecedor/prestador/devedor - que sempre resulta infrutífera -, sejam tomadas medidas capazes de satisfazer o crédito. É direito básico do consumidor a facilitação da defesa dos seus direitos, isto é, o tratamento processual diferenciado para que seja efetivada a isonomia, conforme prevê o art. 6º, inciso VIII do CDC. Essa garantia fica clara, por exemplo, na possibilidade de inversão do ônus da prova, que possibilita ao magistrado transferir ao fornecedor o dever de levar aos autos a comprovação necessária para elidir a pretensão estabelecida em favor do consumidor, havendo em favor do último (caso concedida a inversão) uma presunção de veracidade.  O Código de Defesa do Consumidor brasileiro é uma lei claramente protetiva, tanto que em seu primeiro artigo consta: "O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor."6. No ordenamento brasileiro não existe margem para discutir se é um "direito ao consumo" ou de um "direito do consumidor", não se discutindo a relação jurídica em detrimento do sujeito de direitos7. Ressalta-se que na CF/88 o direito do consumidor foi elevado à condição de direito humano fundamental (art. 5º, XXXII). Como direito fundamental, requer ações positivas para sua plena realização. A opção pela tutela subjetiva foi, por fim, consagrada no texto do artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual determinou que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborasse código de defesa do consumidor. A determinação para a elaboração do Código de Defesa do Consumidor advinha de uma preocupação da manutenção de uma ideologia jurídico-econômico mista, a qual privilegia a liberdade de iniciativa privada e liberdade econômica, mas que ao mesmo tempo preza pela proteção por meio de mecanismos de viés social para evitar eventuais desvirtuamentos indesejados do comportamento dos agentes econômicos, capazes de gerar a autodestruição da própria economia de mercado8. Portanto, a finalidade foi a de manter um equilíbrio entre o consumidor e o mercado, compensando desequilíbrios naturais não apenas para o consumidor, mas também para o próprio desenvolvimento nacional global e que, ao fim e ao cabo, atingirá, novamente, as pessoas humanas9. Em sendo assim, a lei federal assegurou aos consumidores direitos e proteção, em quatro dispositivos: artigos 2º, PU, 4º, 17º e 29º. O artigo 4º, inciso I, prevê a vulnerabilidade como seu princípio informador, reconhecendo a "vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo". É de se destacar que a vulnerabilidade do consumidor não é mera desigualdade entre ele e a outra parte, mas é exatamente a circunstância de desigualdade presente na relação jurídica e que justifica a norma de proteção10. Nessa toada, conclui-se que o consumidor deve sempre ser considerado vulnerável na relação, como presunção legal de vulnerabilidade. Portanto, deve ser aplicado o critério de justiça, da lei e afastados eventuais excessos que podem existir. Logo, os conceitos de "consumidor" e de "vulnerabilidade" se "retroalimentam" no estatuto consumerista, tornando a lei uma norma protetiva. A hipossuficiência está ligada ao direito processual, à posição desfavorável do consumidor dentro da relação processual advinda de uma ação consumerista (dificuldade de produzir provas, demonstrar ocultação de patrimônio etc.). Ressalta-se que diferente da vulnerabilidade, a hipossuficiência não se presume, mas decorre da situação fática. Considerando-se a hipossuficiência do consumidor, a necessidade que se defende não é apenas quanto à inversão do ônus da prova, mas a aplicação incisiva do princípio da efetividade com foco no princípio da igualdade entre as partes, afastando-se o princípio da menor onerosidade da execução como forma de forçar o executado/devedor a cumprir a obrigação. Assim, percebe-se que o legislador deixa em aberto a possibilidade de o magistrado adotar as medidas que entender adequadas, desde que não sejam contrarias à lei, para facilitar ao consumidor a certificação e a materialização do bem da vida que foi violado. Portanto, não existe vedação para a aplicação, em caráter principal, das medidas executivas atípicas. Partindo do entendimento de Marcos Minami sobre a noção da proibição de non liquet para justificar as medidas executivas atípicas, o magistrado não poderá se eximir de decidir diante de um título executivo existente, devendo mesmo - em verdade - haver uma proibição de o processo jurisdicional terminar em uma situação de inefetividade, o que chamou de vedação ao non factibile11. Assim, defende-se que, após a devida demonstração de que as medidas ordinárias, como a exemplo, o INFOJUD, RENANJUD, SISBAJUD, SNIPER, restarão infrutíferas, poderá o juiz utilizar de medidas atípicas como forma de coerção para a satisfação do crédito, aplicando a lei de tal forma que afaste eventuais excessos contra o consumidor. Por outro lado, não é possível que tal medida seja aplicada sem nenhum parâmetro, de forma irrestrita e indiscriminada se ficar demonstrada que a medida executiva típica e menos gravosa será suficiente para garantir a efetividade do direito. Nessa toada, parece ser razoável que seja exigida a demonstração de quatro requisitos: a)       Prévio requerimento do autor; b)      Indícios de ocultação patrimonial; c)       Demonstração da prática processual reiterada; d)      Fundamentação do magistrado. Em síntese, não basta apenas o requerimento do consumidor, mas que esse requerimento seja fundado na demonstração de indícios de ocultação patrimonial, de que o exaurimento das vias ordinárias se mostre como diligência inútil para a finalidade desejada. Além disso, caso o executado seja um litigante habitual, é importante demonstrar a adoção consecutiva da prática processual que visa obstar o cumprimento da decisão, ou seja, quem age de má-fé em reiterados processos tem grandes chances de replicar a mesma conduta. Por fim, como trata-se de medida excepcional deve haver a fundamentação do magistrado, oportunidade em que deve especificar a pertinência e adequação da determinação no caso concreto. A proposta é a proibição de se deixar de entregar a tutela jurisdicional ao credor/consumidor quando os meios executivos disponíveis demonstrarem-se infrutíferos em um cenário de um devedor/fornecedor ativo no mercado e com notória saúde financeira. Portanto, diante da análise da legislação processual civil, conclui-se que não existe vedação legal para a utilização das medidas executivas atípicas, em caráter principal. Apesar da construção doutrinaria e jurisprudencial pela subsidiariedade, devem ser consideradas as peculiaridades das relações de consumo, como a exemplo, a vulnerabilidade do consumidor e a hipossuficiência que possibilitam o tratamento jurídico diferenciado. Além disso, restou evidenciada a finalidade protecionista do legislador, que através de vários mecanismos buscou a equiparação de forças entre partes naturalmente desiguais. Assim, possibilitar a utilização direta das medidas atípicas não só irá observar os ditames da Lei 8.078/90, mas viabilizará o cumprimento do princípio da efetividade da execução, corolário do devido processo legal.  _____________ 1 STJ, REsp 1.782.418/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3º T., j 23/04/2019, DJE 26/04/2019 2 GUERRA, Marcela Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2002, p. 103-104. 3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Justiça em números 2021.  Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf- Acesso em 24 de agosto de 2022. 4 BRASIL, Juizado Especial Cível. Processo nº 9050444.08.2019.813.0024, Juíza Maria Dolores Giovine Cordovil, 11º Vara de Belo Horinzonte/MG, j. 05/092019. 5 BRASIL, Juizado Especial Cível. Processo nº 0800285-61.2021.8.10.0036, Rel. Juiz Carlos Eduardo Coelho de Sousa, 2º Vara de Estreito/MA, j. 05/03/2021, DJE 31/03/2021. 6 A ementa da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, estabelece: "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências". 7 Na França, na Itália, em Portugal, por exemplo, a discussão acerca de se dever proteger o "o ato de consumo" ou o "consumidor" já foi ou ainda é cabível. Não é o caso do Brasil. Para saber mais sobre o ponto: BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009 e também ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Direito do Consumo. Coimbra: Almedina, 2005. 8 Sobre a característica mista ou plural da Constituição Econômica de 1988, recomenda-se: SOUZA,Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. 9 Diz-se assentar o fundamento dos direitos humanos na qualidade de vida (Nesse sentido, FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. 7a ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 26). O mesmo deve-se esperar da busca constante pelo desenvolvimento econômico e da escolha de modelo econômico feita pelo Constituinte. 10 Nesse sentido, Lorenzetti afirma ser a vulnerabilidade o impacto mesmo que a circunstância de desigualdade tem sobre a relação jurídica. LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. PG 36 (s.d.). 11 MINAMI, Marcos Youji, Da Vedação ao non factibilie, uma introdução às medidas executivas atípicas. Salvador. Juspodivm, 2019, p. 125-139.
Por mais de uma década (de 1994 a 2005) o Código de Processo Civil de 1973 passou por reformas que tornaram necessário um novo olhar sobre a dicotomia processo de conhecimento - processo de execução. A tutela antecipada, introduzida pela lei 8.952/94, trouxe a lume a existência de atividade executiva em um processo de conhecimento1, e o sincretismo processual (duas atividades jurisdicionais distintas em um mesmo processo) colocou em xeque a referida dicotomia. Conforme assevera Cassio Scarpinella Bueno, não há como negar que "boa parte da sistematização histórica do direito processual civil levou em conta a distinção entre o processo de conhecimento e o processo de execução"2, no entanto, consiste em critério classificatório3 que, ao longo dos anos, mostrou-se insuficiente. Insuficiente porque existe execução no processo de conhecimento, existe cautelar no processo de execução, existe conhecimento no processo de execução, e assim sucessivamente. Há inegável proveito prático em realizar classificações, mas temos que tomar cuidado para não cair em armadilhas. Nas palavras de Barbosa Moreira, temos que controlar "nosso animus classificandi, antes que ele tome o freio nos dentes e se transforme em cego e obsessivo furor classificandi"4. Quando a classificação consta na Lei o risco de cair em armadilhas é ainda maior, era o que ocorria com o processo cautelar no Código de Processo Civil de 1973. Não bastava a compreensão doutrinária de que seria possível proteger a efetividade da tutela final sem a necessidade de um processo autônomo5, foi preciso que a lei 8.952/94 introduzisse no sistema a tutela antecipada. A expressa menção de um processo cautelar engessava a compreensão a respeito do ambiente processual em que a tutela cautelar (fosse de natureza antecipada ou cautelar)6 poderia ser requerida. Com as denominadas tutelas provisórias o Código de Processo Civil 2015 logrou êxito em demonstrar que há tutela cautelar, sem precisar existir um processo cautelar. No entanto, essa compreensão de que somente existe 'uma ação' na qual podem coexistir tutelas de diferentes naturezas, não ocorreu com o processo de conhecimento e processo de execução. Apesar de algumas mudanças que, ao lado do sincretismo, robusteceram a inexistência de autonomia entre as atividades de conhecimento e execução, tal como as decisões parciais de mérito (art. 356, CPC), bem como as já conhecidas atividades essencialmente cognitivas no processo de execução (ex: fraude à execução7), a manutenção das expressões: "processo de conhecimento" e "processo de execução", nos Livros I e II do CPC, respectivamente, fez permanecer vivo (ainda que com temperamentos) o dogma de que tutela cognitiva é exclusiva do processo de conhecimento e tutela executiva do processo de execução. Manter-se expressamente a dicotomia do continente (processo) mostra-se descabida "por força da unitariedade e universalidade do conceito de ação"8 (conteúdo). Ação é "o direito de romper a inércia da jurisdição e de atuar ao longo do processo com vistas à concretização da tutela jurisdicional. É a tutela jurisdicional - se concedida - que desempenhará o papel que as diversas ações, seus respectivos pedidos e correlatas sentenças desempenhavam"9. Não existe ação de conhecimento ou ação de execução, existe apenas ação, que pode ter como pedido tutela cognitiva, executiva, cautelar, tudo convivendo em um mesmo ambiente (processo). Nas execuções de títulos extrajudiciais, o rompimento da inércia da jurisdição se dá com base em pedido de tutela executiva, portanto, classifica-se como sendo ação de execução. Por outro lado, se já existia prévia atividade jurisdicional (conhecimento), definir se no momento de buscar a tutela executiva haverá exercício de ação, ou mera continuidade do direito constitucional já iniciado, dependerá da análise do objeto litigioso, que, geralmente, mantém-se o mesmo10. Se o objeto litigioso for o mesmo da fase cognitiva, não haverá "ação de execução", mas mera fase processual (cumprimento de sentença). Há evidente paradoxo, na medida em que a tutela de predominância requerida em um processo de execução de título extrajudicial é a mesma de um cumprimento de sentença - tutela executiva, mas no primeiro caso haverá classificação em "ação de execução", e no segundo "fase da ação de conhecimento". Ponto fulcral é que a classificação de processo e ação, em conhecimento ou execução, leva à limitação no desenvolvimento da atividade jurisdicional. E limitar a atividade jurisdicional é ir de encontro com as normas fundamentais de processo civil de razoável duração do processo, celeridade e economia processuais. Mas, se por um lado o Código de Processo Civil de 2015 manteve as expressões processo de execução e processo de conhecimento, trouxe inovação que expressamente autoriza a concessão de tutelas de naturezas diversas em um mesmo processo, e isso, no ambiente menos aceito pela jurisprudência11: tutela cognitiva no processo de execução. O Código de Processo Civil atual pouco inovou em matéria de execução, no entanto, com a introdução da possibilidade de requerer desconsideração da personalidade jurídica em inicial de processo de execução12 (do art. 134, §2º) acabou, ainda que não intencionalmente, afastando o dogma de que em processo de execução só há tutela executiva. Quando há Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica em inicial de processo de execução o que existe é cumulação de pedidos de naturezas distintas e direcionados a partes diversas, tudo convivendo em um só processo. Há um litisconsórcio inicial, passivo, eventual e simples. Para cada ocupante do polo passivo haverá um pedido de natureza distinta. Para aquele que figura como devedor no título executivo, a tutela será executiva, sendo qualificado processualmente como executado. Já em relação ao pedido direcionado ao pretenso responsável patrimonial secundário (art. 790, VII, CPC), a tutela inicialmente requerida será de conhecimento (desconsideração da personalidade jurídica), e por isso, de início, qualifica-se processualmente como réu. Somente se houver decisão de procedência do pedido desconsideração da personalidade jurídica é que o réu do IDPJ passará a ostentar a qualidade de executado13.   O processo com cumulação de pedidos de natureza cognitiva (desconsideração da personalidade jurídica) e executiva (em face do devedor constante no título) deveria prescindir de qualificação14, pois a adjetivação causa equívocos procedimentais. Entre estes equívocos procedimentais podemos citar a autorização de penhora de bem do réu do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, e até mesmo o emprego de expressões que, em nosso sentir, são tecnicamente erradas como "penhora cautelar"15. No processo de execução com pedido de desconsideração da personalidade, o executado pode sofrer penhora, pois em face dele há pedido de tutela executiva. Já o réu do IDPJ (pretenso executado) pode sofrer arresto (cautelar)16, pois em face dele há pedido de tutela cognitiva e a apreensão de bens somente se justifica como tutela provisória. Embora o resultado da penhora e do arresto sejam praticamente iguais: segregar patrimônio para garantir a dívida, há diferenças entre os referidos institutos que não podem ser ignoradas. A intenção do incidente de desconsideração da personalidade jurídica é autorizar que terceiro17 passe a responder com seu patrimônio por dívida alheia; e este terceiro somente poderá responder com seu patrimônio próprio, por dívida alheia, após o trâmite do IDPJ (art. 795, §4º18). Até a prolação da decisão interlocutória que decide o referido incidente, nenhum ato típico de tutela executiva deve se voltar ao sócio19, ainda que, no mesmo processo, possam acontecer atos típicos de tutela executiva em face do executado. Como se vê, a autorização legal de instaurar incidente de desconsideração da personalidade jurídica em inicial de processo de execução disse mais do que queria dizer, mas, por se manter legalmente a dicotomia entre processo de conhecimento e processo de execução, experimentam-se na prática erros procedimentais, concedendo-se tratamentos distintos para situações idênticas20. Da mesma maneira que a tutela antecipada introduzida no CPC/73 por meio da Lei 8.952/94, ao conceber que pode haver tutela executiva no processo de conhecimento, colocou em xeque a dicotomia processo de conhecimento - processo de execução21; o art. 134, §2º, CPC, ao autorizar que seja requerida desconsideração da personalidade jurídica em processo de execução (cumulação de pedidos de conhecimento e execução), exacerbou a prescindibilidade de se colocar em compartimentos estanques as tutelas jurisdicionais. O pedido de desconsideração da personalidade jurídica em inicial de processo de execução demonstra que é possível haver tutela essencialmente cognitiva dentro de um processo de execução. Mas, mais do que isso, a possibilidade de convivência de tutela cognitiva e tutela executiva em um mesmo processo, legalmente autorizada pelo art. 134, §2º, CPC, convida à reflexão sobre a utilidade de manutenção da dicotomia entre processo de conhecimento e processo de execução, que mais parece dificultar o alcance das tutelas jurisdicionais que auxiliar. _________________ 1 "A própria generalização da tutela antecipada (CPC, art. 273), por obra da lei 8.952/1994, sinaliza a quebra de autonomia tanto da ação-processo de execução, quanto da ação-processo cautelar.Essa revolucionária inovação pôs a nu, de início, que atividade cognitivas e executivas podem se mesclar no processo, de tal sorte que o processo de conhecimento poderia abrigar atividade para realização concreta de um provimento antecipatório de tutela (sem que haja autônoma ação de execução)."  (SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011, p. 40). 2 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 1. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 313 3 Critério que leva em consideração a atividade jurisdicional predominante: reconhecer o direito, satisfazer o direito e proteger o direito 4 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Questões velhas e novas em matéria de classificação das sentenças. In Temas de direito processual, oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 142 5 Antes da Lei já havia obras a respeito da cautelaridade por meio de antecipação: Ver GUERRA, Marcelo Lima. Reflexões em torno da distinção entre execução provisória e medidas cautelares antecipatórias. In Revista de Processo vol. 57. São Paulo: RT. Jan-mar. 1990. p. 208 - 210 e MARINONI, Luiz Guilherme, Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: RT. 1992. 6 Partimos dos ensinamentos de Piero Calamandrei de que a tutela antecipada é mera espécie do gênero cautelar: "...qui, in questo terzo grupo, il provvedimento cautelare consiste proprio in una decisione anticipata e provvisoria del merito, destinata a durare fino a che a questo regolamento provvisorio del rapporto controverso non si sovrapporà il regolamento stabilmente conseguibile attraverso il più lento processo ordinario." (CALAMANDREI, Piero. Introduzione Allo Studio Sistematico dei Provvedimenti Cautelari. Pádua : CEDAM, 1936, p. 38/39). Protege-se entregando o próprio bem da vida (tutela antecipada/satisfativa), ou protege-se a tutela jurisdicional final por outro meio (cautelar pura).  7 Embora o §4º do art. 792, CPC determine que antes de declarar a fraude à execução deve haver intimação do terceiro adquirente, para que esse, se quiser, apresente embargos de terceiro, a decisão que reconhece ou nega a existência de fraude é proferida no bojo no processo de execução e não nos embargos de terceiro. Ilustrando, no caso ligado ao agravo de instrumento 2156917-86.2018.8.26.0000, não houve apresentação de embargos de terceiro, o que não impediu o juiz de primeira instância, exercendo cognição, negasse a existência de fraude. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2156917-86.2018.8.26.0000; Relator (a): Rebello Pinho; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/06/2020; Data de Registro: 26/06/2020).  8 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 56. 9 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 1. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 282. 10 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 106. 11 Desde a inserção das tutelas antecipadas no sistema processual há aceitação de que pode haver atos executivos em um processo de conhecimento. 12 Heitor Vitor Mendonça Sica entende em sentido oposto, asseverando que quando a desconsideração da personalidade jurídica é requerida na inicial do processo de execução aplica-se "a técnica de cognição sumária com inversão de contraditório (art. 134, § 2º). (SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 205). 13 Sem adentrarmos na problemática de falta de compatibilidade dos incisos do art. 779 e 790, CPC, fato é que o art. 790, VII, em uma leitura sistêmica, nos leva à conclusão de que somente haverá legitimidade do sócio para constar como executado após decisão de desconsideração da personalidade jurídica. 14 "O que precisa haver (...) enquanto houver necessidade de atuação do Estado-juiz é processo, sem nenhuma adjetivação. O processo é um só: o devido desde o modelo constitucional, o devido processo constitucional." Grifos originais (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Vol. 1. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 316). 15 No julgamento do Agravo de Instrumento 2166422-62.2022.8.26.0000 (Relatora: Maria Lúcia Pizzotti; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 18/08/2022; Data de Registro: 18/08/2022), embora tenha ficado claro que o IDPJ ainda não tinha sido decidido na origem, foi deferida penhora cautelar de imóvel. Penhora é ato típico de tutela executiva, de tal sorte que não poderia ter sido deferida antes do desfecho do IDPJ.  O que poderia ter sido requerido como forma de garantir o resultado útil do processo, seria o arresto cautelar (tutela provisória) do imóvel. Embora em ambas situações (penhora e tutela provisória de arresto) ocorra a segregação do patrimônio, o mecanismo que leva a essa tem desdobramentos distintos, e por isso, é necessário deixar claro qual a motivação da segregação. 16 TJ/SP;  Agravo de Instrumento 2072634-91.2022.8.26.0000; Relator: Rebello Pinho; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 11ª Vara Cível; Data do Julgamento: 23/05/2022; Data de Registro: 23/05/2022. 17 A posição de terceiro do réu do IDPJ ficou bastante clara com a opção legislativa de inserir o IDPJ como uma espécie de intervenção de terceiro. 18 O PL 487/2013, projeto de lei de Código Comercial, assevera no art. 199: "Decretada a desconsideração da personalidade jurídica, deve ser incluído no processo o nome do sócio, administrador ou da pessoa, natural ou jurídica, a quem se imputar responsabilidade.", deixando de maneira ainda mais evidente que o sócio só passa a ser parte no processo após todo o trâmite do IDPJ. 19 Mencionamos a palavra sócio, pois é a forma mais corriqueira de pedido de desconsideração da personalidade jurídica: desconsideração direta (devedor é a pessoa jurídica) e restritiva (limita-se aos integrantes da pessoa jurídica devedora). 20 Quando o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é instaurado depois que o processo de execução já se iniciou, forma-se autos apartados (denominado pela Lei de incidente). Nesses autos apartados não há erro de qualificação processual, o desconsiderando é qualificado como réu do IDPJ e não executado, e não há atos executivos voltados contra ele até que se decida o IDPJ. Há de maneira não intencional tratamentos distintos para o pedido de desconsideração requerido na inicial do processo de execução (IDPJ interno) e o pedido de desconsideração da personalidade jurídica incidental (IDPJ externo). Com isso há evidente desequilíbrio, pois são situações materiais idênticas (busca de responsabilização secundária) em que o que menos deveria importar é o local na qual se pede (se na inicial ou de maneira incidental). 21 A própria generalização da tutela antecipada (CPC, art. 273), por obra da lei 8.952/1994, sinaliza a quebra de autonomia tanto da ação-processo de execução, quanto da ação-processo cautelar.Essa revolucionária inovação pôs a nu, de início, que atividade cognitivas e executivas podem se mesclar no processo, de tal sorte que o processo de conhecimento poderia abrigar atividade para realização concreta de um provimento antecipatório de tutela (sem que haja autônoma ação de execução).  (SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2011, p. 40). _________________ Roberta Dias Tarpinian de Castro é mestre em Processo Civil pela PUC/SP, MBA em direito tributário pela FGV/SP, professora de processo civil dos cursos de pós-graduação da PUC/SP e Mackenzie para publicação na nossa coluna de sexta-feira - Elas no Processo.  
A alienação judicial por iniciativa particular1 é meio expropriatório que pode ser considerado tradicional na execução civil brasileira, já que se fez presente em todos os códigos federais (CPC/39, CPC/73 e CPC/15) e em legislação esparsa (lei 9.099/95). Apesar da permanência normativa, a produção acadêmica sobre o tema não tem sido expressiva, mesmo na busca em periódicos especializados. Para ilustrar essa afirmação, ao inserir os parâmetros "alienação por iniciativa particular" e "alienação particular" no acervo eletrônico de cinco das principais revistas de processo2, são encontrados oito trabalhos, sendo apenas dois deles publicados durante a vigência do atual CPC. No âmbito jurisprudencial, o enfrentamento da questão é igualmente reduzido3, tornando evidente a importância da presente análise, que servirá para demonstrar os seus potenciais e, assim, incentivar a ampliação do seu uso. De acordo com o art. 825 do CPC, a expropriação de bens pode se realizar pela adjudicação (arts. 876 a 878), pela alienação (arts. 880 a 903) ou pela apropriação de frutos e rendimentos (arts. 862 a 869). Por sua vez, a alienação possui duas modalidades ou espécies: por iniciativa particular, e por leilão público (art. 879, incisos I e II). Se a penhora tiver recaído sobre quantia suficiente, é intuitivo concluir que o caminho para a satisfação do crédito será mais fácil, bastando a entrega imediata dos valores ao credor. Havendo constrição de frutos e rendimentos de bens do devedor, o pagamento ocorrerá por transferências periódicas. Por outro lado, se os bens penhorados forem outros móveis ou imóveis, poderão ser adjudicados ou alienados na execução4. A adjudicação consiste na transferência do bem penhorado para a propriedade do exequente ou de outros sujeitos legitimados (art. 876, caput e § 5º). Não sendo realizada, será oportunizada a alienação particular ou, em último caso, a alienação por leilão. Assim, existe uma escala de preferência legal: atualmente, a adjudicação é prioritária, seguida da alienação particular, subsidiária com relação à primeira, e prioritária quanto ao leilão público, última modalidade de expropriação judicial. A disciplina legislativa da alienação particular é encontrada no art. 880 do CPC, restando aplicáveis algumas previsões do leilão público (arts. 881-903), mais extensas e detalhadas, desde que compatíveis com o seu regramento. Conforme o dispositivo estabelece, não ocorrida a adjudicação dos bens do executado, o exequente pode requerer a alienação por sua própria iniciativa ou por meio de corretor ou leiloeiro público credenciado perante o órgão judiciário5. Esse mecanismo objetiva converter forçadamente o patrimônio penhorado em dinheiro, a fim de satisfazer o exequente. Não é a alienação em si que realiza o crédito, mas a atividade de conversão e entrega da quantia para o titular (art. 904, I). A principal diferença entre a alienação particular e a alienação por leilão repousa sobre a simplicidade do procedimento da primeira6. Embora realizada no curso do processo judicial, a procura por interessados é simplificada, não depende da prática de excessivos atos solenes, dispensando a publicação de editais. Ambas são formas de expropriação do patrimônio do executado, pleiteadas perante órgão jurisdicional estatal, mas com distintos graus de burocracia pública. Nesse instituto, a prática de atos negociais para busca de adquirentes e formulação de propostas convive com a presença soberana do órgão jurisdicional7. Ainda se está diante de expropriação judicial, porém, com natureza negocial e pública8. O § 1º do art. 880 indica que o magistrado deve fixar as condições básicas para que a alienação se realize, tais como: a forma de publicidade, o preço mínimo, as condições de pagamento, as garantias e, sendo necessária, a comissão de corretagem. A partir daqui, passa-se ao exame, de forma crítica, desses vetores - objeto central do texto. Como aponta Fredie Didier Jr., as diretrizes judiciais para realização da alienação particular devem ser interpretadas com flexibilidade, permitindo a alteração dos seus componentes durante o curso do processo, condicionada à concordância das partes9. Inclusive, elas podem definir prévia e consensualmente os requisitos da alienação, criando diferenças convencionais compatíveis com os seus interesses, ao encontro da cláusula geral de negociação processual (art. 190) e do regime de disponibilidade da execução (art. 775), os quais estimulam a atipicidade negocial executiva10. A publicidade da alienação é fator crucial para o seu êxito, pois envolve preocupações com: a divulgação da oferta do bem para um nicho específico do mercado, a descrição do tempo de uso, o estado de conservação, despesas de manutenção, condições especiais de pagamento, e demais vantagens competitivas do patrimônio disponível. O bem precisa ser oferecido de modo amplo e assertivo, com publicidade realizada em ambientes, físicos ou virtuais, frequentados pelo maior número de potenciais adquirentes. Como a alienação alcança bens com distintas características, a variação das estratégias de divulgação deve ser proporcional a essa pluralidade, não sendo a mesma, por exemplo, para edifícios, automóveis, embarcações, pedras preciosas e obras de arte. O magistrado não está autorizado a impor formalidades publicitárias excessivas, uma vez que isso igualaria ou superaria a burocracia do leilão11, além de tornar a alienação particular mais custosa para o executado ou para o profissional responsável pela intermediação do negócio (quando responsável por estes custos), na medida em que os gastos com publicidade são incluídos nas despesas da execução. Portanto, a melhor solução é a reduzida intervenção judicial sobre esta diretriz, favorecida pela fixação de parâmetros gerais de publicidade, incumbindo-se a especificação das estratégias de divulgação ao agente habilitado para intermediar o negócio12, detentor de conhecimentos técnicos sobre o bem e seu mercado - o que não exclui a adoção de cautelas adicionais pelas partes, interessadas em potencializar as chances de êxito da transação. Como se pode imaginar, o valor a ser pago pelo bem é um dado relevante para todos os sujeitos envolvidos na alienação particular: ao exequente, por ter interesse na satisfação integral do débito; ao executado, para obtenha o maior preço possível, e assim tenha chances de receber eventual excedente ao valor da dívida e às despesas executivas; e ao adquirente, para que consiga celebrar negócio jurídico vantajoso e competitivo frente ao mercado. E, por fim, acrescente-se ainda o interesse de eventuais corretores ou leiloeiros que atuem na transação, já que o pagamento do percentual da comissão costuma ter como referência o preço do negócio efetivamente realizado e não o valor da avaliação do bem. Vale destacar que corretores e leiloeiros podem atuar de maneira informal na alienação, sem a aprovação do custeio desses gastos no plano de alienação judicial, ou com a formalização de sua participação perante o juízo executivo, quando serão auxiliares eventuais da justiça (art. 149, CPC) e as despesas suportadas pelo executado13. De modo relevante, o art. 880, § 4º estipula que nas localidades em que não houver corretor ou leiloeiro público credenciado nos termos do § 3º a indicação será de livre escolha do exequente, com privilégio ao exercício de vontade. A interpretação que exigia a necessidade de cadastramento prévio do profissional nos bancos dos tribunais foi um significativo obstáculo para a utilização do instituto na vigência do CPC/73, sobretudo considerando a demora ou inexistência de regulação, não podendo subsistir14. Mesmo se houver profissional credenciado na localidade, o desatendimento a essa exigência não invalida o negócio jurídico de alienação do bem, salvo prejuízo comprovado pelo executado, como adequadamente reconheceu o Enunciado 192 do FPPC. É necessário criticar a definição em abstrato de período mínimo de experiência de três anos para o profissional (art. 880, § 3º). Apesar de o legislador, em comparação com o CPC/73, ter reduzido o lapso temporal de cinco para três anos, ainda parece ter errado. Existem outros critérios mais apropriados para aferir a qualificação do corretor ou leiloeiro, como o seu histórico quantitativo de trabalhos, acesso às plataformas digitais para oferta dos bens ou extensa capilaridade do seu ofício em interiores, zonas rurais ou áreas de difícil acesso, a depender do local e perfil do acervo patrimonial em oferta15. Embora o pagamento à vista pelo adquirente seja modalidade preferencial, por encurtar o tempo até a fruição dos valores pelo credor, o parcelamento do preço é permitido16. O pagamento em parcelas preserva o orçamento do adquirente, favorece a celebração de negócios de grande porte, além de ser autorizado pelo art. 895 do CPC, compatível com a alienação particular17. Havendo interesse em parcelar o valor, a fixação de garantias é fundamental para reduzir os riscos de inadimplemento. O preço mínimo da alienação é um dos seus pontos mais relevantes18. Para analisar o tema, é fundamental considerar a atual dicção do caput do art. 891, de ser inaceitável lance com preço vil na alienação judicial, aliado ao texto do seu parágrafo único, o qual indica que será vil o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz, ou, na ausência dessa definição, o preço inferior a 50% do valor da avaliação19. A estipulação judicial do preço mínimo produz presunção absoluta de vileza do valor abaixo desse parâmetro, sendo o preço inferior a 50% da avaliação também indutor dessa circunstância, embora critério de reserva, acionado apenas na ausência do primeiro20. Como se vê, a não definição do preço mínimo da alienação pelo órgão judicial não acarreta a invalidação do negócio, havendo solução normativa mais apropriada. Nota-se que o art. 891 dissolveu restrição temporal do art. 692 do CPC/73, que considerava que a vileza do preço invalidava a alienação apenas em segundo leilão. Em reforma elogiável, o caráter vil do preço da alienação passou a induzir vício desde a primeira oportunidade. A definição do que se entende por preço vil (art. 891, par. único) também é inédita, já que o antigo art. 692 não oferecia baliza para esse fim. Outra mudança importante está na supressão pelo atual art. 680, § 1º da referência que o art. 685-C, § 1º, do CPC/73 fazia ao revogado art. 680. Quando aquele dispositivo indicava a fixação do preço mínimo da alienação pelo juiz, realizava menção à avaliação, induzindo raciocínio de que o preço da alienação estava condicionado a patamar idêntico ou superior21. Essa remissão desapareceu, sendo o silêncio eloquente. O legislador ordinário não deixou dúvidas a respeito da admissão de que o bem penhorado seja alienado, por iniciativa particular ou por leilão, por valor inferior ao da avaliação, desde que não se enquadre como preço vil22. A redação atual tende a superar as históricas resistências doutrinárias em torno dessa possibilidade23. Em tal caso, autoriza-se a transmissão forçada do patrimônio por valor abaixo ao avaliado para incentivar a concretização do negócio por preço atrativo, ampliando as chances de êxito na busca por adquirentes e na seleção de propostas no mercado, sem sacrifício excessivo dos interesses do devedor. Aliás, a vedação de arrematação do bem por preço vil protege o executado, que não perderá seu patrimônio por preço irrisório ou aviltante, ao passo que tutela a esfera patrimonial do exequente, sobretudo quando o montante devido for superior ao valor da avaliação dos bens, desnível que seria significativamente agravado pela vileza do preço. De igual modo, não há óbices para que a alienação se dê por preço maior ao da avaliação, considerando as circunstâncias específicas do bem e a dinâmica atual do mercado em que se localiza o patrimônio. É situação econômica favorável para exequente e executado, podendo se revelar interessante diante do caso concreto24. Além disso, as partes podem autorizar consensualmente a alienação por valor distinto da avaliação. Em suma, diante do cenário patrimonial em que o executado não possui quantia suficiente em espécie, tendo ocorrido a constrição de bens móveis ou imóveis, sem interesse na adjudicação, a alienação particular é meio expropriatório preferencial, mais simples e potencialmente menos custoso que o leilão, devendo ser mais utilizado25, com observância à adaptabilidade das diretrizes judiciais para sua realização. __________ As autoras aprofundaram o tema no artigo: SANTOS, Clarice; SILVEIRA, Bruna Braga da. Aspectos relevantes da alienação por iniciativa particular no processo executivo. In: ASSIS, Araken de; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord). Processo de execução e cumprimento de sentença: temas atuais e controvertidos. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2022, p. 751-768. 2 Revista de Processo (RePro), Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro), Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP), Civil Procedure Review e Revista ANNEP de Direito Processual. 3 Poucas decisões abordam questões jurídicas relevantes do instituto, ao menos perante o Superior Tribunal de Justiça. O REsp 1.312.509/RN e o AgREsp n. 929.244/SP são exemplos que valem a menção. 4 Marcelo Abelha salienta a diferença temporal entre os meios expropriatórios: "A rigor, todas as formas são expropriatórias e voltadas à satisfação do credor, mas a diferença entre elas é que a linha que separa cada espécie de ato do resultado a ser obtido é variável no tempo. Mais curta na adjudicação, mais longa, e às vezes incerta, na alienação em leilão. O meio-termo, em tese, está na percepção de frutos e rendimentos de bem penhorado" (RODRIGUES, Marcelo Abelha. Fundamentos da tutela executiva. Brasília: Gazeta Jurídica, 2019, p. 187). 5 Ressalta-se que a alienação particular é compatível com a execução em autocomposição. Sobre o assunto: BRAGA DA SILVEIRA, Bruna; MEGNA, Bruno Lopes. Autocomposição: causas de descumprimento e execução - um panorama sobre meios alternativos de solução de conflitos e processo de execução no novo CPC. Revista de Processo, São Paulo, v. 264, fev., 2017, p. 473-495. 6 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução, v. 5. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 970. 7 Razão pela qual não se pode ignorar a existência do caráter coativo desse meio de expropriação (LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 142-150). 8 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.104. Cabe registrar que, por ser um meio sub-rogatório, exercido contra a vontade do executado, distancia-se do contrato de compra e venda, o qual pressupõe comunhão de vontades entre os envolvidos. 9 "As peculiaridades do mercado e as vicissitudes de qualquer negociação podem impor, contudo, que a venda seja feita em desconformidade com o quanto estabelecido, desde que o juiz assim o permita em decisão posterior, contando com prévia concordância do exequente e do executado" (DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução, v. 5. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 970). Em mesma linha, Daniel Neves pontua que o juiz não está adstrito às condições fixadas, podendo admitir propostas com outras formas de pagamento, garantias ou preço (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1.292). 10 Sobre o tema: DIDIER JR., Fredie; CABRAL, Antonio do Passo. Negócios jurídicos processuais atípicos e execução. Revista de Processo, São Paulo, v. 275, jan., 2018, p. 193-228; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Gestão da execução por meio de negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, v. 286, dez., 2018, p. 325-342; GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Convenções processuais atípicas na execução civil. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, ano 15, v. 22, n. 1, jan.-abr., 2021, p. 283-321; SANTOS, Clarice. Análise crítica do controle de validade dos negócios processuais na execução civil brasileira. Empório do Direito. Disponível em: [https://emporiododireito.com.br/leitura/analise-critica-do-controle-de-validade-dos-negocios-processuais-na-execucao-civil-brasileira]. 11 Por todos: ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.107. 12 Em sentido semelhante: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1.291 13 "Ressalta-se, ademais, que, uma vez concluída a alienação por corretor ou leiloeiro público credenciado, sua comissão, aprovada pelo juiz, será incluída nos custos processuais da execução a serem suportados pelo executado. Todavia, pode o próprio exequente assumir o encargo de alienar o bem penhorado, procurando auxílio de um corretor de modo particular. Nessa hipótese, o executado não deverá a comissão de corretagem, não sendo tal valor incluído nas custas processuais. Tal montante será pago diretamente pelo exequente" (BECKER, Rodrigo Frantz. A alienação por iniciativa particular e o princípio da menor onerosidade da execução. In: ASSIS, Araken de; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord). Processo de execução e cumprimento de sentença: temas atuais e controvertidos. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2020, p. 724). 14 BECKER, Rodrigo Frantz. A alienação por iniciativa particular e o princípio da menor onerosidade da execução. In: ASSIS, Araken de; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coord). Processo de execução e cumprimento de sentença: temas atuais e controvertidos. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2020, p. 724. 15 DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1.200. 16 TALAMINI, Eduardo. Alienação por iniciativa particular como meio expropriatório executivo (CPC, art. 685-C, acrescido pela Lei 11.382/2006). Revista Jurídica 385, v. 57, n. 385, nov., 2009, p. 39; ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 1.108; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1.292. 17 Alexandre Pimentel e Rafael Medeiros admitem com reservas a possibilidade de pagamento em prestações da alienação particular, ressaltando que o juízo deve levar em consideração peculiaridades como condições mercadológicas, o risco de deterioração ou a desvalorização do bem penhorado, sem dispensar a adoção de diversas cautelas para deferir a proposta (PIMENTEL, Alexandre Freire; MEDEIROS, Rafael Asfora. Da alienação por iniciativa particular: raízes históricas e principais inovações do CPC-2015. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, ano 10, v. 17, n. 2, jul.-dez., 2016, p. 29-32). 18 Em texto escrito na vigência do CPC/73, Marco Muscari afirma ser o preço mínimo o maior entrave ao êxito da alienação particular, dedicando trabalho exclusivamente ao tema: MUSCARI, Marco Antonio Botto. Alienação por iniciativa particular: qual o preço mínimo? Revista de Processo, v. 170, abr., 2009, p. 115-122. 19 O exequente não pode adjudicar o bem por preço inferior ao da avaliação (art. 876, CPC), o que desestimula a utilização desse meio expropriatório, apesar de ser legalmente preferencial: "Ora, a não ser que o exequente queira muito, muito mesmo, ficar com o bem penhorado e não esteja disposto a encarar um procedimento de leilão judicial, pois do contrário ele irá aguardar o referido leilão e, quem sabe, arrematar o mesmo bem pela metade do preço (art. 890, parágrafo único). É que na arrematação ele pode adquirir o mesmo bem por até 50% a menos do valor fixado na avaliação. Assim, porque o exequente teria pressa em adjudicar (sempre pelo preço da avaliação)? Só fará isso se ele estiver muito interessado no referido bem" (RODRIGUES, Marcelo Abelha. Fundamentos da tutela executiva. Brasília: Gazeta Jurídica, 2019, p. 188). 20 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução, v. 5. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 977. 21 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 257. 22 Esse tem sido o entendimento majoritário. "Em relação à fixação das condições para a realização da alienação particular, o CPC-2015 desvinculou-se da orientação consagrada no art. 685-C do CPC-1973, que atrelava a validade da alienação particular à venda por valor igual ou superior ao da avaliação, bem como da regra constante do art. 52, VII, da Lei nº 9.099/1995, pela qual se o valor obtido na alienação particular for inferior ao da avaliação, as partes devem ser ouvidas. O art. 880 do CPC-2015 não condicionou a validade da alienação particular por valor mínimo idêntico ao da avaliação nem à concordância das partes quando o valor obtido for inferior, simplesmente o dispositivo reza que o juiz fixará as condições do procedimento dentre as quais queda-se o estabelecimento do preço mínimo, o qual pode ser inferior ao da avaliação desde que reflita uma situação real de mercado e, sobretudo, que não seja vil" (PIMENTEL, Alexandre Freire; MEDEIROS, Rafael Asfora. Da alienação por iniciativa particular: raízes históricas e principais inovações do CPC-2015. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, ano 10, v. 17, n. 2, jul.-dez. 2016, p. 35). 23 Apesar das alterações legislativas, há quem continue a defender a proibição do valor da alienação ser inferior ao da avaliação do bem: "Embora o art. 880, § 1.º, inclua a fixação do preço mínimo nas disposições acerca da alienação por iniciativa particular, o valor não poderá ser inferior ao da avaliação. E isso porque a alienação forçada não pode provocar a espoliação do executado e, de resto, há o impedimento geral à alienação por preço vil (art. 891, caput), apesar de considerar-se viável o preço superior a cinquenta por cento do valor da avaliação. Era o sentido da remissão ao valor da avaliação, no direito anterior. O princípio subsiste no NCPC - ou é melhor eliminar a avaliação" (ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.108). 24 "Ao órgão judicial é dado, ao revés, fixar preço superior ao da avaliação, reunindo elementos objetivos que indiquem o êxito da alienação nessas condições" (ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 18 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.108). Em sentido contrário: "a segunda solução - possibilidade de definição de preço mínimo superior ao da avaliação - conduziria a uma hipótese verdadeiramente absurda: numa alienação de bem penhorado em processo judicial, com todas as implicações negativas daí advindas, o juiz cometeria ao exequente ou ao corretor a missão de encontrar, no mercado, quem se dispusesse a pagar pelo bem... mais do que ele vale! Não é preciso dom divinatório para perceber que, se o magistrado fixar como preço mínimo um valor superior ao da avaliação, não haverá interessados" (MUSCARI, Marco Antonio Botto. Alienação por iniciativa particular: qual o preço mínimo? Revista de Processo, São Paulo, v. 170, abr., 2009, p. 115-122). 25 Há diversas propostas doutrinárias e legislativas para definição de novos agentes executivos, públicos ou privados, em exclusividade ou em concorrência de funções, com maior ou menor controle judicial, como o tabelião de serventia extrajudicial, oficial de justiça, árbitro, advogado e outros profissionais liberais. A título de exemplo e por sua relevância, menciona-se o Projeto de Lei 6.204, de 20.11.2019, de iniciativa da senadora Soraya Thronicke, com relatório do senador Marcos Rogério em 12.04.2022, bem como o Anteprojeto de Lei, de 12.11.2020, do grupo de pesquisa da UERJ liderado por Antonio do Passo Cabral. O Anteprojeto, inclusive, propõe a reforma do art. 880, caput e parágrafos, CPC, para inserir a atuação do agente de execução no contexto da alienação judicial por iniciativa particular. Nesse cenário, o trabalho não ignora os debates contemporâneos sobre a desjudicialização da execução no país e as autoras consideram que o instituto deve ser mantido em um futuro modelo de execução extrajudicial.
