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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 29 de maio de 2022

Do uxoricídio ao feminicídio

O Tribunal do Júri da comarca de Santo André/SP condenou um homem a cumprir a pena de 12 anos de reclusão, em regime inicial fechado, por ter matado, no interior de um motel, em total menosprezo à condição de mulher, uma garota de programa que havia conhecido em uma boate e se recusou a manter com ele relação sexual.1 O Direito, assim como outras ciências, também promove variantes linguísticas no vernáculo.  A palavra homicídio, por exemplo, que por muitos anos frequentou com exclusividade um artigo do Código Penal, compreendia a ação de matar um homem ou uma mulher. Uxoricídio, em sua etimologia específica, designava a conduta daquele que matava a esposa. Mais recentemente foi introduzida a palavra feminicídio, com significado abrangente e consentâneo com o pensamento jurídico da atualidade, compreendendo a morte de qualquer mulher, esposa, companheira ou não, atrelada, no entanto, à questão de gênero em contexto discriminatório envolvendo conteúdos históricos, culturais, econômicos, sociais e outros. O tipo penal do feminicídio é de construção recente, e não figura como crime autônomo e sim como apêndice do crime de homicídio, na forma qualificada. Impõe pena mais exacerbada que a do homicídio, além de revestido do mesmo caráter de hediondez e que tem por finalidade a proteção da mulher, no tocante à violência doméstica e familiar como, também, ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A título de curiosidade, a prática de homicídio simples prevê uma pena de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que no feminicídio a pena é de 12 a 30 anos, também de reclusão, sem contar ainda com os acréscimos em razão do estado gestacional da vítima, se for praticado diante de descendentes ou ascendentes, assim como em razão de descumprimento de medida protetiva. Pode-se dizer que a Constituição Federal de 1988, quando erigiu a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais, juntamente com a promoção do bem social sem preconceitos de sexo, trouxe um comprometimento diferenciado em relação às tutelas anunciadas. Inclinou seu olhar protetivo para a mulher, principalmente aquela que era considerada vulnerável e que necessitava de cuidados especiais, vez que exposta a tantos conflitos sociais, com sérios prejuízos e danos à saúde e à vida. A Lei nº 11.340/2006, conhecida por Maria da Penha, é exemplo, em razão da determinação constitucional prevista no artigo 226 § 8º. Apresenta claramente seus objetivos, as políticas públicas voltadas para o combate à violência doméstica e os mecanismos para atingir seus fins, além dos tipos penais específicos. A Lei Maria da Penha vem produzindo, de forma reiterada, inúmeras alterações em seu texto originário introduzindo, ao longo do tempo, verdadeiros tentáculos flexíveis, com a função de fechar o cerco protetivo às vítimas que se encontram em situação de violência doméstica e familiar. Dificilmente uma lei consegue tamanha façanha e, mesmo assim, não alcançou os resultados desejados. Basta ver o acentuado crescimento no número de feminicídios, apesar de toda advertência encartada a respeito. Assim, a cada nova investida, apresenta-se um acréscimo à lei para inibir a nova modalidade agressiva. A vulnerabilidade referida acima é a circunstancial, mais precisamente a proveniente de discriminação, em que a pessoa se vê impossibilitada de exercer seus direitos em igualdade de condições com as demais, necessitando, para tanto, de uma ação coadjuvante para desenvolver suas capacidades e competências. No caso específico relatado e decidido pelo Tribunal do Júri, a violência exigida para a prática do delito se espraiou e alcançou um encontro eventual entre um homem e uma mulher, sem qualquer relacionamento amoroso, sem qualquer convivência anterior. A negativa da mulher em ter relação sexual com o seu acompanhante - recusa legítima em razão da autonomia da vontade - por si só, traz à tona o menosprezo e a discriminação pelo fato de ser a vítima uma mulher. ___________________ 1 Disponível aqui.
domingo, 22 de maio de 2022

Uma questão de epigenética

A ciência, nas últimas décadas, em determinadas situações, vem progredindo de forma ascendente e ininterrupta, causando até mesmo impacto aos criadores de ficção científica. E é enriquecedor observar que o homem passa a ser o principal destinatário, tanto no tocante à ambicionada longevidade, como em relação a uma salutar qualidade de vida. Esta nova etapa da ciência trabalha com a velocidade da informação biológica, principalmente aquela que esmiuça os segredos até então não revelados das células humanas e as exterioriza para que novas patologias sejam ajustadas para o bem-estar da humanidade. Tem-se, desta forma, os determinantes anatômicos de cada pessoa, assim como também os determinantes sociais que, juntos, compõem a pessoa humana, tarefa importante para a distribuição equitativa das benesses da ciência. A corrente sanguínea passa a ser o caminho predileto para as células circundantes que navegam por todas as partes do corpo humano liberando a carga necessária de genes. Esta nova dimensão do progresso das ciências biomédicas aponta para uma avenida com rápida expansão para desvendar os mecanismos das mudanças hereditárias, tanto no fenótipo como na expressão dos genes.  É o momento da epigenética. O nosce te ipsum, inscrito de advertência no Oráculo de Delfos, nunca esteve tão presente como agora em que o homem está explorando seu interior na busca do código genético, que ainda não foi decifrado totalmente1, mas tudo indica que a soletração do genoma humano está próxima e o estudo visa apontar a diversidade encontrada na população mundial com a finalidade de ajudar no combate e na prevenção de doenças que ainda afetam a humanidade. Rousseau (1712-1778), sem qualquer conhecimento a respeito da epigenética, foi incisivo na sua obra "O Contrato Social", quando afirmou que "o homem nasce bom e a sociedade o corrompe". Sem qualquer intenção fez ver que o determinismo ou genótipo genético herdado dos pais pode ser influenciado pelo mundo exterior. Richard C., em sucinto pensamento em que amplia o conceito de hereditariedade, assim definiu o alcance da epigenética: "Nossa herança não se limita a nossos genes. Nosso legado extragenético inclui um ambiente social que começa com nossos pais, mas pode se estender além deles, a ponto de incluir toda uma cultura."2 Capra e Luisi, com muita razão, advertem: A epigenética é uma área de pesquisa em rápida expansão, com implicações importantes para a nossa compreensão do desenvolvimento, da evolução e da saúde humana. 3 Uma das vertentes da epigenética (epi em grego com o significado de "sobre", "acima de") é justamente a de estudar as mudanças hereditárias ocorridas na vida de uma pessoa. Ela nasce com sua herança genética que pode, em razão de eventos posteriores relacionados com o próprio ambiente, a socialização, provocar mudanças em todas as fases da vida. Pode-se até determinar que, nesta linha de raciocínio, há, por um lado, a herança genética, que compreende a cadeia causal que vai desde o DNA até as características biológicas e, por outro, a herança social que se desenvolve inicialmente com os nossos pais e depois se expande com o passar do tempo às demais pessoas, alcançando o ambiente social com todos os fatores intrincados externos, que vão acarretar influências em nossos genes durante toda a vida.  Um recém-nascido, por exemplo - que passou por um longo período de desnutrição - as sequelas irão acompanhá-lo de forma implacável. Assim, na realidade, o DNA permanece o mesmo, mas fatores não genéticos influenciam e induzem os genes do organismo a se expressarem de maneira diferente. Basta ver o caso dos gêmeos idênticos, aqueles que conservam o mesmo genoma e que levam vidas em ambientes separados, com o passar do tempo, ficam cada vez mais diferentes. Pode-se dizer, desta forma, do ponto de vista epigenesista, que as evidências apontadas nos mecanismos epigenéticos, com a destacável influência do meio, constituem uma transmissão indireta para as gerações futuras, deixando de prevalecer, isoladamente, a característica genética e sim também a adquirida. Razão assiste a Augusto Comte quando deu o nome de "física moral" ao estudo científico da sociedade, antes de nascer a sociologia. ________________ 1 Disponível aqui. 2 Richard C., Francis. Epigenética: como a ciência está revolucionando o que sabemos sobre hereditariedade. Tradução Ivan Weiz Kuck - Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 99. 3 Capra Fritjof; Luisi, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Tradução de Mayra Teruya Eichemberg, Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 249.
domingo, 15 de maio de 2022

Receita Humana

Após a edição da Resolução 2.294/21 do Conselho Federal de Medicina estabelecer que, na reprodução assistida, "os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, exceto na doação para parentesco de até 4º grau, de um dos receptores (primeiro grau - pais/filhos; segundo grau - avós/irmãos; terceiro grau - tios/sobrinhos; quarto grau - primos), desde que não incorra em consanguinidade", um casal gay, que há muito tempo planejava a constituição de família, aproveitou a abertura da norma do CFM e levou adiante o projeto parental. Para concretizar a recomendada engenharia genética foi necessário um ajuste familiar. Uma verdadeira receita humana.  A irmã de um deles doou os óvulos que foram fecundados pelo esperma de um dos companheiros, enquanto que a prima do outro cedeu temporariamente o útero para abrigar os embriões. Tudo bem sucedido, nasceram gêmeos. A notícia, que rapidamente foi veiculada pelas redes sociais1, causou impacto na comunidade, pois, até então, não se tinha notícia de uma criança de casal gay ter sido gerada por componentes reprodutivos da família de ambos. Torna-se um procedimento mais confiável e seguro para os pretendentes, pois a filiação pertence ao mesmo núcleo genético das famílias, além de representar uma significativa vantagem financeira. É interessante observar que a técnica utilizada não recebeu material genético de outras pessoas a não ser daquelas envolvidas e que pertencem às duas famílias. Desta forma, pela realidade da bioengenharia, não ocorrerá nenhum rompimento no processo evolutivo convencional. Os filhos guardarão o mesmo código genético dos pais e eventual mapeamento genético será bem sucedido para comprovar a sequência primária do genoma humano. Carregarão o genótipo, que contém toda a informação hereditária, e o fenótipo, encarregado das características físicas e comportamentais. A medicina reprodutiva vem trazendo cada vez mais resultados satisfatórios que vão se amoldando às necessidades dos casais homossexuais e, por outro lado, obrigando o Direito a encontrar uma situação de acomodação legal envolvendo famílias mono e biparentais, enquanto que a bioética deve fazer uma reflexão mais aprofundada a respeito da conveniência e dos benefícios a serem apurados pelas novas tecnologias, estabelecendo os limites aceitáveis. Com relação à parte legal, não há qualquer óbice. Apesar do vazio legislativo diante das novas realidades - e é compreensível porque o dinamismo da tecnologia é incessante e imediato enquanto que o da lei demanda muito tempo para sua formatação - há a respeito o Provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça, que traça normas a respeito do registro de nascimento de filhos gerados por todas as técnicas de reprodução assistida. Referido documento disciplina que o casal homossexual deve procurar o Cartório de Registro Civil munido com a documentação específica exigida. O Cartório lançará o registro da criança fazendo dele constar os nomes dos dois pais ou das duas mães no campo denominado "filiação". Tudo sem qualquer manifestação judicial. O pensamento bioético, por sua vez, não pode, de forma alguma, desconhecer os benefícios advindos da nova tecnologia impondo uma censura sem qualquer consistência e, principalmente, entender que o avanço científico irá prosperar cada vez mais, sem qualquer chance de recuo, desde que atenda às necessidades da espécie humana. A Bioética, desta forma, revestida do ideal humanista, até mesmo com uma inclinação utilitarista, não se apresenta como um anteparo do progresso técnico-científico e sim deve envidar esforços para direcioná-lo para acumular benefícios para as pessoas. Além de observar se foram eleitos os melhores e mais éticos meios para alcançar a finalidade do projeto familiar. _______________ 1 https://www.metropoles.com/distrito-federal/nascem-gemeos-de-casal-gay-do-df-que-fertilizou-ovulo-de-parente
domingo, 8 de maio de 2022

