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O recomeço para o empresário falido no novo sistema de insolvência brasileiro

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Atualizado às 08:47

A segunda década do século XX teve como marco a grande depressão econômica e o surto pandêmico da gripe espanhola. Passados mais de cem anos, o Brasil e o mundo enfrentam uma das mais graves crises da história. No cenário econômico que se desenha, o sistema falimentar toma foco e certamente será colocado à prova.

Em julho deste ano, a Revista Eletrônica Infomoney alertava que a pandemia provocou, na primeira quinzena de junho, o fechamento de 39,4% das 1,3 milhão de empresas que haviam suspendido temporária ou definitivamente suas operações. No total, foram 522,7 mil negócios encerrados no período1. Entre as que foram fechadas pela pandemia, 518,4 mil (99,2%) eram de pequeno porte (tinham até 49 empregados), 4,1 mil (0,8%) de porte intermediário (de 50 a 499 empregados) e 110 de grande porte (mais de 500 empregados)2.

Ainda, segundo a Boa Vista SCPC, em junho de 2020, as decretações de falência cresceram 71,3% em relação ao ano de 20193.

A crise empresarial produz efeitos que se espraiam ao redor de um amplo leque de interesses (empregados, fornecedores, agentes financeiros, fisco e outros)4. O interesse da coletividade passa a ser afetado pelos sucessos ou insucessos que marcam o trajeto das pequenas e grandes empresas, que terão inevitável repercussão sobre indivíduos e/ou grupos, constituindo um problema social5.

Diante da relevância do tema, as propostas de alterações legislativas sobre a Lei de Falências e Recuperações de Empresas, em especial a recente aprovação do Projeto de Lei 4.458/2020 pelo Senado, passaram a ocupar o cotidiano dos meios de divulgação de notícias mais populares do Brasil.

Dentre os princípios que expressamente nortearam as mencionadas alterações, tem-se o incentivo ao rápido recomeço ("Fresh Start"), ao lado da aplicação produtiva dos recursos econômicos e do empreendedorismo, o que representa uma mudança cultural da concepção de falência na perspectiva nacional, que é encarada como uma espécie de punição ao empresário que se encontra na posição de insolvente.

O empreendedor é figura central para o bom funcionamento da economia capitalista, na medida em que gera empregos, produtos, serviços e tributos, tão necessários ao bem-estar social. Por outro lado, a possibilidade de insucesso da atividade empresarial também é grande, na medida em que o empreendedorismo é, por definição, uma atividade de risco. Nesse sentido, não é razoável transformar o empreendedor falido - que não teve sucesso na sua primeira tentativa - num pária do sistema econômico. Deve-se dar a ele a chance de tentar novamente, a fim de prosperar e gerar os benefícios econômicos e sociais que se espera da atividade empresarial.

O sistema anterior vinculava a reabilitação do falido ao decurso do prazo de 05 ou 10 anos, conforme tenha ou não sido condenado por crime falimentar, contado do encerramento da falência. Entretanto, por razões estruturais, o processo de falência constumava demorar anos para ser encerrado. Daí que o falido ficava, na prática, alijado da atividade empresarial e impedido de tentar novamente e prosperar.

 A nova previsão decorre da redação do art. 75, inciso III ("fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica."). 

O "Fresh Start" é um instituto importado do direito norte americano que tem a intenção de permitir um retorno rápido do empresário falido ao mercado6. Conserva-se a ideia de que o indivíduo é um agente econômico e desempenha um papel essencial na produtividade do mercado.

A Constituição Americana contempla o ideal de que a falência confere ao devedor a chance de um novo começo, ficando livre de obrigações e responsabilidades. A essência do sistema de falência individual americano é o perdão do endividamento.

O modelo adotado pela proposta de alteração legislativa é o da seção 727 do Bankrupcy Code norte americano, seguindo a regra do Discharge, em que o devedor se torna isento de suas obrigações na medida em que não tenha se envolvido em alguma situação considerada negativa pela norma de regência.  

Certo é que a legislação pátria foi inspirada na doutrina norte americana, porém, quando da edição da lei 11.101 de 2005, não foram adotadas medidas que assegurassem a plena e efetiva aplicação do instituto do "Fresh Start". Nesse passo, andará bem o legislador atual se eleger mecanismos que possibilitem o célere recomeço do empresário, deixando-o livre para explorar outra atividade, movimentando a economia7.

Nessa linha, as recentes alterações contemplam, também, um encurtamento dos prazos de extinção das obrigações do falido.