O acesso à justiça comporta significado que compreende uma gama de princípios processuais, entre eles o devido processo legal, o contraditório e a efetividade, que, conjugados, proporcionam ao jurisdicionado o processo justo, corolário do tema. A razoável duração do processo, alçada a nível constitucional pela Emenda Constitucional 451, não surgiu como novidade no sistema pátrio, não só porque revela-se como resultado do princípio da inafastabilidade da jurisdição na concepção que se coloca, como também porque já encontrava previsão na Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrita em 4.11.19502, sob a égide do qual sobreveio o Pacto de San Juan da Costa Rica3,  incorporado ao direito pátrio pelo decreto 678, de 6.11.19924. Para a figuração do exato significado e alcance do tema, a doutrina tem debatido os diversos enfoques capazes de dar suporte à efetividade do direito fundamental à celeridade processual. Não se pode negar autoaplicabilidade ao dispositivo5, mas será de extrema fragilidade a exegese que se resulta for considerada, em razão do assento constitucional, verdadeira panaceia, não só porque, se assim fosse, já o seria exigível por conta dos preceitos constitucionais pré-existentes, como porque não se solucionam problemas estruturais do Judiciário sob tão pálida iniciativa. A doutrina desde logo revelou preocupação com a elasticidade do conceito, mencionando Uadi Lamêgo Bulos6 que "o problema está em saber o que significa 'razoável duração do processo', bem como quais os meios para assegurar a rapidez de seu trâmite. Oxalá o legislador logre o êxito em esclarecer tal ponto". Tenha-se presente que incumbe às partes provocar a atuação jurisdicional, evitando delongas e demoras injustificadas, e disso exsurge o princípio da cooperação entre os sujeitos do processo, dispondo as partes de meios hábeis a coibir as condutas meramente procrastinatórias, que revelam temeridade sujeita à reparação e punições legais. Portanto, não só ao juiz cabe zelar pela rápida solução do litígio (CPC, art. 139, I) como também aos jurisdicionados incumbe a fiscalização e requerimento de imediatas providências, como se verifica, por exemplo, no diploma processual (CPC, art. 143), de acordo com o qual O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte. Parágrafo único. As hipóteses previstas no inciso II somente serão verificadas depois que a parte requerer ao juiz que determine a providência e o requerimento não for apreciado no prazo de 10 (dez) dias. Com isso, a duração razoável do processo tem seu verdadeiro sentido na disponibilização dos meios capazes de assegurar a celeridade, no expresso termo da norma constitucional e não com a sua medida em tempo. Socorrem a parte institutos presentes no ordenamento processual civil. Sendo, por exemplo, caso de urgente fruição, cabível será o pleito de antecipação de tutela (CPC, art. 300), hábil a impedir o perecimento do direito. O Superior Tribunal de Justiça bem delineou o tema ao trazer como suposição que "a tutela de urgência pressupõe a impossibilidade de cumprimento de liturgias que posterguem a prestação jurisdicional, sendo essa a ratio aferível na gênese do novel instituto".7 De fato, o instituto da antecipação de tutela inaugurou um novo capítulo na história do direito pátrio, fazendo vigorar de modo efetivo a prestação jurisdicional, diante da possibilidade de perecimento e da volatividade do direito subjetivo, capaz de, por si, dar real significado à solução do tempo no processo, em aquilo que seja cabível ou suficiente a aplicação desse recurso, sem prejuízo da utilização das medidas cautelares, tendentes à segurança do direito posto em juízo. Em seguida, com a institucionalização das astreintes e a ampliação dos poderes de atuação oficiosa do juiz, bem como a possibilidade da utilização de técnicas processuais adequadas para a consecução do fim perseguido, foi o demandante municiado de meios eficazes a fazer valer o cumprimento das determinações judiciais, que abreviam a atuação no direito e tornam suportável a espera do trâmite processual8. A par disso, dispõem as partes do sistema recursal que comporta também nessa sede, a antecipação de tutela ou a suspensividade, inclusive de efeito ativo, conforme o caso, ferramentas essas também disponíveis e acessíveis a quem demonstre, desde logo, a verossimilhança do direito. A atuação irresponsável da parte que venha a provocar empecilho no processo em qualquer de suas fases também pode ser contida pela cominação de penalidades resultantes do reconhecimento da temeridade processual, cada vez mais específicas, ora previstas para a atuação genérica, ora previstas em sede recursal ou de execução e a sua imposição traduz exatamente o atendimento, por meio do devido processo legal, do fim colimado, de abreviação do tempo de duração do processo. Dinamarco9 bem demonstra a intenção do legislador, ao veicular por meio da EC-45 não só o direito à razoável duração do processo, como outras medidas capazes de reduzir os trâmites processuais. Afirma o Autor que (...) os reformadores estiveram conscientes de que a maior debilidade do Poder Judiciário brasileiro em sua realidade atual reside em sua inaptidão a oferecer uma justiça em tempo razoável, sendo sumamente injusta e antidemocrática a outorga de decisões tardias, depois de angustiosas esperas e quando, em muitos casos, sua utilidade já se encontra reduzida ou mesmo neutralizada por inteiro. De nada tem valido a Convenção Americana de Direitos Humanos, em vigor neste país desde 1978, incorporada que foi à ordem jurídica brasileira em 1992 (dec. n. 678, de 6.11.92); e foi talvez por isso que agora a Constituição quis, ela própria, reiterar essa promessa mal cumprida, fazendo-o em primeiro lugar ao estabelecer que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (art. 5º., inc. LXXVIII, red. EC n. 45, de 8.12.04). E, passando da palavra à ação, a emenda n. 45 trouxe também três disposições de caráter eminentemente pragmático e destinadas a acelerar, que são: (a) a que suprime férias coletivas em todas as Justiças e em todos seus graus jurisdicionais e (b) a que consagra em nível constitucional o automatismo judiciário e (c) a que determina a distribuição imediata em todos os juízos e tribunais. Acrescente-se ao rol a criação das súmulas vinculantes e dos recursos repetitivos, tentativa do legislador de uniformizar a conduta jurisdicional como modo de agilizar a atividade do Judiciário, exterminando initio litis as pretensões a respeito das quais já se tenha pronunciado desfavoravelmente as Cortes Superiores. Prazo razoável e celeridade não são sinônimos, posto que a razoabilidade pode assumir diferentes feições de acordo com a necessidade instrutória de cada processo e suas circunstâncias particulares; e o processo dispõe de técnicas avançadas e hábeis, em sua moderna versão instrumental. Claro está que o processo de conhecimento, porque visa à definição do direito, requer atos e ritos distintos daqueles exigidos para a execução, onde se cuida da realização coativa do direito declarado, assim como em relação ao processo cautelar, que busca a segurança do interesse em lide. Há adequação teleológica também quando o procedimento é adaptado aos valores preponderantes em cada caso.                Portanto, respeitados os princípios que norteiam o direito processual, mais especificamente o devido processo legal, atendido estará o preceito, posto que o conceito fluido que resulta do termo "razoável" melhor se coaduna com a sua adaptação ao cumprimento exato dos ritos processuais, sem dilações desnecessárias ou imprestáveis10, revelando-se mais que o acesso à justiça, o acesso ao processo justo, resultado do qual às partes serão assegurados todos os meios de atuação previstos no ordenamento jurídico, hábeis à consecução do direito e ao amplo exercício da defesa, mantido o equilíbrio processual11.  Verifica-se com essa abordagem que o direito processual dispõe de instrumentos capazes de abreviar o tempo no processo, rejeitando idas e vindas desde que preservada a plena atuação do contraditório e do devido processo legal, o que, muito antes da "novidade", já tinha vinha sendo operacionalizado e constantemente buscado nas sucessivas reformas a que esteve sujeito o processo civil até a consagração da nova ordem, em 2015. Portanto, o melhor enfoque resulta da análise sistemática, capaz de dar razoabilidade à sua aplicação e, ao mesmo tempo, proporcionar a exegese abrangente do instituto, compreendido não como um direito isolado, mas resultado de toda a atuação constitucional no terreno do processo. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira12 a respeito bem destacou que - revelando ao fim e ao cabo a preocupação com a leitura constitucional do processo, que tem pautado as recentes reformas: (...) o processo, na sua condição de autêntica ferramenta de natureza pública indispensável para a realização da justiça e da pacificação social, não pode ser compreendido como mera técnica, mas, sim, como instrumento para a realização de valores e especialmente valores constitucionais, impõe-se considerá-lo como direito constitucional aplicado. Nos dias atuais, cresce em significado a importância dessa concepção, se atentarmos para a íntima conexidade entre a jurisdição e o instrumento processual na aplicação e proteção dos direitos e garantias assegurados na Constituição. Aqui não se trata mais, bem entendido, de apenas conformar o processo às normas constitucionais, mas de empregá-las no próprio exercício da função jurisdicional, com reflexo direto no seu conteúdo, naquilo que é decidido pelo órgão judicial e na maneira como o processo é por ele conduzido. Nessa linha, são critérios capazes de dar molde à razoável duração do processo (i) a complexidade e natureza da causa e dos interesses envolvidos, que serão a medida da instrução e do devido processo legal; (ii) a atuação das partes, que deverá ser exigente e responsável na condução do processo, com a utilização de todos os meios disponíveis a dar efetividade ao direito imediato e (iii) da jurisdição, onde dispõe Estado-juiz de meios cada vez mais ampliados de dar efetividade às decisões judiciais e de punir as condutas procrastinatórias13. Em célebre monografia, Capelletti e Gart14 na qual tratam do acesso à justiça, mencionam que a falta de atendimento da justiça em um prazo "razoável" traduz uma justiça inacessível. A lição não pode ser entendida de modo isolado e vem ocupando o estudo do processo civil, revelando-se as recentes reformas como desdobramento da denominada "terceira onda" que rende ensejo a um novo "enfoque", mais bem abrangido na leitura proporcional dos ditames constitucionais. Não por outro motivo, o texto magno expressamente alia "a razoável duração do processo" aos "meios que garantam a celeridade de sua tramitação", de modo que o alcance da garantia será resultado da conjugação da tempestividade e do consagrado due process of law e não de um determinado tempo que seja aquilatado em um juízo aleatório e subjetivo, sem parâmetro legal. A virtude da ascensão constitucional do tema, que não tem ares de novidade, reside mais na inspiração que trouxe às reformas do processo, todas visando a efetividade e a aceleração de ritos, como por exemplo a adoção do sincretismo processual; a simplificação da atuação da fase executiva, com a adoção da não-suspensividade como regra e assim por diante, considerado que o preceito já se encontrava implicitamente abrangido pela garantia de acesso ao Judiciário. Portanto, ao invocar o direito fundamental à "razoável duração do processo", deverá o jurisdicionado utilizar-se dos meios disponíveis e aptos a dar efetividade à aceleração de ritos e à obediência das formas indispensáveis, sendo essa a ferramenta apta à aplicação da nova regra constitucional, sob o molde do due process of law. Em conclusão, pode-se dar colorido cético ao retrato aqui figurado, posto que não traduz nenhuma solução mágica como a sugerida por quem empreste ao texto constitucional exegese revolucionária, mas não se trata de concluir pela inoperância do direito erigido a garantia constitucional, mas dar-lhe ares de realidade, revelando as vertentes de sua operacionalização, hábeis a colocar em equilíbrio a efetividade e a garantia da observância do devido processo legal. No mais, cabe à administração do Judiciário a árdua tarefa de localizar as causas internas de enredo das demandas judiciais, eliminar as etapas "mortas" do processo, enfim, modernizar o aparelho, pois não há na seara do Legislativo aptidão para, pelo meio normativo, ainda que com autoridade constitucional, reduzir o tempo no processo ou o volume de demandas que hoje entulham os escaninhos. Muritiba15, muito oportunamente anota que "a sociedade pós-moderna exige resultados rápidos. O próprio direito subjetivo é um fenômeno efêmero, capaz de perder a sua significância se a tutela jurisdicional for postergada". __________ 1 Art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". 2 Artigo 6.º (Direito a um processo equitativo) 1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça. 3 Art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto San José de Costa Rica: Toda pessoa tem direito a ser ouvida com as garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, instituído por lei anterior, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 4 O Brasil não foi signatário do Pacto de São José da Costa Rica, mas sim, aderiu à Convenção posteriormente, pelo Decreto 678/92. A adesão de um Tratado ou Convenção é o ato posterior do Estado aderente que se compromete a aplicar no seu ordenamento jurídico interno sem confrontá-lo, ao passo que se o Brasil fosse signatário este assumiria a obrigação de cumprimento total e somente se eximiria do cumprimento total através da denúncia do Tratado à Corte Internacional de Justiça, o que não ocorre na adesão, que é ato posterior e que o Estado pode adequá-lo ao ordenamento jurídico interno, independente de denúncia no âmbito internacional.(Disponível aqui -  acesso em 10.02.2008). 5 O Min. Celso de Mello, em voto proferido, afastou o cabimento do mandado de injunção para "viabilizar e operacionalizar o princípio da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII)." Em sua decisão traz elenco de medidas constantes de inúmeros projetos legislativos, todos visando a maior celeridade dos ritos processuais. (STF-MI 715/DF, rel. Min. CELSO DE MELLO, 25.2.2005). 6 BULOS, Uadi Lamêgo - Constituição Federal Anotada, SP:Saraiva 2007, p. 397 7 REsp 834.678/PR, Rel. Ministro  LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 26.06.2007, DJ 23.08.2007 p. 216. Marinoni acompanha esse entendimento, destacando que "o procedimento ordinário, como é intuitivo, não é adequado à tutela de todas as situações de direito substancial e, portanto, a sua universalização é algo impossível. Aliás, ao que hoje se assiste nos sistemas do direito romano-canînico é uma verdadeira demonstração de superação do procedimento ordinário, tendo a tutela urgente se transformado em técnica de sumarização e, em última análise, em remédio contra a ineficiência deste procedimento" (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Imediata da Sentença, 2ª. Ed., SP:RT, 1998, p. 24) 8 Kazuo Watanabe destaca a respeito que "particularmente no artigo 461, para a tutela específica da obrigação de fazer ou não fazer ou para a obtenção do resultado prático correspondente, valeu-se o legislador da técnica de combinação de todos eles para conceber um processo que realmente propiciasse uma tutela efetiva, adequada e tempestiva, como determina o princípio constitucional da proteção judiciária". (WATANABE, Kazuo, Da cognição  no processo civil, 2ª. Ed., SP:Central de Publicações Jurídicas:Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, 1999, p. 48) 9 DINAMARCO,Cândido Rangel. O Processo Civil na Reforma Constitucional do Poder Judiciário. Disponível aqui, acesso em 10.02.2008 10 O Supremo Tribunal Federal decidiu a respeito que "o julgamento sem dilações indevidas constitui projeção do princípio do devido processo legal" (RTJ 187/933, rel. Min. Celso de Mello) 11 Por óbvio que o monopólio da jurisdição gera ao jurisdicionado o direito de servir-se do processo e, como na lição de Chiovenda, "a necessidade de servir-se do processo para obter razão não deve se reverter em dano para quem não pode ter o seu direito satisfeito senão mediante o processo" (CHIOVENDA, Giuseppe, Instituições de Direito Processual Civil, v. I, tr. Da 2ª ed. Por Paolo Capitanio, Bookseler 1998, p. 199). 12 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais, Revista de Processo n. 113. SP-jan-fev 2004, p. 10 13 Frequentemente tem sido aplicada a multa a que se refere o parágrafo 2º do artigo 557 do CPC, ao recorrente que pretenda veicular pretensão manifestamente improcedente, com intuito evidentemente procrastinatório, contra decisão emitida pelo juízo singular, decorrência da ampliação dos poderes do relator. 14 Acesso à Justiça, CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryan, trad. Ellen Gracie Northfleet, Sergio Antonio Fabris:PA, 1988 15 MURITIBA, Sérgio. Ação Executiva Lato Sensu e Mandamental,  São Paulo:RT, 2005 p. 106.
A comunicação processual pelas vias eletrônicas não é mais uma exceção à regra no Brasil. O regramento da citação no ordenamento brasileiro demonstra bem esta evolução. No Código de Processo Civil de 1973 não havia sequer previsão acerca da citação eletrônica, até porque, o movimento de informatização no Brasil só teve início a partir da década dos anos oitenta. Assim, o CPC de 1973 limitava-se a trazer no texto do art. 221 a citação por três formas: correio, oficial de justiça e edital. A lei 11.419/06, por sua vez, avançou ao estabelecer a possibilidade de se realizar a comunicação eletrônica dos atos processuais, de onde se destaca a norma prevista no art. 9º, caput, enunciando que "no processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico, na forma desta lei". Posteriormente, o CPC de 2015 veio a consagrar a prática eletrônica, e vem até o presente momento passando por modificações, dentre as quais se destacam aquelas promovidas pela recente lei 14.195/21 (com objeto bastante amplo, relacionado tanto com o direito empresarial e como com o direito processual civil), que está pendente de julgamento acerca de sua constitucionalidade por questões formais1. Com relação à intimação eletrônica, ato que pressupõe a preexistência de uma relação processual já consolidada, não se vislumbra qualquer obstáculo de ordem técnica ou principiológica para a sua realização, pois todas as partes estão devidamente identificadas e em plenas condições para atuarem no processo. Diferente é a citação eletrônica. Trata-se de ato que tem por objetivo integrar a relação processual, dando cientificação ao réu, ao executado ou ao terceiro acerca da existência da demanda, e convocando-lhe para se defender em juízo. Não houve, até este ato, um contato inicial com as partes do processo, imprescindível para que sejam definidos as regras e os contornos da lide. A eficiência de um meio depende da averiguação das circunstâncias em que ele se insere. E pelas circunstâncias naturais, a realidade no mundo digital ainda não é uma regra, estamos em um processo de transformação. Justamente por este motivo, a citação eletrônica precisa ser pensada de forma muito mais cautelosa que as demais, pois, ali, há ainda um cenário de incertezas em relação às posições das partes que integrarão aquela relação processual. A intensificação do processo de digitalização no âmbito do Judiciário restou delineada em uma série de atos normativos emanados do Conselho Nacional de Justiça, no exercício de suas atribuições previstas no art. 196 do CPC de 2015. Todavia, algumas questões importantes precisam ser debatidas em meio a este processo "apressado de modernização do Poder Judiciário". A primeira delas diz respeito à previsão da citação como realizável, preferencialmente, pelo meio eletrônico, no prazo de dois dias úteis, contado da decisão que determinar seu encaminhamento ao endereço eletrônico indicado pelo citando, que se fará constar no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do CNJ. Três problemas podem ser apontados: 1) como se fará a confirmação segura acerca do recebimento da citação eletrônica recebida por e-mail? 2) existe esse banco de dados do Poder Judiciário, com capacidade de armazenamento e segurança cibernética, em consonância com os ditames da Lei Geral de Proteção de Dados? 3) Não houve ainda a referida regulamentação pelo CNJ. A Resolução n. 455, do CNJ instituiu o Portal de Serviços do Poder Judiciário (PSPJ), na Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br), para usuários externos.  Segundo o art. 3° da Resolução, entre outras funcionalidades, o Portal permitirá a efetivação de citações, intimações e comunicações processuais em todos os sistemas de tramitação processual eletrônica conectados à PDPJ-Br. A definição do que seja endereço eletrônico encontra-se no art. 2° da Resolução, que considera toda forma de identificação individualizada para recebimento e envio de comunicação/mensagem digital, tal como o correio eletrônico (e-mail), aplicativos de mensagens, perfis em redes sociais, e o Domicílio Judicial Eletrônico. Já o Domicílio Judicial Eletrônico constitui o ambiente digital para a comunicação processual entre os órgãos do Poder Judiciário e os destinatários que sejam ou não partes na relação processual. É por ele que as intimações e citações ocorrerão. O cadastro do Domicílio Judicial Eletrônico será obrigatório para a União, para os Estados, para o Distrito Federal, para os Municípios, para as entidades da administração indireta e para as empresas públicas e privadas (art. 16), excluindo-se desta obrigatoriedade as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte, mesmo que estas últimas possuam endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim). Quanto às pessoas físicas, a Resolução faculta ao cadastramento do domicílio judicial eletrônico por meio do Sistema de Login Único da PDPJ-Br, via autenticação no serviço "gov.br" do Poder Executivo Federal, com nível de conta prata ou ouro; ou por meio de autenticação com uso de certificado digital. Também prevê o compartilhamento de banco de dados cadastrais de órgãos governamentais com o órgão do Poder Judiciário, nos termos da legislação aplicável ao tratamento de dados pessoais. A questão a ser pensada a esse respeito é se o banco de dados utilizado para o compartilhamento de dados pessoais está atualizado. Muito embora o art. 77, tenha sofrido alteração pela lei 14.195/21, no sentido de acrescentar como dever da parte informar e manter atualizados seus dados cadastrais perante os órgãos do Poder Judiciário e, no caso do § 6º do art. 246 deste Código, da Administração Tributária, para recebimento de citações e intimações, entendemos que, para aplicação de multa por ato atentatório à dignidade da justiça, em caso de ausência de confirmação de recebimento pelo citando ou intimando, deve ocorrer em caso de má-fé apenas. É muito comum que as empresas deleguem aos seus contadores o ônus do recebimento de correspondência tributária. Assim, a excludente de ilicitude por ato de terceiro deve ser aplicada. No que tange especificamente à criação de uma base de dados pelo CNJ, Dierle Nunes e Catharina Almeida destacaram ser este um pressuposto básico para a eficácia prática da medida, ao lado da cooperação das partes para que este novo mecanismo de comunicação processual seja implementado com sucesso2. Outra questão que deve ser discutida é a vulnerabilidade digital. Segundo pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros - TIC Domicílios 2021, 18% dos domicílios brasileiros não possuem acesso à internet. Destes 18%, 39% estão inseridos nas classes D e E e 29% estão localizados na área rural. O parágrafo 2° do art. 6° da Resolução 455 do CNJ atribui à parte a responsabilidade ao usuário acerca: a) do acesso ao seu provedor da internet e a configuração do computador utilizado nas transmissões eletrônicas; e b) do acompanhamento do regular recebimento das petições e documentos transmitidos eletronicamente. Assim, a norma desconsidera as regiões que não possuem acesso à internet, os custos para se manter um sistema eficiente, bem como a estabilidade da rede da empresa que fornece os serviços de internet, o que pode prejudicar a eficiência da citação e, consequentemente, o acesso à justiça do cidadão. Neste quesito, não há igualdade de tratamento pela Resolução, pois prevê situações de instabilidade nos serviços prestados pelo Portal (art. 6°, caput), mas não trata de forma tão compreensiva os usuários externos. Pelo contrário, prevê consequências jurídicas negativas para eles. É indubitável que a Resolução 455 do CNJ expressa os vários avanços tecnológicos ocorridos na sociedade brasileira e no seu sistema jurisdicional, mas não afasta a cautela que se deve ter diante de fragilidades e dificuldades que possam impedir as citações eletrônicas e o acesso à justiça dos cidadãos. ---------- 1 Tendo em vista se tratar de matéria de cunho processual não constante no texto original da Medida Provisória que lhe deu origem, incorporada ao texto da Lei por uma emenda, em consonância com decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 5.127. 2 NUNES, Dierle; ALMEIDA, Catharina. Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do Legal Design. Disponível em: Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design. Acesso em: 20 jul 2022.