A obesidade e a cirurgia bariátrica

É sempre interessante acompanhar o desenvolvimento da tecnologia voltada para a área médica e farmacêutica porque a cada instante ocorre uma nova intervenção na humanidade, sempre com a finalidade de encontrar soluções para minimizar os problemas relacionados com a saúde humana, quer seja para extirpá-los definitivamente quer para administrá-los diante de um patamar que confira razoável estado de saúde. É o que acontece com a obesidade que vem sendo alvo de atenção crescente em muitas pesquisas científicas. Estudos da Organização Mundial de Saúde, que elegeu a obesidade como a doença do século XXI, revelam que 30% da população mundial sofre com sobrepeso e obesidade e que um adolescente nestas condições tem mais de 70% de chance de se tornar um adulto obeso. E esse mesmo órgão, que definiu o anoréxico como o portador do IMC igual ou inferior a 18, classificou o obeso como o portador do IMC igual ou maior a 30.   Para se chegar ao peso permitido, basta tomar a altura e multiplicar por ela mesma. Em seguida, divida o peso pelo resultado da primeira operação. Da mesma forma que a anorexia, o excesso de peso provoca problemas graves para a saúde, pois, a exemplo do que acontece nos EUA, país que lidera o ranking do tecido adiposo, os jovens brasileiros se alimentam de produtos ricos em gordura e carboidrato, que ficam alojados no organismo. O crescimento desordenado da população obesa atinge graus de morbidade e passa a ser um problema de saúde pública, que deve acudir as doenças decorrentes da obesidade mórbida, tais como: cardiovasculares, diabetes, câncer, hepatite, apneia do sono, estresse e outras. Além do que a obesidade provoca muitas vezes atitudes constrangedoras e até mesmo vexatórias, pois é sabido que o homem em sua mutabilidade constante e premido sempre por novos conceitos, que nem sempre acompanham a ética e moral convencionais, procura apontar moinhos que venham obstaculizar sua passagem e se apresentam como inimigos de seus objetivos e, portanto, devem ser combatidos. É o caso do preconceito à obesidade. Todo indivíduo sabe que o controle do peso é um fator importante para gozar de boa saúde. Sandel já definiu com precisão, do ponto de vista utilitarista, que "a saúde não é um bem humano distintivo, e sim apenas um meio de maximizar nossa felicidade e nosso bem-estar."1 Não se trata da imposição de um padrão de beleza exigido pelas regras do mercado e da moda e sim de estabelecer as metas de um bem-estar físico e mental. Nesta linha de raciocínio, o Estado deve se fazer presente, na esfera de seus objetivos sociais, para construir políticas públicas específicas como desenvolver programas de proteção da saúde do cidadão, orientando-o a conter o ganho e o controle de seu peso, com medidas claras de nutrição saudável e balanceada, além de possibilitar com maior frequência o acesso à cirurgia bariátrica nos casos de obesidade grave, mais conhecida como redutora de estômago. Combate-se o mal sobre a causa e não sobre o efeito. Assim, todo indivíduo tem direito a um conjunto de serviços na área da saúde, desde que obedeça rigorosamente a regulamentação estatal. E a boa notícia, revestida da melhor roupagem ética e bioética, é que um medicamento (tirzepatide), ainda em fase experimental nos Estados Unidos, permite uma redução da obesidade quase nos mesmos moldes obtidos pela cirurgia bariátrica.2 Nos estudos até o presente realizados pela empresa Eli Lilly, ainda não publicados em revista científica, foi possível constatar que o obeso, não aquele qualificado para a cirurgia bariátrica indicada para pessoas com IMC acima de 40, tem condições de perder 22.5 kg de seu peso corporal. Trata-se de uma meta revolucionária no tratamento da obesidade, cujo paciente deverá fazer uso do medicamento por toda a vida, levando-se em consideração a condição crônica da doença. Se o medicamento for aprovado pela FDA (Food and Drug Administration), agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, poderá ser colocado no mercado em breve. O destaque que se dá é a respeito da seriedade dos estudos e, principalmente, dos benefícios já constatados para a saúde humana, encontrando respaldo bioético no princípio da beneficência. Referido princípio compreende a realização de toda conduta voltada para buscar dividendos de saúde, com a mínima chance de danos, além de envidar todos os esforços para potencializar os benefícios e restringir ao máximo a eventualidade de prejuízo. Enfim, procura buscar um equilíbrio entre a inovação científica e as mais recomendadas soluções para o bem-estar da pessoa, destinatária única da fruição dos melhores benefícios. Aguardam-se, portanto, os próximos passos e o valor que o medicamento será introduzido no mercado. Até por que, em razão dos investimentos que foram projetados na pesquisa, ao que tudo indica, o preço não será acessível à comunidade que mais necessita. Daí, em razão do princípio da isonomia ou da justiça distributiva, caberá ao interessado buscar o acesso judicial aos cuidados de saúde acionando o Estado para patrocinar a aquisição. _______________ 1 Sandel, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Tradução Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 61. 2 "Medicamento contra obesidade promete resultado próximo ao da bariátrica".
O conceito social da medicina não se resume exclusivamente na competência e na excelência do serviço prestado pelo profissional da ars curandi, mas envolve, também, relações interdisciplinares com outras ciências visando atender os reclamos advindos, não só da transformação social, como os resultantes dos incessantes avanços tecnológicos, que acarretam, inevitavelmente, implicações éticas, bioéticas, jurídicas, políticas e outras mais. No atual estágio da medicina - que antevê um futuro com considerável reestruturação nos cuidados médicos e na práxis dos profissionais - destaca-se a relevante função da Bioética. Assim é que as novas tecnologias, que a cada dia vão se acumulando na área da saúde - quer sejam experimentais ou não - vão produzindo realidades diferentes no mundo exterior, provocando reflexo imediato no homem, seu destinatário exclusivo. Kant já traçava que o homem é o fim em si mesmo e não é recomendável pelo ideal hipocrático promover a artificialização do ser humano e sim buscar um bom sinalizador para preservar a dignidade existente na pessoa individualizada, conforme preconiza a Constituição Federal. Daí que surge a Bioética com seu ideal humanista como um espaço de reflexão congregando pessoas com diversas formações, não para conter o progresso técnico-científico, que é necessário e salutar, e sim direcioná-lo para acumular benefícios para a humanidade, tendo sempre em relevo o primum non nocere. A Bioética, desta forma, proporciona debates a respeito de temas atuais e provocativos a respeito de realidades até então desconhecidas e inéditas. Tendo como foco as questões de Bioética presentes no dia a dia das instituições e dos profissionais de saúde, principalmente aquelas que causam inquietude acadêmica, o Conselho Federal de Medicina editou a Recomendação 8/2015, incentivando a criação, funcionamento e participação dos médicos nos Comitês de Bioética. Tais colegiados não se assemelham aos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), regulamentados pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional da Saúde, que cuida do respeito e dignidade devidos aos participantes de pesquisas científicas envolvendo seres humanos. O Comitê de Bioética, por sua vez, compreende um colegiado multiprofissional, envolvendo médicos e representantes de diversos setores da sociedade, com o objetivo de auxiliar na reflexão e na solução de questões relacionadas à moral e à Bioética que surgem na atenção aos pacientes. Daí que as funções prioritárias são: a) dispor sobre e subsidiar decisões sobre questões de ordem moral; b) sugerir a criação e a alteração de normas ou de documentos institucionais em assuntos que envolvam questões Bioéticas; c) Promover ações educativas em Bioética. Seria - guardadas as proporções, pois o Comitê de Bioética não impõe decisão e nem pode emitir juízos de valor sobre práticas profissionais - uma plataforma administrativa para receber e analisar os conflitos de ordem ética, moral, religiosa ou de qualquer outra procedência. Basta ver que o princípio da autonomia da vontade do paciente ganhou considerável espaço no Código de Ética Médica, como, por exemplo, a deliberação a respeito do final da vida que, às vezes, colide com condutas médicas amparadas pelo princípio da beneficência ou até mesmo vai contra a vontade do representante e dos familiares do paciente. Isto porque os fatos científicos muitas vezes se entrelaçam com contornos sociais aparentando uma certa colidência na regulação ética das práticas humanas e exigem uma atuação compartilhada de um grupo que tenha sólida formação em humanidades, para extrair uma postura que seja considerada adequada e recomendada ao caso. Pode-se dizer que aí reside a marca identitária da Bioética e seu papel interventivo diante de um dilema que exige uma convergência de respostas. É a ética cívica indispensável para uma sociedade que avança destemida para um futuro que se guiará pelos mais complexos progressos biotecnológicos na área da saúde.
domingo, 24 de abril de 2022

O tapa dado por Will Smith

Fato amplamente noticiado no Brasil - e no mundo - o tapa desferido pelo ator Will Smith no comediante Chris Rock, durante a cerimônia de entrega do Oscar. O motivo da desavença residiu na piada sobre a esposa de Will, que ensejou debates e reflexões de várias ordens, inclusive na área jurídica, sobre a conduta praticada pelo famoso ator. Nesse passo, a fim de estimular ainda mais o debate, poder-se-ia imaginar quais as consequências jurídico-penais do fato, na hipótese abstrata de aplicação do Código Penal brasileiro in casu. Prima facie, é imperioso compreender a extensão da consequência do tapa desferido por Will Smith. É que a subsunção do fato à norma dependerá da gravidade do resultado, vale dizer, da produção de lesão ou não. Com efeito, a primeira possibilidade que se revela é o tapa que não cause nenhuma lesão corporal na vítima - sequer uma vermelhidão na face - o que ensejaria a incidência do artigo 21 do decreto-lei 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais): Praticar vias de fato contra alguém, cuja iniciativa da ação penal é pública incondicionada, isto é, o promotor de Justiça não precisa da delatio criminis postulatória (representação do ofendido) para oferecer a denúncia. Todavia, caso o tapa desferido pelo autor do fato causasse lesão na vítima, passa-se a aplicação, em tese, do artigo 129 do Código Penal - crime de lesão corporal: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. Aqui, diversas implicações precisam ser levadas em conta pelo estudioso do Direito, uma vez que o Código Penal disciplina a matéria sob diversos enfoques. Caso a lesão corporal seja de natureza leve, configura-se crime de ação penal de iniciativa pública, porém condicionada à representação da vítima. Ademais, considerando o máximo da pena privativa de liberdade cominada em abstrato, para o crime de lesão corporal de natureza leve, tem-se a incidência do rito especial previsto na lei 9.099/95.  Não se pode olvidar do § 4º do artigo 129 do Código Penal, no entanto, que dispõe que se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Deste modo, imprescindível se torna o questionamento: teria Will Smith agido impelido de forte emoção, após a injusta provocação da vítima? Ora, o suposto ofendido contou uma piada sobre a cabeça raspada da esposa de Will, que fora diagnosticada com uma doença cuja consequência é, justamente, a perda capilar. Então, seria possível concluir que esta piada configuraria a injusta provocação da vítima? E mais: essa injusta provocação da vítima faria incidir o artigo 129, § 4º, do Código Penal, ou o artigo 25 do mesmo Diploma Legal (legítima defesa): Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Caso se compreenda tratar-se de legítima defesa de terceiro, tem-se verdadeira causa de excludente de ilicitude, o que implica dizer que o fato é típico, porém não contrário ao Direito. Por outro lado, pode-se entender que o artigo incidente é o 129, § 4º, do CP, o que implica na diminuição obrigatória da pena a ser aplicada, na terceira fase da dosimetria da sanção. Finalmente, existe relevante doutrina brasileira, como a de Cleber Masson, que entende, corretamente, que se o intuito do agente, ao desferir o tapa, foi o de humilhar a vítima, aplica-se o artigo 140, § 2º, do Código Penal - crime de injúria real: se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes, a pena será de detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. Neste caso a acusação terá de provar que o dolo do agente seria o de ferir a honra subjetiva da vítima e não o de lesionar. Desafio interessante, sob o aspecto da distribuição do onus probandi. Quanto à tipificação das condutas, estas seriam as breves considerações a respeito da hipotética aplicação do nosso Código Penal, ao caso estudado. Mesmo assim, cabe uma última indagação: inobstante o crime em tese praticado, poder-se-ia concluir que não seria possível exigir que Will praticasse conduta diversa da realizada? Em outras palavras: haveria, in casu, excludente de culpabilidade, na modalidade inexigibilidade de conduta diversa? Qualquer pessoa que ouvisse a mesma piada sobre o cônjuge que possuísse a mesma doença, agiria da forma como Will agiu? Se a resposta for positiva, tem-se a aplicação da causa geral de exclusão da culpabilidade, que isenta o acusado da imposição de pena. Por outro lado, caso negativa, então Will poderia responder como incurso nas penas de algum dos artigos supracitados. Em apertada síntese, são considerações jurídico-penais brasileiras que, em um exercício de Direito Penal, seriam cabíveis ao estudo proposto.
domingo, 17 de abril de 2022

Abraço de Páscoa

Em algumas datas durante o ano, geralmente as motivadas por feriados religiosos, as pessoas param a desenfreada correria, fazem um pit stop quase que obrigatório e deixam transparecer os sentimentos que invadem seu interior, direcionados para a liturgia da comemoração. A Páscoa é uma delas. Com o significado hebraico de "passagem", na história compreendeu a libertação do povo israelita da escravidão do Egito. No ritual cristão, é a passagem da morte para a vida, retratada na ressureição de Cristo. E o povo brasileiro, com a sensibilidade que lhe é peculiar, tem por lema cumprimentar os parentes e amigos pensando no louvável progresso da humanidade. Quanto maior for a carga positiva dos votos, mais fecunda será a vida. É o efeito bumerangue em que se lançam os melhores cumprimentos que irão alcançar as pessoas destinatárias e, com sobras, atinge também o arremessador. Não adianta quixotear contra o tempo. "Nós somos os tempos, bradava Santo Agostinho, quais formos nós tais serão os tempos. Vivamos bem e os tempos serão bons." Aquilo que foi alcançado nada mais é do que o resultado da dedicação de cada um, devendo ser preservado no interior de uma concha protetora e mantido como um troféu, representando a conquista de um elevado projeto de vida. Daí é que nasce o criador, o idealizador, o vitorioso. Aquele que não entope de promessas os ouvidos carentes, mas preenche e sacia o vazio do coração e do corpo. O pouco que for extraído será significativo para cada um e para todos que o cercam, fortalecendo o espírito corporativo e edificando o altruísmo coletivo. Se o homem tiver a consciência de sua finitude será um construtor da obra duradoura que poderá legar ao próximo, ressuscitando as potencialidades do espírito e não vivendo como pequenos personagens no país imaginário de Lilipute, do romance Viagens de Gulliver. Quando se diz Feliz Páscoa não representa um toque dado com a varinha mágica para canalizar a atingir um fim colimado. É, antes de tudo, um pacto de comprometimento social com apelo de construir a passagem humana pelas melhores veredas, buscando sempre a sintonia do homem com a humanidade e o encaminhamento para a perfeição. Daí que a guerra foge totalmente do padrão humano. Basta ver - e aqui se encontra a verdadeira solidariedade humana - com o início da pandemia, a humanidade, a uma só vontade, debruçou-se para, em tempo recorde, encontrar vacinas para a imunização global. Conseguiu e restabeleceu a saúde dos povos. É uma verdadeira ação fertilizante que corrige a rota existencial, fazendo com que nasça no indivíduo a necessária disposição de renovar-se e reeducar o olhar para apreciar as belas coisas que se apresentam no dia a dia, com estímulos necessários para avançar nesta aventura maravilhosa chamada vida. E. acima de tudo, imbuído do melhor espírito cristão. Se cada um recitar o texto que lhe cabe no drama ou na comédia, representando o personagem que ambiciona ser, sem ziguezaguear em busca de identidades fictícias, vale lembrar a esperança cantada pelo Cavaleiro da Triste Figura: quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha junto é o começo da realidade. Feliz Páscoa para a humanidade!
Uma mulher trans foi agredida pelo pai que rejeitou sua opção de gênero. O Ministério Público, tomando conhecimento do fato e visando conferir a ela maior proteção, pleiteou a aplicação de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, que foram negadas pelo juiz de primeiro grau, assim como pelo TJ/SP, que entenderam que referida lei limita sua aplicação unicamente à mulher biológica. A 6ª turma do STJ acolheu o recurso e decidiu que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada também para a proteção de mulheres transexuais. O ministro relator Rogerio Schietti Cruz foi incisivo ao afirmar: "Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias".1 A Constituição do Brasil é abrangente e insere em seu texto todas as pessoas como sujeitos de direitos e obrigações, abrigadas pelo princípio da isonomia, além de conferir a elas a expressão da cidadania retratada na dignidade da pessoa humana, erigida como dogma constitucional na estruturação do Estado Democrático de Direito. O sistema binário estabelecido na legislação - homem e mulher - no sentido de que cada pessoa deve assumir o sexo contido em seu registro, caiu por terra e os próprios tribunais reconhecem a identidade de gênero como uma construção social e consciente em que a pessoa se identifica subjetivamente a um gênero, fazendo aflorar, desta forma, a identidade trans. A Lei Maria da Penha, além de se apresentar como uma legislação fundamental para coibir a violência no âmbito das relações familiares - considerada uma das formas de violação dos direitos humanos - expandiu-se sobremaneira e alcançou outras tutelas não previstas originariamente em seu núcleo, aparentemente duro. Tanto é que, frequentemente, a norma protetiva vem recebendo ampla interpretação dos nossos tribunais extraindo dela a mens legis mais adequada.2 Desta forma, por alcançar também qualquer ação ou omissão baseada no gênero, basta ver que a tipificação do feminicídio, estendeu seus tentáculos e permitiu abertura suficiente para encampar o direito à diversidade. É certo que também foram relevantes para a conquista deste direito as decisões proferidas pelo STF na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 e na ADIn 4.277, em que houve reconhecimento dos direitos homoafetivos, e a posterior Resolução 175, do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu o casamento homoafetivo e a conversão da união homoafetiva em casamento. O relator já mencionado fez a correta interpretação que é dada pelos tribunais, no sentido de que "gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres". Daí que se pode afirmar que é uma questão de autopercepção, totalmente desvinculada dos fatores externos. Sexo, por sua vez, é relacionado com as características biológicas definidoras das genitálias feminina e masculina. Assim, nesta conceituação, o sexo, por si só, não compreende e nem define a identidade de gênero. É interessante salientar ao tema que o STF, no âmbito da ADIn 4.275/DF, já reconheceu o direito da pessoa transgênero de, independentemente de cirurgia de redesignação sexual, a opção de retificar no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, o prenome e o gênero com a finalidade de fazer adequação à identidade autopercebida, conforme dispõe a Resolução 73/18 da Corregedoria Nacional de Justiça. Desta forma, a decisão comentada em conferir os direitos previstos na Lei Maria da Pena às mulheres trans trilhou as diretrizes recomendadas pelas mais recentes jurisprudências a respeito do tema, no sentido de que a identidade de gênero é diferente daquela que foi designada pelo nascimento e resulta na autoidentificação do interessado e se traduz igualmente na realização de um direito fundamental de complementação da identidade da pessoa. É certo que a decisão alcança somente o caso julgado, mas nada impede que se torne um paradigma abrindo precedentes para as demais ações ainda em tramitação judicial. ____________ 1 Disponível aqui. 2 O Plenário do STF, recentemente, declarou constitucional o artigo 12, incisos II e III da Lei Maria da Penha e, por unanimidade, decidiu que a autoridade policial, compreendendo delegados de polícia e policiais, em caráter emergencial, podem determinar o afastamento do suposto agressor do domicílio ou do lugar de convivência com a vítima quando ocorrer situação de violência doméstica e familiar (ADIn 6.138).
domingo, 3 de abril de 2022