É nesse contexto que o art. 158 passa a surgir com uma nova redação. Diminui-se o decurso do prazo de inabilitação dos antigos 05 e 10 anos para 03 anos. Há, ainda, a mudança do termo inicial de contagem do prazo, que se transfere do encerramento da falência para a sua decretação.

Sob tal perspectiva, retira-se do empresário a punição que lhe assombrava, ao carregar o fardo de inativo durante a morosa tramitação do processo, ao aguardo da extinção de suas obrigações. Estimula-se o empreendedorismo, apresentando-se a falência como decurso natural do risco inerente à atuação empresarial que, por vezes, em razão de circunstâncias externas, foge ao controle de seu gestor. 

Outro importante ponto é a alteração dos requisitos específicos do pedido de reabilitação, ocorrendo a redução do percentual necessário de pagamento dos créditos quirografários, reduzindo-se a exigência de mais de 50% para o patamar de mais de 25% de adimplemento. 

Some-se a isso a alteração na ordem de classificação dos créditos, que veio para propiciar mais agilidade ao processo e, por consequência, trazer maior celeridade à reabilitação do agente econômico. Trata-se da nova previsão do art. 83, que reposiciona os créditos de natureza quirografária, através da incorporação por ele de outros créditos que ocupavam posição de preferência no pagamento.

Para que o Brasil supere o momento de crise econômica, faz-se necessário um sistema de falência rápido e eficiente. O diploma concursal brasileiro evidencia que tanto a recuperação judicial quanto a falência estão informadas pelo mesmo princípio, que é o da preservação da empresa.

 Este princípio, quando tratado dentro do âmbito falimentar, norteia a preservação das atividades empresariais que surgirão em razão da retirada do mercado da empresa falida, mediante o reaproveitamento de seus ativos antes vinculados a uma atividade improdutiva, bem como mediante a oportunidade conferida ao insolvente de célere retorno para o exercício de atividade empresária, sem qualquer óbice a uma nova chance, conferindo à falência o status de forma regular de encerramento de uma atividade8.

É assim que se consolida uma visão social do direito falimentar: o processo de insolvência se traduz em benefícios sociais e econômicos através da criação de oportunidades rápidas para a reinserção do agente insolvente no mercado, transformando uma atuação improdutiva em produtiva9, preservando-se o interesse da coletividade e oxigenando a economia.

Referências bibliográficas 

ABRÃO, Nelson. A continuação do negócio na falência. São Paulo: Leud, 1975. 

AGÊNCIA ESTADO. 522 mil negócios faliram só na primeira quinzena de junho, diz IBGE. InfoMoney, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. 

ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 14. edição, São Paulo: Saraiva, 1996. 

ARAÚJO, José Francelino de. Comentários à lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2009. 

BATISTA, Felipe Vieira. A Recuperação Judicial Como Processo Coletivo. Tese (Programa de Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia - UFBA. Salvador, 2017. 

BEZERRA FILHO, Manoel Justino; BEZERRA, Adriano Ribeiro Lyra. Lei de falência na jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 

CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009; DELANEY, Kevin J. Strategic bankruptcy: how corporations and creditors use Chapter 11 to their advantage. California: University of California Press, 1998. 

COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios de direito comercial: com anotações ao projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57-58.

COSTA. Daniel Carnio. A importância social e econômica da falência. BrasilJurídico, jan. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. 

GAZZONI, Marina. Os 'falidos' do coronavírus: veja as empresas que quebraram na pandemia. Seu Dinheiro. jul. 2020. Disponível aqui.Acesso em: 10 nov. 2020. 

MANDEL, Julio. Nova lei de falências e recuperação de empresas anotada. São Paulo: Saraiva, 2005. 

OLIVEIRA, Joana. 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia no Brasil, segundo o IBGE. El País, São Paulo, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.

*Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo e Professor da PUC/SP.

**Clarissa Somesom Tauk é juíza auxiliar em exercício na 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.

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1 OLIVEIRA, Joana. 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia no Brasil, segundo o IBGE. El País, São Paulo, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.

2 AGÊNCIA ESTADO. 522 mil negócios faliram só na primeira quinzena de junho, diz IBGE. InfoMoney, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.

3 GAZZONI, Marina. Os 'falidos' do coronavírus: veja as empresas que quebraram na pandemia. SeuDinheiro. jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.