É consenso na prática forense que o Superior Tribunal de Justiça tem apresentado dificuldades no desempenho da sua função jurisdicional e missão constitucional, pois encontra-se congestionado e com reações adversas consequentes, como a jurisprudência defensiva e excesso de formalismos. Outra dificuldade verificada no âmbito do STJ é a existência de entendimentos diferentes a respeito de casos iguais, não apenas quando uma Turma diverge da outra, mas também quando uma mesma Turma não mantém estável determinada decisão.1 Nesse contexto, é preciso referir o acesso mais facilitado às Cortes Superiores com a Constituição Federal de 1988, pois a criação do Superior Tribunal de Justiça não foi suficiente para solucionar o problema do congestionamento, assim como a EC 45/04, que criou a repercussão geral (Lei 11.418/06), também não foi suficiente para resolver a dificuldade, apenas minimizando, o que poderia ter sido melhor aproveitado se estendido este filtro para o STJ.2 Portanto, verificou-se que os mecanismos de filtros precisavam ser aperfeiçoados, considerando que o STF, por exemplo, recebe dezenas de milhares de processos por ano e que tal mudança é essencial para imprimir maior qualidade e visibilidade aos julgamentos do tribunal.3 Dentro de tal escopo, foi apresentada em 2012 a proposta de emenda à Constituição (PEC) 209/12, que institui novo critério de admissibilidade para o Recurso Especial: a necessidade de demonstração da relevância da questão federal discutida para que o recurso chegue ao STJ?4 A proposta de emenda constitucional foi aprovada no plenário da Câmara em 15/03/2017 e remetida ao Senado Federal em 2017. O relator do plenário, senador Rogério Carvalho, propôs a inclusão de outro parágrafo no artigo. O substitutivo do senador foi aprovado no Senado em 08/11/2021. De volta à Câmara, foi renumerada como PEC 39/2021, e aprovada nos mesmos termos do Senado, com a promulgação da EC125/2022 em 15/07/2022. Conforme o texto da Emenda Constitucional 125/20225, o STJ só julgará os recursos cujo tema tenha relevância jurídica capaz de justificar o pronunciamento da instância superior. A justificativa da emenda é a necessidade de resolver o congestionamento da instância superior, a exemplo do que ocorreu no Supremo Tribunal Federal com a inserção do requisito da repercussão geral para a admissibilidade do recurso extraordinário, que reduziu significativamente o número de processos distribuídos na Excelsa Corte. Com a adoção do filtro recursal para a admissão do RESP, a expectativa é de o tribunal superior deixe de atuar como 'terceira instância" revisora de processos cujo interesse muitas vezes está restrito às partes, e tenha melhores condições de exercer o seu papel constitucional de uniformizador da jurisprudência sobre a legislação federal.6 A grande crise ou dificuldade presente no Superior Tribunal de Justiça corresponde ao efetivo papel no desempenho de suas atividades7 e, portanto, quanto à definição de sua função no sistema jurídico brasileiro e em prol da almejada e necessária segurança jurídica e desenvolvimento do Direito. Atualmente se discute muito na doutrina processual brasileira sobre a necessidade de reformulação das cortes de vértice visando à racionalidade e efetividade num sistema de precedentes judiciais. É preciso diálogo e alinhamento entre as duas cortes supremas (STJ e STF) para evitar a sobreposição de funções. Nessa medida, Luiz Guilherme Marinoni entende que o STF deve apenas controlar a constitucionalidade do sentido atribuído à lei pelo STJ mediante precedentes e a partir da interpretação da lei nos termos da Constituição, pois não há racionalidade em o Supremo Tribunal Federal realizar interpretação conforme antes de o Superior Tribunal de Justiça definir o sentido da lei federal.8 A amplitude do campo de debate e de interpretação é diretamente proporcional à adequada atuação das duas Cortes Supremas e indispensável à legitimação democrática dos seus próprios precedentes.9 A realidade é que o número excessivo de processos e a alta carga de trabalho imposta no STJ consiste em grande obstáculo para que a corte possa desempenhar sua verdadeira e relevante função constitucional de uniformização do direito federal. Dessa forma, a solução mais eficaz para o problema parece ser, de fato, a redução no volume de processos e carga de trabalho/julgamentos no tribunal superior, pois o aumento do número de ministros e tentativa de mudança de postura do sistema, além de exigirem tempo e disponibilidade, não resolveriam integralmente o problema. Naturalmente é preciso reconhecer que meras alterações legislativas não são capazes, por si só, de ensejar grandes evoluções. As mudanças efetivas provêm, principalmente, da atuação concreta dos Tribunais Superiores10, que devem, ao interpretar a lei, contribuir para a concretização dos instrumentos previstos pelo CPC/15, como os princípios da instrumentalidade e da cooperação, afastando a jurisprudência defensiva. Embora a experiência bem-sucedida da inserção do requisito da repercussão geral para a admissibilidade do recurso extraordinário no STF, há crítica doutrinária da extensão do filtro recursal para a sistemática de admissão e julgamento do recurso especial no STJ, sob o argumento de que esta corte deve assumir o papel de Tribunal da Cidadania e, dessa forma, estar aberto às demandas da sociedade. Tal parcela da doutrina entende que a missão constitucional do STJ (unificação da interpretação da lei federal) poderia restar desatendida, sendo que pode ser inconveniente a adoção da relevância da questão federal como filtro de admissibilidade para o recurso especial, pois o STJ deixaria de se pronunciar sobre muitas questões federais que atingem toda a população.11 Com a recente promulgação da EC 125/22, a doutrina apresenta críticas e preocupações, especialmente quanto aos critérios de relevância presumida previstos no § 3º do art. 105, como a imprecisão/inadequação da previsão do inciso III relativa às hipóteses de contrariedade à jurisprudência dominante do STJ ou, ainda, pelo aspecto monetário do requisito das ações com valor da causa acima de 500 salários mínimos. Quanto ao critério econômico estabelecido pela emenda constitucional de relevância presumida, Dierle Nunes e Cícero Lisboa ponderam que no legislativo afirmou-se laconicamente que tais hipóteses seriam das ações mais "importantes", mas criticam que, por outro lado, nos termos do novel §2º do artigo 105, da CRFB/88, os recursos especiais na área penal terão a relevância automaticamente reconhecida, ou seja, qualquer ilícito penal por mais singelo que seja, terá o direito de ser apreciado pelo STJ. Já casos cíveis que atinjam diretamente assuntos relevantíssimos para os cidadãos, passarão pela filtragem do requisito econômico.12 Embora se reconheça que os critérios estabelecidos pela emenda constitucional 125/22 determinam apenas a relevância presumida da matéria federal discutida, possibilitando ao recorrente que demonstre de forma fundamentada a transcendência da questão nas hipóteses não contempladas nos critérios da EC 125/22, a doutrina pontua que será imposto tratamento desigual para as partes recorrentes, pois enquanto um interporá seu RESP com relevância predeterminada, o outro terá de exercer o ônus argumentativo para demonstrar a relevância em preliminar de seu recurso, ofendendo claramente os direitos fundamentais da isonomia e da dignidade da pessoa humana.13 Uma segunda falha apontada na redação da EC 125/22 é em relação à sua regulamentação. O inciso VI prevê que a lei poderá estabelecer outras hipóteses de relevância, dando a entender, para aqueles que não acompanharam a tramitação da emenda, tratar-se de lei ordinária. Ao consultar as discussões na Câmara, fica claro, no entanto, que a intenção do Parlamento foi de permitir que apenas normas constitucionais estabeleçam hipóteses de relevância automática, porém é necessário aguardar a regulamentação do tema para que se esclareça tal ponto.14 Outro ponto que está gerando discussão refere-se ao aspecto temporal da exigência prática do filtro recursal, pois, embora a emenda constitucional já tenha entrado em vigor, se mostra necessária a sua regulamentação, como ocorreu com a repercussão geral. No entanto, em decorrência da entrada em vigor imediata determinada pelo artigo 2º da EC 125/2022, recomenda-se à advocacia que em seus novos recursos especiais se abra uma preliminar expressa sobre a relevância e se explique: a) em qual das hipóteses normativamente estruturadas no artigo 105, 3º ele se enquadra; ou b) que seu recurso apresenta transcendência ao caso em apreço e o tipo de relevância (jurídica, econômica, jurídica e/ou política) seu caso traz em conformidade com as hipóteses de cabimento do recurso previstas no inciso III do artigo 105, ao menos enquanto o próprio STJ não edita normas internas para a avaliação do novel requisito. Leonardo Carneiro da Cunha entende que o novo requisito de admissibilidade do recurso especial depende de regulamentação, pois o referido §2º dispõe que o recorrente deve demonstrá-lo "nos termos da lei", a exigir que haja disciplinamento legal.15 Nessa linha, o autor argumenta que o artigo 2º da emenda prevê que a exigência se aplica aos recursos interpostos depois de sua vigência. O dispositivo há de ser lido da seguinte forma: o novo requisito de admissibilidade deve aplicar-se aos recursos interpostos depois do início de vigência da lei que o regulamentar, não sendo possível exigir o novo requisito de admissibilidade antes de sua regulamentação.16 Quanto ao direito intertemporal no âmbito recursal, o autor esclarece que é preciso observar o momento em que se adquire o direito ao recurso. Enquanto não proferida a decisão judicial, a parte não pode interpor o correspondente recurso. Uma vez prolatada a decisão, surge uma espécie de direito adquirido processual àquele recurso. Enquanto não proferida a decisão, a parte dispõe, apenas, de mera expectativa de direito à interposição do recurso.17 Relativamente à necessidade de lei regulamentadora da aplicação e processamento do filtro recursal da demonstração da relevância no recurso especial, também pondera-se que, considerando a simetria com o instituto da repercussão geral no recurso extraordinário, deverá haver lei regulamentadora da matéria, bem como alterações na legislação federal. Porém, na emenda constitucional 45/04, o art. 7º estabeleceu que o Congresso Nacional deveria, em cento e oitenta dias, elaborar os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria. Já na emenda 125/22, há previsão de que o requisito da relevância será exigido, nos termos da lei, entretanto os outros dois últimos dispositivos estabelecem que a relevância será exigida, nos recursos interpostos, após a entrada em vigor da EC e que esta entra em vigor, imediatamente. Portanto, percebe-se uma antinomia aparente.18 Assim, o STF tratou, especificamente, do requisito da preliminar da repercussão geral (e, não, da repercussão geral, como requisito intrínseco de admissibilidade recursal). O mesmo regime jurídico deve ser aplicado para a arguição de relevância.  Nessa consideração, a preliminar de relevância só será exigível após a regulamentação pela lei e, muito provavelmente, pelo regimento interno do STJ. Porém, como já referido, é recomendável, por cautela, que os recorrentes, desde logo, demonstrem, de forma clara, o preenchimento dos requisitos, em seus recursos especiais, pois há grande risco de que tais recursos sejam submetidos ao regime da relevância, independentemente de qualquer discussão acerca de seus aspectos formais.19 Há de se pontuar ainda que, em decorrência da virada tecnológica que nosso judiciário vem passando, crê-se que o STJ deverá adotar um sistema e ambiente virtual análogo ao do STF para apuração de repercussão geral para análise do filtro da relevância de modo a otimizar sua atuação.20 Por todo lado, parcela da doutrina recebe a inserção do filtro recursal com bons olhos, considerando que a avaliação quanto à determinada novidade ser boa ou ruim deve acontecer tendo como cenário a realidade e não um mundo ideal: temos um Superior Tribunal de Justiça que tem uma carga desumana de recursos para decidir.21 Tal doutrina ainda refere que todas as questões de ordem federal do recurso especial devem ser relevantes, para que o recurso seja admitido, respeitando-se, evidentemente, os capítulos do acórdão impugnado, seguindo o entendimento da súmula 182/STJ.22 O fato é que a Emenda Constitucional já se encontra em vigor e a expectativa da práxis forense é da breve elucidação pelo STJ sobre o funcionamento e aplicação prática do filtro recursal, seja por meio de lei ou de previsão do regimento interno do tribunal superior, monitorando-se os critérios que serão utilizados nessa regulamentação, se haverá tendência de ampliação ou de redução de acesso, por exemplo, com a redução de cabimento dos Agravos em Recurso Especial. Para além da questão da regulamentação legal da EC 125/22, a expectativa é de que a inclusão do filtro recursal para a admissibilidade do recurso especial seja capaz de atenuar as dificuldades enfrentadas pelo STJ no seu funcionamento, viabilizando a efetivação da missão constitucional de uniformização da legislação federal e outorga de unidade do Direito, em prol da necessária segurança jurídica.23 __________ 1 MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. 3ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 69. 2 THAMAY, Rennan e JUNIOR, Vanderlei Garcia. O Sistema Brasileiro de Precedentes: (In) Viabilidade Sistêmica? In: O Superior Tribunal de Justiça e a aplicação do direito: estudos em homenagem aos 30 anos do Tribunal da Cidadania. Carlos Alberto de Moraes Ramos Filho, Daniel Octávio Silva Marinho (coordenadores); prefácio Mauro Campbell Marques; apresentação Ari Jorge Moutinho da Costa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 609. 3 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. 1ª ed. Rio de Janeiro: História Real, 2020. p. 198. 4 Há semelhança entre o mecanismo de filtro recursal para a admissibilidade do recurso especial brasileiro e o requisito de admissibilidade do recurso de Revision alemão da importância fundamental da matéria a ser enfrentada, o que ensejou uma análise comparativa entre o modelo alemão e o brasileiro atual. Estabelecendo-se um comparativo procedimental entre o julgamento da Revision alemã e o Recurso especial brasileiro, refere-se que, provido o recurso de Revision, anula-se a decisão recorrida, definindo-se a solução correta à questão de direito objeto do recurso (juízo de cassação - § 562 ZPO). Portanto, diferentemente da sistemática brasileira, em regra, o processo deve ser devolvido ao juízo a quo para novo julgamento conforme o entendimento do BGH (§ 563 (1) ZPO), admitindo-se, excepcionalmente, a superação do juízo de cassação, com a aplicação do direito à espécie (§ 563 (3) ZPO), nos casos em que se considere a causa madura para julgamento. Nessa hipótese excepcional, é facultado ao BGH a revaloração de provas e o reexame das respectivas conclusões do juízo de primeira instância quanto aos fatos relevantes para a decisão. (WELSCH, Gisele Mazzoni. Precedentes Judiciais e Unidade do Direito: análise comparada Brasil-Alemanha. Londrina, PR: Thoth, 2021. pp. 75/76). 5 Art. 1º O art. 105 da Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 105. ...................................................................................................... § 1º ............................................................................................................... § 2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento. § 3º Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos: I - ações penais; II - ações de improbidade administrativa; III - ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos; IV - ações que possam gerar inelegibilidade; V - hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça; VI - outras hipóteses previstas em lei."(NR) Art. 2º A relevância de que trata o § 2º do art. 105 da Constituição Federal será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º do referido artigo. Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. 6 WELSCH, Gisele Mazzoni. Precedentes Judiciais e Unidade do Direito: análise comparada Brasil-Alemanha. Londrina, PR: Thoth, 2021. pp. 72/74. 7 Sobre os papeis das cortes supremas, Luís Roberto Barroso aponta três: o contramajoritário, que corresponde ao fato dos juízes não eleitos poderem invalidar decisões do Congresso ou do Presidente, que foram eleitos pelo povo; o representativo, que é o papel exercido quando são atendidas demandas sociais com amparo na Constituição e não satisfeitas a hora e a tempo pela política majoritária (Congresso Nacional); e o iluminista, que é a função exercida excepcionalmente pelas cortes constitucionais, independentemente da vontade do Congresso e mesmo contra a maioria popular, para proteger minorias e avançar a história. (BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia: um olhar sobre o Brasil e o mundo. 1ª ed. Rio de Janeiro: História Real, 2020. pp. 200/201). 8 MARINONI, Luiz Guilherme. A Zona de Penumbra entre o STJ e o STF: A função das Cortes Supremas e a delimitação do objeto dos recursos especial e extraordinário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 106/107; 112. 9 MARINONI, Luiz Guilherme. A definição da interpretação da lei pelo STJ como requisito para a atuação do STF. Revista de Processo. vol. 311. ano 46. p. 167-187. São Paulo: Ed. RT, janeiro 2021. 10 CAMARGO, João Ricardo. O novo desenho estrutural dos Embargos de Divergência no STJ traçado pelo Código de Processo Civil de 2015. In: Revista de Processo, vol. 272/2017. p. 271 - 296.Out / 2017. 11 Nessa linha de entendimento, Marco Aurélio Serau Junior: "O STF é Corte Constitucional e, portanto, há plena justificativa para a implementação do requisito de limitação de admissibilidade que é a repercussão geral do recurso extraordinário. No caso do STJ, pensamos que o panorama é relativamente diverso. Embora não passe despercebida a magnitude desta Corte, verdadeira instância extraordinária, seu específico papel constitucional ainda parece ser pouco estudado. A limitação de admissibilidade do recurso especial, quando ausente a relevância da questão federal discutida, talvez implique em limitação inadequada da atuação daquela Corte" (SERAU JR., Marco Aurélio. Relevância da questão federal como filtro de admissibilidade do recurso especial: análise das propostas de emenda constitucional n. 209/2012 e n. 17/2013. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, vol. 224, p. 250). 12 NUNES, Dierle e LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. Acesso em 18 de julho de 2022. 13 NUNES, Dierle e LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. Acesso em 18 de julho de 2022. 14 NUNES, Dierle e LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. Acesso em 18 de julho de 2022. 15 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal. Acesso em 18 de julho de 2022. 16 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Relevância das questões de direito federal em recurso especial e direito intertemporal. Acesso em 18 de julho de 2022. 17 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, n. 8.1, p. 132. 18 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, n. 8.1, p. 132. 19 ARRUDA ALVIM, Teresa; UZEDA, Carolina; MEYER, Ernani. O funil mais estreito para o recurso especial. Acesso em 19 de julho de 2022. 20 NUNES, Dierle e LISBOA, Cícero. Primeiras impressões da arguição de relevância no recurso especial. Acesso em 18 de julho de 2022. 21 ARRUDA ALVIM, Teresa; UZEDA, Carolina; MEYER, Ernani. O funil mais estreito para o recurso especial. Acesso em 19 de julho de 2022. 22 Súmula 182 do STJ: "É inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada." 23 Antunes da Cunha, Guilherme; Fuga, Bruno; Welsch, Gisele Mazzoni. Comentários Sistemáticos ao Código de Processo Civil - Tomo IX - Dos processos nos tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais. Ordem dos processos. Dos recursos. Disposições finais e transitórias. Arts. 926 a 1.072. Londrina: Editora Thoth, 2022. p. 578.
Na contemporaneidade, ao mesmo tempo em que a globalização e o desenvolvimento de novas tecnologias despertam o interesse por descortinar novos temas aplicados ao direito processual, como o da inteligência artificial e o do visual law, é preciso também revisitar os institutos clássicos. Neste momento, trataremos de um instituto clássico do direito processual: o interesse de agir. Para examiná-lo sob a ótica aqui proposta, primeiro precisaremos conceituar o instituto. O interesse de agir é um dos elementos cuja presença se mostra imprescindível para o regular exercício do direito de ação e é analisado a partir do binômio necessidade-utilidade. Significa afirmar a necessidade da realização do processo como meio de buscar, através da resposta do Poder Judiciário, situação mais favorável do que a atual, no compasso de adequação da tutela pleiteada à situação concreta1. E assim se revela a concepção tradicional do interesse de agir: atrelada ao acesso à atividade jurisdicional, sem qualquer condicionante para seu acesso, privilegiando o foco no Poder Judiciário para a solução de conflitos. Cumpre ressaltar que não estamos apenas no campo teórico, posto que evidente o quanto dessa visão tradicional se opera no contexto prático impulsionando repercussões jurídicas e sociais. Sobre essa mesma concepção erigiu-se e moldou-se o comportamento social que acreditou ser possível deixar para o Judiciário a solução de todos os seus conflitos2, mesmo os mais corriqueiros. Em paralelo, existia um ensino jurídico que durante muitos anos formou bacharéis preparados para atuar apenas assessorando e postulando por litigantes nos tribunais3 de maneira estratégica e buscando resultados de ganhos, sem se ocuparem ou preocuparem com a reverberação social e emocional de tais respostas diretamente no processo judicial. Como decorrência, o Judiciário acabou assoberbado. Registrou-se, segundo a Pesquisa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça referente ao ano de 20214, 25,8 milhões de casos que ingressaram no Poder Judiciário e somaram-se a 75,4 milhões de casos pendentes que retratava verdadeiro estoque de processos formado no Poder Judiciário ao longo dos anos. Não se pode olvidar o quanto disso é resultado da cultura essencialmente litigante, aquela que considera a sentença, senão a única, pelo menos, a melhor forma de solucionar os conflitos. Em contrapartida a essa constatação, começam a ganhar espaço as incipientes técnicas processuais autocompositivas, ainda vistas somente como uma válvula de escape da pletora dos processos que retrata a realidade do Poder Judiciário. E a partir da utilização dessas técnicas afere-se que o ideal de ser somente através atingível dos autos processuais a efetivação de direitos começa a gerar descrença, constatando-se que a processualidade nem sempre corresponderá aos ideais almejados para a concretude das questões do mundo da vida5. Ao se tentar deixar a cultura da sentença e se passar para a cultura de empoderamento dos sujeitos processuais a partir da construção do consenso, os métodos de solução de conflitos são reconhecidos não mais como alternativos à jurisdição - e sim como adequados6 - e desenvolve-se a ideia de justiça multiportas7, através da qual cada conflito teria o método mais adequado para a sua solução, podendo ser através da jurisdição ou não. Considerando que a própria previsão do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição não tem mais sua leitura atrelada ao acesso ao Judiciário, mas sim a uma ordem jurídica justa, que não se restringe ao Poder Judiciário, abrangendo qualquer forma de solução de conflito, a previsão do interesse de agir, contemplada no art. 17 do Código de Processo Civil, também precisa ser redimensionada. Os debates sobre esse redimensionamento não estão distantes do cenário contemporâneo, embora ainda estejam esparsos, como passamos a sintetizar. Por exemplo, no ano de 2014, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por meio do julgamento do Recurso Extraordinário 631.240, sobre a necessidade ou não de prévio requerimento administrativo como condição para o interesse de agir para o ajuizamento de demandas em que se pretende a concessão de benefícios previdenciários. Na ocasião, foi fixada não apenas uma única tese jurídica, mas um conjunto de teses que propiciassem, dentro do contexto de previsibilidade, a solução realmente ampla e condizente com as perplexidades e com as controvérsias pertinentes ao tema à luz do interesse de agir8. No ano de 2016, já estava consagrado entendimento que ainda hoje se mantém, de que a fase executória da desapropriação pode se dar através de acordo, sem a necessidade de manifestação judicial9. No ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente o pedido formulado nas Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADIns) 2.139 e 2.160 para assentar que a Comissão de Conciliação Prévia constitui meio legítimo, mas não obrigatório, de solução de conflitos na Justiça do Trabalho. Dois projetos de lei merecem ainda destaque: o Projeto de Lei 533, de 201910, a partir da justificativa de que não seria razoável que "o Judiciário, até por um aspecto estrutural e orçamentário, continue sendo o primeiro, único e o mais atrativo - financeiramente - acesso de materialização de direitos". Pretende, dentre outras alterações, acrescentar parágrafo único no art. 17 do Código de Processo Civil para, tratando-se de direitos patrimoniais disponíveis, o interesse de agir sujeita-se à necessária evidência de resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor. O outro projeto de lei 3.813, de 202011, dispõe sobre a obrigatoriedade, nos litígios entre particulares que tenham por objeto direitos patrimoniais disponíveis, de realização de sessão extrajudicial de autocomposição prévia à propositura de ação judicial, seja para as ações de competência dos Juizados Especiais ou não. Porém, qual seria a real dimensão do interesse de agir na contemporaneidade? No momento, o delineamento do tema nos parece estar nem tanto ao céu e nem tanto ao mar. Afigura-se cada vez mais difícil pensar na solução de conflitos apenas através do Poder Judiciário e em um acesso irrestrito ao Poder Judiciário. O Judiciário não pode - e nem deve - ser a primeira porta de todo e qualquer pleito. A interação com o juiz não deve ser construída antes da interação dialógica com a parte contrária. Porém, também não parece o momento de trazer a obrigatoriedade da solução consensual, como nosso vizinho, a Argentina, há anos convive, por exemplo, com a mediação pré-processual obrigatória12 ou como ocorreu no cenário italiano13. A mudança de paradigmas passa, também, pela mudança de mentalidade, com a paulatina percepção dos reais benefícios da solução consensual14. Nesse momento, é importante que se façam compreender os caminhos existentes em paralelo antes de se ir ao Judiciário não como opção, mas como decorrência de desconhecimento ou de cultura engessada. É premente difundir conhecimento e informação sobre ser possível construir alguma tentativa de diálogo como, por exemplo, por meio do call center, da comunicação ou da negociação, sem que tenha feitio específico ou qualquer formalidade, e sendo suficiente a demonstração da tentativa de diálogo prévio à busca do Poder Judiciário. Retornando às lições clássicas, o interesse de agir deve estar, na verdade, na necessidade da realização do processo judicial, simplesmente porque não foi possível localizar a parte contrária para o diálogo ou porque esse diálogo não teve êxito, e na adequação da tutela pleiteada à situação concreta. Esse delineamento não se trata de um entrave para o acesso ao Judiciário. O acesso à justiça pode ser realizado por qualquer mecanismo de solução adequada do conflito, na medida em que o Poder Judiciário nunca se afasta do controle do Estado sobre a realização da justiça. Todas as "portas" do sistema multiportas estão, de alguma forma, sujeitas ao controle de legalidade quanto à sua existência e validade. Isso porque, embora os termos de transação extrajudiciais não se sujeitem à homologação judicial para terem validade, as câmaras de mediação e de conciliação devem seguir diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e seguem sob autorização de funcionamento e controle feitos pelo Tribunal local. Do mesmo modo, embora a câmara arbitral não se sujeite a controle pelo CNJ, a sentença arbitral não exija homologação judicial para validade e nem suas sentenças sejam recorríveis à jurisdição tradicional, podem ser objetos de submissão ao sistema adjudicatório quando houver reclames de vícios, tal como ocorre quanto aos elementos transacionados em câmaras de mediação e de conciliação. Outra dimensão de ganho social decorre do empoderamento dos próprios envolvidos no conflito, com a possibilidade de uma solução mais eficaz e mais célere para o caso concretamente vivenciado por tais interessados. E como demonstrar os reais benefícios dessa proposta? Apenas ilustrando com um exemplo, a vereda assíncrona e não obrigatória de solução de conflitos consumeristas pela plataforma consumidor.gov.br15  alcança 99,52% das reclamações dos consumidores respondidas pelos fornecedores. Isso já demonstra de maneira cabal que, na quase totalidade dos casos, a resposta ao contato para estabelecimento do diálogo é possível. Já a solução consensual dos casos é atingida em quase 40%. Esse percentual de solução parece ineficaz? Não, se considerarmos que estamos num momento de transição e ainda mudando uma cultura, sendo certo que apenas caminhamos e ainda temos muito a avançar. De outra banda, até os mais pessimistas são instados a reconhecer a significância de serem 40% a menos de demandas consumeristas que deixam de ingressam no Poder Judiciário. Notadamente se for comparado com os números de solução consensual hoje nas ações em curso no Judiciário (endoprocessuais) são muito inferiores: 15,8% na fase de conhecimento; 0,6% em fase recursal e; 4,7% na execução16. Estamos em um processo dialógico de construção dos rumos do processo na contemporaneidade e precisamos não só enfatizar novos institutos como revisitar a roupagem dos institutos tradicionais. Essa missão está na academia e na prática forense (incluindo profissionais do direito e interdisciplinares), exigindo de todos o compromisso com a propagação e difusão dos caminhos e possibilidades de solução consensual e, na sua impossibilidade, de adjudicação, estando todos no mesmo patamar de segurança jurídica e eficácia dos resultados. E esse é o início da caminhada. ---------- 1 DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 32.ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 322. 2 Sobre o tema: MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 3 O cenário começou a se modificar substancialmente a partir da Resolução nº 5/2018 do Ministério da Educação. 4 Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/justica-em-numeros-sumario-executivo.pdf. Acesso em 22 jul. 2022. 5 FÜLLER, Lon L. The Forms and Limits of Adjudication. Harvard Law Review. Harvard: Harvard Law School, vol. 92, no. 2, dez. 1978, p. 398. 6 WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Disponível em https://www.tjsp.jus.br/Download/Conciliacao/Nucleo/ParecerDesKazuoWatanabe.pdf. Acesso em 22 jul. 2022. 7 ZANETI JR., Hermes, CABRAL, Tricia Navarro Xavier. Justiça multiportas. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2018. 8 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Sistematização, análise e interpretação do instituto processual. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2017, p. 179-180. 9 Sobre o tema, a título de exemplo, destacam-se os seguintes julgados: REsp 1.932.476 / PR, REsp 1.801.831/SC e REsp 1.595.668/PR. 10 Tramitação disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191394. Acesso em 23 jul. 2022. 11 Tramitação disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2257795. Acesso em 23 jul. 2022. 12 REMER, Luciana de Andrade Amoro; PUGLIESE, William Soares. Mediação Pré-Judicial Obrigatória: a experiência da Argentina. Disponível em https://portaldeperiodicos.unibrasil.com.br/index.php/anaisevinci/article/view/5669. Acesso em 23 jul. 2022. 13 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; PAUMGARTTEN, Michele Pedrosa. L`esperienza italo-brasiliana nell'uso della mediazione in risposta alla crisi del monopolio statale di soluzione di conflitti e la garanzia di acceso alla giustizia. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais (Eletrônica), v. 11, 2012, p. 171-201. 14 Importante destacar que uma das autoras, Márcia Michele Garcia Duarte já escreveu sobre os estímulos à solução consensual em DUARTE, Márcia Michele Garcia. A sanção pedagógica e os aspectos éticos e morais da consensualidade: em busca da efetividade do modelo multiportas. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro: UERJ, v. 22, 2021, p. 684-709. 15 Os dados foram obtidos em PORTO, Antônio José Maristello; NOGUEIRA, Rafaela; QUIRINO, Carina de Castro. Resolução de conflitos on-line no Brasil: um mecanismo em construção. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, ano 26, nov.-dez. 2017, p. 310-312. 16 CNJ. Justiça em Números 2021, p. 192. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf. Acesso em 23 jul. 2022.
Não restam dúvidas de que a sociedade pós-moderna convive com uma série de (r)evoluções tecnológicas, uma vez que, após a II Guerra, se teve uma inquestionável revolução digital, que repercute notadamente na informação e na comunicação1. Assim, Aldous Huxley, em seu "O admirável mundo novo"2, aponta tanto os desafios bem como o deslumbramento com o qual o homem contemporâneo se depara, pelas possibilidades tecnológicas, como também a insegurança trazida pelos desafios de atuar em uma realidade na qual se exige constante (re)adaptação. O avanço tecnológico ocorre, nos dias de hoje, a uma velocidade sem precedentes e os seus desdobramentos se fazem sentir em todos os aspectos da vida humana. Tais inovações acabam por gerar novos desafios a todos os setores e segmentos da sociedade, incluindo-se, aí, sem qualquer dúvida, o Direito que, nessa corrida tecnológica, tenta regulamentar essa nova realidade. A tecnologia blockchain surge nesse cenário como mais um avanço dessa revolução tecnológica, representando no mundo digital, desde a globalização, a maior oportunidade a permitir o avanço da sociedade em suas mais diversas operações, compreendendo parte fundamental da denominada "Indústria 4.0" ou "Quarta Revolução Industrial"3. Dentro da ideia exposta, traz-se o seguinte questionamento: caberia a utilização da tecnologia blockchain junto ao processo judicial? Cabe salientar que o blockchain, ao traduzir para a língua portuguesa o nome dado a essa tecnologia block + chain, é possível formar uma imagem mental de como ela funciona: são blocos de registros das informações ligados em rede, ou seja, uma "cadeia de blocos" ou "encadeamento de blocos", o que proporciona uma referência inicial de como atua essa tecnologia. Ela permite que a "transmissão de qualquer tipo de informação ocorra por meio de "cripto-chaves", que quando efetivada forma um bloco"4, funcionando como um livro contábil de registros, de forma pública, compartilhada e universal, de modo a criar consenso e confiança entre todas as pessoas e sobre todas as informações, no qual as transações de cada registro ficam armazenadas5. Blockchain consiste, pois, em uma tecnologia disruptiva na qual as informações são consolidadas e encadeadas em blocos virtuais, podendo-se fazer analogia com um livro, no qual cada página contém um texto (o conteúdo), em cujo topo se insere uma informação sobre o referido conteúdo (um título ou numeração)[6]. O blockchain é, portanto, uma forma de guardar informações em bancos de dados. Embora a criptomoeda de bitcoin tenha colocado o holofote sobre a tecnologia blockchain, ela abre portas para infinitas possibilidades. Pesquisas desenvolvidas recentemente apontam inúmeros setores de aplicação do blockchain, segmentos esses entre os quais podemos citar: setor financeiro, gerenciamento de dados, saúde, redes sociais, cibersegurança, transporte e turismo, autoria e propaganda, entre outros, alguns deles de interesse dos profissionais do direito7. Para exemplificar como a tecnologia blockchain pode ser utilizada junto ao Direito, podem ser citados, por exemplo, os casos de registro e transferência de propriedade, celebração e execução de contratos eletrônicos, que poderão ser provados com a segurança jurídica necessária, excepcionados os casos que se exige instrumento público ou outra formalidade específica, a partir das anotações do "livro contábil aberto a todos"8. Mais clara, ainda, é a hipótese em que um print screen é tirado de uma de uma página de uma rede social aberta em um smartphone para comprovar um ato ilícito perpetrado. Se impugnado o print screen, a parte que o utilizou no processo terá que fornecer mecanismos para que ele possa ser autenticado, a teor da disposição do art. 422, § 1º, do CPC/2015. Caso a publicação original tenha sido removida, será virtualmente impossível demonstrar a autenticidade do print screen sem os referidos metadados, ou mesmo realizar perícia sobre ele. Diante disso, resta claro que é passível de utilização à luz do sistema processual cível da tecnologia blockchain, justamente em razão da conformidade com o núcleo ontológico do tipo "meio de prova", uma vez que resta claro que a tecnologia apresentada possui o potencial de esclarecer o thema probandum, o fato da fonte da prova ser um sistema, em nada obstaculiza a sua admissão, desde que, obviamente, respeitados os limites da legalidade da prova. No mesmo sentido é a lição de Michele Taruffo9, que diz que, se tratando documento informático assinado pelos meios especiais legalmente estabelecidos, resulta equivalente a um documento privado com a firma certificada. Com o objetivo de corroborar o entendimento acima exposto, pode-se citar a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que este permitiu a autenticidade de documentos que constituíam meios de prova, por meio da plataforma blockchain, sendo que o caso discutia a exclusão de postagens supostamente ofensivas a um político veiculadas em redes sociais. Objetivando comprovar a existência do conteúdo eletrônico na internet, o autor fez o registro utilizando não a ata notarial, mas a plataforma blockchain. A decisão judicial em questão foi proferida em sede de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que, em ação de obrigação de fazer e não fazer, indeferiu o pedido de tutela provisória visando à remoção de conteúdos disponibilizados em páginas do Facebook, Instagram e Twitter e ao fornecimento de dados de dados de usuários das referidas redes sociais. No recurso de agravo o autor (ofendido) pontuou ser "indispensável que os usuários não sejam comunicados sobre a demanda, pois podem se desfazer de provas do ilícito". No julgamento do recurso, a relatora Desembargadora Fernanda Gomes Camacho, que foi acompanhada pelos demais membros do colegiado da 5ª Turma de Direito Privado, pontuou que "o próprio recorrente afirmou que 'a partir do conhecimento dos fatos, o autor providenciou a preservação de todo o conteúdo via blockchain, junto à plataforma OriginalMy, hábil a comprovar a veracidade e existência dos conteúdos"10. O importante para o presente ensaio é o fato de que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, levou em consideração o uso da tecnologia e acabou por considerar o conteúdo registrado via blockchain hábil a comprovar a veracidade e existência dos conteúdos, o que mostra a possibilidade de se utilizar da tecnologia blockchain como um meio de prova hábil para comprovar a veracidade de documentos extraídos da internet, o que se mostra de grande importância quando se trata da questão da valoração probatória. Por outro lado, não se pode esquecer que a Ata Notarial, meio típico de prova devidamente previsto pelo CPC e dotado de fé pública por ser autenticado com um notário, também possui a finalidade de comprovar a veracidade de documentos diversos. Assim, muitos estudiosos sobre o tema equiparam a autenticação gerada pela tecnologia blockchain com a gerada pela Ata Notarial. Mas até que ponto é possível fazer uma analogia entre ambas? Seria correto equiparar o blockchain a Ata Notarial? Não restam dúvidas de que ambos são meios de provas, sendo a Ata Notarial é um meio de prova típico, previsto no CPC em seu art. 384, sendo que a sua força como meio de prova encontra-se no fato de que a veracidade do documento é atestada por um tabelião, que possui fé pública. Por outro lado, a tecnologia blockchain não possui previsão legal junto ao CPC, podendo ser considerada um meio de prova atípico em virtude da falta de previsão legal. O fato do CPC trazer uma previsão expressa sobre documentos eletrônicos não atesta tipicidade para o blockchain, uma vez que se trata de uma tecnologia que confere autenticidade para os documentos, não se tratando propriamente dos documentos eletrônicos. Não se busca exaurir as discussões acerca do tema com o presente ensaio, o que se busca é demonstrar que, apesar da aproximação das funcionalidades da tecnologia blockchain e da Ata Notarial, ambas não devem ser equiparadas e já será demonstrado o motivo. Ainda, não se busca alegar que a tecnologia blockchain não possa ser utilizada como um meio de prova, uma vez que ela pode (e deve) ser utilizada para validar a autenticidade de documentos (principalmente digitais) que se mostrariam ser extremamente difíceis de comprovar a sua veracidade. Mas, a equiparação da Ata Notarial com o blockchain possui reflexos principalmente no momento de valoração da prova, sendo que, apesar da autenticidade conferida a tecnologia blockchain, esta não é conferida por um notário dotado de fé pública, motivo pelo qual, a meu ver, ambos não devem ser equiparados. Caso haja a utilização da tecnologia blockchain, pelo notário, o que se mostra totalmente possível, se está diante de um caso em que a tecnologia blockchain poderia ser equiparada a Ata Notarial, caso contrário, não. Assim, resta claro que é totalmente possível a utilização de blockchain, sendo que pode ser um meio menos custoso para uma parte hipossuficiente de prover a veracidade de suas provas junto ao processo. Mas, não se está aqui a apregoar a validade plena e absoluta da prova produzida a partir do armazenamento das informações pelo blockchain, mas se está sim a defender o entendimento de que ela pode produzir efeitos válidos, mas que ela não substitui, ainda, a ata notarial, tendo em vista que a sua alteração resultaria na substituição da confiança atribuída pela lei ao notário. ______________  1 CARACIOLA, Andrea; ASSIS, Carlos Augusto de; DELLORE, Luiz. Prova produzida por meio de blockchain e outros meios tecnológicos: equiparação à ata notarial? In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; WOLKART, Erik Navarro; LAUX, Francisco de Mesquita; RAVAGNANI, Giovani dos Santos. Direito, Processo e Tecnologia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 66. 2 HUXLEY, Aldous. O admirável mundo novo. Saraiva: São Paulo, 2014. 3 SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016. 4 FISCHER, José Flavio. Novas tecnologias, "blockchain" e a função notarial. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2022. 5 CERQUEIRA, Aurimar Harry; STELER, Fernando Wosniak Steler. Tudo o que você queria saber sobre blockchain e tinha receio de perguntar. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2022. 6 HERTEL, Maristela. Validade jurídica da autenticação de informações obtidas na internet através da plataforma digital Blockchain. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2022. 7 Casos Reais da Blockchain: 46 Aplicações da Blockchain. 101 Blockchains. Disponível aqui. Acesso em: 24 maio 2022. 8 GAVA FILHO, João Miguel; FAZANARO, Renato Vaquelli. Os Novos Ares da (A)Tipicidade no Processo Civil: Meios de Prova e Medidas Executivas no CPC/2015. Revista dos Tribunais. vol. 1015. Maio 2020. p. 213- 239. 9 TARUFFO. Michele. A prova. Trad. João Gabriel Neto. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 87 10 Ementa: OBRIGAÇÃO DE FAZER. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. Publicações em páginas do Facebook, Instagram e Twitter. Alegação de conteúdos inverídicos e ofensivos, com o objetivo de produzir o descrédito do autor junto à opinião pública. Pretensão de remoção dos conteúdos, fornecimento de informações dos usuários e abstenção de comunicação dos requerimentos a terceiros. Descabimento. Requisitos do art. 300 do CPC ausentes. Liberdade de expressão e manifestação, direito à informação e inviolabilidade da honra e imagem assegurados pela Constituição Federal (arts. 5º, IX, IV, V e X, e 220). Controle judicial da manifestação do pensamento tem caráter excepcional, sob pena de indevida censura. Necessidade de demonstração da falsidade da notícia. Precedentes do STJ. Matéria fática que demanda análise mais aprofundada sob crivo do contraditório e ampla defesa. Ausentes requisitos necessários para o fornecimento liminar de informações dos usuários. Art. 22, Lei nº 12.965/14. Abstenção de comunicação a terceiros que não se justifica, pois o autor já providenciou a preservação do conteúdo. Decisão mantida. Recurso não provido. TJSP, 5ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2237253-77.2018.8.26.0000, rel. Des. Fernanda Gomes Camacho, j. 19/12/2018, p. 5).