A morte anunciada de Alain Delon

Gostaria de agradecer a todos que me acompanharam ao longo dos anos e me deram grande apoio, espero que futuros atores possam encontrar em mim um exemplo não só no local de trabalho, mas na vida de todos os dias, entre vitórias e derrotas.1 O ator Alain Delon, ícone do cinema francês e imortalizado em razão de seu desempenho em inúmeros filmes, publicou a mensagem acima de despedida, não das telas, que já havia abandonado em 2017, mas da própria vida. Anunciou que, em razão de uma doença que o obriga a inúmeras limitações, decidiu praticar o suicídio assistido, na Suíça, país em que tal prática é permitida desde 1942, a ser organizado pelo seu filho Anthony Delon. A finitude da vida, um tema que vem rompendo com preconceitos estigmatizados, ganha corpo e passa a frequentar a conversa do dia a dia e, apesar de não possuir uma legislação ordinária a respeito no Brasil, conta com resoluções do Conselho Federal de Medicina para disciplinar o procedimento ético do final da vida humana. Basta ver as regulamentações feitas a respeito da ortotanásia, dos cuidados paliativos e das diretivas antecipadas, seguindo o roteiro do princípio da dignidade da pessoa humana, preconizado na Constituição Federal. A morte surge, desta forma, como tema central e até mesmo natural, apesar de o homem resistir a travar discussão a respeito.  O anseio das pessoas é ter uma morte rápida, sem sofrimento e, logicamente, após ter exaurido a vida em sua intensidade. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente e, principalmente, quando a pessoa for abandonada à morte amarga (amarae morti ne trada nos). Nenhuma dúvida paira a respeito da higidez mental do ator francês quando verbalizou sua vontade. Sua decisão foi rapidamente propagada pelo mundo, detonou sentimentos favoráveis e contrários e tocou o cerne da finitude humana, criando um labirinto de dúvidas e incertezas. A respeito do tema pode-se dizer que há inúmeros argumentos favoráveis e contrários à opção da escolha do processo de morrer. Em países onde a prática é legalizada, como na Suíça, por exemplo, um dos requisitos é o sofrimento intolerável, sem qualquer perspectiva de alívio. No Estado de Oregon, nos Estados Unidos, a lei permissiva do suicídio assistido estabelece as seguintes condições: a) o paciente deve ter um prognóstico de vida de seis meses ou menos; b) o requerimento do paciente deve ser feito por escrito e repetido depois de quinze dias de período de espera; c) o paciente deve ser racional e mentalmente competente. Sua capacidade de julgamento não deve estar afetada por depressão clínica ou outras desordens mentais; d) deve-se obter uma segunda opinião médica; e) o paciente deve ter capacidade para ingerir por si mesmo, sem ajuda, a medicação. O direito de autodeterminação se faz presente no suicídio assistido.  A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim a renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante. Já advertia Camus: "Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos".2 No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido em razão da norma incriminadora disposta no artigo 122 do Código Penal, que pune a modalidade de prestar auxílio ao suicida, compreendendo aqui o fornecimento ou a viabilização dos meios necessários para a prática do ato. Não se confunde com a eutanásia, que é o ato pelo qual o agente pratica um ato específico para colocar fim à vida humana, em razão da irreversibilidade da doença. Na realidade, no suicídio ajudado, a pessoa solicita a um terceiro a colaboração quanto ao meio de atingir seu objetivo, sendo que a ação é do próprio interessado. Pessini, bioeticista com refinada agudeza de espírito, foi incisivo: "No suicídio medicamente assistido, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida".3 Muitas são as cunhas que cabem neste tema. Embora não se cogite a prática no país, é importante a comunidade tomar conhecimento de outra perspectiva de final de vida. ___________ 1 Disponível aqui. 2 Camus, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005, p. 19. 3 Pessini, Leo. Eutanásia - porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.
domingo, 27 de março de 2022

De quem é o embrião?

Uma ação judicial intentada recentemente chamou a atenção da comunidade jurídica pelo teor da pretensão deduzida. Um casal manteve um relacionamento em união estável por cerca de dois anos, período em que produziram embriões em uma clínica especializada em reprodução humana, já que ambos pretendiam a procriação. Nesta oportunidade celebram um pacto por eles assinado no sentido de que, finda a união, os embriões seriam descartados.1 O casal veio a se separar e a mulher, algum tempo após, pediu ao ex-companheiro autorização para usar os embriões, pleito que, no entanto, foi-lhe negado. Diante da recusa invocou a tutela jurisdicional justificando que o termo de consentimento assinado pelo casal durante a união estável foi em atendimento à resolução 2294/21, do Conselho Federal de Medicina e não em virtude de alguma lei que regulamentasse a matéria. Até mesmo para o mais dinâmico operador do direito a causa gera certa perplexidade, pois apresenta-se mais próxima da ficção científica do que da realidade jurídica. Abre-se, diante da inédita postulação, espaço para reflexão a respeito das novas tecnologias que produzem desafios não só para a justiça, mas para a própria humanidade. O Direito, como é sabido, cuida da aplicação e interpretação da lei e essa, por sua vez, deve ter o dinamismo ancorado nas mutações científicas e sociais para solucionar as questões com base nos pilares de sustentação do pensamento moral da sociedade. O tema é não só de alta indagação jurídica, mas também de interesse bioético. Busca-se, na realidade, conhecer o status do embrião na legislação brasileira. E o avanço da engenharia genética reprodutiva foi tão acentuado que, num repente, a fecundação intraútero, que até então era o critério norteador do início da spes vitae, desloca-se para a manipulação humana extracorpórea com a consequente formação de embriões. É uma nova realidade que se apresenta em razão da evolução da embriologia e da engenharia genética. O casal estéril poderá atingir a procriação com a utilização de componentes genéticos de ambos, de um só ou de nenhum deles. O embrião produzido artificialmente em placa de Petri, acomodado no interior de tubo de nitrogênio, guarda profunda diferença daquele fecundado naturalmente. A falta do locus apropriado ou do habitat natural para o alojamento demonstra, por si só, a impossibilidade de se atingir a spes hominis, pois no gélido interior que habita, não há qualquer chance de progressão reprodutiva. Não há dúvidas de que o tema abre um enorme espaço para considerações éticas e jurídicas. O certo é que o Código Civil, promulgado em 2002, ainda sedimentado em um noviciado legislativo a respeito do tema, limitou-se a traçar algumas normas a respeito da presunção que cerca os filhos nascidos durante a constância do casamento e, nesse rol, acrescentou também: os havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. Silencia-se, no entanto, com relação à destinação dos embriões criopreservados. Supletivamente, por outra banda, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2.294/2021, estabelecendo as normas técnicas e éticas do procedimento. No item V, nº 3 - quando trata da criopreservação de gametas ou embriões - é taxativo ao afirmar: "No momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los." A Resolução citada é um documento dirigido à comunidade médica para avaliar eticamente a conduta do profissional, com validade interna corporis, inferior, portanto, à lei, que tem o alcance erga omnes. Assim, em tese, o documento assinado pelo casal, representa, de forma inequívoca a vontade manifestada por eles, no sentido de prevalecer o descarte embrionário, em caso de dissolução da união estável. Tal interpretação abarca também qualquer iniciativa da mulher que cedeu seu material genético de pleitear a cessão dos embriões à clínica responsável pela criopreservação, pois, com base no documento ali arquivado, terá sua pretensão indeferida. O embrião pertence aos genitores e ambos devem se manifestar a respeito do destino a ser dado em caso de não utilização. Resta aguardar a decisão da Justiça. _____________ 1 Disponível aqui.
domingo, 20 de março de 2022