4 "(...) a coletividade tem interesse metaindividual afetado, direta ou indiretamente, pelos sucessos ou insucessos que marcam a trajetória de grandes empresas" ... "É útil a imagem de três círculos em torno da empresa - a exemplo das elipses representantes dos movimentos dos planetas em redor do Sol. No círculo mais próximo ao centro, estarão representados os interesses dos empresários; mas não somente os deles, como também os dos sócios da sociedade empresária, dos investidores estratégicos, acionistas do bloco de controle e, nas companhias com elevado nível de dispersão acionária, os dos administradores graduados. No segundo círculo, o mediano, representam-se os interesses dos bystanders: os dos trabalhadores, (voltados à preservação de seus empregos e melhoria no salário e nas condições de trabalho), dos consumidores (que precisam ou querem os produtos ou serviços fornecidos pela empresa), o Fisco (cuja arrecadação aumenta em relação direta com o desenvolvimento da atividade econômica), dos fornecedores de insumo (empresas-satélite, muitas delas exploradas por micro pequenos e médios empresários), dos investidores não sofisticados do mercado de capitai (se a empresa é explorada por companhia aberta) e dos vizinhos dos estabelecimentos empresariais (normalmente beneficiados com a valorização do entorno). No terceiro círculo, o mais extenso, são representados os interesses metaindividuais coletivos ou difusos da coletividade, ou seja, o de todos os brasileiros (favorecidos, em caso de plena eficácia dos princípios de direito comercial, pelo decorrente barateamento geral dos preços), a economia local, regional, nacional e global (com o desenvolvimento, que, afinal, é a soma dos desenvolvimentos das respectivas empresas." (COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios de direito comercial: com anotações ao projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57-58).

5 "A empresa é a célula essencial da economia de mercado e cumpre relevante função social, na medida em que, ao explorar a atividade prevista em seu objeto e ao perseguir o seu objetivo - o lucro -, promove interações econômicas (produção ou circulação de bens ou serviços) com outros agentes do mercado, consumindo, vendendo, gerando empregos, pagando tributos, movimentando a economia, desenvolvendo a comunidade em que está inserida, enfim, criando riqueza e ajudando no desenvolvimento do país, não porque esse seja o seu objetivo final - de fato, não o é -, mas simplesmente em razão de um efeito colateral benéfico (que os economistas chamam de "externalidade positiva") do exercício da sua atividade." (SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luís Felipe; TELLECHA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2016, p. 73).

6 CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009; DELANEY, Kevin J. Strategic bankruptcy: how corporations and creditors use Chapter 11 to their advantage. California: University of California Press, 1998.

7 De acordo com o relatório apresentado pelo Deputado Hugo Leal, verbis: "De outro modo, a Seção XII do Capítulo V da Lei, que trata do encerramento e da extinção das obrigações do falido, foi atualizada no Substitutivo para permitir um rápido recomeço ao empresário ("fresh start"), permitindo que ele possa utilizar o próprio registro do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) para iniciar um novo negócio. Isto se dá pela defi nição da contagem do prazo para extinção das obrigações do falido na data da decretação da quebra e não do encerramento do processo. Também o esclarecimento de que o termo inicial para reinício do prazo prescricional porventura interrompido corresponde, inclusive para as Fazendas Públicas, ao trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência, o que permitirá, uma vez consumada a prescrição, a extinção das inscrições em dívida, e não apenas da respectiva cobrança judicial, como ocorre atualmente em razão da omissão da legislação. Também a pessoa natural que for sócia ou administradora do devedor poderá, a seu exclusivo critério, requerer que lhe sejam integralmente estendidos os efeitos da falência, declarando-se solidária e ilimitadamente responsável pelas dívidas do falido a fim de obter os benefícios de pessoa natural falida, que poderá requerer ao juízo da falência que as obrigações a ela referidas sejam declaradas extintas por sentença. Estas mudanças vão na direção de dar maior dinamismo aos nossos sistemas recuperacional e falimentar, pois é essencial para a eficiência econômica que haja possibilidade dos empresários, que tiveram dificuldade em seus negócios, de rapidamente se reerguerem e tentarem novos empreendimentos, criando novos empregos e gerando novas riquezas na economia."

8 Abordando a finalidade liquidatória da falência, Nelson Abraão afirma: "assim sendo, torna-se necessário o desmonte do estabelecimento ou estabelecimentos com a venda de seus componentes ao correr do martelo, aniquilando-se a atividade empresaria." (O novo direito falimentar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 167).

9 COSTA. Daniel Carnio. A importância social e econômica da falência. Brasil Jurídico, jan. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.