sexta-feira, 1 de julho de 2022

O caminho é longo e nós vamos de salto

Embora as mulheres ocupem a maior parte dos bancos das universidades brasileiras, quando partimos para as instâncias de poder percebemos a presença majoritariamente masculina.     Em toda a sua história, somente 3 mulheres foram ministras do STF. Esperamos mais de 100 anos para a posse da primeira mulher, a ministra Ellen Gracie, no ano 2000; a segunda, a ministra Carmem Lúcia, tomou posse em 2006; a terceira, ministra Rosa Weber, ingressou na mais alta corte em 2011. Ao compararmos o lapso temporal para o ingresso da primeira mulher no Supremo com o espaço de tempo para a posse das outras duas ministras, até ficamos animadas e pensamos que talvez estivéssemos encurtando o caminho. Afinal, para a posse da primeira mulher havíamos esperado 100 anos, para a segunda 6 e para a terceira apenas 5.  Todavia, as perspectivas positivas são indiscutivelmente frustradas, já que após 2011 surgiram 5 vagas no STF e todas elas foram preenchidas por homens. E essa ausência de representatividade feminina nos espaços de poder também está presente nos outros tribunais. No STJ, o "tribunal da cidadania", dos 32 cargos de ministros ocupados, apenas 6 são mulheres, proporção que se repete na maioria dos demais tribunais. Há ainda tribunais, como o TRF da 5ª Região, em que não há sequer uma desembargadora - situação que esperamos seja, em breve, resolvida, uma vez que existe vaga aberta e três mulheres extremamente competentes integram a lista sêxtupla formada pelo Ministério Público1.  Não fosse suficiente a falta numérica de mulheres nos tribunais, ainda há uma distorção participativa ainda mais agressiva: a interrupção da fala das mulheres na Cortes, realidade observada também fora do Brasil. Estudo realizado pela Universidade Northwestern concluiu que as interrupções de ministros da Suprema Corte dos Estados Unidos, quando eles estão expondo os seus argumentos, possuem estrita relação com questões de gênero. As Ministras, além de serem mais interrompidas do que os Ministros, o são não apenas por seus colegas da Corte, mas por advogados homens, prática que, ressalte-se, é proibida pelas diretrizes do Tribunal2.  O estudo, intitulado "Justice, Interrupted: The Effect of Gender, Ideology and Seniority at Supreme Court Oral Arguments"3, demonstra que as dificuldades impostas para as mulheres permanecem até mesmo quando alcançamos a posição de maior poder das carreiras jurídicas. No âmbito brasileiro, constatou-se que os processos judiciais relatados por mulheres são "contemplados" por mais divergências do que aqueles relatados por homens4. E a situação de desequilíbrio se repete nas demais carreiras jurídicas. O Conselho Federal da OAB, por exemplo, nunca foi presidido por uma mulher e somente uma mulher ocupou o cargo de Procuradora Geral da República. Não é diferente a realidade de gênero na Faculdade de Direito da USP. Em quase 200 anos de existência, somente uma mulher ocupou o seu cargo de direção: a professora Ivette Senise Ferreira, entre os anos de 1998 a 2002.  É bem possível que a dificuldade de participação tenha a ver com a maternidade e com a conciliação das atividades domésticas. Dados do IBGE apontam que as mulheres dedicam 21,4 horas semanais aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, ao passo que os homens dedicam apenas 11 horas semanais para as mesmas atividades5. É evidente a relação da maternidade com a inserção feminina no mercado de trabalho, já que o nível de ocupação (em atividades econômicas) das mulheres que convivem com crianças de até 3 anos de idade é de 54,6 horas semanais e o dos homens é de 89,2 horas semanais6.    Esse cenário, especialmente no que diz respeito à influência da maternidade nas carreiras profissionais das mulheres, leva-nos a questionar qual o papel dos homens no mundo, haja vista que a maternidade nasce ao mesmo tempo da paternidade. A chegada de um filho, portanto, não deveria impactar a vida dos homens e das mulheres de igual forma? Bem, não é novidade que vivemos em uma sociedade machista e que, desde crianças, somos condicionadas a perpetuar esse status quo. Entramos em uma loja de brinquedos e já percebemos nitidamente a seção das meninas e dos meninos: os brinquedos deles incentivam a diversão e o delas, as tarefas domésticas. Talvez algo que começasse a mudar essa realidade fosse a promoção de uma campanha massiva sobre o direito de as crianças brincarem com o que elas quisessem, afinal, tudo começa na infância. Essa seria a construção de uma mudança cultural que, embora imprescindível, demanda muito tempo. Como não temos tempo a perder, mudanças legislativas podem encurtar esse longo caminho. A título de exemplo, a licença maternidade pode se transformar em licença parental, de modo que o pai e a mãe escolham quem irá se licenciar para cuidar do novo membro da família. A famosa e inconveniente pergunta das entrevistas de emprego sobre o desejo de ser mãe não faria mais sentido. Essa já é a realidade de alguns países europeus, dentre eles, Finlândia, Alemanha, Islândia, Noruega e Suécia7. Todo esse cenário, embora preocupante, revela a premente necessidade da união das mulheres em busca da igualdade de gênero, afinal, o caminho é longo e nós vamos de salto. _____________________ 1 Dos seis nomes indicados, o primeiro lugar é de uma mulher, cuja votação (560 votos) foi a maior da história do MPF. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 GOMES, Juliana Cesario Alvim; NOGUEIRA, Rafaela; ARGUELHES, Diego Werneck. Gênero e comportamento judicial no supremo tribunal federal: os ministros confiam menos em relatoras mulheres?. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, nº 2, 2018 p.854-876 5 Disponível aqui. Acesso em: 16 mar. 2021. 6 Disponível aqui. Acesso em: 16 mar. 2021. 7 Disponível aqui.
Desde que o Código de Processo Civil de 2015 foi sancionado, um dos temas mais debatidos tem o sido o rol do artigo 1.015, a respeito das hipóteses de decisões interlocutórias recorríveis por intermédio do agravo de instrumento ou em preliminar/contrarrazões de apelação (CPC, artigo 1.009). Em decorrência de situações problemáticas na lida advocatícia, a doutrina passou a discutir a possibilidade de se interpretar as hipóteses ensejadoras do agravo de instrumento de modo extensivo, sobretudo para os casos de urgência não expressos no rol. Defendendo a leitura extensiva do rol em função do risco de inutilidade de se aguardar o processamento e julgamento do recurso de apelação, William Santos Ferreira se manifestou favorável a seguinte hipótese de recorribilidade: Recorribilidade imediata necessária por inutilidade prospectiva - ausência de interesse recursal na apelação [que é taxativa, pois é o que se pode dizer de "outros casos expressamente referidos em lei", já que basta correlacionar a "recorribilidade geral das interlocutórias" (§1º do art. 1.009) com o disposto que exige e garante (!) interesse recursal (art. 996), o que assegura que a lei não pode afastar do Poder Judiciário, lesão ou ameaça ao direito (inc. XXXV do art. 5º da CF) e o art. 1.015, XIII].1 Nas decisões dos Tribunais pátrios a questão também suscitava divergência, o que o levou o Superior Tribunal de Justiça a afetar o tema pela sistemática de recursos repetitivos. Ao julgar o tema 988 a referida Corte firmou tese responsável por considerar que "[o] rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação"2. Ainda no ensejo daquele julgamento, o Superior Tribunal de Justiça efetuou a modulação da tese para preservar a segurança jurídica dos litigantes: Embora não haja risco de as partes que confiaram na absoluta taxatividade serem surpreendidas pela tese jurídica firmada neste recurso especial repetitivo, pois somente haverá preclusão quando o recurso eventualmente interposto pela parte venha a ser admitido pelo Tribunal, modulam-se os efeitos da presente decisão, a fim de que a tese jurídica apenas seja aplicável às decisões interlocutórias proferidas após a publicação do presente acórdão. Mesmo com essa oportuna providência, os questionamentos sobre a taxatividade do artigo 1.015 do CPC tendem a subsistir, conforme bem apontou Viviane Ramone: Ao que parece, nem mesmo a fixação da tese jurídica ou mesmo sua modulação prestaram-se como alívio a todos os males. Os debates permanecem intensos, principalmente quando se verifica na prática "pós transição" divergências na interpretação dos Tribunais Estaduais e do próprio Superior Tribunal de Justiça".3 O cerne do debate sobre a ampliação das situações recorríveis por agravo de instrumento é desvendar qual o conceito de urgência que autoriza a mitigação da taxatividade do rol do artigo 1.015 do CPC. Como não poderia deixar de ser, a aferição da urgência é casuística. Dentre as hipóteses admitidas pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, separamos dois exemplos: (i) decisão que inverte o ônus da prova com base no CDC e (ii) pronunciamento que (in)admite a intervenção de terceiro e, por consequência, (não) modifica a competência. No primeiro caso, o acórdão proferido no REsp n. 1.729.110/CE distinguiu a inversão do ônus probatório com base no CDC e a dinamização do referido encargo, prevista no CPC, mas considerou a decisão agravável porque ambas excepcionam a regra geral do ônus estático (CPC, artigo 373, I e II). No segundo caso, o acórdão proferido no REsp n. 1.797.991/PR estabeleceu critérios para saber se a decisão que versa sobre intervenção de terceiro e influi diretamente na competência - interlocutória com duplo conteúdo - admite o agravo com base no inciso IX do artigo 1.015 do CPC.4 Infelizmente, o Superior Tribunal de Justiça não admitiu a mitigação do rol do artigo 1.015 do CPC para a decisão que versa a respeito do deferimento ou indeferimento da produção de prova pericial5. Naturalmente, a semântica do mencionado dispositivo legal não admitiria o agravo nessa situação. Porém, é inegável que há situações nas quais a recorribilidade da decisão que indefere a produção de prova pericial se enquadrará em situação de urgência e, portanto, estará em conformidade com o entendimento firmado no tema 988 do Superior Tribunal de Justiça. Um exemplo do que se afirma é a decisão que indefere prova pericial em objeto ou área suscetível de degradação pelo decurso do tempo. Aguardar eventual julgamento de recurso de apelação para se decidir acerca da necessidade ou não da produção da mencionada prova certamente ocasionará prejuízo ao resultado útil da perícia ou até mesmo a impossibilidade de realização dela. Assim, o indeferimento da perícia tendo como único fundamento a ausência de previsão no rol do artigo 1.015 do CPC contraria a tese firmada no tema 988 do Superior Tribunal de Justiça, seja pela urgência na realização da prova, seja por eventual inutilidade prospectiva, decorrente de perda ou deterioração do objeto da perícia. Nessa situação, o agravante terá o ônus argumentativo de demonstrar a imperiosidade de a prova pericial ser realizada de imediato, a fim de permitir a imediata recorribilidade do provimento causador de prejuízo. Observa-se que, apesar de decorridos mais de 06 anos da vigência do Código de Processo Civil e quase 04 anos desde a fixação da tese da "taxatividade mitigada" no tema 988, a questão atinente à recorribilidade das interlocutórias por intermédio de Agravo de Instrumento ainda carece de uniformidade entre os Tribunais. Isto porque, para além da imputação ao interessado do ônus argumentativo de demonstrar o enquadramento do caso concreto ao que se espera de conceito de urgência, o respectivo reconhecimento de urgência aparentemente tem ficado ao crivo do julgador. __________ 1 FERREIRA, William Santos. Do Agravo de Instrumento. In BUENO, Cassio Scarpinella (Coord.) Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo. Saraiva. 2017. p. 458. 2 Superior Tribunal de Justiça. Tema repetitivo 988. REsp 1.696.396 / MT e REsp 1704520/MT, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Julgados em 05/12/2018, Acórdãos publicados em 19/12/2018. 3 TAVARES, Viviane Ramone. Agravo de Instrumento: "E agora, José?" O que é urgência para que se possa mitigar sua taxatividade?. In CALAZA, Tales; TAVARES, Viviane Ramone (Coords.) Processo civil 4.0: novas teses envolvendo processo e tecnologia. Uberlândia. LAECC, 2020, pp. 203-238. 4 Referidos critérios são: o exame do elemento que prepondera na decisão; o emprego da lógica do antecedente-consequente e da ideia de questões prejudiciais e de questões prejudicadas; e o exame do conteúdo das razões recursais apresentadas pela parte recorrente. 5 Veja o AgInt no ARESp n. 1.991.335/RS. O TJSP também caminha na mesma esteira do STJ. A esse respeito, confira-se, por exemplo: Agravo de Instrumento n. 2083669-48.2022.8.26.0000, 2ª Câmara de Direito Privado, Relatora: HERTHA HELENA DE OLIVEIRA, Julgado em 29/04/2022; Agravo de Instrumento n. 2171524-36.2020.8.26.0000; Relator: Cesar Luiz de Almeida, 28ª Câmara de Direito Privado; Julgado em 27/07/2020.
A virtualização certamente foi um dos maiores legados da pandemia para o sistema processual judicial. Fatores pandêmicos (como restrições ao deslocamento e diretrizes de distanciamento social) deram o empurrão que faltava para a oferta de diversos serviços judiciários remotos no período em que vigoraram medidas de prevenção e controle determinadas pelo Poder Público. Em tal cenário merece especial destaque a ocorrência maciça de audiências por videoconferência - que, como não poderia deixar de ser, ensejou diversos questionamentos em relação às garantias processuais relevantes. O foco deste breve artigo é promover reflexão sobre a aplicação, nesse contexto, de duas regras processuais que regulam situações diametralmente opostas: a justa causa e a litigância de má-fé. Como ambas as hipóteses regulam situações relacionadas à boa-fé processual, por conseguinte estabelecem consequências jurídicas para as partes que praticam ou deixam de praticar atos processuais. Na justa causa, a comprovação acerca da existência de evento alheio que impeça a prática do ato processual faz incidir a regra do art. 223, §2º, do CPC, que autoriza a magistratura permitir à parte a prática do ato no prazo que assinalar. Em relação à responsabilidade das partes por dano processual, a verificação da ocorrência de alguma das circunstâncias previstas nos incisos II (alteração da verdade dos fatos), IV (oposição de resistência injustificada ao andamento do processo) e V (atuação temerária em qualquer incidente ou ato do processo) do art. 80 do CPC gera condenação por litigância de má-fé, consistente no pagamento de multa superior a 1% (um porcento) e inferior a 10% (dez porcento) do valor corrigido da causa. Tal montante pode alcançar 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo quando o valor da causa for irrisório ou inestimável. Além disso, pode haver indenização da parte contrária pelos prejuízos sofridos, incluindo honorários advocatícios e despesas efetuadas. Considere-se hipoteticamente a situação em que a parte, por falhas técnicas, não consegue ingressar em uma audiência realizada por videoconferência: qual deverá ser a consequência? Em primeiro lugar, para evitar excessivas desconfianças, há que se considerar que a boa-fé sempre se presume1. Por força de tal diretriz, a razão da ausência não poderá ser objeto de especulação nem conclusão açodada. Embora a pessoa possa ter buscado se preparar com antecedência, justamente na hora da audiência podem ocorrer empecilhos. Quem já passou por dificuldades de acesso sabe que o momento é pautado por muitas dúvidas: estará o problema no próprio aparato tecnológico ou no sistema do Poder Judiciário? Como aferir a resposta correta quando faltam informações técnicas e a comunicação está prejudicada? Se muitas vezes os Tribunais apenas reportam a falha no dia seguinte à ocorrência, como ter segurança? Será que o empecilho à acessibilidade se dá por falhas da operadora de internet? E se ocorreram súbitas intermitências na energia elétrica? Além de todas essas hipóteses, outros imprevistos insuperáveis podem surgir. Obviamente diante de ocorrências de tal ordem a parte poderá legitimamente invocar justa causa para que o ato seja repetido em outra oportunidade, em prazo assinalado pelo magistrado. Esta regra parte do dever de tratamento isonômico e da boa-fé processual, de modo que a inacessibilidade ou a indisponibilidade gerada por problemas no meio digital não poderá ensejar efeitos processuais danosos às partes. Por outro lado, se diante deste mesmo caso o magistrado constatar que a parte simulou alguma falha técnica com o propósito de escapar do ato processual, poderá condená-la por litigância de má-fé. Esta regra, a seu turno, revela-se muito relevante para a prática de atos processuais virtualizados por servir como fator inibidor de falsas alegações da justa causa decorrente da inacessibilidade ou indisponibilidade do meio digital. Portanto, quando a parte alega que não conseguiu acessar o sistema para participar de uma audiência por videoconferência por embaraços técnicos, ela tem a prerrogativa de invocar a justa causa prevista no art. 223 do CPC - com a ressalva de que possa vir a ser condenada por litigância de má-fé caso o magistrado constate posteriormente, de algum modo, a falsidade de tais alegações. No ponto, vale ressaltar que a boa-fé apenas será violada se o litigante alegar falsamente a justa causa ou levantar argumentos que de antemão já se sabe serem infundados. Assim, não há violação da boa-fé diante da divergência entre a interpretação dos fatos dada pela parte que alegou justa causa e o entendimento do juiz. O magistrado pode, por exemplo, entender que o fato impeditivo do acesso à audiência não é grave o suficiente para caracterizar justa causa e nesse caso, não há que se falar em má-fé - exceção feita à hipótese em que reste demonstrado o despropósito evidente da alegação2 e/ou o desvio de finalidade. Como exemplo, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) condenou um escritório de advocacia a pagar multa de 5% do valor da causa (correspondente, no caso, a R$ 21.770,00 - vinte um mil, setecentos e setenta reais) por litigância de má-fé porque sua preposta teria simulado uma falha técnica ao longo da audiência realizada por videoconferência com o intuito de se valer da justa causa para que fosse designada uma nova data para sua realização3. Uma outra questão que merece reflexão no contexto das audiências virtuais relaciona-se ao potencial tecnológico para o cometimento de outras falsidades. Um exemplo emblemático é o Deepfake, que consiste na utilização de programas que substituem a face de uma pessoa pela de outra nas videoconferências. A tecnologia tem evoluído tanto que chega a ser difícil perceber a adulteração do rosto, já que os programas empregados permitem tal substituição com perfeição e estão sendo rapidamente melhorados para permitir movimentos faciais cada vez mais precisos. É evidente a necessidade de o Poder Judiciário estar sempre atento às novas tecnologias e seus potenciais - eventualmente danosos -, para que possam solvê-los com rapidez. Mediante a concepção de um processo 100% digital, há que se fazer uma releitura sobre os fundamentos do direito processual, e, neste contexto, todos devem estar preparados para a nova realidade que veio para ficar. __________ 1 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. São Paulo: Método, 2012, p. 347. 2 Ibidem. 3 Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP). Processo nº 1000023-57.2020.5.02.0062. Notícia disponível aqui. Acesso em: 6 mai. 2022.
Em razão do acúmulo de audiências a serem realizadas por conta da Pandemia da Covid-19, alguns juízos brasileiros estão substituindo a audiência de instrução e julgamento por declarações escritas de testemunhas, pretende-se analisar se tal conduta contraria o devido processo constitucional. A pandemia do Covid-19 chegou de repente fazendo com que todos precisassem adaptar as vidas a uma realidade de isolamento social. Não foi diferente com o Poder Judiciário, que teve que acomodar atos processuais predominantemente presenciais a um ambiente virtual e isolado. A possibilidade de realização de atos processuais presenciais no ambiente virtual, como é o caso da sustentação oral nos Tribunais, foi recebida com entusiasmo, seja porque consistia em uma mudança já esperada (positivada nos arts. 236, §3º c/c 937, §4º, CPC) e que, muito provavelmente, não havia sido implementada antes de 2020 pela falta de necessidade ou por simples comodidade; seja porque não implicava em mitigação a princípios processuais. No entanto, esse entusiasmo não se deu de maneira geral, pois alguns atos processuais realizados exclusivamente no ambiente virtual acabaram sofrendo indesejadas alterações em sua essência. É o caso das audiências de instrução e julgamento. A audiência de instrução e julgamento se presta como um meio de produção de prova oral perante um juiz togado (depoimentos pessoais, depoimento de testemunhas e oitiva de perito - art. 361, CPC). Embora não haja impedimento para a coleta de prova oral no ambiente virtual (previsto no CPC/15 nos arts. 386, § 3º e 453, §1º), tem se constatado, na prática, que a forma como as audiências telepresenciais estão sendo conduzidas, em alguns casos, evidencia violação ao devido processo legal, tendo-se como exemplo disto, a impossibilidade de fiscalização a respeito da necessária incomunicabilidade das testemunhas[1]. De toda sorte, a prova oral não deixou de ser praticada na presença, ainda que virtual, do juiz (art. 453, CPC), havendo possibilidade de inquirição por ambas as partes (autora e ré). Vale dizer que neste contexto, a produção de prova testemunhal, ainda que de certa forma mitigando o comando descrito na parte final do art. 456, CPC, funda-se em uma ponderação de princípios, sopesando-se a respeito do que era mais importante: o andamento dos processos com realização de produção de provas orais em audiência virtual ou a suspensão desses processos por tempo indeterminado (não se sabia ao certo quanto tempo a pandemia iria durar). Alguns juízos, mesmo diante destes possíveis questionamentos em torno da produção da prova oral, optaram pelo seguimento de suas atividades por intermédio da realização de audiências virtuais, enquanto outros entenderam ser melhor suspendê-las enquanto perdurasse o período de isolamento social. Hoje, em um momento que já pode ser considerado como pós-pandêmico, tem se observado em alguns juízos, uma tendência - em tese, justificada pela necessidade de atendimento de demandas represadas em torno da produção de provas orais - no sentido de determinar a substituição da prova testemunhal por declarações escritas das testemunhas arroladas. A maior parte das decisões que determina a substituição da prova oral pela declaração escrita das testemunhas é fundamentada no art. 139, II do Código de Processo Civil, e há diversos equívocos na narrada fundamentação. Não é novidade que justiça que tarda não é justiça[2], assim como não é novidade que, tão importante quanto a velocidade é a qualidade das decisões. Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira:   "Se uma Justiça lenta demais é decerto uma Justiça má, daí não se segue que uma Justiça muito rápida seja necessariamente uma Justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-­la melhor é preciso acelerá-­la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço." [3]   Dizer que a substituição de prova testemunhal por declarações de testemunhas garante a celeridade processual é uma falácia, saltando aos olhos como questão velha, já decidida inúmeras vezes pelos Tribunais[4]. A declaração escrita de testemunha não substitui a produção de prova oral - e isto deve ser novamente frisado, sob uma nova perspectiva, na qual se evidencia um maior uso das tecnologias à distância[5]. Se, à época em que não eram utilizados mecanismos tecnológicos, a substituição de prova testemunhal por declarações encontrava resistência dos Tribunais, com muito mais razão chegar-se-ia à mesma conclusão nas atuais circunstâncias.   Não que a declaração de testemunhas não seja válida, mas não é prova testemunhal, consiste em meio de prova atípico (art. 332, CPC) e que, portanto, somente pode ser utilizado se a prova típica não for possível[6]. A declaração de testemunhas, seja produzida sozinha e assinada com firma reconhecida, ou produzida na presença de um notário, equipara-se ao depoimento em inquérito policial, que, devido à ausência de contraditório no momento da produção não é considerado prova oral[7]. Afora as características formais na produção da prova testemunhal (possibilidade de a parte contrária contraditar a testemunha, possibilidade de todos os sujeitos inquirirem a testemunha no mesmo momento etc.) que deixam de ser observadas quando se substitui a produção da prova oral por meras declarações, há elemento pragmático que não pode deixar de ser levado em consideração: as impressões do juiz. As impressões do julgador são tão importantes que nosso sistema consagra as máximas da experiência como meio de prova, sendo certo que, nos termos do art. 375, CPC, não se aplicam somente na ausência de outros meios de prova, aplicando-se a todo e qualquer momento em que o juiz esteja exercendo sua função de julgador[8]. Nas lições de Humberto Theodoro Junior: "[...] é pelo contato direto ou pessoal com os interessados que o julgador melhor se capacita a perceber os reais interesses em conflito, e, com isso, pode se aproximar da melhor maneira de compô-los, jurídica e eticamente[9]." As declarações de testemunhas por escrito são meros indícios e não provas. Não podem ser qualificadas como provas orais (pois não seguem o rigor da produção com contraditório simultâneo[10]), nem tampouco provas documentais[11]. A dispensa da realização destas audiências, quando requeridas provas orais no processo, contraria o ideal de humanização do processo, bem como sua oralidade. O art. 139 do Código de Processo Civil incumbiu o juiz, como gestor do processo, de velar pela duração razoável do processo. Entretanto, a celeridade não pode representar o atropelamento de outras garantias processuais, como a ampla defesa, na qual está inserido o direito a produção de prova. O termo substituição, tal qual vem sendo empregado nas decisões judiciais que dispensam a realização de audiência de instrução e julgamento, traz a ideia de que uma medida (declarações de testemunhas) pode ocupar o lugar da outra (prova testemunhal). Pelas razões sucintamente expostas, verificou-se que não há identidade qualitativa entre prova testemunhal e as declarações escritas de testemunhas, portanto, não existe substituição de prova testemunhal. O que pode existir, em todo e qualquer processo, é a juntada de declarações de testemunhas, que, no entanto, não substitui a produção de prova oral. Assim, a audiência de instrução e julgamento somente pode ser dispensada se: (i) as provas documentais ou a confissão da parte contrária forem suficientes para a comprovação dos fatos (art. 443, I); (ii) se os fatos apenas puderem ser provados por prova pericial ou documental (art. 443, II); e (iii) se as partes concordarem com a não produção de prova oral. Do contrário, a dispensa de audiência de instrução e julgamento significará ofensa ao direito à prova, que, vale dizer, está inserido no conceito de acesso à Justiça. ________________________ [1] ALVES, Lucélia de Sena. As audiências de instrução e julgamento por videoconferência: uma análise empírica. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/56768. Acesso em 12 maio 2022. [2] Célebre frase de Rui Barbosa no discurso na Faculdade de Direito de São Paulo no ano de 1920."Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade." [3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da justiça: alguns mitos. Disponível em:< http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RDC_06_36.pdf>. Acesso em 10 maio 2022. [4] "Por isso mesmo, está correto o entendimento no sentido de que não se pode obstar a produção oral da prova testemunhal ao argumento de já haver declarações escritas nos autos: "(...) Declaração escrita de testemunha. Dispensa da prova oral. Impossibilidade. Violação ao devido processo legal. I- O indeferimento da prova testemunhal requerida pela parte, que seja essencial para a adequada compreensão dos fatos controvertidos, configura cerceamento de defesa. Precedentes jurisprudenciais. II- A juntada de declaração de testemunha, por escrito, mesmo que autenticada por Tabelião, não tem força idêntica à prova testemunhal produzida em audiência, sob o crivo do contraditório. III- Existindo relevante matéria de fato, torna-se inafastável a realização de prova oral, imprescindível para a plena constatação do direito do postulante. A sua não realização implica violação ao princípio constitucional da ampla defesa e do devido processo legal. IV- Recurso provido." (TRF da 3ª Região, 8ª Turma, AI 00823030820074030000, Des. Federal Newton de Lucca, e-DJF3:27/07/2010) [5] Muito antes da pandemia, discorrendo sobre o princípio da oralidade como sendo um princípio fundamental das provas cíveis, William Santos Ferreira escreveu com propriedade que: "Em alguns momento o princípio da oralidade será até mais valorizado como está acontecendo com o surgimentos das novas tecnologias e a redução de custos decorrentes da utilização em larga escala (gravadores digitais, webcams, arquivamento em mídia baixo custo, entre outras)[...]" (FERREIRA, William Santos. Princípio fundamentais da prova cível. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 158) Esse momento chegou, mas curiosamente o uso habitual da tecnologia parece ter afastado a oralidade. [6] Um dos nortes da atipicidade dos meios de prova é o art. 244, CPC que diz que "quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará valido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade." No caso da substituição da prova testemunhal pela declaração da testemunha por escrito, não se atinge a finalidade do meio de prova oral. O objetivo da prova testemunhal não é trazer aos autos uma extensão das razões do autor ou do réu por meio de outra pessoa (que é o que ocorre com meras declarações), mas sim permitir que um terceiro (testemunha) uma vez inquirido por todos os sujeitos do processo (pouco importando quem o trouxe aos autos, se é 'testemunha do autor' ou 'testemunha do réu'), possa auxiliar no convencimento do magistrado.  [7] "[...] 3. Na espécie, o Tribunal de origem adotou a referida providência, ao constatar que, como se trata de ação de improbidade administrativa cujos efeitos da sentença tem natureza sancionatória, é conveniente a ouvida do réu e das testemunhas por ele arroladas até para que não se alegue em momento futuro a nulidade da sentença por cerceamento de defesa (fls. 577). A Corte Regional determinou a colheita da prova oral, para posterior continuidade do julgamento de Apelação. 4. Todavia, ao que se dessume da espécie, a condenação teve lastro apenas em prova emprestada adveniente de Inquérito Policial, consoante narra o próprio aresto recorrido. 5. Em situações tais, dúvida não há de que houve o clássico cerceamento de defesa, conforme reconheceu a Corte Regional, que considerou importante a produção de prova oral primitivamente indeferida na espécie. 6. Inegavelmente, a colheita de prova oral poderá - ou não, é uma questão de contingência filosófica - ser a gênese de outro desfecho processual, isto é, distinto daquele que já se operou com a prolação de sentença condenatória. 7. Diz-se isso não para antecipar qualquer efeito sobre a prova de que se lançará mão na espécie, mas por ser lógico que as informações que uma testemunha pode prestar nos autos são hábeis a ensejar cruciais conclusões ao Julgador." (AgInt no REsp 1390312/SE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22/09/2020, DJe 29/09/2020) [8] O juiz presente pode, diante de sua experiência, perceber a postura da testemunha, a fim de identificar algum tipo de nervosismo por não estar dizendo a verdade, por exemplo. [9] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais. Vol. I. 60ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 64. [10] "Na prova testemunhal normalmente produzida - i.e., de forma oral -, como se sabe, o contraditório é muito mais eficaz, porque realizado para a produção da prova, no exato momento de sua produção; na forma documentada, ao revés, o contraditório incide sobre a prova, e o máximo que as partes que não produziram o documento podem fazer é interpretá-lo, nunca elaborá-lo ou construir conjuntamente seu conteúdo." (GUEDES, Clarissa Diniz, Tese de doutorado defendida na USP, persuasão racional e limitações probatórias: Enfoque comparativo entre os processos civil e penal, 2013, p. 206). [11] Diferença entre prova documental e documentada.