O último desejo e os cuidados paliativos

Izabel, paciente internada em um hospital do Ceará no programa de cuidados paliativos, recebeu diagnóstico de que - apesar de todo o esforço da equipe médica que a submeteu a três quimioterapias sem ter chance de receber um transplante de medula óssea - sua doença era irreversível. Diante do grave quadro, manifestou sua vontade de reencontrar o mar. Para tanto, contando com a iniciativa do programa de tratamento paliativo, realizou as necessárias transfusões de sangue e plaquetas para suportar a viagem de ambulância que a levaria para o mar. Ali chegando, buscou junto à inesquecível brisa um demonstrativo de entusiasmo misturado à gratidão e proferiu: "Todas as minhas memórias de praia são maravilhosas. O mar sempre me dá paz e harmonia. Reencontrar minha família, ainda mais na praia, foi uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida."1 O relato é pertinente para abordar o tema a respeito dos trabalhos desenvolvidos pelos profissionais da área de cuidados paliativos. Apesar de o termo carregar o significado de atuação final, na realidade o tratamento dispensado visa conferir ao paciente de doença grave as melhores condutas terapêuticas para o controle da moléstia. A Organização Mundial de Saúde redefiniu em 2002 a conceituação dos cuidados paliativos como "uma abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual". Cuidados paliativos, nesta visão, descartam qualquer apressamento da morte, mas sim provocam o surgimento de um cuidar cauteloso para conferir ao paciente a continuidade da sua dignidade. O estertor da morte é suavizado, de acordo com a intenção demonstrada pelo paciente in vita ou nas diretivas antecipadas de sua vontade. Seria, a título de exemplo, tomar o paciente pelas mãos e com ele caminhar na sua toada, com segurança e lentamente, levantando-o, quando suas forças minarem, até o umbral que interrompe o ciclo vital. É, portanto, uma tarefa especializada, que exige muito mais do que a solidariedade humana. Daí, muitas vezes, como sói acontecer, nem mesmo os parentes poderão executá-la a contento. Levando-se em consideração a inevitabilidade da morte, o homem, com o interesse em fazer preservar a dignidade que deve permear todos os ciclos de sua vida, elegeu agora sua finitude como sendo aquela que merece a atenção adequada. Tanto é verdade que a ars moriendi, em busca de uma morte que seja digna e compatível com o ser humano, abraçou a conceituação da ortotanásia contida no Código de Ética Médica no sentido de que, "nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal".2 A parte legal dos Cuidados Paliativos vem regulamentada pelas Resoluções na sequência apontadas: A resolução 1805/06 do CFM dispõe que, quando se tratar de fase terminal de enfermidades graves, o médico poderá limitar e até mesmo suspender os procedimentos fúteis e desnecessários para o prolongamento da vida do paciente, mas, por outro lado, deve garantir a ele os cuidados necessários para aliviar o sofrimento, respeitando sempre sua vontade ou a de seu representante legal.  A resolução 2068/13 aprova a Medicina Paliativa como área de atuação de especialidade. A resolução 41/18 MS, por sua vez, dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). A dor, o medo, a depressão, a insegurança, a ansiedade, o isolamento são circunstâncias que habitam a frágil vida do doente terminal, seja em decorrência de câncer, HIV/AIDS, Alzheimer e outras moléstias em estágio de irreversibilidade. A mente do enfermo, que ainda opera em meio a tanto tumulto, necessita buscar refúgio para se amparar, ou um colo para depositar suas últimas esperanças. Este espaço é geralmente ocupado pela figura do cuidador especializado, que irá entronizá-lo em uma espécie de redoma, aproximando-o do convívio dos familiares e amigos, da sua opção espiritual, de atender a realização de seus desejos quando possíveis, para que fique conectado com a dignidade da vida. Não só. Os cuidados alcançam também os familiares dos pacientes que recebem orientações para lidar com a doença e o apoio para o enfrentamento do luto. Hoje, nota-se o surgimento de algumas clínicas e hospitais especializados nesta função caritativa e que prezam pela qualidade do atendimento, por meio de um corpo clínico com aderência na área e equipamentos necessários para atendimento rotineiro dos pacientes. Tal desiderato faz ver que não basta somente o sucesso da ciência em proporcionar a tão ambicionada longevidade. É preciso que haja a qualidade de vida compatível com a ambição humana. E, quando vencidas todas as etapas, a pessoa defrontar-se com a terminalidade de uma doença, que tenha ela um serviço de saúde adequado em que possa receber o conforto e a atenção, refletindo, desta forma, a merecida dignidade de seus últimos dias. Justificada e plenamente louvável a iniciativa da equipe de cuidados paliativos do hospital do Ceará. ____________ 1 Disponível aqui. 2 Artigo 41, parágrafo único da Resolução CFM 2.217/2018.
O tema aborto vem frequentando com certa assiduidade as discussões travadas a seu respeito e a conclusão é que recrudesce cada vez mais a polêmica, justamente por ser incandescente e envolver posições inquebrantáveis.  Aparentemente os argumentos são repetitivos, porém, na realidade, a reiteração é justamente para buscar o amadurecimento a respeito de sua conveniência ou rejeição definitiva.  O ambiente, quando propício e de alta fermentação coletiva, colabora para a busca de uma decisão que seja satisfatória à população. Além do mais não é um assunto voltado para uma área específica e sim regido pela interdisciplinaridade, em que várias vozes da saúde, psicologia, sociologia, religião, direito, ética e outras tantas falam ao mesmo tempo trazendo suas colaborações. Nos últimos anos alguns países da América Latina - Uruguai, Guiana, Cuba, Porto Rico, Argentina e agora Colômbia, até então considerados conservadores a respeito do tema - passaram a romper as estruturas sólidas que os amarravam a um conservadorismo fincado em tradições e, graças aos movimentos feministas, conseguiram aprovar a descriminalização do aborto. Paradoxalmente, nos Estados Unidos, alguns estados firmaram posição em insistir na proibição. Na realidade, já existia tal possibilidade quando o ato fosse praticado para salvar a vida da gestante, proveniente de estupro ou de má-formação do feto. Recentemente o Senado da Argentina aprovou lei que foi regulamentada pelo Executivo (Lei 27.610/2020) estabelecendo a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. Após esse período, prevalece a regra anterior consistente em salvar a vida da gestante ou quando a concepção for fruto de estupro. A proposta fazia parte dos compromissos eleitorais do presidente Alberto Fernández. Na regulamentação legal ficou disciplinado que toda gestante poderá ter acesso ao aborto, que será realizado pelo sistema de saúde, de forma gratuita e segura. As gestantes menores de 13 anos terão acesso ao programa desde que acompanhadas por um dos pais ou do representante legal. Adolescentes entre 13 e 16 anos necessitarão da autorização se o procedimento comprometer sua saúde. Já as maiores de 16 anos terão autonomia plena e decidirão por sua própria conta. No Uruguai a lei existe há mais tempo (lei 18.987/2012). É permitido o aborto, em qualquer circunstância, até a 12ª semana de gestação. Em caso de estupro ou se for para salvar a vida da gestante ou até mesmo de má-formação do feto, pode ocorrer em qualquer período. A gestante será entrevistada por uma equipe multidisciplinar que, dentre outras ponderações, sugerirá a ela a possibilidade de levar adiante a gravidez para entregar posteriormente a criança para adoção. A Colômbia, em recente decisão apertada proferida pela Corte Constitucional (cinco votos a favor e quatro contra), descriminalizou a modalidade e permitiu a realização do aborto até a 24ª semana de gestação e, acima desse período, em qualquer tempo, quando se tratar das hipóteses de estupro, má-formação do feto ou risco de morte da gestante. Por se tratar de uma decisão judicial, há necessidade da intervenção do Congresso para a regulamentação da matéria, mas é certo que nenhuma colombiana poderá ser julgada pela prática do crime abolido. No Brasil aborto é o produto da concepção eliminado pelo abortamento. É considerado crime pelos tipos penais dos artigos 124 e 126 do Código Penal, com exceção de duas hipóteses: gravidez decorrente de estupro ou quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Em ambos os casos, não há necessidade de obtenção de autorização judicial, como é comentado amiúde. E há também uma terceira hipótese, ainda não formatada em lei, que é a permissão do procedimento quando se tratar de feto anencefálico, tema que foi discutido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54 (arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). Essa mesma Corte de Justiça, cumprindo sua missão constitucional, palco de relevantes decisões que repercutem sobremaneira na vida brasileira, abriu suas portas para o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), intentada pelo PSOL, arguindo a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação A fundamentação do pedido apega-se aos direitos da dignidade, da liberdade e da procriação da mulher, conflitantes que são com o regramento penal proibitivo. A primeira indagação que se faz, até mesmo como preliminar para o debate, reside na discutida competência da Corte Suprema para analisar a questão. Questionou-se, ainda no âmbito das audiências públicas, a respeito do ativismo judiciário que, no caso, estaria invadindo a competência do Legislativo, retirando do Congresso o conhecimento da matéria, locus apropriado para expressar a soberania do povo. O Judiciário, por este prisma, não está jungido da legitimidade para fazer nascer um novo direito positivo. A manifestação originária, de pura índole constitucional, fonte que emana todo poder conferido pelo povo, deve ser exercida pelo Congresso Nacional, legitimado que é para discutir e estabelecer regras a respeito de tema tão abrangente, com ampla participação da sociedade, inclusive com a coleta de consulta pública. A restrita área do Judiciário, por onde caminha a pretensão deduzida, figurando como manifestação derivada, irá culminar em uma decisão interpretativa de princípios, de veio nitidamente hermenêutico, sem a chancela popular a respeito da legalização ou não do aborto. Não se pode olvidar e nem mesmo deixar de citar parte do memorável voto do então Ministro Cezar Peluso, do STF, na ADPF 54, em 2012, que despenalizou o abortamento de fetos anencéfalos, em tão curto, mas bem postado parágrafo: "Essa tarefa é própria de outra instância, não desta Corte, que já as tem outras e gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no Congresso Nacional que se deve debater se a chamada 'antecipação do parto', neste caso, deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude." 1 Neste caminhar alguns passos já foram dados visando patrocinar a descriminalização do aborto. A 1ª turma do STF,2 analisando pedido de revogação de prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto, com votos dos Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, entendeu que o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação não é crime. É certo que a decisão não foi proferida pelo Plenário da mais alta Corte de Justiça do país, mas, de qualquer forma, abre um precedente para que outros juízes, invocando o mesmo entendimento, venham a descriminalizar o aborto. A fundamentação legal teve como base de sustentação a autonomia da vontade da gestante, a proteção da sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero. São direitos de última geração na avaliação de Bobbio e que, inegavelmente, tutelam a mulher na sua função procriativa, observando que, no caso presente, trata-se de gravidez proveniente de prática sexual consentida. Por outro lado, evita-se a criminalização exclusivamente contra as mulheres pobres que não podem se socorrer a um procedimento que seja seguro e fornecido pelo Estado. A evolução dos costumes traz consigo novas realidades que muitas vezes desmontam a estrutura de valores até então solidamente fincados no universo social e determina uma profunda mudança comportamental. Virar as costas e seguir adiante de nada adiantará porque o novo embrião, que se encontra em gestação, vem ganhando corpo e, ao que tudo indica, após o parto, será coberto pelo manto da legalidade. ___________ 1 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334. 2 HC 124.306, de 2017.
A recente invasão das tropas russas na Ucrânia mobilizou a comunidade internacional que, além de repudiar o ato de guerra, tomou várias medidas econômicas e até mesmo de auxílio bélico para envio de aviões, navios e armas para Kiev e, ainda, imposição de sanções para minar o poderio financeiro do país invasor. É indiscutível que a guerra carrega trágicos prejuízos para o povo e para o local onde é travada, mas, como um míssil de longo alcance, atinge inúmeros outros países que há muito tempo vinham consolidando um harmonioso relacionamento junto à comunidade globalizada. Kiev, capital da Ucrânia, abriga inúmeras clínicas de infertilidade e recebe casais brasileiros que optaram pela maternidade de substituição, considerada legal no país desde 2015, (surrogacy, assim denominada em inglês), além de armazenar os embriões criopreservados dos interessados na procriação. O procedimento, no caso de maternidade de substituição, gira em torno de 39.900 a 64.900 euros, enquanto que as doadoras de óvulos recebem de 4.900 a 11.900 euros.[1] Perfeita e bem acabada a definição da Lei Portuguesa[2] a respeito da maternidade de substituição: "Entende-se por maternidade de substituição qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando-se aos poderes e deveres próprios da maternidade". A maternidade de substituição, pela lei da Ucrânia, é permitida somente para casais heterossexuais que tenham problemas médicos de infertilidade e os óvulos podem ser doados tanto por voluntários anônimos quanto por familiares dos interessados. As candidatas à maternidade devem ter cidadania ucraniana, com idade até 36 anos, desde que comprovadas a saúde física e mental. Após o nascimento - tudo seguindo rigorosamente as regras de um contrato assinado pelas partes envolvidas - a mãe que exerceu a gravidez de substituição e sem qualquer direito parental, entregará a criança aos pais biológicos, cujos nomes constarão da certidão de nascimento do recém-nascido, assim como do seu passaporte. É ainda de se observar que, após o nascimento, a criança é submetida a exame de DNA visando comprovar se os interessados que contrataram os serviços de "barriga de aluguel" são realmente os pais biológicos. Recentemente, quando foi decretada a pandemia pela Organização Mundial da Saúde, o governo ucraniano impôs a proibição de entrada no país como uma das medidas de combate ao coronavírus. Os genitores das crianças nascidas pela maternidade de substituição passaram por momentos difíceis, vez que não tinham acesso para buscar os filhos e as clínicas tiveram que se desdobrar nos cuidados exigidos pelos recém-nascidos. Tal fato reacendeu a discussão travada, principalmente na Europa, a respeito da afronta à dignidade humana da mulher que pratica verdadeiro comércio com seu corpo e passa a ser tratada como mercadoria no lucrativo comércio de "útero de aluguel". Com a guerra em andamento no território ucraniano as clínicas de infertilidade - em razão das cláusulas contratuais protetivas às mães substitutivas e aos embriões vindos de outros países e encaminhados para Kiev ou aí produzidos - vêm monitorando e procurando sempre buscar locais seguros para os embriões, como o alojamento em bunkers, e as gestantes estão sendo transferidas para cidades próximas da divisa com a Polônia. E, em último caso, cogita-se até mesmo de encaminhá-las para outros países. E, nesse caso, tem início novo imbróglio, pois poucos são os que permitem a prática da maternidade de substituição, como é o caso da Rússia, Tailândia, Índia e alguns estados dos EUA. Em caso de transferência para algum país em que não exista legislação a respeito da matéria, não será possível o cumprimento total do contrato. A mãe gestora, desta forma, no ato do nascimento, deverá registrar a criança em seu próprio nome e não terá condições de entregá-la para os pais biológicos. Talvez até, dependendo da legislação, possa se cogitar de eventual adoção da criança. O certo é que teremos mães substitutivas e biológicas itinerantes em busca de um local propício para a regularização registral da criança. Diante de tantos entraves não é de se pensar em realizar a reprodução assistida no Brasil? O procedimento é totalmente diferente. A respeito da reprodução assistida vige a Resolução 2.294/21, do Conselho Federal de Medicina, que regulamenta a matéria. As técnicas de reprodução assistida são utilizadas para auxiliar o processo de procriação, desde que exista possibilidade de sucesso e baixa probabilidade de risco grave à saúde da paciente, que não poderá ter acima de 50 anos de idade, ou do possível descendente e jamais serão utilizadas com a intenção de selecionar sexo ou outra característica biológica do futuro filho, observando que a finalidade é exclusivamente voltada para a procriação humana. Também poderão se valer das técnicas os heterossexuais, homoafetivos e transgêneros, assim como a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina. A doação de gametas não tem caráter lucrativo ou comercial e será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores, exceto na doação de gametas para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores. Quando se tratar de gestação de substituição, também conhecida como cessão temporária do útero, a cedente deverá ter ao menos um filho vivo e pertencer à família dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, observando que o primeiro grau compreende pais e filhos; o segundo, avós e irmãos; o terceiro, tios e sobrinhos; e o quarto, primos. Com o nascimento da criança, o registro e a emissão da respectiva certidão de nascimento do filho havido por reprodução assistida serão lavrados de acordo com o Provimento nº 63/2017 da Corregedoria Nacional de Justiça. Percebe-se, pelo breve relato feito, que a diferença maior entre o Brasil e a Ucrânia, no tocante à reprodução assistida, reside na gratuidade da doação de gametas e da cessão temporária de útero, uma vez que a legislação brasileira considera o corpo humano e suas partes como bem extra commercium, sem qualquer perfil negocial ou lucrativo. 1 https://veja.abril.com.br/mundo/lockdown-deixa-dezenas-de-bebes-de-barriga-de-aluguel-presos-na-ucrania/ 2 Artigo 8º da lei 32, de 26 de julho de 2006, que trata da Procriação Medicamente Assistida.
domingo, 27 de fevereiro de 2022