O CPC/2015 trouxe muitas promessas, dentre elas, a da cooperação como norma fundamental, estampada no art. 6º: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva". Mais adiante, o Código estabeleceu um regramento próprio para a cooperação judiciária nacional e internacional. No caso da cooperação nacional, percebe-se que as regras foram destinadas precipuamente aos órgãos do Poder Judiciário (art. 67), podendo os juízos formular entre si pedidos de cooperação para a prática de qualquer ato processual (art. 68). Entretanto, restou clara também a possibilidade de cooperação entre órgãos jurisdicionais diversos, com a expressa menção à carta arbitral (art. 69, §1º)1 e a referência contida no art. 69, §3º de que "o pedido de cooperação judiciária pode ser realizado entre órgãos jurisdicionais de diferentes ramos do Poder Judiciário". Para além da cooperação entre juízos pertencentes ao Poder Judiciário, Fredie Didier Jr. explicita que a cooperação pode representar também a interação entre órgãos judiciários e tribunais arbitrais ou órgãos administrativos, inclusive por intermédio do compartilhamento ou delegação de competência, centralização de processos, produção de prova comum, prática de atos processuais, gestão de processos, entre outras técnicas2. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Flávia Pereira Hill chama a atenção para o indispensável incremento da cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial, mais especificamente, os cartórios extrajudiciais, com o desenvolvimento do que denominou "triplo C": cooperação, complementaridade e coordenação. Para a autora, a administração da justiça é compartilhada por vários agentes, incluindo os delegatários dos cartórios extrajudiciais, de modo que diversas medidas cooperativas devem ser implementadas entre estes e os órgãos judiciais, dentre as quais se destacam: a) a criação e regulamentação da carta extrajudicial como instrumento de cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial, por analogia à carta arbitral; b) a possibilidade de a prova produzida perante cartório extrajudicial ser emprestada para o processo judicial, desde que garantido o contraditório3. Reconhecendo a possibilidade da utilização de instrumentos de cooperação entre cartórios extrajudiciais e órgãos judiciais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação nº 28/2018, para que os tribunais de justiça dos Estados e do Distrito Federal celebrassem convênios com notários e registradores do Brasil para a instalação, nas serventias, de centros judiciários de solução de conflitos e cidadania (CEJUSCs) nos locais em que ainda não tivessem sido implantados4. Em 29.10.2020, o CNJ editou a Resolução nº 350, que dispõe sobre a cooperação judiciária nacional, a qual estabelece, em seu art. 1º, que a cooperação abrange as seguintes dimensões: a) ativa, passiva e simultânea entre órgãos do Poder Judiciário; e b) interinstitucional entre órgãos do Poder Judiciário e outras instituições e entidades, integrantes ou não do sistema de justiça, que possam contribuir, direta ou indiretamente, para a administração da justiça. O art. 16 da Resolução enumera os órgãos e instituições que podem atuar na cooperação interinstitucional5. Esperava-se que os cartórios extrajudiciais estivessem nessa lista, notadamente em razão da Recomendação nº 28/2018 e de outros tantos instrumentos normativos do próprio CNJ que evidenciam a atuação colaborativa das serventias com o Poder Judiciário, porém tal inclusão não aconteceu. De toda sorte, extrai-se da redação do próprio caput do art. 16 que o rol é meramente exemplificativo. Nada impede que outros órgãos, entidades e instituições, integrantes ou não do sistema de justiça, sejam considerados cooperantes interinstitucionais, desde que possam contribuir para a execução da estratégia nacional do Poder Judiciário, promover o aprimoramento da administração da justiça, a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional. Assim é que, apesar da redação do art. 16 da Resolução 350 do CNJ, entende-se que a cooperação interinstitucional, nos termos dos arts. 1º, inciso II, 16 e seguintes da Resolução nº 350/2020 do CNJ, deve abranger as serventias extrajudiciais e são muitas as razões para tanto. A atividade notarial e registral, embora exercida em caráter privado por delegação do Estado (art. 236, caput, da CF), é pública, conforme já decidiu o STF6. O ingresso na atividade ocorre através de aprovação em concurso público de provas e títulos (art. 236, §3º, da CF), realizado pelo Poder Judiciário (art. 15 da lei 8.935/94), a quem cabe também a outorga da delegação, através de ato da Presidência ou da Corregedoria-Geral de Justiça do respectivo Tribunal de Justiça estadual. Sendo a atividade delegada pelo Poder Público, os notários e registradores estão submetidos à normatização e à fiscalização por parte do ente público delegante e essas atividades são desempenhadas pelas corregedorias estaduais e pelo CNJ (art. 103-B, §4º, I e III, da CFRB). Além disso, estão sujeitos a processo administrativo disciplinar e à perda da delegação em caso de descumprimento de seus deveres, previstos em Lei e nas normas administrativas, inclusive o dever de observar as prescrições legais e normativas (arts. 30, XIV, 31, I e 32 a 35 da lei 8.935/94). A remuneração da atividade se perfaz mediante o pagamento de emolumentos, que têm natureza jurídica de taxa, conforme já definiu o STF7, considerando a natureza pública e o caráter social dos serviços prestados pelas serventias extrajudiciais. Os delegatários das serventias são juristas8, dotados de fé pública, que têm por função garantir publicidade, autenticidade, eficácia e segurança jurídica aos atos e negócios jurídicos, conferindo-lhes presunção de veracidade e valor probatório, além de exercerem um relevante papel de assessoria e aconselhamento aos usuários dos serviços notariais e registrais. É tradicional, aliás, a concepção segundo a qual notários e registradores são agentes de pacificação social que atuam na prevenção de litígios9. Por isso, em diversos países que adotam o chamado notariado latino10, verifica-se uma tendência de desjudicialização11 de procedimentos de jurisdição voluntária para os cartórios extrajudiciais12, notadamente em razão da inexistência de conflito entre os envolvidos que geralmente é referida como uma das características dessa espécie de jurisdição. Esse movimento também está presente no Brasil e é certo que os diversos instrumentos normativos que promoveram a desjudicialização até aqui demonstram uma preferência pelas serventias extrajudiciais. Vários procedimentos podem ser levados a efeito nos cartórios sem a obrigatoriedade de intervenção judicial, tais como os casamentos, inclusive homoafetivos, as retificações administrativas, as escrituras públicas de divórcio e partilha, a usucapião extrajudicial, a divisão e a demarcação por escritura pública, o reconhecimento da filiação biológica e da socioafetiva diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, entre outros. A constatação de que os notários e registradores são agentes de pacificação social e que, portanto, podem atuar não apenas na prevenção como também na solução consensual dos conflitos deu ensejo à expressa previsão, na lei 13.140, de 26.06.2015, em seu art. 45, de que a mediação pode ser realizada nas serventias extrajudiciais e que, portanto, notários e registradores e seus prepostos podem ser mediadores. O CNJ, em seguida, regulamentou a matéria por intermédio do Provimento nº 67/2018. Em razão de todas as características acima referidas, entende-se que as serventias extrajudiciais integram o sistema de justiça. Sobre o ponto, no Fórum Permanente de Processualistas Civis realizado em março do ano em curso, restou aprovado o enunciado de nº 707, segundo o qual a atuação das serventias extrajudiciais integra o sistema brasileiro de justiça multiportas13. Cuida-se de um relevante reconhecimento doutrinário de que os cartórios extrajudiciais constituem uma das vias dispostas ao cidadão para a solução de seus conflitos. Partindo-se da premissa de que as serventias extrajudiciais integram o sistema de justiça, considera-se que podem elas atuar em colaboração com outros órgãos, integrantes ou não do Judiciário. Daí porque devem estar inseridas no contexto da cooperação judiciária interinstitucional, nos termos da Resolução nº 350 do CNJ. Em razão disso, a autora do presente texto apresentou, perante a II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios, realizada pelo Conselho da Justiça Federal, proposta de enunciado, que foi aprovado nos seguintes termos: "A cooperação nacional interinstitucional pode ser realizada entre órgãos judiciais e serventias extrajudiciais, inclusive para a prática dos atos de cooperação descritos no art. 6º da Resolução n. 350/2020 do CNJ, no que couber"14. Embora os atos de cooperação interinstitucional estejam descritos no art. 1515, o rol não é taxativo, visto que o caput menciona que poderão ser adotadas outras providências além daquelas ali referidas. Tendo em vista a natureza da atividade notarial e registral e os seus contornos atuais, pensa-se que a cooperação interinstitucional entre serventias extrajudiciais e órgãos judiciais pode abranger diversos dos atos descritos no art. 6º da Resolução nº 350, dentre os quais se destacam: a) a prática de atos de comunicação processual, notadamente nos procedimentos desjudicializados e naqueles em que há atuação conjunta judicial e extrajudicial; b) a prestação e a troca de informações relevantes para a solução dos processos extrajudiciais; c) a obtenção e apresentação de provas, a coleta de depoimentos e meios para o compartilhamento de seu teor; d) a efetivação de medidas e providências referentes a práticas consensuais de resolução de conflitos; e e) o compartilhamento de infraestrutura, tecnologia e informação, respeitada a legislação de proteção de dados pessoais. Feitas tais considerações, revela-se fundamental elencar, ainda que exemplificativamente (dados os limites do presente texto), algumas medidas de cooperação interinstitucional que têm sido concretizadas entre serventias extrajudiciais e órgãos judiciais. Primeiramente, deve-se fazer referência às centrais eletrônicas notariais e registrais, cujos dados são compartilhados com o Poder Judiciário, a exemplo da Central de Informações do Registro Civil (CRC) que, por intermédio da CRC-Jud16, permite que magistrados e integrantes de órgãos públicos conveniados realizem buscas de registros de nascimentos, casamentos e óbitos, e que solicitem certidões eletrônicas diretamente nos módulos da Central. Também se pode mencionar o sistema Penhora Online17, que interliga o Poder Judiciário ao Registro de Imóveis, permitindo a pesquisa de bens pelo CPF/CNPJ, a solicitação de certidões digitais e de penhora, arresto e sequestro de bens imóveis. Vale também mencionar a averiguação oficiosa de paternidade, prevista na Lei nº 8.560/92 e no Provimento nº 16/2012 do CNJ. O procedimento, que tem natureza de jurisdição voluntária, inicia-se na serventia do Registro Civil das Pessoas Naturais, nos casos de registro de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida. A genitora ou o(a) filho(a) maior fará ao Oficial do RCPN a indicação do maior número possível de elementos para identificação do genitor e, após o preenchimento de termo, o procedimento será remetido ao juiz, que procederá com a oitiva da genitora e a notificação do suposto genitor em juízo. Confirmada a paternidade, será lavrado termo de reconhecimento e remetida certidão ao Oficial da serventia, para a devida averbação. Se o suposto genitor não atender a notificação judicial, ou negar a paternidade, o Juiz remeterá os autos ao Ministério Público ou à Defensoria Pública para que intente, havendo elementos suficientes, a ação de investigação de paternidade. Considerando a possibilidade de cooperação entre as serventias, os órgãos judiciais e o Ministério Público, inclusive a realização de atos de comunicação processual e a tomada de depoimentos pelos delegatários, a Corregedoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, ao regulamentar a averiguação oficiosa de paternidade em seu Código de Normas (art. 746), estabeleceu regras que permitem a prática de alguns atos do procedimento no âmbito das serventias: a) há previsão de tombamento e autuação do procedimento administrativo no Serviço do RCPN competente com a juntada de documentos indispensáveis; b) a notificação ao suposto genitor será expedida pelo próprio Oficial do RCPN, de ofício, para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída, no prazo de trinta dias; c) se o genitor comparecer e negar a paternidade, o Oficial tomará por termo as suas declarações, remetendo o procedimento ao juízo competente ou ao Ministério Público, conforme o caso; e) se o suposto genitor comparecer e confirmar a paternidade, será lavrado o termo de reconhecimento, sendo remetidos os autos ao juízo ou ao Ministério Público, conforme o caso, para análise e determinação ou não da averbação correspondente; f) caso o genitor não atenda a notificação ou se esta for negativa, os autos serão remetidos ao Juiz ou ao Ministério Público para as providências cabíveis. Nota-se que, embora permitida a realização de atos de comunicação e a tomada de declarações por termo pelos Oficiais do RCPN, o que permite a tramitação e a finalização do procedimento de forma mais célere, restou mantida a participação do representante do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica e, bem assim, a atuação judicial. Outra interessante medida de cooperação, consubstanciada no compartilhamento de provas e de atos processuais, consta do Provimento nº 65/2017 do CNJ, que regulamenta a usucapião extrajudicial. Nos termos do art. 2º, §3º, na hipótese de desistência do processo judicial para fins de utilização da via extrajudicial, homologada a desistência ou deferida a suspensão, poderão ser utilizadas as provas produzidas na via judicial no âmbito da serventia do Registro de Imóveis correspondente. Na realidade, entende-se que não apenas as provas, mas todos os atos processuais já praticados podem ser utilizados na via extrajudicial. Nesse sentido é o teor do enunciado nº 50 da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios do CJF18. Entende-se, ademais, que o aproveitamento de atos processuais deve ser interpretado como uma via de mão dupla, de modo que os atos praticados no cartório extrajudicial sejam também aproveitados em juízo, na hipótese de desistência ou impossibilidade de continuação do procedimento na via extrajudicial. Por fim, é importante destacar a atuação dos próprios órgãos judiciais que, por intermédio de decisões ou da edição de atos normativos, têm garantido a facilitação da tramitação de procedimentos desjudicializados, através da prática de atos cooperativos praticados pelas serventias, pelo Ministério Público e pelo Judiciário. Isso tem acontecido, por exemplo, nos casos de inventário por escritura pública, em razão da restrição contida no art. 610 do CPC, no sentido de que, se houver testamento ou herdeiros incapazes, não se admite a via extrajudicial. Há decisões judiciais que têm permitido o inventário por escritura, ainda que haja incapazes, mediante a concessão de alvará judicial, desde que resguardados os seus interesses19. Além disso, há iniciativas como a do juízo da Vara de Registros Públicos, Órfãos e Sucessões e de Cartas Precatórias Cíveis da Comarca de Rio Branco, cujo titular é o juiz Edinaldo Muniz dos Santos, que editou a Portaria nº 5914-12, de 08.09.202120, a qual dispõe sobre a realização de inventário extrajudicial, em tabelionatos de notas, quando houver herdeiros interessados incapazes. A minuta final da escritura deve ser previamente submetida à aprovação da vara, antecedida de manifestação do Ministério Público, a fim de que sejam protegidos os interesses dos herdeiros incapazes. O inventário envolvendo menores, nesses termos, é elaborado extrajudicialmente, mas depende, para a sua validade, de manifestação favorável do Ministério Público e de aprovação do juízo competente. A tramitação em juízo se torna evidentemente menos complexa, a partir de uma atuação conjunta do órgão judicial, do Ministério Público e da serventia extrajudicial, o que facilita sobremaneira a solução da questão relativamente a todos os envolvidos. Como se vê, a cooperação interinstitucional entre os cartórios extrajudiciais e os órgãos judiciais já é uma realidade, a qual pode e deve ser mais bem aproveitada e dimensionada, especialmente a partir das diretrizes definidas pelo CNJ por intermédio da Resolução nº 350/2020, com a finalidade de reorganizar o sistema de justiça, conferir maior celeridade e efetividade à solução dos conflitos e, em consequência, reduzir o quantitativo de demandas judiciais. __________ 1 Sobre a cooperação judiciária nacional em matéria de arbitragem, vide resolução 421/2021 do CNJ. 2 Cooperação judiciária nacional: esboço de uma teoria para o Direito brasileiro (arts. 67-69, CPC). Salvador: Jus Podivm. 2020, p. 61-62) 3 HILL, Flávia Pereira. A desjudicialização e o necessário incremento da cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial. SENA, Lucelia Santos e Fernanda Gomes (Coordenadoras). Coletânea "4 anos de vigência do Código de Processo Civil de 2015 4 Não se tem notícia do efetivo cumprimento da Recomendação pelos tribunais. 5 São eles: a) o Ministério Público; b) a Ordem dos Advogados do Brasil; c) a Defensoria Pública; d) as Procuradorias Públicas; e) a Administração Pública; e f) os Tribunais arbitrais e árbitros(as). 6 ADI 2415, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 22/09/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-028 DIVULG 08-02-2012 PUBLIC 09-02-2012 7 ADI 5672, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 21/06/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-128  DIVULG 29-06-2021  PUBLIC 30-06-2021. 8 DIP, Ricardo. Prudência Notarial. São Paulo: Quinta Editorial, 2012, p. 28 9 Em texto escrito na década de 50, Francesco Carnelutti, embora reconhecendo que os notários, como os juízes, julgam, refere que os notários o fazem em momento anterior, para evitar o conflito. (CARNELUTII, Francesco. La figura giuridica del Notaro. Rivista del notariato, Anno V. Milano: Dott. A. Giuffré Editore, 1951, p. 12). 10 Ensina Leonardo Brandelli que "(...) notariado latino é o tipo de notariado adotado nos países de origem latina e que seguem o direito herdado dos romanos, dotados de determinadas características que tornam possíveis o seu agrupamento". (BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 98). 11 A autora do presente texto e Clarice Santos definem a desjudicialização como "um movimento ou fenômeno contemporâneo que tem por principais objetivos reorganizar o sistema de justiça e ampliar as formas de acesso à justiça, manifestando-se em duas principais vertentes: (a) o estímulo à utilização de meios de solução de questões e controvérsias diversos da solução adjudicada judicial, como a negociação, a conciliação e a mediação extrajudiciais, e a arbitragem; e o compartilhamento ou a transferência de (b) procedimentos ou (c) medidas, atos, fases ou institutos, cujo desenvolvimento era exclusivamente judicial, para órgãos ou agentes não judiciais" (A desjudicialização como diretriz do Processo Civil Brasileiro. In: MAIA, Benigna Araújo Teixeira, BORGES, Fernanda Gomes e Souza, HILL, Flávia Pereira, RIBEIRO, Flávia Pereira e PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. Acesso à Justiça: um novo olhar a partir do CPC de 2015. Londrina, PR: Thoth, 2021, p. 307. 12 GARGOLLO, Javier Arce. Arbitraje y función notarial. México: Librería Porrua, 2007, p. 42-43. 13 O enunciado foi proposto por Bruno Coêlho, que inclusive escreveu com Flávia Pereira Hill artigo nesta coluna sobre o tema: O papel das serventias extrajudiciais na justiça multiportas a partir do enunciado 707 do Fórum Permanente de Processualistas Civis. Disponível aqui. Acesso em 15 mai. 2022. 14 Enunciado nº 32 da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios, correspondente ao nº 125 se considerados os enunciados aprovados na I Jornada. 15 A harmonização de procedimentos e rotinas administrativas; gestão judiciária; a elaboração e adoção de estratégias para o tratamento adequado de processos coletivos e ou repetitivos, inclusive para a sua revenção;  e mutirões para análise do enquadramento de processos ou de recursos nas hipóteses em que há precedentes obrigatórios. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 "Em caso de desistência ou suspensão do processo judicial de usucapião para utilização da via extrajudicial, poderão ser aproveitados os atos processuais já praticados na via judicial". 19 Nesse sentido, foi concedido, em julho de 2021, alvará no Processo nº 1002882-02.2021.8.26.0318, da 3ª Vara Cível da Comarca de Leme - SP, para que fosse lavrada escritura pública de inventário e partilha de A.L., P.K. e A.S.K., apesar da existência de herdeiros menores. 20 Publicada no Diário da Justiça Eletrônico do Acre do dia 9/9/2021.
Desde que o Conselho Nacional de Justiça passou a divulgar os relatórios do "Justiça em Números", a execução civil - e aqui emprega-se a palavra em sentido amplo, abrangendo tanto o cumprimento de sentença quanto o processo de execução autônomo - tem sido vista como o maior problema do Judiciário Brasileiro. De fato, os dados da 17ª edição do Relatório Justiça em Números 2021 demonstram que, no primeiro grau de jurisdição, o Poder Judiciário contava com acervo de 75 milhões de processos pendentes de baixa no final de 2020, sendo que mais da metade desses processos (52,3%) era referente à referia à fase de execução1. A lei 14.195, sancionada em 26 de agosto de 20212, que trata da facilitação para abertura de empresas, entre outros temas do ambiente de negócios, também tratou de temas de direito processual civil e implementou uma mudança no Código de Processo Civil que pode modificar o cenário das execuções. Cuida-se da alteração promovida no art. 921 do Código. A nova lei antecipou o termo inicial do prazo para a consumação da prescrição intercorrente, o que significa que os processos de execução nos quais o credor não consegue encontrar o próprio devedor ou seus herdeiros, ou ainda, bens passíveis de expropriação, poderão se encerrar mais cedo. Caso reconhecida a prescrição intercorrente, o litígio será finalizado sem um fim efetivo, ou seja, sem o cumprimento da obrigação que deu origem ao litígio. O processo será considerado menos um para fins estatísticos, mas não terá sido útil e não terá realizado a justiça. É sobre esse problema que o singelo artigo deseja se debruçar. Sem maiores delongas, a prescrição intercorrente pode ser definida como a perda da pretensão de executar causada pela demora exagerada por parte do credor, autor da execução, para viabilizar, através da prática de atos processuais, o efetivo cumprimento da obrigação estabelecida no título executivo, que pode ser judicial (art.515 do CPC/2015) ou extrajudicial (art.784 do CPC/2015). Como é sabido, se o título executivo for judicial haverá o cumprimento de sentença (art.513 do CPC). Por outro lado, se for extrajudicial, haverá um processo de execução autônomo (art.771 do CPC). Tanto em um procedimento como no outro, encontrar o devedor ou os bens capazes de satisfazer a obrigação pode se transformar em uma verdadeira via crucis para o credor. Ainda assim, se o processo ficar paralisado em razão da inércia do credor, autor da execução, o art. 921 do CPC prevê a possibilidade do reconhecimento da prescrição intercorrente3. De acordo com as novas regras introduzidas pela lei 14.195, foi criada mais uma hipótese de suspensão do processo executivo. Antes da reforma legislativa, o inciso III, do art. 921, do CPC admitia a suspensão da execução quando o executado não possuísse bens penhoráveis. Após a reforma, o inciso III foi alterado para incluir a hipótese de suspensão da execução quando o próprio executado (e não apenas seus bens) não for localizado. A suspensão do processo, no entanto, não pode ocorrer por prazo indeterminado. Nessa direção, o CPC dispõe que o juiz suspenderá a execução pelo prazo de 1 ano, durante o qual se suspenderá a prescrição (art.921, §1, do CPC). Findo esse prazo sem a manifestação do credor/exequente, deve ter início a contagem do prazo da prescrição intercorrente, conforme estabelecem o art. 206-A, Código Civil4 e a Súmula 150 do STF5. Nessa direção, qual seria o termo inicial para a suspensão da execução pelo prazo de um ano, durante o qual também se suspenderá a prescrição? Segundo as mudanças introduzidas pela Lei nº 14.195/2021, o termo inicial foi antecipado. A partir da nova lei, ele corresponde ao dia em que o exequente teve ciência da primeira tentativa infrutífera de se encontrar o devedor ou seus bens (§4º, do art. 921 do CPC). Nessa hipótese, o processo e a prescrição poderão ficar suspensos, por uma única vez, pelo prazo máximo de 1 ano. Exaurido esse prazo, a prescrição intercorrente voltará a correr. Após a suspensão do processo pelo lapso temporal de 1 ano, o juiz deverá determinar a intimação das partes para que se manifestem no prazo de 15 dias (§5º). Nessa oportunidade, o credor poderá justificar o motivo da paralisação do processo. Após a manifestação das partes, não acolhida a justificativa, o juiz poderá reconhecer a prescrição intercorrente, proferindo sentença extintiva do processo, com resolução do mérito, fundamentada no inciso V, do art. 9246 do CPC. Antes mesmo da reforma do art. 921 do CPC, a prescrição intercorrente já vinha sendo o desfecho mais comum da execução civil brasileira. De acordo com os dados do CNJ, apenas 13% dos processos de execução atingem a satisfação do crédito perseguido, enquanto a taxa de congestionamento é de 87% em 20207. Isso significa que dentre 100 processos de execução apenas 13 terminam de maneira satisfativa.  Seguramente, com as modificações trazidas pela Lei nº Lei nº 14.195/2021, a prescrição intercorrente passará a eliminar mais rápido os processos parados a espera do devedor ou de seus bens. Esse triste desfecho diz muito sobre a forma como os operadores do direito têm tratado o processo de execução no Brasil: empurra-se o processo "com a barriga" até a consumação da prescrição intercorrente. Acostumados a essa lamentável realidade na qual os débitos não são honrados e as decisões judiciais não são cumpridas, os operadores desistem prematuramente de executar e, dessa forma, não se valem das inúmeras ferramentas processuais disponíveis para perseguir o devedor e os bens penhoráveis. Todos já ouviram falar da insolvência civil (arts. 743 a 748 do CPC/1973), da hipoteca judicial (art.495 do CPC/2015), da anotação premonitória (art. 828 do CPC/2015), do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts 133 a 137 do CPC/2015), da fraude à execução (art.792 do CPC/2015), mas, comumente, como não se debruçam sobre esses institutos nas faculdades de direito, raramente utilizam-se deles nos processos de execução. Quanto ao uso das ferramentas tecnológicas, na prática, os operadores de direito limitam-se ao uso do SISBAJUD, Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário, do RENAJUD, Sistema de Restrição Judicial sobre Veículos Automotores e do SERASAJUD, sistema que confere acesso ao Poder Judiciário à base de dados do SERASA S.A. No entanto, deixam de se valer de inúmeras outras ferramentas, muitas vezes por simples desconhecimento, outras pelo indeferimento judicial, uma vez que - em verdade - o Poder Judiciário também apresenta resistência em proceder para com a investigação patrimonial em colaboração com o credor/exequente. De acordo com Dierle Nunes e Tatiane Costa de Andrade, o uso efetivo da tecnologia pode auxiliar o credor na busca do devedor e de seus bens*. Atualmente, para além dos conhecidos SISBAJUD, RENAJUD e SERASAJUD, existe, pelo menos, outras 9 ferramentas de informação e outras 9 de busca patrimonial à disposição do credor, do Judiciário e dos órgãos públicos.   Entre as ferramentas de informação, pode-se citar (i) o SIEL, Sistema de Informações Eleitorais; (ii) a REDESIM, Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios; (iii) a INFOSEC, a Rede Nacional de Integração de Informação de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização; (iv) a CRC, a Central Nacional de Informações do Registro Civil; (v) a CENSEC, a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados; (vi) a CNIB, a Central Nacional de Indisponibilidade de bens;  (vii) o SREI, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis; (viii) a CENPROT, a Central Nacional de Serviços Eletrônicos dos Tabeliães de Protesto de Títulos; (ix) o E-NOTARIADO, Sistema de Atos Notariais Eletrônicos. Já entre as ferramentas de busca patrimonial propriamente ditas há (i) o SACI, o Sistema Integrado de Informações da Aviação Civil; (ii) o NAVEJUD, Sistema de Integração entre o Poder Judiciário e o SISGEMB, Sistema de Gerência de Embarcações; (iii) o SNCR, o Sistema Nacional de Cadastro Rural; (iv) o SPED, o Sistema Público de Escrituração Digital; (v) o CCS, o Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional; (vi) o Dossiê integrado da Receita Federal do Brasil; (vii) o COAF, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras; (viii) o SIMBA, o Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias. O desconhecimento e a falta de manejo dessas ferramentas processuais e tecnológicas, como já se destacou, é sintomática: revela, no mínimo, a apatia dos operadores do direito diante dos processos de execução. Definitivamente, não parecem dispostos a encarar a execução civil, preferindo aguardar - agora por menos tempo - a consumação da prescrição intercorrente. Realizar a execução no ordenamento jurídico brasileiro é uma atividade complexa e requer dedicação da comunidade jurídica. Enquanto o tema não receber o seu devido cuidado, sempre se terá uma atividade executiva insatisfatória, com processos subaproveitados, sem resultados, fadados a prematura extinção pelo decurso do tempo. __________ * NUNES, Dierle e ANDRADE, Tatiane Costa de. Recuperação de créditos. A virada tecnológica a serviço da execução por quantia certa. ISBN: 978-65.89904-05-2. Creative Commons, 2021. Disponível para download aqui. 1 Disponível aqui. Consultado em 28 set.2021. 2 Disponível aqui. Consultado em 01 ma.2022. 3 Art. 921 Suspende-se a execução: III - quando não for localizado o executado ou bens penhoráveis. (...) §4º O termo inicial da prescrição no curso do processo será a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis, e será suspensa, por uma única vez, pelo prazo máximo previsto no §1º deste artigo. §4º-A A efetiva citação, intimação do devedor ou constrição de bens penhoráveis interrompe o prazo de prescrição, que não corre pelo tempo necessário à citação e à intimação do devedor, bem como as formalidades da constrição patrimonial, se necessária, desde que o credor cumpra os prazos previstos na lei processual ou fixados pelo juiz. §5º O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição no curso do processo e extingui-lo, sem ônus para as partes. §6º A alegação de nulidade quanto ao procedimento previsto neste artigo somente será conhecida caso demonstrada a ocorrência de efetivo prejuízo, que será presumido apenas em caso de inexistência da intimação de que trata o §4º deste artigo. §7º Aplica-se o disposto neste artigo ao cumprimento de sentença de que trata o art. 523 deste código. 4 Art.206-A. A prescrição intercorrente observará o mesmo prazo de prescrição da pretensão, observadas as causas de impedimento, de suspensão e de interrupção da prescrição previstas neste Código e observado o disposto no art.921 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 - Código de Processo Civil. 5 Súmula 150 do STF: prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação. 6 Art. 924. Extingue-se a execução quando: (...) V - ocorrer a prescrição intercorrente. 7 Disponível aqui. Consultado em 01 de maio de 2022, f.169.
O mercado da construção civil no Brasil passou por alguns momentos de crise que acarretaram o ajuizamento de muitos pedidos de recuperação judicial. Em 2015, 253 construtorasi recorreram ao Judiciário para tentar viabilizar uma reestruturação. As dificuldades econômicas das empresas de grande porte deste segmento, sobretudo, ocasionaram um efeito dominó sobre as menores. A pandemia gerou necessidades de adaptação ou acomodação dos canteiros de obra, mas ao contrário do que se esperava inicialmente, o setor teve uma rápida recuperação e, em junho de 2020ii, já registrava um saldo positivo de contratações. Ainda assim, o mercado sinalizava a necessidade de maiores investimentos em obras de infraestrutura para uma retomada mais efetiva. A importância da construção civil para a economia brasileira é bastante significativa. Em 2021, o setor gerou mais de 284 mil postos de trabalho formais, o que representou 9% do total de empregos com registro neste ano no paísiii, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados divulgados pelo Ministério da Economia. Os dados do PIB divulgados pelo IBGEiv permitem, de certa forma, correlacionar o desempenho econômico do país e o setor da construção civil. No 3º trimestre de 2021, o PIB deste segmento[v] cresceu 3,9% em relação ao 2º trimestre deste ano. No acumulado de 2021, o PIB da construção subiu 8,8% e puxou o PIB Nacional para 5,7%. Diante desse cenário, em 13 de junho de 2020, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) expediu o Ato Normativo n. 17vi, o qual dispõe sobre a implantação de Regime Especial de Tratamento de Conflitos relativos à renegociação prévia, à recuperação empresarial, judicial e extrajudicial, e à falência ("RER") das empresas atingidas pelo impacto da pandemia. Essa normativa seguiu a mesma linha da Recomendação n. 58 de 2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)vii, que orientou o uso da mediação nos processos de recuperação empresarial e falências, tal qual alguns especialistas da área já defendiamviii. Assim, no contexto da crise econômica provocada pela pandemia, o TJ/RJ buscou impulsionar as chances de reestruturação das empresas com a melhoria das tratativas entre a devedora e seus credores por meio da mediação, em especial. No início de 2021, o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e Cidadania (NUPEMEC) do TJ/RJ, em parceria com a FGV Mediaçãoix, iniciou um projeto-piloto de mediação de conflitos relativos à Recuperação Empresarial e Falência da empresa OR. A construtora requereu ao Tribunal a instauração do RER que, de forma pioneira, foi aplicado ao mercado imobiliário. A FGV Mediação atuou na gestão e na mediação dos conflitos, com uma equipe multidisciplinar composta por profissionais de tecnologia da informação, mediadores e gestores de casos. Inicialmente, a OR definiu os processos de rescisão contratual a serem encaminhados ao RER e selecionou 4 SPEs (Sociedades de Propósito Específico) para serem abarcadas pelo Regime. A partir desta pauta de casos, a equipe da FGV organizou as sessões que ocorreram por meio da plataforma de videoconferência Microsoft Teams, fez as confirmações de comparecimento das partes e dos advogados na mediação on-line e auxiliou as pessoas que manifestaram alguma dificuldade no acesso à sessão virtual. Os facilitadores de conflitos utilizaram técnicas, notadamente de mediação, para estimular o diálogo e a criação de opções pelas partes, visando o desfecho do processo por uma autocomposição. A equipe de facilitadores que participou do RER da OR foi formada por mediadores judiciais cadastrados no TJ/RJ. Esses mediadores, alguns com vínculo com a FGV e outros indicados pelo próprio TJ/RJ, são profissionais imparciais, independentes, que atuam com o objetivo de melhorar o ambiente e fomentar uma comunicação produtiva entre as partes, com a perspectiva de incentivar a negociação e a construção de soluções que contemplem os interesses dos envolvidos, sem qualquer relação com a OR ou com os seus credoresx. Durante as sessões de mediação, a OR contou com uma equipe interna de advogados e integrantes capacitados para expor a situação da empresa e sanar dúvidas e questionamentos dos credores sobre as propostas de acordo apresentadas. Para apoio à sessão de mediação, os mediadores utilizaram a plataforma eNupemec, que foi desenvolvida no âmbito de um acordo de cooperação técnica entre o TJ/RJ e a FGV. A plataforma eNupemec, ilustrada na figura 1 abaixo, permite o controle de agendas pelos mediadores e gera atas de sessão padronizadas que agilizam o trabalho destes profissionais. É importante destacar a significativa contribuição da tecnologiaxi neste projeto, pois possibilitou a realização do RER mesmo durante o período crítico de isolamento social provocado pela pandemia no paísxii. Figura 1. Captura de tela do aplicativo da Plataforma eNupemec             O RER da OR abrangeu 82 processos que resultaram em 160 sessões de mediação on-line, realizadas no período de fevereiro a maio de 2021. A adesão das partes ao projeto foi bastante significativa, com registro de 86% de participação dos advogados dos credores nas sessões e formalização de 31 acordos. O TJRJ realizou uma pesquisaxiii para avaliar a satisfação dos participantes (partes e advogados) nas sessões de mediação. O Tribunal identificou que 100% dos entrevistados consideraram o atendimento cordial e atencioso; e 98,2% dos entrevistados afirmaram que se sentiram respeitados e ouvidos pelo mediador. Esses resultados apontam como a mediação e outras formas de resolução adequada de conflitos podem contribuir significativamente com este mercado e permitir a continuidade da atividade de outras incorporadoras/construtoras a partir da estruturação de um ambiente de diálogo profícuo entre a empresa e seus credores. A participação de mediadores ou terceiros facilitadores tem, justamente, o escopo de auxiliar nessa interação, muitas vezes já bastante desgastada pelo decorrer do tempo - quando as tratativas diretas entre as partes não conseguem mais produzir avanços. A atualização da legislação de recuperação e falênciaxiv, efetuada pela lei 14.112 de 2020, estimula de forma ainda mais contundente projetos como esse RER, tendo em vista assegurar a manutenção de empresas viáveis e proporcionar maior celeridade, redução dos custos com o litígio, confidencialidade e diminuição de incertezas quanto ao resultado. A referida lei adicionou os artigos 20-A a 20-D na lei 11.101 de 2005, com o escopo de regular as sessões de mediação e conciliação antecedentesxv ou incidentais aos processos de recuperação e falência, bem como estimular a autocomposição coletiva entre devedor e credores no âmbito dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs). O artigo 20-D reforça a possibilidade das sessões de conciliação e mediação serem realizadas em ambiente digitalxvi, com o objetivo de conferir ainda maior agilidade e praticidade às tratativas entre a empresa devedora e seus credores. A II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Conflitosxvii promovida pelo Conselho da Justiça Federalxviii aprovou alguns enunciados que tratam especificamente sobre este tema. O enunciado 222 determina que o juiz incentivará, com o auxílio do administrador judicial, a desjudicialização da crise empresarial, seja nos processos de recuperação judicial ou extrajudicial, como forma de encontrar a solução mais adequada ao caso e, com isso, concretizar o princípio da preservação da atividade viável. Na mesma linha, o enunciado 202 estabelece que na mediação antecedente à recuperação judicial, a empresa devedora e seus credores são livres para estabelecer a melhor composição para adimplemento das obrigações. O enunciado 201 acresce que não cabe ao mediador julgar a existência, exigibilidade e legalidade do crédito. Assim, diante deste quadro de novidades normativas e com os resultados positivos gerados pela solução consensual dos conflitos, tanto para a empresa em dificuldade econômico-financeira quanto para os seus credores, a expectativa é que iniciativas como o projeto do RER da OR possam ser replicadas em outros Tribunais com outras incorporadoras/construtoras que estejam em contexto de reestruturação, considerado o impacto significativo do ramo da construção civil na economia e na geração de empregos no país. ___________ i Crise leva 253 empreiteiras à recuperação judicial. Época Negócios, 27 set. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2022. ii Na crise, construção sofreu menos do que esperava. Mas "ressaca" da economia preocupa o setor. Gazeta do Povo, Economia, 21 ago. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2022. iii ABRAINC. Construção civil cria 17,2 mil empregos com carteira assinada em outubro. No acumulado do ano, setor abriu 284.544 postos de trabalho formais, o que representa 9% do total gerado no Brasil em 2021, 30 nov. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 6 abr. 2022. iv Cf. Disponível aqui. Acesso em: 30 mar. 2022. v ABRAINC. PIB da Construção cresce 3,9% no 3º trimestre e acumula alta de 8,8% no ano, 2 dez. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 6 dez. 2021. vi TJRJ. Ato Normativo n. 17 de 23 de junho de 2020. Dispõe sobre a implantação de projeto de Regime Especial de Tratamento de Conflitos relativos à renegociação prévia, à recuperação empresarial, judicial e extrajudicial, e à falência das empresas atingidas pelo impacto da pandemia COVID-19. Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2022. vii CNJ. Recomendação Nº 58 de 22/10/2019. Recomenda aos magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de varas especializadas ou não, que promovam, sempre que possível, o uso da mediação. Disponível aqui. Acesso em: 7 mar. 2022. viii Cf. LONGO, Samantha Mendes. TJ-RJ incentiva acordos com mediação online. Estadão, Política, 27 mar. 2019. Disponível em . Acesso em: 5 mar. 2022. ix FGV e TJRJ inauguram projeto de mediação voltado à recuperação de empresas. Portal FGV, 23 fev. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2022. x Cf. SCHMIDT, Gustavo da Rocha; BUMACHAR, Juliana. Como a mediação pode ajudar a recuperação de empresas em dificuldade. Migalhas, Migalhas de Peso, 20 mai. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 mar. 2022. xi Cf. BRAGANÇA, Fernanda. Justiça digital: Implicações sobre a proteção de dados pessoais, solução on-line de conflitos e desjudicialização. Londrina: Editora Thoth, 2021.  xii Cf. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A mediação on line e as novas tendências em tempos de virtualização por força da pandemia de Covid-19. Disponível aqui. Acesso em: 7 mar. 2022. xiii Cf. TJRJ. Mediações do eNupemec têm aprovação dos usuários, 14 abr. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2022. xix Cf. SALOMÃO, Luis Felipe; COSTA, Daniel Carnio. Revolução na insolvência empresarial. Estado de São Paulo, Opinião, 4 dez. 2020. Disponível aqui. Acesso: 7 mar. 2022. xv COSTA, Daniel Carnio. Conciliações e mediações antecedentes: O sistema brasileiro de pré-insolvência empresarial. Migalhas, Insolvência em Foco, 28 set. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 1 abr. 2022. xvi Disponível aqui. Acesso em: 6 mar. 2021.  xvii Cf. ANDRADE, Juliana Loss; BRAGANÇA, Fernanda. DYMA, Maria Fernanda. Mediação online: evolução, tecnologia e desafios de acessibilidade. In: VIEIRA, Amanda de Lima et al (Coords.). Coletânea Estudos sobre Mediação no Brasil e no exterior, v. 3. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2020, pp. 163 -174. xviii CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Brasília: CJF, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 3 abr. 2022. xiv Cabe destacar que a I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Conflitos do Conselho da Justiça federal, ocorrida em 2016, já tinha aprovado o enunciado n. 45, o qual reforçou a compatibilidade da mediação e da conciliação com a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. xx Cf. CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Brasília: CJF, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 3 abr. 2022.  
Ação monitória foi introduzida no sistema processual brasileiro pela lei 9.079/95, a qual inseriu as letras A a C, no art. 1.102, do CPC/73, sendo repaginada e modernizada através das mudanças trazidas pelo de CPC/15. Dentro desse contexto legal hodierno, foram incluídas normas que ratificam enunciados de algumas súmulas do STJ (282, 292, 399) e entendimentos jurisprudenciais dominantes na vigência do CPC/73, bem como trouxe novas diretrizes procedimentais em harmonia com as normas fundamentais processuais, sintonizadas com os princípios da primazia do mérito, da cooperação, da boa-fé e da efetividade processual. A ação monitória, que se processa pelo procedimento especial, constitui-se num meio adequado para que o credor possa, de forma mais célere e desburocratizada, alcançar o adimplemento do seu direito de crédito através da emissão de uma ordem judicial de pagamento direcionada ao devedor. Em caso de descumprimento, o credor, por via oblíqua, obterá a formação do título executivo judicial, sem passar pelas morosas fases do procedimento comum.  Ou seja, o objetivo principal do credor, ao propor a ação monitória, é alcançar a efetivação da obrigação assumida pelo devedor e, de forma subsidiária, criar o título executivo judicial e buscar a satisfação através das medidas judiciais executivas1. A cognição inicial da ação injuntiva está voltada para analisar a idoneidade do conteúdo da prova documentada, momento em que o juiz, ao fazer a sua valoração sumária, irá se manifestar sobre a probabilidade da existência do direito de crédito.  Em caso de evidência desse direito, será determinada a expedição do mandado monitório contendo a ordem de pagamento de uma obrigação de pagar, de entregar coisa móvel ou imóvel (fungível ou infungível); de fazer ou não fazer (art. 700, CPC). Se o devedor não cumprir voluntariamente essa ordem dentro do prazo legal (15 dias) ou não apresentar sua defesa (embargos monitórios), o mandado monitório será convertido automaticamente em título executivo judicial (art. 701, §2º, CPC), independentemente de qualquer formalidade. É importante registrar que a leitura da redação do art. 700 deve ser conjugada com o teor do art. 785 que permite o empoderamento do credor, portador de um título executivo extrajudicial, de optar pelo processo de conhecimento para obter a formação de um título executivo judicial, podendo utilizar, inclusive, a ação monitória para alcançar esse objetivo2, cuja faculdade já era permita na vigência do CPC/73, por meio do entendimento jurisprudencial do STJ (Informativo 495/12)3. Diante dessa nova norma processual do art. 785, do CPC, extrai-se um novo conceito do instituto da ação monitória, mais amplo do que o previsto na redação do art. 700.  Portanto, pode-se considerar a ação monitória como meio adequado para o credor buscar a proteção e reconhecimento do seu direito de crédito de forma menos burocratizada, cujo direito poderá estar fundamentado num título executivo extrajudicial ou numa prova escrita sem eficácia de título executivo.4 Para a utilização desse procedimento especial, com vistas à obtenção da ordem de pagamento por meio de um mandado monitório, é preciso que sejam atendidos os seguintes requisitos: a) o devedor deve ser plenamente capaz; b) o autor deve ser portador de uma prova escrita (documental ou documentada); c) demonstração da verossimilhança da alegação autoral quanto à existência do direito de crédito que contenha uma obrigação líquida e exigível. Presentes tais requisitos, o magistrado, em decisão fundamentada, concederá a tutela de evidência sem a prévia ouvida da parte contrária (art. 9º, parágrafo único, III, CPC), expedindo o mandado monitório contendo a ordem de pagamento (art. 701, CPC). Feitas essas breves considerações iniciais, passa-se a perquirir sobre a utilização da ação monitória no âmbito da Fazenda Pública. Como dito anteriormente, muitas mudanças foram trazidas para a ação monitória através da lei 13.105/15 e dentre elas estão as normas que se referem à Fazenda Pública, inclusive, ratificando o enunciado contido na súmula 339, passando a ser previsto no art. 700, § 6º, CPC, autorizando a propositura da ação monitória em face da Fazenda Pública, essa considerada a União, os Estados, o DF, os municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas.  Por outro lado, os respectivos entes públicos também poderão propor a ação monitória em face dos particulares para buscar a satisfação do seu direito de crédito. A presença da Fazenda Pública na ação monitória gera alguns questionamentos polêmicos que merecem destaques para gerar debates propícios a uma interpretação sistematizada com outros dispositivos legais presentes na norma processual civil. Primeiramente, traz-se aqui reflexões sobre a competência do juízo quando a parte for a Fazenda Pública, em que devem ser observadas as regras de competência absoluta quanto ao critério da pessoa. A ação monitória deverá proposta na justiça Federal (art. 109, I, CF/88 e art. 45, CPC) ou na justiça estadual, na vara especializada determinada pelo regimento interno de cada Tribunal de Justiça (art. 44, CPC), quando se tratar de Estado ou Município e suas respectivas autarquias. Também devem ser respeitadas as regras de competência de foro previstas nos arts. 51 e 52, do CPC. O segundo ponto a ser trazido para análise é quanto à possibilidade da aplicação do art. 785, do CPC quando a Fazenda Pública for a credora do título executivo extrajudicial, representado pela certidão da dívida ativa por ela criado (art. 784, IX, CPC). A doutrina apresenta ferrenha divergência sobre esse tema. Marcato (2016) afirma que não há razão para a Fazenda Pública utilizar a faculdade prevista no art. 785 diante das várias prerrogativas processuais que possui através das normas previstas na lei de execução fiscal5.  Em sentido contrário, está a interpretação de Cunha (2019), ao afirmar que a Fazenda Pública poderá renunciar a inscrição do crédito em dívida ativa e optar pela propositura da ação monitória para obter a formação de um título executivo judicial.6 Diante dessa inovação processual, o STJ, através da 2ª turma (REsp 1748849 SP 2018), manifestou-se no sentido de que é possível que a Fazenda Pública possa se utilizar da facultatividade na escolha entre o processo de execução fiscal ou processo de conhecimento pela via da ação monitória7. Todavia, os pontos mais emblemáticos e que necessitam de profundas e cautelas reflexões estão voltados quando a Fazenda Pública for o sujeito passivo da ação monitória. A lei processual civil traz somente duas normas que tratam desse assunto: a possibilidade da sua propositura (art. 700,6º) e a incidência da remessa necessária na decisão que expede o mandado monitório (art. 701, §4º).  Percebe-se, então, que essas normas são insuficientes para acobertar outras situações processuais da ação monitória proposta em face da Fazenda Pública. Por isso, faz-se imprescindível expor algumas considerações para que se busque alcançar, através de uma intepretação sistemática, a intenção do legislador. O primeiro ponto reflexivo está na seguinte indagação: ao ser deferida a petição inicial da ação monitória proposta em face da Fazenda Pública, com a concessão do mandado monitório, a citação do ente público será para cumprir, desde logo, a ordem de pagamento ou apenas para apresentar os embargos monitórios? Terá a Fazenda Pública o mesmo tratamento isonômico dado a um particular quando estiver no polo passivo? Para alcançar a resposta, é preciso buscar uma analogia com os dispositivos presentes no capítulo de processo de execução (art. 910, CPC) e de cumprimento de sentença (art. 535, CPC) em face da Fazenda Pública. Pelos dispositivos legais referenciados, a Fazenda Pública será, respectivamente, citada e intimada, para apresentar os embargos à execução ou apresentar impugnação ao cumprimento de sentença. Verifica-se, por conseguinte, que dentro das normas processuais que regem a tutela executiva em face da Fazenda Pública, o legislador concedeu-lhe tratamento diferenciado, notificando-a para ofertar a sua resistência à tutela executiva, sem qualquer comando de ordem de pagamento. Ainda que o credor seja portador de um título executivo que contém a certeza plena do seu direito de crédito, a satisfação desse direito ficará suspensa, aguardando as atitudes da Fazenda Pública, que poderá ou não resistir. De tal modo, se essa prerrogativa processual foi concedida para a Fazenda Pública quando estiver no polo passivo de uma execução, quanto mais numa ação monitória, em que a prova que a fundamenta pode não ter a eficácia executiva e o mandado monitório passa apenas por uma cognição sumária de verossimilhança da existência do direito de crédito. Portanto, pela interpretação sistemática de tais arts. e pela redação do art. 701, §4º, é razoável entender que a citação do ente público não será diretamente para pagar, mas para apresentar, querendo, os embargos monitórios8. Com isso, a eficácia do mandado monitório ficará suspensa, aguardando o escoamento do prazo de 30 dias para a Fazenda Pública embargar, aplicando-se a prerrogativa do prazo em dobro previsto no art. 183, CPC. Concluindo-se que o mandado monitório será anômalo para a Fazenda Pública, ou seja, a ordem de pagamento estará sob a condição suspensiva, aguardando o comportamento de inércia ou de apresentação de embargos monitórios, surge uma outra indagação diante da redação do art. 701, do CPC: Quando a Fazenda Pública ficar inerte, o juiz arbitrará os honorários de 5% ou será aplicada a tabela contida no art. 85, § 3º, inserida pelo CPC? Para responder a esse questionamento, faz-se necessário refletir primeiramente qual o intuito desse arbitramento dos honorários advocatícios, logo no despacho inicial.  Estimular o réu a atender de imediato o mandado monitório, realizando o pagamento da quantia e evitar sua majoração posterior? Ou servir como sanção por não ter resolvido extrajudicialmente seu débito? Sob a perspectiva da natureza híbrida da ação monitória, por possuir características de tutela cognitiva na sua fase inicial, na análise da evidência do direito de crédito, bem como de tutela executiva ao determinar a ordem de pagamento, verifica-se que o arbitramento inicial dos honorários advocatícios será um adiantamento da sucumbência, em caso de inércia do réu e uma sanção pelo não pagamento voluntário na seara extrajudicial. Assim, quando é deferida essa tutela de evidência, contendo uma ordem de pagamento para o devedor, há, nessa decisão, um conteúdo obrigacional que será acrescido de honorários advocatícios no percentual de 5%, valor fixo, determinado pelo legislador.  Por isso, entende-se, aqui, que essa omissão do legislador quanto ao valor dos honorários da ação monitória proposta em face da Fazenda Pública, leva à uma interpretação sistemática com a regra específica prevista no citado art. 85, §3º, cujo percentual dos honorários irá variar com base no valor líquido contido no comando judicial.  No bojo desse dispositivo legal consta que nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários deverá ocorrer de forma diferenciada, a depender do valor constante na decisão de conteúdo condenatório. Portanto, ficando inerte a Fazenda Pública, ou seja, não apresentando os embargos monitórios, o mandado monitório será convertido em título executivo judicial contendo o acréscimo dos honorários advocatícios, não na base do art. 701, mas com fulcro no art. 85, §3º, ambos do CPC9. Outro ponto que também merece destaque é a análise da remessa necessária na ação monitória. O art. 702, §4º prevê que se houver omissão da Fazenda Pública pela não apresentação dos embargos monitórios, deverá ser realizada a remessa necessária da decisão que concedeu a ordem de pagamento, salvo se for caso de dispensa prevista nos §§ 3º e 4º, do art. 496, CPC, possibilitando, nesse caso, a realização imediata do cumprimento de sentença. Todavia, a aplicação da remessa necessária não poderá ficar restrita somente quando houver omissão da Fazenda Pública. A interpretação deve ser ampla, observando-se o conteúdo do art. 496, do CPC. Se o ente público for réu da ação monitória e apresentar os embargos monitórios, caso sejam esses julgados improcedentes, a sentença que lhe for desfavorável deverá ser objeto da remessa necessária, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 496, caput, II, CPC. O mesmo entendimento deve ser visto quando a Fazenda Pública for parte autora e o réu apresentar embargos monitórios. Se os embargos forem julgados procedentes, o resultado impedirá que o ente público obtenha a efetividade do seu direito de crédito, aplicando-se a redação do art. 496, caput, I, CPC10. Em ambas as situações, poderá ser afastada a regra da remessa necessária se recaírem nas exceções previstas no § 3º, ou seja, o valor da obrigação ou do proveito econômico for até o teto legal, a depender do ente público ou; no §4º, quando a decisão judicial estiver em harmonia com os precedentes judiciais previstos nos seus incisos.  Por outro lado, quando a Fazenda Pública ajuizar a ação monitória e for extinta sem resolução de mérito, há julgados no sentido de que não deve ser aplicada remessa necessária do art. 496, do CPC, tendo em vista que não houve qualquer prejuízo para o ente público11. Não sendo caso de remessa necessária ou havendo a remessa necessária com resultado de confirmação da tutela de evidência, o mandado monitório será convertido em título executivo judicial, cujo cumprimento do título seguirá o rito previsto nos arts. 534 e 535 do CPC12. Dentro desses imbróglios, observa-se que a aplicabilidade da ação monitória em face da Fazenda Pública deverá ser objeto de estudos mais profundos, com interpretação prudente, observando-se todas as normatizações específicas que envolvem o ente público, sendo normas cogentes, pautadas no interesse público13. _____ 1 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/15. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021. 2 Nesse sentido, o enunciado 446 do FPPC se pronuncia afirmando que "cabe ação monitória mesmo quando o autor for portador de título executivo extrajudicial".  Acompanha esse mesmo entendimento, o Enunciado 101, da I Jornada de Direito Processual Civil, do CJF: "É admissível ação monitória, ainda que o autor detenha título executivo extrajudicial". 3 Na espécie, o tribunal de origem entendeu que o autor era carecedor de interesse de agir por inadequação da via eleita, uma vez que, sendo possível o procedimento executório de títulos extrajudiciais (notas promissórias), descaberia a via da ação monitória. No entanto, assim como a jurisprudência do STJ é firme quanto à possibilidade de propositura de ação de conhecimento pelo detentor de título executivo - não havendo prejuízo ao réu em procedimento que lhe faculta diversos meios de defesa -, por iguais fundamentos o detentor de título executivo extrajudicial poderá ajuizar ação monitória para perseguir seus créditos, ainda que também o pudesse fazer pela via do processo de execução. Precedentes citados: REsp 532.377-RJ, DJ 13/10/03; REsp 207.173-SP, DJ 5/8/2002; REsp 435.319-PR, DJ 24/3/03, e REsp 210.030-RJ, DJ 4/9/00. REsp 981.440-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 12/4/12. 4 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/15. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021. 5 MARCATO, Antônio Carlos. Procedimentos especiais. 16ª edição. Atlas. São Paulo. 2016. 6 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 16ª edição. Editora Gen Forense. Rio de Janeiro. 2019. 7 PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA PELA FAZENDA PÚBLICA. COBRANÇA DE CRÉDITO FISCAL NÃO TRIBUTÁRIO. MULTA DE TRÂNSITO. POSSIBILIDADE. INTERESSE DE AGIR CARACTERIZADO. 1. Caso em que o Tribunal de origem entendeu inexistente o interesse de agir na pretensão do Município consubstanciada na cobrança das infrações de trânsito praticadas pelo particular, por meio da Ação Monitória. 2. O STJ entende que não se verifica prejuízo para o direito de defesa com a escolha do rito da Ação Monitória, que é mais demorado que o rito da Ação de Execução de Título Extrajudicial. precedentes: REsp 1281036/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 24/05/2016; AgRg no AREsp 148.484/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 28/5/2012; AgRg no REsp 1.209.717/SC, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 17/9/2012. 3. Nesse sentido, o enunciado 446 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: "Cabe ação monitória mesmo quando o autor for portador de título executivo extrajudicial". Ainda, o enunciado 101 da I Jornada de Direito Processual Civil, do Conselho da Justiça Federal: "É admissível ação monitória, ainda que o autor detenha título executivo extrajudicial". 4. A Fazenda Pública pode valer-se da execução fiscal para os créditos fiscais (tributários ou não tributários) decorrentes de atividade essencialmente pública. Os referidos créditos devem ser inscritos em dívida ativa, a fim de possibilitar o ajuizamento da Execução Fiscal. Contudo, não ha impedimento para que a Fazenda Pública, em vez de inscrever o crédito em dívida ativa, proponha Ação Monitória, desde que possua prova escrita do crédito, no intuito de obter título judicial e promover, em seguida, o cumprimento de sentença. Isso porque quem dispõe de título executivo extrajudicial pode, mesmo assim, propor ação monitória. 5. Recurso Especial provido. (STJ - REsp: 1748849 SP 2018/0147055-0, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 4/12/18, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/12/18). 8 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/15. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021. 9 AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. DOCUMENTOS HÁBEIS A PROVAR A DÍVIDA COBRADA. JUROS DE MORA. Apela o Município réu da sentença que julgou procedente o pedido, para converter o mandado inicial em mandado executivo. O contrato de execução de serviços e a nota fiscal que instruem a petição inicial constituem prova escrita sem eficácia de título executivo, ou seja, exatamente o requisito exigido pelo Código de Processo Civil para quem pretende o pagamento de quantia em dinheiro mediante o ajuizamento de ação monitória. Rejeita-se, pois, a preliminar de carência da ação. No mérito, não há como descaracterizar a mora do apelante com base nos fragilíssimos argumentos de que a apelada não foi receber o valor devido, nem informou a conta para depósito. A incidência dos juros de mora está expressamente prevista tanto no contrato de execução de serviços quanto no Edital de Licitação. Não se pode isentar o apelante dos encargos moratórios previstos no contrato por ele livremente celebrado, pois isso daria ensejo ao enriquecimento ilícito do Município em detrimento da empresa que lhe prestou serviços. A verba honorária foi fixada nos percentuais mínimos do art. 85, § 3º do CPC, de modo que não há motivo para excluí-la, nem para reduzi-la. Recurso desprovido, nos termos do voto do desembargador relator. (TJ-RJ - APL: 00241538620158190028, Relator: Des(a). RICARDO RODRIGUES CARDOZO, Data de Julgamento: 09/03/2021, DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 15/03/2021).REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. DÉBITO COMPROVADO E PARCIALMENTE RECONHECIDO. PAGAMENTO EXIGÍVEL. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS EM CONFORMIDADE COM O LIMITE LEGAL. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. 1) Fundada a ação monitória contra a Fazenda Pública em documentos idôneos e hábeis à comprovação da relação contratual estabelecida entre as partes, inclusive com o reconhecimento de parte do débito, inarredável a obrigação de pagamento, sob pena de caracterizar enriquecimento ilícito por parte da Administração Pública; 2) Nas ações em que a Fazenda Pública for vencida, os honorários sucumbenciais devem ser estabelecidos de acordo com os critérios previstos no art. 85, § 3º, incisos I a V, do CPC, não se cogitando a possibilidade de redução quando observados os limites legais. 3) Reexame necessário não provido e apelo voluntário prejudicado. (TJ-AP - REO: 00087443020178030001 AP, Relator: Desembargador ROMMEL ARAÚJO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 09/04/2019, Tribunal). 10 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/15. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021. 11 REEXAME NECESSÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO. AÇÃO MONITÓRIA AJUIZADA PELA FAZENDA PÚBLICA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. DESCABIMENTO DO REEXAME NECESSÁRIO. Não há reexame necessário de sentença que, em ação monitória ajuizada pela Fazenda Pública, julga extinto o processo, sem exame de mérito. Exegese do art. 496 do NCPC/2015.REEXAME NECESSÁRIO NÃO CONHECIDO. (TJ-RS - REEX: 70072259716 RS, Relator: Eduardo Uhlein, Data de Julgamento: 09/08/2017, Quarta Câmara Cível, Data de Publicação: 31/08/2017). 12 EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO MONITÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA - IMPUGNAÇÃO - AUSÊNCIA - CONSTITUIÇÃO DE PLENO DIREITO O TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL - OBRIGAÇÃO DE PAGAR QUANTIA CERTA - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA (ARTIGOS 534 E 535 DO CPC) - IMPOSSIBILIDADE DE PAGAMENTO VOLUNTÁRIO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Não apresentados os embargos à ação monitória, constituir-se-á de pleno direito o título judicial, devendo o credor apresentar memória de cálculo e requerer o cumprimento da sentença por quantia certa contra a Fazenda Pública, a qual poderá impugnar a execução no prazo de trinta dias, e, eventual débito ser quitado por meio de precatório ou requisição de pequeno valor, conforme o caso, nos termos dos artigos 534 e 535 do Código de Processo Civil.(TJ-MG - AC: 10352160066994001 MG, Relator: Edilson Olímpio Fernandes, Data de Julgamento: 26/3/19, Data de Publicação: 5/4/19) 13 NEJAIM, América Cardoso Barreto Lima, Aspectos Polêmicos da Ação Monitória à luz do CPC/2015. Artigo publicando na coletânea Processo Civil. Temas Contemporâneos. Coordenadores: CAMPOS, Eduardo Rezende; LONGEN, Israel; ARAÚJO, João Pedro Rocha. Editora Contemplar. Campo Grande, 2021.
Nas primeiras décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a transição democrática, o foco dos estudos sobre o acesso à justiça foi direcionado para a compreensão das formas de contornar os óbices para o acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário. Com isso, fortaleceu-se a visão de que o Estado-juiz seria o destinatário natural do pleito de realização dos direitos, ocupando uma posição central - em verdade, praticamente solitária - no nosso sistema de justiça. Em linhas gerais, os esforços envidados foram frutíferos, tendo o jurisdicionado logrado acessar o Poder Judiciário, o que resta comprovado claramente a partir do relatório "Justiça em Números" de 2021, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, que revela haver, nos tribunais brasileiros, aproximadamente 75 milhões de ações judiciais em curso, bem como uma taxa de congestionamento bruta em torno de 73%1. Reconhece-se que esse cenário ocasionou diversos problemas que estão mutuamente relacionados, entre os quais a morosidade e a perda de credibilidade na efetividade da jurisdição estatal2. Contudo, no século XXI, constata-se que o acesso à justiça ganha, paulatinamente, novas e multifacetadas dimensões, sendo insuficiente restringir a sua acepção ao ingresso nos tribunais pátrios. Torna-se imperioso agregar, ao menos, as acepções de prevenção de conflitos (valorização do paradigma do diálogo, da participação democrática no sistema de justiça e da racionalização da prestação jurisdicional estatal) e de identificação da melhor forma de solucioná-los, voltando-se para outros métodos adequados de solução de controvérsias. Nesse contexto, o princípio da adequação emerge como o principal critério norteador da escolha do método mais apto para a solução de dado litígio3. O termo multi-door courthouses, que inspirou a noção de "Justiça Multiportas" discutida no Brasil, é oriundo dos estudos do professor Frank Sander que, ao participar da Pound Conference em 1976, em Washington, tratou do tema Varieties of dispute processing4. É importante deixar claro que o objetivo imediato e primário da Justiça Multiportas não consiste em conter o número de demandas judicializadas, ou seja, reduzir a sobrecarga do Poder Judiciário ou dificultar o acesso a ele. Em verdade, a construção de um sistema de justiça plural, composto por diversas "portas", ou seja, por diferentes métodos adequados de solução de conflitos, busca primariamente garantir o acesso à justiça em sua acepção mais ampla e democrática, dar tratamento adequado às necessidades sociais e garantir a efetivação do direito em tempo razoável e sob o pálio das garantias constitucionais do processo. O volume de processos em tramitação perante o Poder Judiciário tende a declinar, naturalmente, à medida que os demais métodos de resolução de conflitos - as demais "portas" do sistema de justiça - passem a ser mais frequentemente utilizados, sempre que se mostrarem mais adequados comparativamente com a jurisdição estatal. Trata-se de uma profunda reorganização do sistema de justiça, em que se ultrapassa o protagonismo solitário do Poder Judiciário para se alcançar o coprotagonismo entre diferentes atores por meio de variados métodos de solução de conflitos, como sinal de relevante amadurecimento democrático no processo. É nesse contexto que deve ser estudado o sistema multiportas: um conjunto plural e coordenado de diferentes métodos voltados ao oferecimento da solução mais adequada (justa e em tempo razoável) para cada espécie de conflito que venha a emergir na sociedade contemporânea. Até o momento, os métodos heterocompositivos, notadamente a jurisdição estatal e a arbitragem, bem como os métodos autocompositivos, especialmente a negociação, a conciliação e a mediação, contam com estudos de fôlego que investigam os seus papéis.5 O artigo 3º do Código de Processo Civil de 2015, por seu turno, representou um grande avanço sobre o tema ao elevar ao status de norma fundamental a autocomposição como método prioritário de resolução de conflitos, em detrimento da heterocomposição. Assim, a norma passou a exortar juízes, advogados públicos e privados, defensores públicos, membros do Ministério Público e todos os demais componentes do sistema de justiça a voltar os olhos para a noção de Justiça Multiportas e buscar a via mais adequada diante dos casos concretos que analisam. Por outro lado, menos estudada, em comparação com as vias antes mencionadas, é a atuação das serventias extrajudiciais no sistema de justiça. Figurando como delegatárias de serviços públicos, as serventias extrajudiciais se consolidaram, a partir do disposto no artigo 236 da Constituição Federal de 1988, como coprotagonistas do sistema de justiça em um paradigma democrático, estando credenciadas a desempenhar atividades até então centralizadas no Poder Judiciário e contribuindo, assim, para a evolução do fenômeno da desjudicialização e para a consolidação da Justiça Multiportas em nosso país. Reconhecendo a atualidade e a relevância do tema, o Fórum Permanente de Processualistas Civis aprovou, em sua mais recente edição, realizada em março de 2022, enunciado tratando do assunto, com o seguinte texto: Enunciado 707 - (art. 3º, § 3º; art. 151, caput, parágrafo único, da lei 14.133/2021) A atuação das serventias extrajudiciais e dos comitês de resolução de disputas (dispute boards) também integra o sistema brasileiro de justiça multiportas. (Grupo: Práticas não jurisdicionais de solução de conflito) Trata-se de enunciado precursor e paradigmático, pois reconhece expressamente, pela primeira vez, as serventias extrajudiciais como uma das "portas" do sistema de justiça brasileiro e, consequentemente, possui o condão de abrir novas perspectivas de incremento do acesso à justiça na contemporaneidade. Em primeiro lugar, insere-as no contexto de cooperação, colaboração e coordenação mútuos entre os diferentes componentes da Justiça Multiportas6, colocando em relevo a necessidade premente de fortalecimento de um canal permanente de diálogo com Poder Judiciário, Ministério Público, Advocacia Pública e Privada. De igual modo, as serventias extrajudiciais consolidam-se como entes cooperantes para os fins previstos no artigo 1º, inciso II, da Resolução 350 do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre a cooperação jurídica interinstitucional enquanto espécie de cooperação judiciária nacional, o que, a propósito, foi reconhecido no Enunciado nº 125 da II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios promovida pelo Conselho da Justiça Federal7. Dessa forma, as serventias extrajudiciais podem cooperar com o Poder Judiciário para a prática dos diferentes atos indicados, exemplificativamente, no artigo 6º da referida Resolução, tais como atos de comunicação, instrução probatória, efetivação de medidas e providências referentes a práticas consensuais de resolução de conflitos, entre outros. A atuação coordenada e conjunta entre Poder Judiciário e serventias extrajudiciais tem o potencial de incrementar a efetividade e a celeridade processuais, tendo em vista que estas últimas prestam serviço público em caráter privado, ou seja, atuam com a dinamicidade típica da iniciativa privada, mas sob a fiscalização permanente do Poder Judiciário. Contudo, para que se extraiam todas as potencialidades decorrentes da previsão contida no Enunciado 707 do FPPC, faz-se necessário aprofundar os estudos sobre o regime jurídico que rege a atuação das serventias extrajudiciais, estruturado a partir do artigo 236 da CRFB/1988. Trata-se de interdisciplinar, que depende do necessário diálogo entre fontes, congregando Direito Processual Civil e Direito Notarial e Registral. Com efeito, por força do disposto no art. 236, §1º, da Constituição Federal, em 18 de novembro de 1994 foi publicada, com vigência imediata, a lei 8.935 estabelecendo, em seu artigo 1º, que os "serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos". Características essenciais do regime jurídico norteador das atividades notariais e registrais, tais como, a título meramente ilustrativo, o controle externo pelo Poder Judiciário, a publicidade como regra (resguardado o segredo de justiça previsto em lei), a previsibilidade do procedimento e a territorialidade (em diferentes graus) são relevantes para a correta compreensão da atuação desse componente do sistema de justiça e para que dele se extraiam todas as suas potencialidades8. Outro ponto relevante sobre as serventias extrajudiciais é a sua capilaridade, estando presentes em todos os municípios brasileiros, por força do artigo 44, §2º, da lei Federal 8.935/1994, o que tem a aptidão para levar o efetivo acesso à justiça aos rincões mais distantes de nosso país continental. De acordo com o relatório "Cartórios em Números", publicado pela ANOREG-BR, existem 13.440 serventias extrajudiciais no Brasil, quantidade superior à de lotéricas, agências dos correios e igrejas.9 Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça, através da Corregedoria Nacional de Justiça, criou a Coordenadoria de Gestão de Serviços Notariais e de Registro, que é responsável por capitanear importantes estudos sobre a atividade, inclusive relativos à desjudicialização10. Podemos identificar diversos procedimentos desjudicializados previstos em atos normativos esparsos ou no Código de Processo Civil11 que estão plenamente em vigor, como, por exemplo: as retificações no Registro Civil (artigos 40, 57, 109 e 110 da lei 6.015/73) e no Registro de Imóveis (artigos 212 e 213 da Lei nº 6.015/73); a alteração de nome e gênero (Provimento nº 73/2018 do CNJ); o reconhecimento de maternidade ou paternidade socioafetivos diretamente nas serventias (Provimento nº 63/2017 do CNJ); a possibilidade de Conciliação e Mediação nas serventias extrajudiciais (artigo 42 da lei 13.140/2015, Provimento nº 67/2018 do CNJ e Recomendação nº 28/2018 do CNJ); inventário e partilha consensuais na via extrajudicial (artigo 610, § 1º do CPC e resolução 35/2007 do CNJ), separação e divórcio consensuais na via extrajudicial (artigo 733 do CPC/2015 e resolução 35/2007 do CNJ); usucapião extrajudicial (artigo 1.071 do CPC, que inseriu o artigo 216-A na lei 6.015/73 e Provimento nº 65/2017 do CNJ); protesto das sentenças transitadas em julgado (artigo 517 do CPC) e da dívida alimentar (artigo 528, § 1º do CPC); a demarcação e a divisão de terras (artigo 571 c/c artigo 213, § 9º, da lei 6.015/73); a homologação de penhor legal (artigo 703, §2º do CPC), dentre tantos outros. Na execução fiscal, outro grande avanço é o protesto das certidões de dívida ativa (artigo 1º, parágrafo único, da lei 9.492/1997, a partir da alteração feita pela lei 12.767/2012). De se acrescentar que alguns Códigos de Normas do Serviço Extrajudicial, como o da Bahia12 e o do Rio de Janeiro13, preveem a possibilidade de o tabelião de notas extrair cartas de sentença, dentre as quais os formais de partilha, as cartas de adjudicação e de arrematação, os mandados de registro, de averbação de retificação. Como se vê, não são poucos os atos já desjudicializados, fenômeno este iniciado e melhor visualizado a partir da Lei de Registro Públicos ainda no ano de 1973 (lei 6.015), embora a sociedade atual, já tão acostumada a eles, nem sequer perceba que, na verdade, retratam procedimentos advindos do Poder Judiciário, alguns transferidos aos cuidados das serventias extrajudiciais com exclusividade e outros tantos que permitem aos interessados escolher entre as vias judicial e extrajudicial. A desjudicialização, embora seja um caminho natural, que deflui do próprio amadurecimento democrático, precisa ser estruturada. Foi aberta uma trilha com a edição do Enunciado 707 do FPPC para que as serventias extrajudiciais possam contribuir ainda mais para a consolidação da Justiça Multiportas, mas agora é preciso pavimentar a estrada para que continuemos em constante evolução em prol da efetiva garantia do acesso à justiça. __________ *Este artigo é também resultado de reflexões desenvolvidas pelo segundo autor no grupo de pesquisa "Transformações nas teorias sobre o processo e o Direito processual", vinculado à Universidade Federal da Bahia, cadastrado no Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa do CNPq respectivamente nos endereços dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7958378616800053. O grupo é membro fundador da "ProcNet - Rede Internacional de Pesquisa sobre Justiça Civil e Processo contemporâneo". 1 Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2021. Disponível aqui. Acesso em 25 mar. 2022. pp. 169 e 175. 2 Para ilustrar o que se diz, os números registrados pelo relatório Justiça em Número do CNJ de 2021 revelam que o ano de 2017 foi marcado pelo primeiro ano da série histórica em que se constatou freio no acervo, que vinha crescendo desde 2009 e manteve-se relativamente constante em 2017. Em 2018, pela primeira vez na última década, houve de fato redução no volume de casos pendentes, com queda de quase um milhão de processos judiciais. Em 2019, a redução foi ainda maior, com aproximadamente um milhão e meio de processos a menos em tramitação no Poder Judiciário. Em 2020, foi constatada na série histórica a maior redução do acervo de processos pendentes, com a redução de cerca de dois milhões de processos, confirmando a contínua tendência de baixa desde 2017. A variação acumulada nesses três últimos anos foi na ordem de -5,2%. Até 2019, esse resultado derivava do crescente aumento do total de processos baixados, que atingiu o maior valor da série histórica no ano de 2019, valor bem superior ao quantitativo de novos processos no Poder Judiciário, conforme observado nas figuras 53 e 54. Em que pese esse percentual tenha abaixado em 2020, ainda assim se encontra com uma diferença de dois milhões de processos entre a diferença de casos baixados (27,9 milhões) e casos novos (25,8 milhões), o que significa que, em 2020, o judiciário permaneceu julgando mais do que o número de casos novos. Assim, o Índice de Atendimento à Demanda (IAD), que mede a relação entre o que se baixou e o que ingressou, no ano de 2020 foi de 108,2%. (Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2021. Disponível aqui. Acesso em 25 mar. 2022. p. 102) 3 De acordo com Leonardo Carneiro da Cunha, "a expressão multiportas decorre de uma metáfora: seria como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas; a depender do problema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação, ou da conciliação, ou da arbitragem, ou da própria justiça estatal." CUNHA, Leonardo Carneiro da. Justiça multiportas: mediação, conciliação e arbitragem no Brasil. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Justiça multiportas: mediação, conciliação e arbitragem no Brasil. Revista Annep de Direito Processual, v. 1, n. 1. Disponível aqui. Acesso em: Acesso em 25 mar. 2022. 4 Moffitt, Michael L. "Before the Big Bang: The Making of an ADR Pioneer." Negotiation Journal, vol. 22, no. 4, October 2006, pp. 437-444. HeinOnline, disponível aqui. Acesso em 25 mar. 2022. 5 Nesse sentido, é interessante a consideração feita por Flávia Hill quanto à necessidade de aplicação prática de um sistema multiportas, in verbis: "Tornar a Justiça Multiportas uma realidade implica construir concreta e laboriosamente novas portas de acesso ao sistema de justiça como um todo, que se coloquem ao lado da porta de acesso ao Poder Judiciário, dentro da concepção de pluralismo decisório ou jurisdição compartilhada, expressões sabiamente cunhadas por Rodolfo Mancuso. Sem esse esforço concreto, nos contentaremos com a Justiça Multiportas enquanto miragem, que muito se anuncia, mas que, ao se aproximar dela, o jurisdicionado descobre ser, na verdade, uma doce ilusão, tão envolvente quanto utópica." (Desjudicialização e acesso à justiça além dos tribunais: pela concepção de um devido processo legal extrajudicial. Revista Eletrônica de Direito Processual - Redp, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 379-408, abr. 2021. Quadrimestral. Disponível aqui. Acesso em 25 mar. 2022.) 6 HILL, Flávia Pereira. A desjudicialização e o necessário incremento da cooperação entre as esferas judicial e extrajudicial. ALVES, Lucélia de Sena. SOARES, Carlos Henrique. FARIA, Gustavo de Castro. BORGES, Fernanda Gomes e Souza (Orgs). 4 anos de vigência do Código de Processo Civil de 2015. Belo Horizonte: D'Plácido. 2020. pp. 173-204. 7 "ENUNCIADO 125 - A cooperação nacional interinstitucional pode ser realizada entre órgãos judiciais e serventias extrajudiciais, inclusive para a prática dos atos de cooperação descritos no art. 6º da Resolução n. 350/2020 do CNJ, no que couber." Conselho da Justiça Federal. Enunciados aprovados na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Disponível aqui. Acesso em 30.mar.2022. 8 HILL, Flávia Pereira. Desjudicialização e acesso à justiça além dos tribunais: pela concepção de um devido processo legal extrajudicial. ob. cit 9 Associação dos Notários e Registradores do Brasil. Cartórios em números 2021. Disponível aqui. Acesso em 25 mar. 2022. 10 No mesmo sentido, cumpre consignar a reflexão trazida por Flávia Hill, no sentido de que a "desjudicialização consiste no fenômeno segundo o qual litígios ou atos da vida civil que tradicionalmente dependeriam necessariamente da intervenção judicial para a sua solução passam a poder ser realizados perante agentes externos ao Poder Judiciário, que não fazem parte de seu quadro de servidores. Trata-se, em suma, da consecução do acesso à justiça fora do Poder Judiciário, ou seja, do acesso à justiça extra muros." (HILL, Flávia Pereira. Desjudicialização e acesso à justiça além dos tribunais: pela concepção de um devido processo legal extrajudicial. Revista Eletrônica de Direito Processual - Redp, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 379-408, abr. 2021. Quadrimestral. Disponível aqui. Acesso em 25 mar. 2022.) 11 Nessa esteira, Fredie Didier ressalta que "iv) o CPC tenha cuidado, com extensão e minúcia inéditas, das relações entre Judiciário e as funções cartoriais (como, p. ex., arts. 53, III, "f", 98, §1º, IX, §§ 7º e 8º, 384 784, XI), incluindo mudanças na Lei de Registros Públicos (art. 1.071, CPC). "DIDIER JUNIOR, Fredie. Do que se ocupa um(a) processualista? Civil Procedure Review, v. 12, n. 3, p. 119-127, set.-dez 2021. Disponível aqui. Acesso em 25 mar. 2022. 12 CORREGEDORIA-GERAL DE JUSTIÇA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA. Provimento Conjunto CGJ/CCI n. 03/2020 - Código de Normas e Procedimentos Extrajudiciais da Bahia. Art. 1125. 13 CORREGEDORIA-GERAL DE JUSTIÇA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Código de Normas Extrajudicial. Artigo. 224-B.