A proibição do cigarro eletrônico

A apreensão de cigarros eletrônicos em operações rotineiras policiais, nas rodovias federais e estaduais, assim como nas lojas convencionais do comércio, vem se intensificando e demonstrando que a circulação desta mercadoria corresponde a uma procura cada vez mais crescente, exigindo novas condutas operacionais para um combate efetivo às reiteradas condutas contra a saúde pública. A tecnologia avança de forma espetacular e vai produzindo itens que facilitam a vida do homem, fazendo com que tenha condições de desenvolver seus objetivos. O mau uso da tecnologia, no entanto, faz do homem sua própria vítima. A começar pelas drogas sintéticas produzidas por substâncias químicas psicoativas, que agem da mesma forma que as tradicionais carregando malefícios ao organismo humano. Agora, como que visando suavizar os males do tabaco, chegou a vez do cigarro eletrônico. A tecnologia, nesse caso, em vez de extirpar o vício, incentiva-o por meio de uma via substitutiva, tão nociva quanto a originária. Muitos adeptos desta modalidade alardeiam que é permitido o uso da máquina eletrônica em locais fechados, com pessoas reunidas, fora do alcance da lei 12.546/11, portanto. Seria uma forma de descaracterizar a proibição legal, pois as baforadas não carregam fumaça e sim vapor e não há queima do tabaco e alcatrão. Além do que o artifício pode ser considerado como medida alternativa no tratamento do tabagismo, possibilitando considerável diminuição do cigarro convencional. Vício interpretativo tão destoante quanto o vício do tabagismo. Deve-se buscar no nascedouro a motivação da lei antifumo. A principal nocividade do tabaco reside em conter monóxido de carbono e viciar paulatinamente, sem dose letal como outras drogas, mas que provoca dependência e a ocorrência de doenças respiratórias, cardíacas, além de abrir espaço para a ansiedade e depressão e outras doenças. O interesse que determinou a vontade da lei foi o de proteger a saúde não só do fumante, como também do tabagista passivo, que vem a ser aquele que inala fumaça dos derivados de tabaco, em ambientes fechados. É a chamada Poluição Tabagística Ambiental, assim denominada pela Organização Mundial da Saúde. Ora, a ratio legis é a de cuidar da saúde dos fumantes e não fumantes em locais fechados, independentemente ou não de qualquer solicitação. A Lei Maior determina, de forma taxativa, que a saúde é direito de todos e obrigação do Estado, que adotará as políticas de atuação, compreendendo aqui as preventivas, visando reduzir o risco de doenças e de outros agravos. A lei proibitiva do fumo, de alcance nacional em razão da lei 12.546/11, repete em seu art. 2º o preceito impeditivo da lei paulista 13.541/09, que proíbe "o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público". Quando o legislador faz uso da conjunção alternativa "ou" e a ela soma o pronome indefinido "qualquer", pretende, de forma inequívoca, alcançar todas as situações que carregam semelhança com aquela lançada como regra. É uma perfeita adequação de compatibilidade, sem fugir do escopo principal da lei. Por outro lado, o cigarro eletrônico - que é composto de uma bateria de lítio, um atomizador responsável pelo aquecimento e o refil que armazena a nicotina diluída em solventes - é de venda proibida no país, circunstância que dificulta ainda mais sua aquisição. A Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária disciplinou a matéria pela Resolução 46/09, que no artigo 1º traz a seguinte determinação: "Fica proibida a comercialização, a importação e propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como cigarros eletrônicos, e-cigarretes, e-ciggy, e-cigar, entre outros especialmente os que aleguem substituição de cigarro, cigarilha, charuto, cachimbo e similares no hábito de fumar ou objetivem alternativa no tratamento do tabagismo". Não há, portanto, qualquer liberalidade para o uso do cigarro eletrônico em recintos fechados, públicos ou privados.   Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, sócio fundador do escritório Eudes Quintino Sociedade de Advogados.    
domingo, 20 de fevereiro de 2022

A legitima defesa putativa

A notícia foi dada até com certa serenidade pela imprensa ao relatar que um sargento da marinha, ao regressar para sua casa após uma viagem, percebeu quando uma outra pessoa se aproximava de seu carro. E, ao ver que essa pessoa fez um movimento como se fosse pegar alguma coisa na mochila, efetuou contra ela três disparos, sendo que dois a atingiram e provocaram sua morte. Ocorre que a vítima era pessoa que residia no mesmo condomínio do atirador, encontrava-se desarmada e estava chegando de seu trabalho, momento em que enfiou a mão na mochila para pegar a chave do portão da residência. O militar compareceu à delegacia de polícia e justificou ter confundido a vítima com um assaltante. Tanto é que, após desfeito o erro, transportou-a até o hospital, local onde veio a falecer. A autoridade policial indiciou o militar pela prática do crime de homicídio culposo. O Ministério Público, no entanto, legitimado para promover a ação penal, pleiteou e a justiça determinou a mudança da tipificação para crime doloso, assim como a decretação da prisão preventiva. Quando o Código Penal inseriu a legítima defesa como um direito de qualquer cidadão e, principalmente, como causa de exclusão da antijuridicidade, assim o fez tendo como fundamento um conteúdo ético positivo uma vez que qualquer pessoa, quando se vê diante de uma agressão injusta, atual ou iminente, pode usar dos meios necessários para repeli-la. Se assim não fosse, o próprio Estado homologaria a injustiça. É a configuração da legítima defesa real, ou propriamente dita. No caso relatado há uma situação diferenciada que faz a ação se deslocar para o campo da legitima defesa putativa. O verbo putare em latim tem o significado de julgar, pensar, acreditar, envolvendo diretamente a representação errônea que o agente faz de uma situação objetiva. Trata-se das descriminantes putativas, previstas no art. 20 § 1º, do Código Penal, in verbis: É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. Tal determinação torna imperiosa a análise plenamente subjetiva da conduta do agente. Ainda que tarefa de imensa dificuldade e deveras trabalhosa, deve o aplicador do direito buscar atingir o centro volitivo do autor dos disparos, no sentido de aferir sua real intenção e assim determinar se houve um erro plenamente justificável (escusável) em sua conduta. Verifica-se, pois, de acordo com o artigo citado, a ocorrência das conhecidas descriminantes putativas, que nada mais são do que um erro do agente, que supõe uma situação que, se de fato existisse, tornaria sua ação lícita, escudada pela lei. Evidente, portanto, a árdua tarefa do magistrado, que precisa extrair dos elementos colhidos nos autos a clara evidência de que o agente só poderia agir da maneira como agiu. É preciso decifrar a imaginação do agente, a ponto de concluir que, de fato, qualquer pessoa na sua posição, agiria da mesma forma. Seria uma reconstituição subjetiva e contaria objetivamente com as circunstâncias que circundaram o fato, como o horário, a iluminação do local, o estado anímico, o medo, o receio do agente, a necessidade de fazer uso da arma de fogo, eventual diálogo ocorrido antes dos disparos, a presença considerada ameaçadora da vítima, com seus gestos e sentido de caminhar. E a referência para tal situação repousa na conduta do homo medius, quer dizer, se a ação praticada pelo acusado seria certamente a mesma que outra pessoa qualquer em seu lugar. O cérebro humano tem suas regras, pode criar uma sucessão de imagens visuais refletindo não uma situação real, mas sim aquela que é proveniente da percepção falsa. O certo é que o cérebro tem suas regras e cria suas imagens de acordo com a realidade que lhe é apresentada e as constrói segundo a catalogação pré-existente do objeto, levando-se em consideração uma série de fatores externos. A visão que se cria pode ser falsa no tocante à identificação de eventual arma, porém, pelo estímulo do momento e pelas circunstâncias, faz ver a existência de algo verdadeiro e que reclama uma ação imediata. O neurocientista Damásio, que há muito tempo destrincha os processos neurais envolvendo o cérebro e o corpo, salienta: Em suma, o cérebro mapeia o mundo ao redor e mapeia seu próprio funcionamento. Esses mapas são vivenciados como imagens em nossa mente, e o termo "imagem" refere-se não só às imagens do tipo visual, mas também às originadas de nossos sentidos, por exemplo, as auditivas, as viscerais, as táteis.1 Se o Direito é uma ciência interpretativa, o Direito Penal ganha ainda mais relevo quando perquire a apreciação do elemento subjetivo do agente causador de uma determinada conduta. Há necessidade de uma apreciação cum grano salis para se encontrar o elemento norteador da conduta para pinçá-lo com total segurança e avaliar toda a extensão do iter criminis. A investigação a ser feita terá como palco o resultado da ação comparada com a configuração engendrada pela pessoa. Pode se dizer que é escavar a profunda abstração da mente do agente. Qualquer deslize interpretativo pode provocar uma enorme injustiça. É tênue e muito sensível o ponto de determinação da vontade do infrator, que irá exigir uma concentração ampliada para atingir tal intento. Deste modo, cabe ao Ministério Público uma verdadeira ginástica interpretativa na formulação da denúncia e ao Judiciário alcançar a real intenção imaginária do agente, para que se possa atingir o fim previsto na lei penal. ___________________ 1 Damásio, Antonio R. E o cérebro criou o homem. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.33.
domingo, 13 de fevereiro de 2022