"O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se, para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem; não, contudo, a qualquer preço". (José Carlos Barbosa Moreira. O futuro da justiça: alguns mitos) As mudanças nas relações sociais ao longo dos tempos impactam os contornos do Direito Processual e é salutar que assim seja. Afinal, a legitimidade do sistema de justiça repousa precisamente na aptidão e na sensibilidade do operador do Direito para se manter atento a tais mudanças e oferecer respostas efetivas para solucionar os litígios com as especificidades de cada época. Se o destinatário da prestação jurisdicional é o jurisdicionado, membro da sociedade, então, nada mais justo do que o Direito Processual se voltar para os contornos da sociedade em cada momento histórico, adaptando os seus institutos, a fim de que recobrem o grau de efetividade e, por conseguinte, de legitimidade, que é desejável em um Estado Democrático de Direito em contínuo amadurecimento1. E em poucas searas a sociedade mudou tanto e tão profundamente quanto as relações familiares, tanto assim que alguns especialistas preferem aludir a Direito das Famílias2, diante da complexidade e da multiplicidade das feições familiares. Em apertada síntese, podem-se reunir as mudanças verificadas nas relações familiares nas últimas décadas em três grandes eixos, a saber: (i) internacionalização das relações familiares, formando as chamadas famílias transnacionais3; (ii) redução da perenidade dos relacionamentos afetivos, por inúmeras razões que transbordariam os limites do presente trabalho, dentre as quais se destacam a própria aceleração das relações sociais na contemporaneidade; (iii) a revolução tecnológica - que permite conhecer pessoas rapidamente e em qualquer lugar do mundo - e a mudança do papel da mulher na sociedade e a sua inserção do mercado de trabalho4. Nesse contexto, o casamento, tradicionalmente considerado um dos institutos mais formais do Direito Civil, experimentou sucessivas mudanças e em um ritmo cada vez mais célere em nosso país. Em sucinto retrospecto de alguns marcos históricos, tem-se que, na redação original do art. 315 do Código Civil de 1916, a sociedade conjugal somente poderia terminar com o falecimento de um dos cônjuges, a nulidade ou anulação do casamento ou o desquite. Sobreveio, em 1977 - ressalte-se: 61 anos após a edição do CC/1916 - a EC 9/77, para permitir o divórcio e, a seguir, foi editada a lei Federal 6.515 ("lei do divórcio"), regulando o fim da sociedade conjugal através da separação e do divórcio e eliminando a figura do desquite. A CF/88, por seu turno, na redação original do art. 226, §6º, ampliou o cabimento do divórcio, condicionando-o apenas à prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei (conversão de separação em divórcio), ou comprovada separação de fato por mais de dois anos (divórcio direto). Em 1989, foi editada a lei Federal 7.841, que eliminou a restrição à obtenção do divórcio uma única vez, prevista no art. 38 da lei Federal 6.515/77. Merece destaque, por fim, a edição da E 66/10, que eliminou os requisitos para a decretação do divórcio, tornando-o, assim, um direito incondicionado. Essas mudanças, tanto na sociedade quanto, como consectário, no Direito Civil, também repercutiram no Direito Processual, como não poderia deixar de ser. No lugar da antiga ação de desquite (arts. 155, parágrafo único, 347, parágrafo único e 852, I, CPC/1973), sobrevieram as ações de separação e de divórcio (arts. 1.120 a 1.124, CPC/1973, com a redação dada pela "lei do divórcio"). No CPC/15, além da ação de separação e do divórcio consensuais (arts. 731 a 734), foi previsto, quanto à jurisdição contenciosa, o procedimento especial das ações de família (artigos 693 a 699, CPC/15), cujo ponto central consiste na designação de sessão de mediação, tendo em vista que as relações familiares são de trato sucessivo por excelência e envolvem um plexo de questões, muitas das quais não-jurídicas, mas sim emocionais e afetivas, que precisam ser igualmente trabalhadas e ponderadas para que se alcance a melhor solução possível. Sendo assim, a mediação emerge, em regra, como o método mais adequado para a solução de tais conflitos, em detrimento da solução adjudicada estatal5. Paralelamente, no âmbito extrajudicial, verificou-se a deformalização do processo de habilitação de casamento, com a dispensa da autorização judicial, em regra (art. 1.526, CC/02, com a redação dada pela lei Federal 12.133/09), e a possibilidade de separação e divórcio consensuais por escritura pública, desde que preenchidos os requisitos legais6 (art. 1.124-A, CPC/1973, com a redação dada pela lei Federal 11.441/07 e art. 733, CPC/15). A mais recente mudança na seara processual quanto ao tema não decorreu, contudo, de uma alteração legislativa, mas de uma nova praxe forense, fomentada por parcela da doutrina. Forte na premissa de que, com o advento da EC 66/10, o divórcio se tornara um "direito potestativo", alguns magistrados, em diferentes tribunais do país, vêm decretando o divórcio por meio da concessão de tutela provisória, até mesmo inaudita altera parte. Vale, aqui, uma observação. Ao contrário do que se tem lido, é errado dizer que o direito ao divórcio se tornou potestativo por força da Emenda Constitucional 66. Esse direito sempre foi potestativo.7 Afinal, trata-se do direito subjetivo de se obter uma modificação jurídica independentemente da vontade da outra parte da relação jurídica, que se sujeita a essa modificação. Ocorre que a natureza de direito potestativo que algum direito subjetivo tenha não é suficiente para permitir que se dispense o devido processo. Afinal, é preciso ouvir a outra parte antes de se decidir (salvo nos casos previstos no art. 9º, parágrafo único, do CPC, e com certeza a decretação do divórcio não se enquadra em qualquer delas). Pense-se, por exemplo, no direito de invalidar negócio jurídico por vício de consentimento. Trata-se, sem qualquer sombra de dúvida, de um direito potestativo.8 Pois ninguém jamais extraiu dessa natureza a existência de um direito à "anulação unilateral" do negócio jurídico, sem oitiva da parte contrária e que fosse capaz de produzir efeitos irreversíveis. O fato, então, de ser potestativo o direito ao divórcio é, a rigor, absolutamente irrelevante para a solução do problema aqui enfrentado. O que se deve perquirir é a possibilidade (ou não) de, inaudita altera parte, decretar-se o divórcio se esse decreto gera efeitos irreversíveis. Volte-se, então, à exposição do tema central do presente artigo. Não há dúvidas de que o jurisdicionado de nosso tempo clama por uma prestação jurisdicional mais célere, mormente para dirimir relações familiares. No entanto, há que se verificar qual o instrumento processual adequado para atender a essa legítima expectativa, sem, contudo, causar nefasta insegurança jurídica, em prejuízo do próprio jurisdicionado. A tutela provisória, seja de urgência ou da evidência, é, como o seu próprio nomen juris indica, essencialmente provisória, ou seja, precária, fundada em cognição sumária9, sendo passível de modificação ou revogação a qualquer tempo, conforme expressamente previsto no artigo 296, do CPC/2015. Por outro lado, uma vez decretado o divórcio, há a dissolução do casamento em caráter definitivo e irrevogável, consoante disposto no art. 1.571, §1º, do CC/02. Uma vez dissolvido o casamento pelo divórcio, não é mais possível aos ex-cônjuges retomar o vínculo conjugal pretérito, definitivamente desfeito10. Caso queiram voltar ao estado civil de casados entre si, terão de instaurar novo processo de habilitação de casamento e contrair novas núpcias. Tanto é assim que os cartórios extrajudiciais de Registro Civil de Pessoas Naturais de todo o país têm verificado, nos últimos anos, casais divorciados que se reconciliam tempos depois e pretendem contrair novas núpcias entre si. A rapidez das relações sociais na contemporaneidade, aliada à desburocratização do divórcio, redundou nesse fenômeno. Estabelecendo-se o necessário diálogo das fontes11 entre o Direito Processual Civil, o Direito Civil e o Direito Notarial e Registral, verifica-se que, importando o divórcio, pela legislação civil em vigor, em dissolução definitiva do casamento, sendo, pois, por sua própria ontologia, impassível de restabelecimento posterior, não há como haver a sua decretação através de tutela provisória, essencialmente modificável e revogável a qualquer tempo. A decretação de divórcio em sede de tutela provisória, seja de urgência ou da evidência, gera perigosa insegurança jurídica, podendo conduzir a um verdadeiro impasse. Isso porque, uma vez decretado o divórcio, será ele averbado à margem do termo de casamento, pelo oficial do registro civil de pessoas naturais, na forma do art. 10, inciso I, do CC/02, gerando efeitos irrevogáveis e definitivos. Coerentemente, o art. 800, §2º, do Código de Normas Extrajudicial da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ/RJ12 exige que a averbação de divórcio mencione expressamente a data do trânsito em julgado da sentença que o decretou, requisito que não logrará ser preenchido pelo Oficial, caso o divórcio seja decretado em sede de mera tutela provisória. Com efeito, caso o magistrado decrete o divórcio, ainda que em sede de tutela provisória, não mais será juridicamente possível, segundo a própria essência do divórcio, o restabelecimento do casamento. Caso se enfrente a questão sob o prisma estritamente processual (e míope), seria, em tese, perfeitamente possível que, uma vez concedida a tutela provisória de divórcio, fosse ela ser simplesmente revogada pelo juiz, a qualquer tempo, caso as partes reatassem o seu relacionamento com o processo judicial ainda em curso. Contudo, a se enxergar a questão em toda a sua inteireza, voltando-se os olhos também para o Direito Civil e o Direito Notarial e Registral, com o necessário diálogo das fontes, constatar-se-á ser juridicamente impossível o cumprimento de eventual decisão judicial que revogue a tutela provisória de decretação do divórcio, justamente porque o divórcio, instituto de Direito Civil, é, em sua essência, irrevogável. O risco real e iminente é agravado se o divórcio é decretado inaudita altera parte, ou seja, sem que o outro cônjuge nem sequer tenha ciência do ajuizamento da ação, como vem ocorrendo cada vez com maior frequência nos tribunais pátrios. Isso porque, ao ser cientificado do ajuizamento da ação e da concessão da "tutela provisória", a realidade concreta, verificável na rotina dos cartórios extrajudiciais, demonstra que, por vezes, o cônjuge reflete, pondera, se arrepende e contacta o outro, com vistas a tentar uma reaproximação e o reatamento do casamento. E, com a reconciliação do casal, está posto o impasse jurídico criado pelos próprios operadores do Direito. Eventual mandado de revogação do divórcio dirigido ao Registro Civil de Pessoas Naturais seria juridicamente impossível de ser cumprido, não sob o ponto de vista estritamente processual, mas diante da imperatividade do divórcio segundo a legislação civil e notarial e registral. Forçoso reconhecer que, hoje, se está na iminência da ocorrência de casos como esse, em que as partes venham a noticiar em juízo o reatamento do relacionamento e requerer, agora em conjunto, a simples "revogação da tutela provisória", precisamente com fulcro no art. 296, do CPC/15, o que, reitere-se, se afigura juridicamente impossível, por força do art. 1.571, §1º, CC/02. Pode-se pensar, ainda, em uma série de outros exemplos problemáticos. Figure-se um: decretado o divórcio inaudita altera parte, e averbada a decisão, a outra parte - sabendo estar agora divorciada - casa-se com um terceiro. Na sequência, o autor da ação de divórcio desiste da ação, o que levaria à revogação da tutela provisória, "restaurando" o casamento anterior. O segundo casamento seria válido? Ou seria um casamento nulo e putativo (já que contraído de boa-fé)? Também seria preciso enfrentar o problema dos bens adquiridos na vigência da tutela provisória de divórcio que não viesse a ser, posteriormente, substituída por tutela definitiva do direito ao divórcio. Esses bens se comunicariam? Eles foram adquiridos na constância do casamento ou não? E caso se entenda que não, isso não geraria um imenso risco de fraudes, com as partes, em conluio, valendo-se do processo para obter fim vedado pelo ordenamento jurídico? O Direito Processual se mostra cada vez mais interdisciplinar, dependendo do diálogo profuso e perene com outros ramos do Direito, dentre os quais o Direito Civil e o Direito Notarial e Registral. Não há como pretender que o Direito Processual se sobreponha aos demais ramos do Direito, a ponto de se colocar como um problema insolúvel. O Direito Processual tem por escopo exatamente o contrário: colocar-se a serviço do direito material, sendo o processo uma condição de possibilidade da jurisdição e da realização do direito material, viabilizando a concretização dos direitos das pessoas, tais quais previstos na legislação em vigor. Não tem, e não é desejável que o Direito Processual tenha, a pretensão - ou a prepotência - de revogar ou alterar institutos seculares de outros ramos do Direito. Um Direito Processual cioso de seus escopos e comprometido com a democracia não pretende se sobrepor aos demais ramos e se tornar um problema para a higidez e a unidade do ordenamento jurídico. Ao revés, o Direito Processual deve se colocar a serviço da efetividade e da unidade do ordenamento jurídico, sendo essa uma nobilíssima e difícil missão a ser cumprida. Por tais razões, entende-se que o divórcio não pode ser decretado em sede de tutela provisória, seja de urgência ou da evidência, diante de sua precariedade, menos ainda antes da oitiva do réu. Discorda-se, portanto, do teor do Enunciado 46 do Instituto Brasileiro de Direito de Família13. Vislumbra-se, inclusive, o cabimento de Incidente de Assunção de Competência (artigo 947, CPC/2015), diante da relevante questão de direito envolvida e da grande repercussão social, com vistas a zelar pela segurança jurídica e conter o risco iminente de decisões judiciais que prevejam a "revogação" do divórcio, cujo cumprimento seria juridicamente impossível. Em verdade, há outros instrumentos processuais efetivos para tornar a ação de divórcio mais célere, sem descurar da necessária segurança jurídica e dos ditames do Direito Civil. Em especial, afigura-se cabível o julgamento antecipado (total ou parcial) do mérito (artigos 354 e 355, CPC/2015), após a devida citação do réu (ainda que ficta, excepcionalmente)14. Nesse caso, o divórcio terá sido corretamente decretado em cognição exauriente, sendo averbado à margem do termo, pelo Registro Civil de Pessoas Naturais, após o trânsito em julgado da decisão judicial. Com isso, alcança-se o salutar diálogo entre o Direito Processual, o Direito Civil e o Direito Notarial e Registral, sem que o primeiro, em atitude isolada e prepotente, se arvore em suplantar os demais ramos do Direito, gerando um problema de difícil solução. A interdisciplinaridade e o diálogo das fontes batem à porta e exigem dos profissionais do Direito o detido estudo de diferentes ramos para que a tutela jurisdicional seja não apenas célere, mas também justa e efetiva, como estabelece o art. 6º do CPC. Um objetivo difícil, mas possível de ser alcançado cum granum salis. O jurisdicionado pode estar ávido por soluções a jato, mas cabe aos operadores do Direito sinalizar o que é, em cada caso, uma duração razoável. _____ 1 HILL, Flávia Pereira. O Direito Processual Transnacional como forma de acesso à justiça no século XXI. Rio de Janeiro: GZ. 2010. pp. 53-58. 2 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 3. Ed. Rio de Janeiro: GEN Forense. 2022. 3 HILL, Flávia Pereira. Op. Cit. pp. 42-43. 4 HILL, Flávia Pereira. "Uns mais iguais que os outros: em busca da igualdade (material) de gênero no processo civil brasileiro". Revista Eletrônica de Direito Processual. Vol. 20. Número 2. Maio-Agosto 2019. pp. 201-244. 5 HILL, Flávia Pereira. "A mediação de conflitos no novo Código de Processo Civil e na lei federal nº 13.140/2015". In MIRZA, Flavio (Org). Direito Processual. Vol. 7. São Paulo: Freitas Bastos. 2015. pp. 177-206. 6 HILL, Flávia Pereira. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. "Inventário judicial ou extrajudicial; separação e divórcio consensuais por escritura pública - primeiras reflexões sobre a Lei nº 11.441/07". Revista Dialética de Direito Processual. n. 50, pp. 42-59. 7 Assim, por exemplo, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Distinção Científica entre Prescrição e Decadência. Um Tributo à Obra de Agnelo Amorim Filho. In: DIDIER JR, Fredie e MAZZEI, Rodrigo (coord.). Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: JusPodivm, 2ª ed., 20027, p. 230. Como se vê, em texto anterior à Emenda Constitucional 66, já se reconhecia a natureza potestativa do direito ao divórcio. 8 MOTA, Maurício Jorge Pereira da. O negócio jurídico no Código Civil. Quaestio Iuris, vol. 05, n. 01, p. 214. 9 CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo Processo Civil Brasileiro. 8. Ed. Barueri: GEN Atlas. 2022. p. 174. 10 Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald salientam que a separação e o divórcio se distinguem pela "possibilidade de reconciliação independentemente de novas núpcias", presente apenas no primeiro instituto. Os autores conceituam o divórcio como "medida jurídica, obtida pela iniciativa das partes, em conjunto ou isoladamente, que dissolve integralmente o casamento, atacando, a um só tempo a sociedade conjugal (isto é, os deveres recíprocos e o regime de bens) e o vínculo nupcial formado ( ou seja, extinguindo a relação jurídica estabelecida). FARIAS, Cristiano Chaves de. BRAGA NETTO, Felipe. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Volume Único. 2. Ed. Salvador: JusPodivm. 2018. P. 1772. Vale registrar, ainda, que se o divórcio produz efeitos irreversíveis, então sua concessão a título de tutela antecipada contraria, de modo expresso, o que dispõe o art. 300, § 3º, do CPC. Restaria, apenas, a tutela da evidência, que pode ser irreversível, mas que também não pode ser deferida pelas razões que no texto serão expostas. 11 "(...) fontes plurais não mais se excluem - ao contrário, mantêm as suas diferenças e narram simultaneamente suas várias lógicas (dia-logos), cabendo ao aplicador da lei coordená-las ('escutando-as'), impondo soluções harmonizadas e funcionais no sistema, assegurando efeitos úteis a essas fontes, ordenadas segundo a compreensão imposta pelo valor constitucional." MARQUES, Claudia Lima. "A teoria do diálogo das fontes hoje no Brasil e seus novos desafios: uma homenagem à magistratura brasileira". MARQUES, Claudia Lima. MIRAGEM, Bruno (Coords). Diálogo das fontes: novos estudos sobre a coordenação e aplicação das normas no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2020. P. 23. Vale, ainda, lembrar, com apoio em Eros Grau, que o direito deve ser interpretado em seu todo, não sendo admissível sua interpretação "em tiras". É o que se colhe do voto por ele proferido no Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3685, relatora a Min. Ellen Gracie, onde se lê: "Ademais, não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. Tenho insistido em que a interpretação do direito é interpretação do direito, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta textos de direito, isoladamente, mas sim o direito - a Constituição - no seu todo". 12 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Código de Normas Extrajudicial. Disponível aqui.  13 "Enunciado 46 - Excepcionalmente, e desde que justificada, é possível a decretação do divórcio em sede de tutela provisória, mesmo antes da oitiva da outra parte". INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Disponível aqui. 14 No mesmo sentido, PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. "O divórcio como direito potestativo e a sua decretação através de tutela provisória da evidência: uma análise sob os pontos de vista processual e registral". Empório do Direito. Disponível aqui. 
Embora a 1ª turma do STF tenha reconhecido, em 2018, no julgamento do RE 605.709/SP, a impenhorabilidade do bem de família do fiador em contratos de locação comercial, o tema voltou a ser objeto de análise pela Corte. A Corte reconheceu repercussão geral do RE 1.307.334 contra decisão do TJ/SP, que manteve a penhora do bem de família do fiador em contrato de locação comercial, razão pela qual o tema foi reapreciado pelo plenário do STF. O debate sobre este tema possui origem no instituto das impenhorabilidades. Normalmente, em uma execução, os bens que se encontram na esfera patrimonial do devedor ou de outro responsável pelo cumprimento da obrigação (art. 790), a partir do decurso do prazo legal para pagamento voluntário, sem o seu cumprimento pelo executado, podem ser penhorados. Entretanto, há determinados bens que fogem à esta regra. Tais restrições estão previstas no art. 833 do CPC e no art. 1° da lei 8.009/90 (lei do bem de família) e constituem restrições ao direito fundamental à tutela executiva.1 O principal fundamento para a existência destas restrições é a dignidade do executado e de sua família, bem como a garantia do mínimo existencial, com base no art. 6° da CF/88. Araken de Assis2 leciona que o instituto da impenhorabilidade teve origem no Direito Romano: Mas, foi no direito norte-americano que o instituto se instituiu mais próximo do que conhecemos hoje. A Lei do Texas de 26/1/1839 autorizou resguardar a área de 50 acres, ou terreno na cidade, de valor limitado, e a mobília, utensílios, ferramentas e equipamentos, em alguns casos para o pagamento de dívidas.3 Mais tarde, em 1845, o homestead se incorporou aos demais estados dos EUA, pelo Homestead Exemption Act4 que dispunha sobre limites à penhora de bens a todo cidadão ou chefe de uma família, competente, 50 acres de terra, ou um terreno na cidade, incluindo o bem de família dele ou dela, e melhorias que não excedessem o valor de 500 dólares.5 No ordenamento jurídico brasileiro, a impenhorabilidade do bem de família foi instituído pela primeira vez, no Código Civil de 1916, que instituía em seu art. 70: "É permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio." Nos contratos de locação, a modalidade de garantia mais comum é a fiança. Por este tipo de contrato, o fiador obriga-se pelo inadimplemento da dívida decorrente do contrato. Sua obrigação, diante do contrato estipulado pelo locador e locatário, passa a ser solidária. Assim, em eventual demanda proposta para a cobrança dos aluguéis e encargos, o credor pode escolher de quem cobrar: do devedor principal (locatário), ou do(s) fiador(es), podendo, inclusive, executar todos eles. Embora o ordenamento jurídico proteja a dignidade do devedor e de sua família, por intermédio das impenhorabilidades, no CPC (art. 833) e na lei 8.009/90 (art. 1°), a impenhorabilidade do bem de família é inoponível no caso dos contratos de fiança de contrato de aluguel, conforme exceção prevista no art. 3°, VII, desta lei. Assim, o bem imóvel em que o locatário resida com sua família não pode ser penhorado em execuções de contrato de aluguel, mas o do fiador, sim. Em 2006, o plenário do STF, no julgamento do RE 407.688, entendeu pela constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação: FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência.  Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art.3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da lei 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da lei 8.009, de 23/3/90, com a redação da lei 8.245, de 15/10/91, não ofende o art. 6º da Constituição da República" (RE 407.688, rel. min. Cezar Peluso, DJ de 6/10/06). Em 2010, o tema foi novamente apreciado pelo plenário da Corte que reafirmou o entendimento no sentido de se reconhecer a constitucionalidade do art. 3°, inciso VII, da lei 8.009/90 e, portanto, a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador. Tal entendimento consta em decisão no RE 612.360/SP, de relatoria da ministra Ellen Gracie, publicada em setembro de 2010. No julgamento do RE 605.709/SP, em 2018, a 1ª turma do STF, por maioria dos votos, entendeu pela oponibilidade da impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação comercial. Segundo o voto da ministra Relatora Rosa Weber, faz-se necessário impor limites à aplicação do art. 3° da lei 8.009/90, pois o dispositivo não abarca a proteção ao bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício, a fim de que este seja utilizado para satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Ressaltou, ainda, que a penhorabilidade do bem de residência do fiador em contrato de locação fere a isonomia, uma vez que o bem de família do devedor principal estaria protegido pela lei. Por fim, ressaltou que a penhora do bem de residência do fiador é desproporcional, por existirem outros instrumentos suscetíveis de viabilizar a garantia da satisfação do crédito do locador de imóvel comercial, como: caução, seguro de fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento (art. 37 da lei 8.245/91). Em seu voto, a ministra relatora concluiu: No meu modo de ver, representa uma injustiça que o devedor possa ter preservado o bem de família e a fiança - que, na sua ratio histórica, era um contrato gratuito - possa sacrificar o patrimônio do devedor. Eu nunca consegui entender isso, máxime quando a fiança, nesses casos, não é uma fiança prestada pelo banco, é uma fiança intuitu personae, são pessoas que se prestam a ajudar as outras para que elas possam alugar um imóvel. Eu tive experiência nesse setor durante muito tempo e, realmente, o contrato é lavrado diretamente com o fiador. Ele não é obrigado a aceitar, mas aceita por razões que não são econômicas, ele aceita para viabilizar que outrem possa alugar um imóvel. No julgamento do RE 1.307.334, o ministro Alexandre de Moraes concluiu pela penhorabilidade do bem de residência do fiador em qualquer contrato de locação, seja comercial ou residencial, uma vez que "o inciso VII do art. 3º da lei 8.009/90, introduzido pela lei 8.245/91, não faz nenhuma distinção quanto à locação residencial e locação comercial, para fins de excepcionar a impenhorabilidade do bem de família do fiador."  Além disso, ressaltou que a criação de distinção onde a lei não distinguiu, violaria o princípio da isonomia, haja vista que o fiador de locação comercial, embora também excepcionado pelo art. 3º, VII, da lei 8.009/90, não teria o seu bem de residência penhorado e do de locação residencial, teria. Assim, o atual entendimento do STF segue a maioria dos seus precedentes anteriores, com exceção do caso analisado via RE 605.709/SP, em 2018, da 1ª turma. _____ 1 DIDIER JR, Fredie et al. Curso de Direito Processual Civil. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 835. 2 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 2 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p.187. 3 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 2 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 202. "Tal valor se impôs à consciência humana no período romano das extraordinariae cognitiones, quando, então, o devedor inocente do seu estado de insolvência adquiriu direito à execução patrimonial da cessio bonorum, que, na prática, isentava-o da constrição pessoal e da infâmia, além de conceder o beneficiumcompetentiae. Desenvolveu-se o instituto, no direito comum, até ganhar a dimensão atual, recepcionado nos estatutos processuais. Essa espécie de penhorabilidade "foi franja, bem estreita é certo, que a luta de classes recortou" na responsabilidade patrimonial. 4 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família internacional. Disponível aqui.  5 BUREAU, Paul. Le Homestead ou L'insaisissabilité de la Petite Propriété Foncière. Paris: Arthur Rousseau, 1895, p. 63-4.