O Caso Moïse e a consciência coletiva

A imprensa nacional noticiou e a internacional ampliou pelos quatro cantos o assassinato praticado no Brasil contra o imigrante congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, que foi agredido violentamente por cerca de 15 minutos por três pessoas que desferiram vários golpes com pedaços de madeira e um taco de beisebol, além de amarrarem suas mãos e pernas, não permitindo, desta forma, qualquer defesa e, em consequência, veio a falecer no local. A elucidação do crime foi facilitada pelas imagens das câmeras de segurança existentes no quiosque localizado na praia da Barra da Tijuca. As imagens, que causam repúdio a qualquer pessoa, são claras e nítidas em demonstrar a intenção homicida que norteou a conduta dos participantes do ato delituoso. O iter criminis foi perseguido de forma acentuada e num crescendo de revezamento de agressões entre os participantes, até atingir o desiderato final. A própria definição de crime - consistente na conduta humana voluntária e dirigida a expor a perigo ou causar dano a um bem juridicamente tutelado e previamente previsto em lei - apequena-se diante da brutalidade desmedida. Pode até ser que o fato gerador do assassinato esteja conectado a fatores raciais ou até mesmo aversão ao imigrante congolês, ou ainda à cobrança de três diárias de serviços prestados, embriaguez da vítima, mas seja lá o que for, não justificaria o ato extremo praticado com requintes de crueldade. Apesar de o Código Penal incorporar a motivação hedionda de crime, percebe-se pela violência da morte que ultrapassou os limites da hediondez e o cidadão, aquele que convive neste clima de total insegurança, doído de tantas decepções, fica cada vez mais inseguro e vê minada sua esperança de encontrar um local em que possa viver em segurança.  O tema da violência urbana se exibe, há muitos anos, como se fosse a última grife e rende dividendos inesgotáveis de notícias e comentários. Com costumeira frequência são noticiadas mortes de crianças em razão de balas perdidas, feminicídios revoltantes contra as mulheres e uma série infindável de crimes que, aparentemente, não guardam explicações lógicas, mas demonstram que, de forma acentuada, até mesmo sem qualquer justificativa aparente, a violência vai ganhando cada vez mais espaços. É frustrante ver a escalada estarrecedora de crimes de conteúdo explícito de violência continuar a crescer sem limites e a sociedade acuada, com o torniquete de sua liberdade apertado ao extremo. E o círculo do inconformismo vai por aí afora, assistindo a um verdadeiro concubinato entre a sociedade civilizada e a criminalidade, que foge cada vez mais da civilidade e já soa como ladainha rotineira. É sintomático que diante de uma situação tão enviesada as pessoas continuam em busca do insólito. Uma das facetas que se denota da prática de tão horrendo crime é a ofensa que provocou contra o sentimento coletivo das pessoas, que ocasionou, a um só tempo, a mesma repulsa. Cada um tem a sua avaliação, seu sentimento a respeito das regras que regem a harmonia social. Um homicídio sem justificativa, por si só, já é um ato sem aceitação e a sociedade traz de forma implícita um sentimento de repulsa que é ampliado pela forma barbárie que foi cometido. O francês Émile Durkheim, sociólogo e cientista político, considerado como o arquiteto da ciência social moderna, elegeu a sociedade como objeto de seus estudos e tinha como característica dar ênfase científica aos fatos sociais. Para ele um determinado sentimento comum de um grupo social pode ser designado como "consciência coletiva", representando a fusão das consciências individuais - que transcende o pensamento do indivíduo - e a opinião de cada um desemboca na realidade psíquica da sociedade, revelando, de forma explícita, o pensamento de censura do grupo. O fato criminoso comentado foi repelido por toda a sociedade que teve seu sentimento comum ferido. Daí porque o Código Penal estabelece a sanção penal correspondente à conduta, demonstrando, de forma inequívoca, que a reação do Estado está na mesma sintonia do pensamento difuso da sociedade. Essa, por sua vez, é dotada de uma espécie de termômetro que vai estabelecer as raias de uma eventual aceitabilidade de determinada ação. Quando a conduta humana exceder os parâmetros estabelecidos pelo ente coletivo, forma-se um conteúdo de irresignação popular que brada em alta voz um apelo à própria humanidade. Durkheim, a esse respeito, foi criterioso quando da construção da sua teoria  da imoralidade particular que é reprimida por meio de penas para combater a criminalidade: Evidentemente ela não pode vir senão de uma ou várias características comuns a todas as variedades criminológicas; ora, a única que satisfaz esta condição é a oposição que existe entre o crime, qualquer que seja, e certos sentimentos coletivos. É, pois esta oposição que faz o crime, em vez de derivar dele. Em outros termos, não é preciso dizer que um ato fere a consciência comum porque é criminoso, mas que é criminoso porque fere a consciência comum. Não o reprovamos porque é um crime, mas é um crime porque o reprovamos.1  _____________ 1 Durkheim, Émile. Da divisão do trabalho social. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 41.
A lei 10.261/01, também conhecida como Reforma Psiquiátrica, com vigência há mais de 20 anos, tem como objetivo principal a proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e, para tanto, redireciona o modelo assistencial em saúde mental, buscando sempre proporcionar aos pacientes um tratamento mais humanizado, igualitário, seguindo a baliza constitucional da dignidade da pessoa, principalmente sua recuperação e reinserção social. Tanto é que deixa transparecer seu espírito colaborativo e protetivo no primeiro artigo, quando proclama: "Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra." E complementa no parágrafo único do segundo artigo, inciso II, também voltado à pessoa portadora de transtorno mental: "Ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade." É neste palco que se situa a exposição do tema proposto, atrelado diretamente à internação involuntária dos usuários de drogas, principalmente daqueles que frequentam locais, ruas e praças públicas para o consumo das substâncias ilícitas. A lei sub studio adverte, antecipadamente, que a internação psiquiátrica só será permitida quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, deixando bem claro que a intenção será voltada para um ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, dando preferência para os serviços comunitários de saúde mental. Quando, no entanto, for admitida a internação, exige, antecipadamente, a apresentação de um laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, e estabelece as seguintes modalidades: a) voluntária, quando receber a anuência do usuário; b) involuntária, quando se dá sem o consentimento do usuário e sim a pedido de terceiro; c) compulsória, quando ocorrer determinação judicial e somente será determinada mediante decisão fundamentada. Diante das dificuldades apresentadas, o próprio legislador se convenceu da necessidade de retirar a internação compulsória de dependentes químicos. Para tanto foi sancionada a lei 13.840/19 que modifica a lei 11.343/06 e estabelece medidas para prevenção do uso indevido, atenção, reinserção social dos usuários e dependentes de drogas. Referida legislação exclui a internação compulsória judicial e permite a internação involuntária a ser providenciada e autorizada pela família ou responsável legal do dependente e, na falta de ambos, o pleito poderá ser feito por servidor na área da saúde, assistência social ou de órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), pelo prazo máximo de 90 dias, considerado suficiente para a desintoxicação, a ser cumprido em unidades de saúde e hospitais gerais, sempre com o aval de um médico. Faz-se aqui uma explicação necessária a respeito da internação involuntária e a compulsória. Na primeira delas a tomada de decisão não é do paciente, mas seu direito deve ser resguardado. Tanto é que a lei 10.216/01 determina a obrigatoriedade da comunicação ao Ministério Público por meio do Termo de Comunicação de Internação Involuntária (Portaria GM 2391/02) para que o representante do Parquet, em razão de sua missão institucional, exerça a função fiscalizadora dos direitos dos pacientes internados nesta condição. A internação compulsória, por sua vez, terá ocorrência apenas na condição de existência de delito e consequente inimputabilidade observada após tramitação de processo em separado, conforme acentua a Portaria nº 8/2019, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no parágrafo único do artigo 18. Da mesma forma a internação provisória prevista no artigo 319, VII da Lei de Execuções Penais (LEP), muitas vezes utilizadas para a internação de usuários de álcool e outras drogas ou pessoa com transtornos mentais, só pode ter sustentabilidade legal em caso de existência de crime praticado com violência ou com grave ameaça. Cai por terra, desta forma, o decreto-lei 891/38 que previa internações compulsórias de usuários de álcool e drogas, pois não foi recepcionado pela Constituição Federal da República de 1988, não podendo ser considerado vigente quando da promulgação da lei 10.216/01. Cabe aqui uma cunha comparativa com a obra "O Alienista", de Machado de Assis, em que o médico dr. Bacamarte construiu um manicômio na pequena Itaguaí para cuidar dos pacientes com problemas mentais. O autor, com a sagacidade que lhe é peculiar, elaborou uma perfeita crítica social, além de tecer uma considerável e coerente análise psicológica dos personagens, principalmente do médico responsável pelo hospital, que seguia rigorosamente seus rigorismos científicos. Com o passar do tempo, 75% da população acabou internada. Na realidade a proposta e preocupação da lei é abrir espaços para atingir cada vez mais metas relacionadas com políticas públicas para solucionar um problema sério e preocupante, que é o da saúde mental dos dependentes químicos. É inquestionável o direito da pessoa de se manifestar a respeito de determinada decisão que lhe aprouver, desde que seja capaz, com plenas condições de discernimento. Não preenchida a condição de autogoverno e autodeterminação, como é o caso geralmente do dependente em drogas, a representação passa para os familiares e, na falta, para terceiros juridicamente legitimados. O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 4º, II, em acréscimo determinado pela lei 13.146/15, considera relativamente incapaz os viciados em tóxico para praticar determinados atos ou à maneira de os exercer. É sabido, por outro lado, que há vozes que bradam contrariamente e defendem que a internação só poderá ocorrer com a concordância expressa do paciente ou de seus representantes legais e não por outra medida coativa, circunstância que retira totalmente sua autonomia. Mas, por outro lado, há de se atentar que o dependente gera um perigo para si mesmo, assim como para o grupo social que frequenta. O que não se concebe é o fato ocorrido há tempos atrás na cidade de São Paulo, que compreendeu a decretação generalizada da internação compulsória feita a critério do órgão municipal, sem a elaboração do laudo psiquiátrico circunstanciado individualizado, não só para garantia do direito do paciente como também para a segurança do serviço médico, respeitando os parâmetros da autonomia do enfermo ou de seu representante legal, visando à tutela da dignidade da pessoa humana. A vulnerabilidade do dependente é manifesta e sem qualquer compreensão e discernimento a respeito de seu quadro clínico, pode colocar em risco sua própria saúde. A volição humana compreende a autodeterminação do paciente em confabular e autorizar o profissional da saúde a realizar determinada conduta médica escolhida dentro do seu critério de conveniência. Seria, em outras palavras, o médico pedir permissão para a prática da conduta interventiva. A aquiescência vem materializada no documento devidamente assinado pelo interessado ou seu representante legal, que é o termo de consentimento informado. Quer dizer, o destinatário do serviço de saúde, de forma consciente, autoriza a realização da prática médica, com a liberdade inerente em sua autonomia, sem qualquer coação, e sabedor que é dos riscos advindos do procedimento. Antes a atenção médica residia na obrigatoriedade de o profissional da saúde cuidar do bem-estar da pessoa, dentro da visão paternalista e absolutista da medicina. A decisão era unicamente do profissional da saúde a respeito do tratamento a ser indicado. Agora, com a nova determinação contida no Código de Ética Médica, terá o paciente como coautor. É repetitivo e até mesmo incoerente falar que, após a edição da Lei de Drogas (lei 13.146/06), foi constatado um aumento desproporcional do número das cracolândias nos grandes municípios e das microcracolândias nos pequenos. É uma invasão que vai se tornando rotineira e um espaço que vai fazendo parte da paisagem urbanística, manchando-a. Nem se faz necessário tecer comentários a respeito dos refúgios existentes nas grandes cidades para criar os locais coletivos de consumo de drogas e a convivência com aqueles que trabalham ou se locomovem pelas cracolândias, assistindo às cenas de degradação da pessoa humana. Apesar de todo esforço policial e até mesmo dos órgãos de saúde, até o presente nenhuma medida realmente eficaz foi levada a efeito, a não ser algumas paliativas e provisórias, lideradas por ONGs imbuídas de boa vontade. De nada adianta despejar dependentes moradores de rua de suas calçadas que, na sequência, após circularem por outras praças, retornam para o habitat natural. A aplicação de medidas policiais e até mesmo as judiciais em casos de grupos de consumo é totalmente ineficaz. A força policial não é instituição adequada para lidar com usuários, muitos deles sem a mínima condição de discernimento, por se apresentarem corroídos pelas drogas.  Sendo dependentes, o rigor da lei é mínimo e não avança mais do que a advertência feita pelo juiz sobre os efeitos das drogas, a prestação de serviços à comunidade e eventual aplicação de medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.1 A questão, realmente, é tormentosa. Apesar de coexistirem várias figuras delituosas, como é o caso de comércio de drogas, furtos, roubos, crimes contra a liberdade sexual, apreensões de armas de pesados calibres e tantas outras, a questão fulcral é ligada diretamente à proteção da saúde humana, com a prevalência do princípio da dignidade da pessoa, conforme apregoado constitucionalmente. O pensamento popular caminha na mesma direção daquele preconizado pela lei em comento, no sentido de tentar recuperar a vida daqueles que foram envolvidos pelo vício. Ao que tudo indica, se nada for feito, hoje eles não exercem e no futuro não exercerão qualquer profissão ou atividade que lhes possa garantir o sustento e terão, certamente, que abraçar a carreira do crime para saciar o vício. Busca-se, então, a intervenção de parentes e autoridades relacionadas com a saúde para evitar o mal maior tanto ao usuário de drogas como também às pessoas que com ele convivem na sociedade, com total repúdio ao laissez-faire, laissez passer. O mais salutar é o deslocamento da questão para a área da saúde pública, com políticas eficientes direcionadas aos usuários que se iniciam na prática e aos que já foram dominados pelo vício, com a intenção de recuperá-los. Daí que a decretação da internação involuntária é o único instrumento capaz de responder aos reclamos sociais e à própria proteção dos usuários, para que tenham, pelo menos, a chance da tão almejada recuperação. Sabe-se que que é uma tarefa árdua, mas que, se levada adiante com seriedade e comprometimento, é um fator indicativo de um bom resultado. Diante de tal permissivo de internação involuntária é de se concluir pela boa medida das pessoas legitimadas tomarem as medidas coativas para a preservação da vida, de acordo com as balizas estabelecidas pela Constituição Federal, já que o detentor da cidadania não se encontra mentalmente apto para o exercício de seus direitos e necessita da aplicação de medidas protetivas específicas. Qualquer outra solução que contrarie o interesse maior prevalente, que é o da saúde, do viver, não tem o condão de inverter o pensamento determinado pela lei maior. É a junção, a uma só vez, da prevalência do bem individual e coletivo. A internação involuntária de usuários de drogas que vivem nas ruas, apesar de ser considerada um recolhimento forçado, apresenta-se como medida extrema, porém necessária e oportuna para proporcionar um acolhimento humanizado e individualizado com projetos terapêuticos que sejam eficazes para a melhoria da saúde do paciente, acompanhada de boa escolarização e qualificação profissional, visando à mais adequada reinserção social. 1 Lei 11.343, de 23/8/06, artigo 28.
A premissa de que todos os seres humanos merecem idêntica atenção e proteção do Estado é verdadeira e se constitui no paradigma constitucional que erigiu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Assim, sem qualquer exceção, toda pessoa merece tratamento isonômico em razão da sua própria cidadania e quando se deparar com situações aparentemente intransponíveis, a lei vem reafirmar a proclamação constitucional. O Presidente da República sancionou a lei 14.289/22, que torna obrigatória a preservação do sigilo sobre a condição da pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV), das hepatites crônicas (HBV e HCV), da pessoa com hanseníase e com tuberculose, nos casos que estabelece e altera a lei 6.259, de 30 de outubro de 1975. O deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), relator do PL 7658/14, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), foi inciso ao afirmar quando da análise do texto: "No Brasil, há cerca de 1 milhão de pessoas que vivem com HIV. Nós temos cerca de 73 mil novos casos por ano de tuberculose e 28 mil novos casos por ano de hanseníase. São pessoas que esperam ansiosas que o fato de ser diagnosticado não signifique a exposição dessa situação, que não comprometa sua situação de trabalho, que não prejudique o trabalho dos profissionais de saúde".1 A novatio legis trata da obrigatoriedade da preservação do sigilo das pessoas atingidas pelas doenças relacionadas, impedindo, de forma taxativa, tanto por parte dos agentes públicos como privados, a identificação dos doentes no âmbito dos serviços de saúde, dos estabelecimentos de ensino, nos locais de trabalho, na administração pública, na segurança pública, nos processos judiciais e na mídia escrita e audiovisual. Trata-se de uma norma abrangente, que tutela diretamente a intimidade das pessoas que se encontram infectadas pelas doenças mencionadas, com o objetivo de impedir qualquer manifestação discriminatória. A privacidade parece ser a mais ampla proteção, o limite da esfera protetiva, já que se mostra como uma margem que o indivíduo dispõe para filtrar o que deseja tornar público a todos. Isto é, a pessoa detém um conjunto de informações, imagens, vídeos, atitudes suas que somente a ela cabe decidir se as demais pessoas podem delas tomar conhecimento. Uma vez veiculadas, sem a permissão do titular, tem-se a violação da privacidade. A intimidade, na concepção jurídica, trata-se de um campo discreto frequentado unicamente pelo interessado. É o espaço em que vai encontrar consigo mesmo, sem qualquer acesso à curiosidade privada. Neste espaço pode ser o rei, o bedel e o juiz, conforme o cancioneiro popular, e desfilar tudo que é mais precioso para si, desde a sua crença religiosa até os segredos mais recônditos, sem qualquer risco de invasões arbitrárias e, principalmente, de se chegar ao conhecimento público porque não há qualquer registro materializado. Não há exposição para o mundo exterior. E vai além. Mesmo na era da mais célere informática, da tecnologia mais apurada, não se permite qualquer invasão no espaço reservado exclusivamente ao titular para retirar as informações que são de seu uso exclusivo. É de se observar que, com relação à matéria e, especificamente à condição daquele infectado pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV), outras providências legislativas protetivas já foram editadas. A lei 9.313/96 confere aos portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) o direito de receber gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária durante o período de tratamento. A lei 12.984/14 define o crime e tipifica a conduta de discriminar portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de Aids. A lei 11.199/02, do Estado de São Paulo, da mesma forma, veda qualquer forma de discriminação aos portadores do vírus HIV ou às pessoas com Aids. Já com relação à pessoa com hanseníase, o Brasil será o primeiro país do mundo a ofertar teste rápido para diagnóstico da doença a ser ofertado pelo SUS, em comemoração ao evento Janeiro Roxo, considerado o mês de combate à doença que, em 2021, registrou expressivo número de casos novos.2 O sigilo, no entanto, não é absoluto e poderá ser quebrado nos casos previstos em lei por justa causa ou por autorização expressa da pessoa acometida da doença e, se for criança ou adolescente, seu representante legal irá dar a anuência mediante assinatura do termo de consentimento informado, com observância às exigências contidas no art. 11 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD). Nos casos de doença de notificação compulsória, a nova lei altera a redação originária contida no artigo 10 da lei 6.259/75 e determina que a notificação nos casos de agravos à saúde será revestida de caráter sigiloso, o que deverá ser rigorosamente observado pelos profissionais que fizerem a notificação, pelas autoridades sanitárias que a receberem e por todos os trabalhadores e servidores que tenham contato com a notificação. Em caso, porém, de descumprimento, o agente público ou particular estará sujeito às sanções previstas no art. 52 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, além das sanções administrativas cabíveis e a obrigação de indenizar a vítima por danos materiais e morais. Se a divulgação do sigilo for dolosa, com a nítida intenção que causar dano e ofensa à vítima, serão aplicadas em dobro as penas pecuniárias ou de suspensão de atividades previstas no art. 52 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, assim como as indenizações pelos danos morais causados. _____________ 1 "Câmara aprova sigilo sobre condição de pessoa com HIV e hepatites". Disponível aqui. 2 "Com mais de 15 mil novos casos de hanseníase em 2021, Brasil terá primeiro teste rápido no SUS."
domingo, 23 de janeiro de 2022