Não é de hoje a preocupação acadêmica e governamental com a adoção, nos textos de interesse público, de uma linguagem acessível ao cidadão. Segundo a organização PLAIN - "Plain Language Action and Information Network", a linguagem simples é a comunicação que a audiência consegue entender da primeira vez em que lê ou ouve. É uma linguagem clara, concisa, bem-organizada, e segue outras práticas apropriadas ao seu conteúdo, área e audiência. O foco do presente trabalho é a utilização da linguagem simples no âmbito do Poder Judiciário, os documentos e iniciativas que preconizam essa prática e sugestões para seu fortalecimento no futuro. Utilizar linguagem simples e acessível nas decisões judiciais e atos processuais em geral permite ao cidadão uma melhor compreensão de seu conteúdo e, por consequência, uma participação mais informada, consciente e apta a influenciar o resultado do processo. É certo que, na maior parte das demandas, o jurisdicionado poderá contar com o auxílio de seu advogado. Porém, essa realidade não escusa o Estado-Juiz de elaborar seus pronunciamentos de forma acessível ao cidadão, estabelecendo, muito além de um diálogo com o advogado, também um diálogo com a parte e com a sociedade, e assim viabilizando o exercício do jus postulandi, quando cabível. O estabelecimento de uma comunicação mais eficiente tem sido um dos principais objetivos perquiridos na seara jurídica nos últimos anos, seja em razão da velocidade da informação que se potencializou com a inserção das novas tecnologias, seja em função da necessidade de se preservar a garantia do amplo acesso à Justiça em meio a estas transformações1. Vale destacar que a técnica do Visual Law incorpora a utilização da linguagem simples como uma de suas ferramentas mais poderosas2, tendo-se ainda como obstáculos questões de ordem cultural que dividem opiniões entre os operadores do direito3. Não são poucos os documentos, leis e iniciativas públicas, seja em âmbito federal, estadual ou municipal, que visam a fortalecer a adoção da linguagem simples, a exemplo do art. 11 da LC 95/98, dos arts. 5º e 8º, §3º, inciso I, da Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação - LAI), do art. 5º, inciso XIV e art. 6º, inciso VI, da lei 13.460/17 (Lei de Proteção e Defesa do Usuário dos Serviços Públicos), do art. 6º, incisos IV e V, da lei 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD), e do art. 3º, inciso VII, da lei 14.129/21 (Lei do Governo Digital). Nesse contexto, o PL 6.256/19 conceitua linguagem simples como "o conjunto de práticas, instrumentos e sinais usados para transmitir informações de maneira simples e objetiva, a fim de facilitar a compreensão de textos" e coloca como princípios dessa política nacional (i) o foco no cidadão; (ii) a linguagem como meio para redução das desigualdades e para promoção do acesso aos serviços públicos, transparência, participação e controle social; e (iii) a simplificação dos atos da administração pública federal. Além disso, o projeto enumera formas específicas de operacionalização da linguagem simples. Apesar de ainda estar em tramitação, o PL 6.256/19 serviu de modelo para a política municipal de linguagem Simples instituída na cidade de São Paulo, por força da lei municipal 17.316/20. No âmbito da Administração Pública, a linguagem simples tem sido cada vez mais incentivada e propagada, tendo-se registro de algumas interessantes iniciativas neste sentido, como: a) Apostila do curso Linguagem simples no Setor Público da Prefeitura de São Paulo4; b) Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização - GESPÚBLICA5; c) Orientações para adoção de linguagem clara, do Estado de São Paulo6; d) Cartilha Linguagem Cidadã, do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná7; e) Cartilha Como usar a linguagem simples, do Laboratório de Inovação e Dados - ÍRIS, da Controladoria e Ouvidoria-Geral do Estado do Ceará8; f) Campanha para incentivar a simplificação da linguagem jurídica, pela AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros9. Recentemente, veio à tona debate acerca do PL 3.326/21, que traz uma proposta para a inclusão de três parágrafos ao art. 489 do CPC, segundo os quais passaria a constar determinação no sentido de que a reprodução do dispositivo da sentença, nos processos com participação de pessoa física diretamente interessada na decisão, seja feita em "linguagem coloquial, sem a utilização de termos exclusivos da linguagem técnico-jurídica e acrescida das considerações que a autoridade Judicial entender necessárias", de modo que haja plena compreensão dos seus termos "por qualquer pessoa do povo", traduzindo-se eventuais expressões ou textos em língua estrangeira. Fixa-se aqui uma primeira observação: a redação do projeto traz a expressão "linguagem coloquial", que por sua vez, não pode ser confundida com a linguagem simples (plain language) já definida no início deste ensaio. A linguagem coloquial, também conhecida como linguagem informal, é a variante linguística utilizada com maior frequência no cotidiano, sendo mais despojada, portanto, não adstrita às regras gramaticais10. Deste modo, nota-se de antemão a impropriedade da expressão empregada no PL 3.326/21, revelando-se mais adequado interpretá-la e corrigi-la como linguagem simples, esta sim, empregada no sentido da técnica adotada para que se confira maior acessibilidade às informações por um público que não tenha formação jurídica. Não se pode confundir a busca por objetividade e clareza com a exclusão da formalidade e da técnica que for necessária11. De outro lado, a determinação para que se redija o dispositivo da sentença em linguagem "coloquial" - ou melhor, simples - das sentenças judiciais, não seria suficiente para resolver os problemas de acesso à Justiça. Mais interessante seria dar continuidade à implementação e desenvolvimento do Visual Law no âmbito do Poder Judiciário, prática observada em diversos tribunais, corporificada a partir da elaboração de resumos12 e de "tópicos-síntese" em sentença e acórdãos13. São maneiras mais efetivas de facilitar a comunicação, utilizando linguagem simples não apenas no dispositivo, mas também na descrição dos pedidos e dos fundamentos, destacando-se os pontos mais relevantes em uma linguagem apropriada para o destinatário da informação. Destaque-se que a adoção de mecanismos voltados para a simplificação da linguagem não afasta a elaboração de documentos mais técnicos e repletos de liturgias jurídicas em seu inteiro teor, que permanecem nos autos para consulta, quando necessário. Diante da redação do projeto em análise, abre-se uma possível discussão entre o emprego do "juridiquês" e da linguagem informal no cenário jurídico. Por "juridiquês" compreende-se a linguagem técnica própria do Direito em seu grau mais complexo, com largo emprego de termos considerados como rebuscados e estrangeirismos, em grande parte advindos do latim. O que parece impressionar do ponto de vista da erudição, em grande parte dificulta uma leitura atenta em um pequeno espaço de tempo, podendo restringir a compreensão de seu teor ou até causar ruídos de comunicação14. Fato é que o juridiquês e a comunicação informal se situam hipoteticamente em posições extremas e antagônicas que jamais se demonstram apropriadas - ainda mais considerando-se a realidade enfrentada pelo Poder Judiciário. O número de demandas a serem apreciadas diariamente por magistrados não lhes permite uma leitura densa e demorada. Do ponto de vista da eficiência e da funcionalidade, uma petição simples, concisa, clara e objetiva é muito mais bem recepcionada, tendo maiores chances de gerar os resultados almejados. Por outro lado, a apresentação de uma petição com o emprego de nenhuma técnica, expressões informais, gírias e uma argumentação não apropriada, não geraria uma boa impressão, podendo igualmente ocasionar uma dificuldade de compreensão pelo magistrado acerca dos fatos narrados. Trata-se, inclusive, de um dos casos mais comuns de inépcia da inicial. Justamente por esta razão, os cartórios dos juizados especiais costumam disponibilizar modelos de petição para que as partes desassistidas de advogado possam deduzir sua pretensão de forma compreensível, atendo-se aos campos para preenchimento, e contanto com o auxílio dos serventuários em casos de dúvida. Todavia, como se pretende demonstrar neste trabalho, não se trata de defender o "juridiquês" tradicional ou condená-lo, em nome de uma linguagem simples, mas sim tratar-se de uma questão de equilíbrio e adequação da linguagem diante de diversos contextos fáticos-jurídicos. A linguagem possui finalidades diversas, sendo imprescindível que o interlocutor faça uma contextualização da mensagem. Assim, não existe uma única resposta correta para o tipo de linguagem que deva ser utilizada ou a modulação a ser empregada. Basta enfocar no interlocutor ou destinatário da mensagem, ou seja, voltar o foco para o usuário do serviço judiciário15. O que deve existir, de fato, é a compreensão de que nem sempre a linguagem técnica e erudita será efetiva para determinadas situações, do mesmo modo que uma linguagem simples poderá demonstrar-se insuficiente ou inadequada em certas outras ocasiões. Portanto, a previsão do projeto em comento parece inoportuna da forma como redigida, pois o emprego da linguagem simples pode e deve ser fomentado, mas sem que se estabeleçam determinações e obrigações de forma estanque. A previsão da linguagem clara e compreensível a qualquer cidadão como uma diretriz para os órgãos do Poder Público, tal como prevê o art. 3°, inciso VII, da Lei de Governo Digital, demonstra-se suficiente no plano normativo. Evidentemente, a implementação de uma cultura no sentido de se prezar pela linguagem simples quando necessária não é uma questão de fácil solução. Se hoje há uma cultura dominante de redação de atos jurisdicionais de forma complexa e inacessível, que todos aprendem como correta desde os tempos da faculdade de Direito, ela só será rompida pelo surgimento de toda uma contracultura de utilização da linguagem simples, prezando-se pelo acesso à justiça, pelo processo participativo e por uma publicidade substancial das decisões judiciais. Demonstra-se salutar toda iniciativa no sentido de incentivar a disseminação da linguagem simples no Poder Judiciário, na administração pública, nas entidades civis e nas instituições de ensino. Somente a partir deste conjunto de ações e de esforços será possível consolidar uma comunicação mais efetiva, acessível e contextualizada. Destarte, conclui-se que linguagem simples, tendo em vista a propagação do acesso à Justiça, não é uma questão meramente normativa. É uma cultura que deve ser trazida desde a formação inicial do operador do direito, nas faculdades, e que precisa ser diariamente fomentada, por meio de capacitações e iniciativas da comunidade jurídica. A comunicação é um meio, e não um fim em si mesmo. ______ 1 HILDEBRAND, Cecília Rodrigues Frutuoso; IWAKURA, Cristiane Rodrigues Iwakura. Exclusão digital e acesso à justiça em tempos de pandemia: uma análise sob a ótica dos juizados especiais. Empório do Direito. Disponível aqui.  2 IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Visual Law é modismo? Migalhas - Coluna Elas no Processo. Disponível aqui.  3 ALVES, Lucélia de Sena. A efetividade da utilização do Visual Law como técnica facilitadora da comunicação jurídica. Migalhas - Coluna Elas no Processo. Disponível aqui.  4 Disponível aqui.  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui.  8 Disponível aqui.  9 Vide aqui. 10 BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. 1ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. 11 Uma interessante análise do Projeto de Lei pelo professor Dierle Nunes pode ser lida aqui.  12 Alguns exemplos: aqui e aqui. 13 ALENCAR, Hermes Arrais. Sustentação oral TRF2 - Tema: Tópico Síntese - Ano 2006. Disponível aqui.  14 CAMPOS, Hélide Maria dos Santos. Linguagem jurídica com expressões rebuscadas precisa ser repensada. Consultor Jurídico. Disponível aqui.  15 IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Legal design e acesso à justiça: criação de sistemas processuais eletrônicos acessíveis e ferramentas intuitivas no ambiente jurídico digital. In: Direito Processual e tecnologia: os impactos da virada tecnológica no âmbito mundial. NUNES, Dierle et. al (org.). Salvador: Editora Juspodivm, 2021, pp. 147-159.
A exibição de documento ou coisa é espécie de prova que pode ser utilizada no processo civil e vem disciplinada nos artigos 396 a 404 do CPC/2015. No Código de Processo Civil de 1973 já havia a previsão dessa espécie de prova e o CPC de 2015 apenas trouxe algumas alterações. Na sistemática anterior (CPC/73) além da exibição como técnica de produção de prova documental, existia também um procedimento cautelar com idêntica função. O CPC/15 traz a possibilidade de exibição de documento apenas como incidente na fase probatória, mas permite que seja realizada de forma antecipada conforme previsão do art. 381. A exibição é técnica de obtenção de prova importantíssima no processo, uma vez que não são raras as hipóteses em que apenas a parte contrária possui um documento essencial ao deslinde da controvérsia. Pode ser também utilizada quando o autor não possui todos os dados do réu exigidos para a sua qualificação na petição inicial, nos termos do art. 319 do CPC/15, como, por exemplo, número de algum documento, endereço eletrônico etc. A parte contrária que possui o documento ou coisa tem dever processual de exibir, sob pena de sanção prevista no art. 400 do CPC/15, consistente em presunção de veracidade dos fatos que a parte pretendia provar por meio da exibição. Não se pode olvidar, ainda, do interesse da parte requerente em obter a consequência de presunção de veracidade em face daquela que está em posse de tais documentos. Caso os documentos não sejam apresentados pela parte contrária, aplica-se penalidade de confissão ficta. O artigo 397 do CPC/15 estipula os requisitos que devem ser cumpridos para o requerimento de exibição de documento ou coisa. Tal requerimento pode ocorrer tanto na inicial como na contestação. Dessa forma, não basta o requerimento genérico. A parte requerente da exibição deve identificar o documento ou coisa para que a parte contrária possa ter a informação necessária para cumprir a determinação ou possa exercitar o seu contraditório de forma adequada. É necessário, também, que se demonstre a finalidade da prova, pois se não exibido o documento ou coisa vai ser com base nessa indicação que o juiz aplicará a pena de confissão ficta. E, por último, deve-se afirmar o porquê de a parte requerente da prova acreditar que tal documento ou coisa encontra-se na posse da parte contrária. Essa informação é importante para que o juiz possa avaliar de forma adequada eventual justificativa, prevista no parágrafo único do art. 398 do CPC/15. Não se exige que o requerente prove que o documento existe, a inexistência pode ser alegada pela parte contrária em sede de resposta. Tais requisitos fundam-se também no princípio de colaboração das partes, previsto no art. 6º do CPC/15. Feito o requerimento da prova por uma das partes, concede-se à parte contrária o direito de resposta, obedecendo ao princípio do contraditório. Nessa resposta, a parte pode, inclusive, justificar e provar que não possui tal documento ou coisa ou que eles não existem. Importante consignar que a expressão "requerido" do parágrafo único do art. 398 do CPC refere-se ao requerido da providência de exibição de documento ou coisa e, não necessariamente, ao réu do processo, já que tanto o réu quanto o autor podem ser requerentes dessa técnica de produção de prova documental. Nessa oportunidade, a parte contrária poderá demonstrar que: a) não possui o documento ou coisa; ou b) que a apresentação desse documento ou coisa é impossível (Enunciado 53 do FPPC)i, eximindo-se das consequências pelo descumprimento. O juiz não aceitará a recusa em exibir o documento nas hipóteses previstas no art. 399 do CPC: (i) requerido com obrigação legal de exibir; (ii) o requerido fez alusão ao documento ou à coisa durante o processo, com o objetivo de constituir prova; (iii) documento comum às partes, em razão do seu conteúdo. A interpretação desse dispositivo deve se dar em conjunto com a previsão do art. 404 do CPC/15, que prevê as escusas possíveis para a não exibição do documento ou coisa. A norma processual traz a sanção pelo descumprimento, pela parte contrária, da determinação de exibir documento ou coisa. O descumprimento ocorrerá se a exibição do documento ou coisa não ocorrer no prazo de 5 (cinco) dias ou, se o juiz entender ilegítima a justificativa apresentada. A consequência da confissão ficta para aquele que descumpre a determinação judicial é que confere efetividade ao instituto. O parágrafo único do art. 400 é a grande inovação do CPC/15 com relação ao instituto pois, possibilita ao juiz adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para obter o documento ou coisa. Com isso, surgiram correntes para discutir se a redação da Súmula 372 do STJ, que proibia a aplicação de multa cominatória para a hipótese, estaria ou não superada no caso concreto. Já nos primeiros comentários ao CPC em 2015, Fredie Didier Juniorii, José Miguel Garcia Medinaiii e outros processualistas defendiam a superação de tal súmula. Mas, a prática mostrou-se diferente, com decisões reforçando a manutenção da Súmula 372 do STJ.iv O Fórum Permanente de Processualistas Civis, interpretando tal questão, aprovou, por unanimidade, o enunciado 54 que entende como superada a súmula 372 do STJv. Essa celeuma apenas foi resolvida em 26 de maio de 2021, com o julgamento do REsp repetitivo 1.777.553/SP, que fixou a tese de que "desde que prováveis a existência da relação jurídica entre as partes e de documento ou coisa que se pretende seja exibido, apurada em contraditório prévio, poderá o juiz, após tentativa de busca e apreensão ou outra medida coercitiva, determinar sua exibição sob pena de multa"vi. Deve-se destacar que o juiz apenas tomará tais medidas se houver a inércia da parte contrária na exibição e elas se mostrarem úteis na medida em que há casos em que a pena de presunção de veracidade não pode ser aplicadavii. Assim, apenas em caso de previsão legal de não ocorrência da confissão ficta (art. 345 do CPC) é que será possível a aplicação das medidas do parágrafo único do art. 400 do CPC. O artigo 401 traz a possibilidade do pedido de exibição ser direcionado a terceiro. O CPC de 2015 dilatou o prazo para a resposta do terceiro para 15 (quinze) dias, uniformizando os prazos. Importante destacar que, como o terceiro não faz parte da relação jurídico processual, nenhuma consequência de presunção de veracidade poderá ser-lhe aplicável, daí a previsão de procedimento diferenciado quando a exibição lhe for dirigida. A exibição de documento ou coisa dirigida ao terceiro configura verdadeira ação incidental, por isso, a necessidade de citação e prazo para resposta, havendo também a possibilidade de sucumbência. Se o terceiro se recusar a apresentar o documento ou coisa, o juiz instaurará um breve contraditório, permitindo-se a oitiva de todos os envolvidos e até mesmo de testemunhas. Tais oitivas tem como único objetivo esclarecer o dever de exibir o documento ou coisa, não se discutirá o mérito da ação. O juiz deverá proferir a decisão a tal respeito na própria audiência. O recurso cabível é o agravo de instrumento, conforme previsão do art. 1.015, VI, do CPC/15. Reconhecido o dever de exibir, o terceiro também sofrerá consequências caso descumpra a ordem judicial de exibição. A possibilidade de pagamento de multa e outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias são mais úteis em relação ao terceiro do que em relação à parte contrária. Todavia, a despeito das medidas, pode acontecer de, ainda assim, não ser apresentado o documento ou coisa. Neste caso, o requerente da medida fica sem alternativa para conseguir provar aquele fato, daí a importância de o juiz agir de forma que exerça maior coercitividade no caso concreto para efetivar sua ordem. A colaboração com a verdade real encontra limites ao não se exigir do réu ou do terceiro que se prejudiquem mais do que a consequência que adviria do processo em andamento. O artigo 404 do CPC prevê, ainda, como recusa legítima, aquela decorrente da lei e dos deveres de sigilo. Importante destacar, nesse ponto, que o dever de sigilo pode ser relativizado, excepcionalmente, para privilegiar interesses mais relevantes, devendo-se aplicar o princípio da proporcionalidade no caso concreto. Tais justificativas serão analisadas pelo juiz que as julgará legítimas ou não, podendo determinar outras formas de obter tais documentos. Assim, poderá aplicar as medidas previstas nos parágrafos únicos dos art. 400 do CPC (quando se tratar da parte contrária) ou art. 403 do CPC (quando se tratar de terceiros), se as julgar ilegítimas. Dessa forma, é possível afirmar que a exibição de documento ou coisa continua a ser importante espécie de prova no CPC/15, melhorando a redação do CPC/73 ao incluir a possibilidade de medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para obter o documento ou coisa. _______________ i ENUNCIADOS DO FÓRUM PERMANENTE DE PROCESSUALISTAS CIVIS. X edição. Carta de Recife/PE, março 2018. Salvador, Juspodivm, 2019, p. 22. ii DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10 ed. Salvador: Juspodvm, 2015. 2 v., p. 234. iii MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 660-661. iv Agravo de Instrumento Nº 70033391780, 23ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Paula Dalbosco, julgado em 29/11/2016 ; Agravo de Instrumento n. 0021965-86.2018.8.16.0000, Tribunal de Justiça do PR, publicado em: 17/08/2018. (Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=resp+repetitivo+n%C2%BA+1.333.988%2Fsp. Acesso em: 01 fev. 2022) v ENUNCIADOS DO FÓRUM PERMANENTE DE PROCESSUALISTAS CIVIS. X edição. Carta de Recife/PE, março 2018. Salvador, Juspodivm, 2019, p. 22. vi BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Repetitivo 1000. 2ª Turma, julgado em 26 maio 2021. Disponível aqui. Acesso em: 01 fev. 2022. vii Art. 345. A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se: I - havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II - o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato; IV - as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos.
Como cediço, a lei 14.230/21, antes mesmo do início de sua vigência já despertava intensos e calorosos debates no ambiente acadêmicoi, máxime em relação à liberdade de conformação legislativa, contrastada com a necessária e cogente tutela da probidade administrativa desenhada em sede constitucional. Entrementes, o Brasil ainda tropeça na tentativa de encontrar caminhos institucionais aptos e adequados ao combate sistêmico da corrupçãoiii. Tanto é assim que o recentemente divulgado IPC (Índice de Percepção da Corrupção), desenvolvido e produzido pela Transparência Internacional, descortinou que o objetivo de repressão aos atos de improbidade administrativa previsto no art. 37, §4º, da CRFB/88 ainda não passou de uma mera promessa. O péssimo desempenho do Brasil o deixou mais uma vez abaixo da média global, de 43 pontos. A nota de 38 pontos alcançada no último ano foi a mesma registrada em 2020 e representa o terceiro pior resultado da série histórica, colocando o Brasil na vergonhosa 96ª posição, atrás de países como Etiópia, Namíbia, Vanuatu e Burkina-Faso. Nesse cenário absolutamente desolador, é de se questionar se as modificações introduzidas pela lei 14.230/21 cumprem alguma sorte de avanço institucional, ou, ao revés, endereçam objetivos que se desviam da necessária efetividade no combate à corrupção. Nós sempre decantados encontros e desencontros entre direito material e processoiii, vivemos atualmente uma época de intensa aproximação, em que o direito material confere pistas e evidências para sua concretização a um processo cada vez mais maleável, flexível e customizado. De acordo com Cabral (para quem a relação contemporânea entre direito e processo assume uma configuração coaxial)iv, observamos um gradativo retorno do processo ao direito material, assumindo aquele a sua missão de não apenas atuar a vontade concreta da lei, mas sim de tutelar jurisdicionalmente os direitos, caso estes não possuam satisfação e concreção espontânea no âmbito das relações jurídicas. Com efeito, a arena processual (dentro e fora do Judiciário) deve atuar na perspectiva de servir ao direito material (e vice-versav), maximizando os seus procedimentos e as suas técnicas processuais com o objetivo de propiciar o maior rendimento possívelvi a cada processo. No entanto, nitidamente na contramão do combate à corrupção, a Lei 14.230/21 substituiu a regra da legitimidade concorrente do Ministério Público e da pessoa jurídica de direito público lesada prevista no art. 17 da lei 8.249/92, em sua redação originária, pela previsão da legitimidade exclusiva do Ministério Público para a propositura das ações de improbidade administrativa e celebração de acordos de não persecução cível. A corroborar a tônica no sentido do seu caráter eminentemente sancionador, há a previsão do art.17-D da Lei 8249/92 de que a ação de improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal, não se enquadrando como ação civil. Nessa vereda que se coloca o vívido debate trazido com absoluta grandeza e transparência acadêmicas por Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jrvii. A posição histórica trazida por ambos os autores apontava que a ação de improbidade administrativa possuía uma natureza dúplice, dialogando tanto com o microssistema da tutela coletiva, bem como com o direito administrativo sancionador. Em outras palavras, o procedimento especial da ação de improbidade administrativa ao mesmo tempo em que pré-ordenado ao escopo ressarcitório inserido no microssistema da tutela coletiva, também possuiria nítido caráter punitivo diante das previsões desenhadas pelo direito administrativo sancionador. Pois bem. Por força das modificações introduzidas pela lei 14.230/21, Fredie Didier Jr. propôs então a reconstrução do sistema tradicional de categorias classificatórias, de modo a alocar a ação de improbidade fora do "guarda-chuva" do conceito de processo coletivoviii. O fundamento é o de que sob o viés dogmático nenhuma das normas próprias dos processos coletivos é aplicada no âmbito da ação de improbidade administrativa, tais como a fair notice, a certificação do processo para definição do grupo, ampliação do contraditório ao grupo e extensão da coisa julgada ao membro do grupoix. Hermes Zaneti Jr., por sua vez, defende a tese de ainda ser possível o enquadramento da ação de improbidade como espécie de ação coletiva, pois é destinada ao combate à corrupção, tutelando a moralidade e probidade administrativa, direitos coletivos em sentido amplo. A discussão, contudo, não se limita ao plano teórico, na medida em que possui consequências práticas relevantes, notadamente quanto à legitimidade ativa ad causam e ao trânsito de técnicas processuais. A se adotar a premissa de que a natureza da ação de improbidade administrativa é apenas de direito administrativo sancionador, a consequência é a inadmissibilidade do alargamento do rol de legitimados ativos, pois restaria inaplicável o regramento do microssistema de processo coletivox. Isso porque a responsabilização dos agentes públicos e o ressarcimento ao erário por meio da ação de improbidade administrativa (e do acordo de não persecução cível) se aproximariam, sob tal vertente, aos regramentos subjacentes à ação penal, de modo a justificar a legitimidade ativa privativa por força do art. 129, I, da Constituição da República. Pode-se argumentar, ainda, que o escopo teria sido o de garantir a segurança jurídica dos acordos de não persecução cível celebrados. Isso porque o Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, seria capaz de realizar um controle mais preciso da persecução civil e celebrar acordos de não persecução adequados e consentâneos com os requisitos e pressupostos legais. No entanto, este não parece ser o melhor entendimento, em atenção à natureza e ao escopo da ação de improbidade administrativa, tal como afirmado pelo comando normativo do art. 37, § 4º da Constituição da República, cuja concretização ainda esbarra em obstáculos dos mais diversos.   Conquanto a lei 14.230/2021 tenha promovido modificações com vistas a reforçar o perfil da ação de improbidade administrativa inserido exclusivamente no campo do direito administrativo sancionador, tais mudanças não tiveram o condão de excluir a ação de improbidade do microssistema de processo coletivo. A razão de tal enquadramento repousa na induvidosa natureza dos direitos tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa, vez que o combate à corrupção encerra e traduz, fundamentalmente, a defesa dos direitos da coletividade quanto à probidade administrativa, direitos coletivos em sentido amplo. A compreensão de que se trata de uma ação coletiva conduziria à aplicação do microssistema de tutela coletiva, a justificar, no nosso entender, a ampliação do rol dos legitimados e o trânsito de técnicas processuaisxi. Essa orientação também milita a favor do princípio do acesso à ordem jurídica justa (art. 5º, XXXV da Constituição da República), da máxima efetividade da tutela do patrimônio público e da probidade administrativa, na medida em que confere plena eficácia ao preceituado no art. 37, § 4º da Constituição da República. Em acréscimo, a atuação da pessoa jurídica de direito público lesada é importante, tanto para o ressarcimento do dano, quanto para a eficácia do processo punitivo do agente público, pois possuem as referidas pessoas jurídicas informações necessárias à apuração da extensão do dano, bem como para a compreensão das nuances do ato de improbidade administrativa. Afigura-se como um verdadeiro contrassenso a regra restritiva: as pessoas jurídicas de direito público não ostentam legitimidade para a propositura da ação de improbidade, porém são legitimadas para a liquidação e execução da decisão transitada em julgado proferida na ação de improbidadexiii. Note-se, inclusive, que, no caso da liquidação e execução do julgado, a legitimidade é da pessoa jurídica de direito público lesada, atuando o Ministério Público subsidiariamente (art. 18 da Lei 8.249/92). Em prol da inserção da ação de improbidade no microssistema de processo coletivo, poder-se-ia, ainda, defender que o art. 17-D da Lei 8.249/92 não teria afastado o caráter de ação coletiva, pois a natureza sempre foi híbrida: punitiva para os agentes e de ressarcimento ao patrimônio público. O dispositivo apenas explicitou o que já era defendido pela doutrina quanto à inegável genética também sancionatória que carrega a ação de improbidade administrativa. Com efeito, asseverar que o procedimento especial destinado à tutela da probidade administrativa possui uma única e exclusiva natureza sinaliza a um só tempo por um indevido decote da própria função epistêmica do processo, bem como uma absoluta redução da complexidade dos diversos direitos fundamentais contrapostos que marcam a realidade fenomênica retratada no processoxiii.      Dito isso, tem-se que a orientação desta segunda corrente de pensamento foi a adotada no bojo de recentíssima decisão monocrática proferida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraesxiv. Em tal oportunidade, o i. Ministro deferiu parcialmente a medida cautelar requerida no bojo das ADIs 7042 e 7043/DF, para fins de se conceder interpretação conforme a Constituição do caput e §§ 6º-A, 10-C e 14, do artigo 17 da Lei nº 8.429/92, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, no sentido do reconhecimento da legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público lesadas para a propositura da ação de improbidade administrativa, bem como a suspensão do § 20 do art.17 da Lei de Improbidade, e art 2º da lei 14.230/21.   Em primeiro lugar, houve o reconhecimento da inconstitucionalidade da regra de legitimidade exclusiva do Ministério Público em razão da violação do art. 129, § 1º, da Constituição da República, o qual preceitua que a legitimação do Ministério Público para as ações civis públicas previstas no art. 129 da Carta Magna não impede a de terceiros. Neste ponto, depreende-se ter havido o enquadramento da ação civil de improbidade como ação civil pública, ao mencionar o Ministro Alexandre de Moraes os incisos III e o §1º do art. 129 da Constituição da República. E, ainda, foi destacado o fato de inexistir um instrumento de controle da propositura da ação como aquele estabelecido no âmbito penal, no qual há a previsão constitucional da ação penal privada subsidiária da pública (art. 5º, LIX, da Constituição da República).  Pontuou-se, outrossim, a ofensa aos princípios constitucionais do acesso à justiça, da eficiência, além do óbice ao exercício da competência comum dos entes públicos de "zelar pela guarda da Constituição" e "conservar o patrimônio público" (CF, art. 23, I), representando, por fim, um significativo retrocesso no que tange ao imperativo constitucional de combate à improbidade administrativa (art. 37, §4º, da CRFB/88). Como visto, ainda que provisória, a decisão em comento proferida pelo STF confere um fôlego necessário para que os textos normativos trazidos pela lei 14.230/21 não se apartem do cogente parâmetro constitucional, de modo a não permitir que o art. 37, §4º, da CRFB/88 se transforme em apenas uma promessa oca e vazia.   _______________ i Disponível aqui. e "Senado substitui lei de improbidade por lei da impunidade, escreve Roberto Livianu". ii https://transparenciainternacional.org.br/ipc/?utm_source=Ads&utm_medium=Google&utm_campaign=%C3%8Dndice%20de%20Percep%C3%A7%C3%A3o%20da%20Corrup%C3%A7%C3%A3o&utm_term=Percep%C3%A7%C3%A3o%20da%20Corrup%C3%A7%C3%A3o&gclid=Cj0KCQiA0p2QBhDvARIsAACSOOPcbDdMNfw3N0zC2Q3lsV7Hbgceono0KzbT9KnrCM8rb13RCjQyTosaAjknEALw_wcB. Consulta realizada em 12 de fevereiro de 2022. Os dados do IPC 2021 mostram que o país está estagnado, sem ter feito avanços significativos para enfrentar o problema no período. Por outro lado, o desmonte institucional e a inação do governo no combate à corrupção podem levar a notas ainda piores nos próximos anos. iii BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2011; OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, nº 26, 2006; ZANETI JR., Hermes. A teoria circular dos planos (direito material e direito processual). In. DIDIER JR., Fredie (org.). Leituras complementares de processo civil. 6.ed. Salvador: Jus Podivm, 2008; CABRAL, Antonio do Passo. Da instrumentalidade à materialização do processo: as relações contemporâneas entre direito material e direito processual. Civil Procedure Review. v. 12, n. 2: maio-ago. 2021. iv Idem, Ibidem, pp. 97. v Acerca da fecunda interação entre direito material e processo, o saudoso mestre Calmon de Passos pontifica que "antes de o produto condicionar o processo é o processo que condiciona o produto. Em nível macro, a norma jurídica de caráter geral é algo determinado pelo processo de sua produção, um processo de natureza política. É esse processo que reclama rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos - agentes, organização e procedimentos - sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores. Não há como se dissociar o direito obtido como produto da organização política da sociedade que o produz e do processo político mediante o qual as reduções de complexidade se efetivam nesse primeiro momento, macropolítico e macroeconômico. Nem para aí o processo de produção do direito, pois ele prossegue numa segunda etapa, aquela que, no nível micro, deve editar a norma reguladora de um conflito precisamente delimitado em termos de pessoas, de tempo, de lugar e de circunstâncias. Também aqui, como ali, antes de o produto condicionar o processo, é o processo que condiciona o produto. E também aqui não podemos dissociar o produto do processo de sua produção, que reclama, como antes, rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos - agentes, organização e procedimentos - sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores" (CALMON DE PASSOS, Joaquim José. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. Revista de Processo, nº 102, São Paulo: RT, abr. 2001). vi Interessante notar, nesse particular, a arguta advertência de Zamorra y Castillo no sentido de que "o processo rende, com frequência, muito menos do que deveria - em função dos defeitos procedimentais, resulta muitas vezes lento e custoso, fazendo com que as partes quando possível, o abandonem". ZAMORRA Y CASTILLO. Processo, autocomposição e autodefensa. Cidade do México: Ed. Universidad Autónoma Nacional de México, 1991. p. 238. vii DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil:processo coletivo. 16ª ed. Salvador: JusPodivm, 2022, Nota Explicativa Inicial em Coautoria. viii Idem, Ibidem, p. 25. Em igual direção, por todos, MERÇON-VARGAS. Sarah. Teoria do processo judicial punitivo não-penal. Salvador: Editora Juspodvim, 2018.   ix Idem, Ibidem.  x Apesar de inserir a ação de improbidade administrativa como espécie de ação civil pública, Hermes Zaneti Jr entende que não se aplica o microssistema de processo coletivo para ampliar os legitimados ativos, por força da existência de norma expressa no sentido da legitimidade exclusiva do Ministério Público no art. 17 da Lei de Improbidade. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. 16ª ed. Salvador: JusPodivm, 2022, Nota Explicativa Inicial em Coautoria. xi Neste mesmo sentido é o entendimento de Daniel Amorim de Assumpção Neves e Rafael Carvalho  Rezende Oliveira que  defendem a permanência de uma legitimidade concorrente e disjuntiva a despeito das modificações legislativas. Também compreendem os referidos autores como possível ingressar a pessoa jurídica de direito público lesada no processo como coautora. NEVES, Daniel Amorim  Assumpção.  Comentários à Lei de Improbidade Administrativa. Lei 14230 de 25.10.2021. Comentada artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2022. E-book.Posição 107. xii Embora defendam a exegese restritiva em sede de legitimidade ativa, Luiz Manoel Gomes Jr e Rogério Favreto consideram uma clara incoerência a legitimidade das pessoas jurídicas de direito público lesadas para a execução do julgado, e atuação subsidiária do Ministério Público. FAVRETO, Rogério; GOMES JR, Luiz Manoel. In: Comentários à nova Lei de improbidade Administrativa. GAJARDONI, Fernando; Cruz, Luana Figueiredo; GOMES JR. Luiz Manoel lei 8429/1992 com as alterações da lei 14230/2021. 5ª ed. São Paulo : Thomson Reuters, 2021, p 331.  xiii Sempre a frente do seu tempo, a saudosa e atemporal Ada Pellegrini Grinover enunciava que: "ao invés de só inverter o enfoque processo-direito pelo de direito-processo, a proposta é partir da crise de direito material - ou seja do conflito específico - para analisar (ou construir) a solução processual adequada. Isto significa também dar ao direito processual um enfoque multidisciplinar, pois os conflitos são naturalmente examinados pela sociologia ou pela política, e mais raramente pelo Direito. E, no entanto, o direito integra a categoria das ciências sociais" (GRINOVER, Ada Pellegrini Grionover. Ensaio sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p. 14).     xiv "Moraes concede cautelar para que advocacia pública possa ajuizar ações de improbidade"