O DNA e o homicídio da menina Beatriz

A imprensa vem noticiando de forma reiterada o assassinato ocorrido no ano de 2015 da menor Beatriz Motta, quando contava com sete anos de idade, na cidade de Petrolina, Pernambuco. A menor recebeu vários golpes de faca desferidos pelo assassino quando se encontrava em uma festa de formatura de um colégio da cidade, local em que seu corpo foi encontrado.1 A investigação policial, aquela que se vale de pessoas para reconstituir a prática de um delito, ao longo de seis anos, não logrou êxito em descobrir a autoria do crime que tanto abalou a família da menor, assim como a comunidade brasileira. Recentemente, pela insistência dos pais da criança que fizeram uma caminhada de 700 quilômetros até a cidade de Recife solicitando um posicionamento da autoridade de segurança, foi providenciado o exame do material genético, agora devidamente apurado, encontrado na faca utilizada pelo homicida e depositado no Instituto de Genética Forense do Estado. No cruzamento feito pelo programa pericial, foi apontado como autor do crime Marcelo da Silva. Diante disso, novo material foi coletado do suspeito, que se encontra preso pela prática de outro crime, e a autoria foi confirmada também na segunda prova. Percebe-se claramente que, em razão do avanço da tecnologia, a pesquisa policial e também a judicial se valem de novos instrumentos para desvendar crimes que jamais seriam esclarecidos pela prática comum e rotineira de investigação e muito menos pelo rigoroso sistema probatório penal, que exige sempre a presença humana como fator primordial e de credibilidade na confirmação dos fatos perquiridos. O exame de DNA forense ganhou tanta projeção que a justiça assenta nele sua decisão, sem fiar-se em outras provas antes consideradas relevantes para o deslinde da questão. Não só na justiça, como também na vida das pessoas. Hoje é possível fazer a leitura do DNA, mesmo que não seja completa, mas que garimpe informações importantes para que o interessado conheça seu código genético e, principalmente, para evitar a ocorrência de doenças de que tenha predisposição genética. Nesta linha de pensamento, no sentido de se encontrar uma resposta que corresponda corretamente à verdade criminal, o Código de Processo Penal, com vigência a partir de 1941, apesar de ter abandonado o sistema da certeza legal das provas e rotulá-las como relativas, recebe com bons olhos os novos dispositivos introduzidos pela mais avançada tecnologia. Pode-se dizer que, tanto no juízo cível como no criminal, o demonstrativo probatório correspondente ao material genético apresenta-se como uma prova inconcussa e até mesmo inquestionável com relação à margem de certeza. Para o Direito, que é uma ciência que com muito custo acata periodicamente algumas alterações em sua estrutura probatória, principalmente aquelas que rompem os moldes convencionais, fica mais do que evidenciado que uma prova embasada em tecnologia de ponta apresenta uma nova realidade para o mundo jurídico resolver com mais exatidão as lides de sua competência, construindo novos arranjos para acompanhar as ferramentas tecnológicas. Nesta linha de raciocínio, a inovação científica vai assumindo cada vez mais as tarefas dos humanos e muitas vezes até mesmo substituindo-os com perfeição nas mais intrincadas investigações. Basta ter uma digital, uma gota de sangue, uma imagem que, quase que instantaneamente, será apresentada a pessoa com quem está relacionada. A tarefa, que parecia difícil para a investigação tradicional, torna-se corriqueira quando a máquina substitui com sobras o mais experiente profissional e apresenta a resposta solicitada. O poeta Virgílio tinha razão quando afirmava que os tempos mudam e nós mudamos com o tempo. As últimas notícias dão conta de que o suspeito acabou por confessar o crime e que o praticou porque a menina ficou desesperada ao encontrá-lo no colégio e, para silenciá-la, aplicou-lhe vários golpes com a faca que portava. É certo que a justificativa do crime não convence tanto pela futilidade como pelo desrespeito à vida humana. Tal tarefa, no entanto, cabe à investigação policial fazer a apuração, ouvindo as pessoas que se encontravam no local e retirando todas as informações necessárias para fechar o quebra-cabeça investigativo. É a parte humana que entra em ação para completar a constatação científica. O exame de DNA não revela a motivação e sim a identificação do homicida. 1 Caso Beatriz: homem apontado como assassino diz que atacou menina após ela gritar. Disponível aqui.  
A partir do primeiro dia de janeiro do corrente ano, a Organização Mundial da Saúde editou a nova Classificação Internacional de Doenças (International Classification of Diseases), em sua 11ª revisão, que traz 55 mil códigos únicos para classificação das doenças e causas de mortes. Contrariando o esboço divulgado anteriormente, optou por não classificar a velhice como doença, acatando a discordância dos países membros. Desta forma, pela nova padronização universal das doenças, a velhice passará a figurar como possível fator associado à causa de uma morte e não mais como a causa principal registrada no diagnóstico médico. A impressão primeira foi a de que a Organização Mundial da Saúde abandonara o alinhamento mundial com tal nomenclatura e que poderia provocar, na mudança referida, o preconceito em razão da idade e incentivar a prática do ageísmo. Basta ver que, no caso do Brasil, o cidadão que atingisse o parâmetro biomarcador de 60 anos de idade seria considerado idoso pela lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e, mesmo que fosse saudável, levaria a pecha de um doente. Além do que a alteração pretendida colide frontalmente com a conceituação de saúde emitida pela OMS, no sentido de que a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não ausência de doença ou enfermidade. Assim, o estiolamento celular, em razão da idade, por si só, não indica a ocorrência de uma doença. Nem mesmo as explicações científicas trazem justificativas convincentes de que a velhice vem a ser sinônimo de doença, principalmente no momento atual em que se vivencia o crescimento plausível da longevidade, sabendo-se que as gerações infantis de hoje ultrapassarão a faixa dos 100 anos, como indicam os resultados de inúmeras pesquisas científicas desenvolvidas com essa finalidade. Se, de um lado, procura-se ampliar a proteção de saúde para o idoso a fim de que tenha melhores condições de vida, de outro, às avessas, reprime-se tal alargamento etário, rotulando-o como um doente. Pode-se concluir, sem exagero, que a pessoa que ingressasse na faixa de idoso passaria, pela pretendida alteração no Código Internacional de Doenças (CID), a ser portadora de comorbidade, em razão da idade. É até incoerente considerá-la doente quando o sucesso da longevidade vem se alardeando e criando novas e esperançosas perspectivas de vida. Outro fator que militou em favor e que proporcionou a mudança de rota da Organização Mundial da Saúde reside no fato de especificar corretamente o diagnóstico das doenças que frequentam as pessoas idosas, como Mal de Parkinson, Alzheimer, doenças cardiovasculares, oncológicas, neurológicas, dentre outras, passando a enfeixá-las na genérica definição de velhice. Tal omissão, por si só, encobrindo o fato gerador da morte, cria dificuldades para a realização de novas pesquisas e até mesmo diminui o alcance das políticas públicas específicas. Além do que vai quebrar toda a expectativa futura da velhice. O homem, antes e acima de tudo, é um ser temporal, com início, meio e fim, e não um marco definido pelo idadismo. Assim é que vai superando cada tempo seu, ampliando suas expectativas e apostando em um futuro com mais esperança e até mais entusiasmo - pois contará com uma rica experiência adquirida ao longo da vida e encontrará um campo propício para demonstrar seu dinamismo, sua articulação e fertilidade em descobrir iniciativas e ideias novas - enfim promovendo tudo aquilo que lhe trouxer satisfação. O fatiamento etário da pessoa é regulado não só pela realidade biológica, mas também pela própria normatização social que estabelece a fase da criança, do adolescente, da maturidade e do envelhecimento e, em cada uma delas, cria tutelas específicas e necessárias para os diversos estágios etários. Nesta progressão o idoso será aquele que irá reunir a maior carga protetiva, pois passou por todas as anteriores e ambiciona ainda uma longevidade com qualidade de vida. E a legislação brasileira, cônscia da longevidade, que já não é mais uma ambição remota e sim uma realidade incontestável, cuidou da proteção diferenciada aos idosos com mais de 80 anos de idade, conferindo-lhes prioridade especial com relação aos mais idosos, conforme determina a lei 13.466/2017. Não é justo que agora, com toda experiência adquirida, com os cuidados voltados para a manutenção da sua saúde, muitas vezes ainda dando continuidade à vida laboral, seja rotulado de doente em razão da velhice, que nada mais é do que uma fase natural da vida humana. A nova codificação das doenças divulgada pela Organização Mundial da Saúde, desta forma, com relação ao tema discutido, refletiu a realidade que movimenta a humanidade e, mais precisamente, no pensamento de Stepke e Drumond: "Talvez a percepção mais generalizada seja a de considerar a senectude uma enfermidade possível de ser derrotada. Ou, ao menos, uma enfermidade cujas consequências podem, parcialmente, ser atenuadas. De modo que, se se aceitasse esta proposição, se poderia esperar uma provecta idade, talvez plenamente queixosa, mas vigiada e ajudada pela racionalidade técnica".1 __________ 1 Stepke, Fernando Lolas; Drumond, José Geraldo de Freitas. Fundamentos de uma antropologia bioética: o apropriado, o bom e o justo. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007, p. 122.
sábado, 1 de janeiro de 2022

Ano novo: sem vírus, sem cepas

É até difícil, no centro de um torvelinho que gira em torno de várias ondas da pandemia, buscar condições para emergir e encontrar a incontida esperança que há um bom tempo se aninha no coração de cada pessoa como prisioneira de uma pena já vencida. Num repente passamos a frequentar uma humanidade diferenciada, atordoada por tantos vírus e que prega somente o dicionário de sobrevivência, muitas vezes com o acréscimo de vários auxílios emergenciais, até mesmo o indesejado da solidão. É certo que não podemos dar as costas à esperança e nem mesmo é oportuno resgatar as recordações de momentos felizes que vivemos em um passado tão recente. É sim chegada a oportunidade de recarregar a alma e criar uma nova linha de montagem para nosso corpo, assim como blindá-lo contra a contaminação das mais variadas cepas dos invisíveis vírus. Percebemos que a humanidade chegou ao fim de uma era e pisamos no alvorecer de outra, ainda desconhecida. A esperança - muitas vezes erroneamente confundida com a utopia que se desmancha como um castelo de areia - mais uma vez passa a ser a perspectiva da humanidade, que desfila as melhores intenções para a construção do futuro homem, amadurecido pela vida e em busca de alçar voos mais altos, sem se descuidar dos passos iniciais. É momento de renascimento, em que cada um vai se fundir no seu próprio eu para retomar o curso da vida. Assim, ao mesmo tempo em que combatemos os moinhos de vento que vão se apresentando, vamos desfilando votos que povoam nossa imaginação: que no próximo ano possamos ter um olhar panorâmico - sem desprezar o olhar para dentro de nós mesmos - com olhos grandes e sonhadores mirando para o infinito em busca do ponto de equilíbrio para envolver as pessoas na contextualização necessária da construção de uma nova identidade, com ênfase no conceito de pertencimento. Que a tecnologia - nossa acólita já considerada inseparável - continue seu processo de aperfeiçoamento para que possamos fazer o download dos melhores pensamentos que habitam nossas mentes para copiar e colar, principalmente, os sentimentos de generosidade e altruísmo, afastando a tão lastimada polarização linear, que limita cada vez mais a pessoa dentro de seu labirinto. O verdadeiro homo digitas é aquele que, apesar de não deixar suas pegadas na areia, aceita ser monitorado para corrigir seus passos em busca da verdade. Que possamos atingir a sabedoria depurada pelo tempo com uma linguagem de revelação, sem estandardizar critérios ou normas para compreender melhor o novo enredo da vida. Cada um possa fortalecer com sua elevada estima o grupo a que pertence e executar o papel que lhe cabe nesta aventura chamada vida humana. Não teremos mais mão única para circular e sim vários caminhos que projetarão os melhores propósitos de uma civilização mais inclusiva. Vindica te tibi, assim proclamava Sêneca, no sentido de exortar o homem a reivindicar a propriedade do seu ser, com alcance muito além da limitada selfie, compreendendo o desejo de viver em paz consigo e com as demais pessoas. Nesta cruzada que se inicia cada um seja um poeta a engarrafar suas nuvens depositando nelas votos de moderação, temperança, serenidade e, de braços abertos e corações contritos, possa apreciar o verde dos campos com todas as suas tonalidades, o azul contemplativo do céu, o rio que dá curso às suas águas caudalosas, o brotar das flores no embalo do canto dos pássaros.                     Ou, se impossível o poema, sejamos como uma borboleta, na crônica de Ivan Ângelo: "Como borboletas: passam, enfeitam o instante com algumas cores, voejam e partem. Se deixam alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado." Ou, ainda, na prosa machadiana, que os novos ventos tragam bons augúrios.  Acrescento: sem vírus, sem cepas.
domingo, 19 de dezembro de 2021

Lei Mariana Ferrer

Desde a compilação das leis feita pelo imperador romano Justiano (Corpus Juris Civilis), percebe-se com relevo a presença do brocardo ex facto oritur ius, no sentido de que o fato faz nascer uma lei garantidora de um direito a determinada pessoa. Tanto é verdade que a vida em sociedade vai exercendo um crivo de viabilidade de condutas expurgando as não recomendadas, que serão catalogadas posteriormente como impróprias. No Brasil é comum um fato com repercussão nacional envolvendo violência - em suas mais variadas formas contra mulheres - ser a fonte geradora de uma lei que tomará emprestado o nome da personagem para identificá-la. Assim ocorreu, dentre outras, com a Lei Maria da Penha (lei 11.340/06), Lei Carolina Dieckmann (lei 12.737/12) e Lei Joana Maranhão (lei 12.650/12). E agora com a Lei Mariana Ferrer, sancionada recentemente com o 14.245/21, que altera dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e testemunhas, além estabelecer uma causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo. O projeto da referida lei é da deputada federal Lídice da Matta (PSB-BA) e teve como suporte a audiência realizada no processo em que figurou como vítima de estupro a influenciadora digital Mariana Ferrer que, durante a instrução processual, teve sua intimidade exposta pelo defensor do acusado. É fato que a mulher, nos crimes contra a dignidade sexual em que figura como vítima, quando ainda na fase investigativa perante a autoridade policial, vai ofertar sua versão a respeito dos fatos, além de se submeter a exame de corpo de delito, quando for o caso. Posteriormente, coram judice, na presença dos atores processuais, repete novamente a mesma versão, dando espaço para a revitimização, com a desagradável sensação de relatar novamente todos o enredo criminoso e ver sua intimidade invadida. Na audiência sob o crivo do contraditório, tanto o promotor de justiça como o advogado, ambos com a intenção de elucidar o fato perquirido, poderão formular perguntas diretamente à vítima ou à testemunha, desde que guardem conexão com o caso sub judice. E a nova lei é bem clara em não se permitir qualquer outra referência à vida pessoal da depoente e nem mesmo a utilização de material que seja divorciado do processo e que possa trazer qualquer tipo de constrangimento. Não há restrição ou prejuízo ao exercício da ampla defesa assegurada constitucionalmente.  A intenção é a de preservar e oferecer proteção à dignidade da mulher depoente que, na realidade, é uma colaboradora na busca da justiça, e não o foco da discussão a respeito de sua intimidade. Tanto é que a novatio legis, até mesmo em termos pedagógicos, impõe a todas as partes do processo e demais sujeitos processuais presentes ao ato, a obrigação de zelar pela integridade física e psicológica da vítima ou da testemunha, principalmente em ações que apuram crimes contra a dignidade sexual, proibindo, taxativamente, a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objetos da persecução penal, assim como a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da depoente.  Cabe ao juiz do processo o poder disciplinar para garantir o cumprimento das medidas de proteção. Não se concebe a construção de uma imagem da vítima criando uma falsa projeção de sua personalidade por meios processualmente inadequados. A pretensão levada à jurisdição deve se ater somente com relação aos fatos relatados na inicial, uma vez que delimitarão os limites cognitivos do processo. A jurisprudência é uníssona em abraçar a versão ofertada pela vítima em crimes contra a dignidade sexual, recebendo-a com credibilidade quando encontrar ressonância com as demais provas coletadas no processo. Isto porque crimes desta natureza não contam com provas testemunhais e sim são praticados solus cum sola, daí a relevância da palavra da ofendida. De nenhuma valia a utilização de circunstâncias alheias e totalmente distantes do fato perquirido dificultando e até mesmo criando verdadeiros labirintos para a busca da verdade e que venham a desmerecer e macular a intimidade da mulher depoente.      
domingo, 12 de dezembro de 2021

As pesquisas científicas no Brasil

O avanço e a evolução da sociedade, dos costumes, do incessante desenvolvimento das pesquisas em seres humanos, do início ao fim da vida, como a clonagem de seres humanos, as terapias gênicas, os métodos de reprodução humana assistida, a engenharia genética, a maternidade substitutiva, a eugenia, a eutanásia, a distanásia, a ortotanásia, a escolha do tempo para nascer e morrer, a utilização das células-tronco embrionárias, o transplante de órgãos e tecidos humanos, a inteligência artificial e muitos outros avanços científicos aqui não enumerados, abriram um leque imenso para a realização de pesquisas visando atingir cada vez mais um resultado que traga dividendos de saúde para a humanidade. Com a decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde, as pesquisas no Brasil e no mundo tomaram outro direcionamento, qual seja, voltaram-se para a incessante busca de medicamentos ou vacinas que fossem eficazes para conter a desproporcional contaminação da comunidade, seguida de um exagerado número de óbitos. E o caminho encontrado, pelo menos satisfatório até o momento presente, foi a proteção vacinal para atingir a necessária imunização. E, para tanto, os pesquisadores debruçaram-se em inúmeros estudos visando encontrar uma vacina mais aprimorada e que seja eficaz para o combate completo do vírus e de suas mutações. O que se desenvolve atualmente no Brasil em termos de pesquisa - e é interessante a comunidade conhecer - é projeto de pesquisa com acompanhamento pelas instâncias institucionais denominadas CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa) e CONEP (Conselho Nacional de Ética em Pesquisa), ligadas ao Conselho Nacional de Saúde, responsáveis pela condução ética e técnica, assim como pela total proteção do colaborador da pesquisa. Os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) apresentam-se como órgãos colegiados interdisciplinares e independentes, de relevância pública, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir com o desenvolvimento da pesquisa dentro dos padrões éticos. Os CEPs procuram agregar os mais diferentes segmentos da comunidade, recrutando médicos, psicólogos, juristas, religiosos, bioeticistas, cientistas, pessoas que exerçam lideranças na comunidade, pacientes e quaisquer outros que tenham condições de fazer uma leitura ética atrelada à participação do ser humano em pesquisas. A autonomia do órgão vem registrada não só pela manifestação isolada de um membro seu, mas também pela decisão colegiada, definidora do pensamento ético e conveniente para determinada proposta de pesquisa. O voto individualizado, mesmo que seja vencido, com o devido registro em ata, é o demonstrativo da liberdade de definir em nome alheio. O crivo de admissibilidade de um determinado projeto passa, em primeiro lugar, pela apreciação individual, onde se confronta com a ética pessoal do relator e, em segundo, abrange uma apreciação mais globalizada, procura atingir uma decisão que corresponda à vontade popular e que traga benefícios satisfatórios para o bem-estar social. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por sua vez,  é um órgão colegiado, multidisciplinar, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, tem como tarefa principal considerar o indivíduo sempre em primeiro plano, examinar os aspectos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos em áreas temáticas especiais, encaminhadas pelos CEPs das instituições, além de responder pela elaboração de normas específicas para diversas áreas, dentre elas, genética humana, reprodução humana, alterações da estrutura genética de células humanas, organismos geneticamente modificados, funcionamento de biobancos para pesquisa, novos dispositivos para a saúde, pesquisas em populações indígenas, pesquisas conduzidas do exterior e aquelas que envolvam aspectos de biossegurança. Tem também função consultiva, deliberativa, normativa e educativa, atuando conjuntamente com a rede de Comitês de Ética em Pesquisa - CEP- organizados nas instituições onde as pesquisas se realizam. É de se observar que o participante de pesquisa, voluntário que realiza uma tarefa de relevante cunho social, deve ter seus direitos garantidos durante a realização do estudo. Daí que, obedecendo a uma regra fundamental atrelada ao princípio da autonomia da vontade, assina o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Referido documento, elaborado com linguagem clara e acessível, compreende a anuência do participante da pesquisa ou de seu representante legal, livre de vícios, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, tanto os atuais como os potenciais, individuais e coletivos, declina os nomes dos responsáveis pelo acompanhamento do estudo e até mesmo a indispensável previsibilidade no tocante ao direito à indenização, em caso de dano provocado em razão da pesquisa. Percebe-se, desta forma, que a pesquisa é imprescindível para o desenvolvimento científico de um país e tem como bandeira a conquista de melhores condições de vida e saúde, não só para a comunidade local, mas também universal, em razão do princípio da justiça distributiva apregoado pela Bioética. Por outro lado, como indispensável garantia, o participante de pesquisa goza da mais ampla tutela protetiva pela colaboração prestada em favor de um estudo que acarretou benefícios para a humanidade.    
Toda mudança legislativa traz profundas e relevantes alterações no mundo jurídico compreendendo desde a retroatividade da lei mais benéfica até uma nova leitura a respeito do fato antes reprovado. Tal fenômeno alcançou a lei 14.230/21, que trouxe em seu bojo a expressa revogação da improbidade administrativa na modalidade culposa. Assim, pela configuração atual, as múltiplas condutas descritas no artigo 10 da lei anterior, foram levadas de roldão e passaram a exigir, juntamente com as descritas nos artigos 9º e 11 da novatio legis, a ocorrência de dolo, assim definido: Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente. A delimitação da conduta exclusivamente dolosa abre espaço para a aplicação do permissivo constitucional da retroatividade in mellius. Assim, o agente condenado pela prática de improbidade em qualquer das modalidades culposas, pode pleitear a revisão do julgamento, ou até mesmo, se a ação estiver em curso ou em estágio recursal, requerer a aplicação da lei não incriminadora, pela perda do fato gerador que provocou a conduta descrita na peça vestibular. Tamanha a ratio legis que motivou a alteração que ficou mais do que evidenciado que há necessidade inconteste de demonstrar a comprovação do ato doloso praticado pelo agente público, pelo agente político, pelo servidor público e, de uma forma abrangente, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades públicas, estendendo-se até mesmo ao terceiro que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade. A sinalização da nova lei exige muita cautela na investigação da vontade do agente. É necessário que se faça uma pesquisa apropriada para encontrar pelo menos má-fé ou qualquer outro comportamento incompatível e desonesto do administrador público com o escopo de violar o ordenamento jurídico protetivo e que desague na reveladora conduta ímproba, capaz de comprometer o patrimônio público e social. Fica definitivamente afastada a possibilidade de se inserir na peça inicial uma afirmação genérica, com expressões abertas, sem conteúdo de especificidade e que não indique, de forma clara, precisa e transparente a dosagem do dolo do agente. A esse respeito, em esmerada definição, Simão esclarece didaticamente: As condutas ímprobas são aquelas permeadas de má-fé (do latim malefatius). Má-fé, na terminologia jurídica, designa o fato jurídico desencadeado pela maldade, em oposição a boa-fé. Representa a fraude, a corrupção e o dolo, por exemplo. Nesse sentido, quando descrevemos juridicamente que uma pessoa agiu de má-fé, estamos dizendo que ela agiu com fraude ou dolo.1 Diga-se, até mesmo para sustentação da novatio legis, que os tribunais superiores, de longa data, vinham buscando a imprescindível comprovação do dolo para a configuração do ilícito administrativo na actio improbitatis, tanto pelo cometimento isolado pelo administrador público como também com relação àqueles que se acumpliciam com ele. É de se observar que, pela alteração legislativa, a ação para a aplicação das sanções de que trata a lei será proposta exclusivamente pelo Ministério Público. Diante da nova realidade, há necessidade de uma mudança estratégica na atuação do parquet que, desde o nascedouro da investigação ou do inquérito civil, deve perquirir de forma intensa a conduta dolosa do agente. Não se trata de uma tarefa de fácil realização e sim de um grande desafio para perscrutar o elemento subjetivo projetado pelo gestor público imbuído da intenção de lesar e fraudar a integridade do patrimônio público. O foco da investigação deve se concentrar nas ações ilícitas praticadas que poderão proporcionar material mais do que suficiente para aquilatar o desiderato do agente infrator. O dolo, como é sabido, transcende a vontade interior do agente e vai ser refletido em sua conduta externa. Daí que a valoração do resultado em muito contribuirá para a formatação do designío subjetivo; O inquérito civil, instrumento de investigação criado no âmbito do Ministério Público de São Paulo - após palestra proferida pelo promotor de justiça José Fernando da Silva Lopes em reunião realizada pelo Grupo de Estudos da Associação Paulista do Ministério Público, na cidade de Ourinhos, interior de São Paulo (21/06/1980) - embora previsto inicialmente para a ação civil pública, pode ser utilizado também para apuração de improbidade administrativa, desde que especifique seu objeto. Além de colher as provas pertinentes para o alicerçamento da ação principal, tem que convencer o próprio titular da ação a formar sua opinio delicti a respeito de ocorrência que ofenda a ordem jurídica prevista e os interesses sociais protegidos. Com tal rigorismo é de se concluir que muitos procedimentos instaurados na fase administrativa serão arquivados pelo Conselho Superior do Ministério Público, se provocado, em razão da ausência de dolo. Os que vencerem essa etapa forçosamente trarão provas inconcussas a respeito do elemento subjetivo, com maior chance de vingarem.  _________________ 1 Simão, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. Leme/SP: Editora JH Mizuno, 2017, p. 86.
domingo, 28 de novembro de 2021

Agora é lei: Estatuto da Pessoa com Câncer

A lei, desde o seu nascedouro - oportunidade em que são travadas as pertinentes discussões a respeito das questões relevantes para seus destinatários - traz, de forma cogente e com validade erga omnes, uma normatização para que seja criteriosamente seguida pela comunidade. A sociedade civilizada necessita não só de preceitos éticos regulatórios para uma harmônica convivência social, como, também, de regulamentar direitos previstos na Lei Maior para que sejam proclamados com a eficácia necessária. Assim, na maioria dos casos, a lei, como instrumento regulatório, lança uma tutela primária sobre todas as pessoas, conferindo-lhes direitos concretos e difusos condizentes com os parâmetros da dignidade humana, um dos fundamentos da Constituição Federal. Na sequência, em se tratando de casos especiais que exigem uma atuação diferenciada, com maiores cuidados ainda, estreita o canal protetivo e nele insere uma nova legislação específica para atendimento de casos excepcionais, sem ferir a isonomia consagrada constitucionalmente. Quer dizer, na igualdade entre as pessoas, terão prioridade aquelas que necessitam de atendimento e acolhimento preferencial, em razão de uma vulnerabilidade momentânea ou não. Tal espírito norteou a lei 14.238/21, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Câncer e que tem como finalidade específica assegurar e promover, em condições de igualdade, o acesso ao tratamento da pessoa com câncer, garantindo-lhe a sua inclusão social e necessária proteção no âmbito das políticas públicas de prevenção e combate à doença. Para tanto, a novatio legis assim definiu: "Considera-se pessoa com câncer aquela que tenha o regular diagnóstico, nos termos de relatório elaborado por médico devidamente inscrito no conselho profissional, acompanhado pelos laudos e exames diagnósticos complementares necessários para a correta caracterização da doença". É interessante observar que a terminologia Estatuto passou a frequentar a legislação pátria após a Constituição Federal de 1988, que sedimentou a extensa via dos direitos e garantias individuais e coletivos. Basta ver, dentre outros, o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990), Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015) e Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003). Referida denominação, por si só, deixa entender que pretende regulamentar direitos de um determinado agrupamento social para que todas as pessoas que o integram possam receber, em igualdades de condições, o tratamento adequado em razão de uma moléstia comum. Dentre os objetivos propostos podem ser mencionados: diagnóstico precoce e confiável da doença, quando ainda há grande possibilidade para um tratamento exitoso; acesso do paciente ao tratamento recomendado pelo protocolo médico; assistência social e jurídica; transparência das informações dos órgãos encarregados pelo atendimento, com acompanhamento dos processos, prazos e fluxos, indicando a sustentabilidade do tratamento; estímulo à prevenção e humanização da atenção aos pacientes e familiares, e garantia do tratamento adequado, nos termos das leis 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 12.732, de 22 de novembro de 2012. Como é sabido, pelo alcance da lei 12.732/2012, o paciente com câncer, assim diagnosticado pelo SUS, deve receber o primeiro tratamento da doença no prazo de 60 dias, a partir da emissão do laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso, registrada em prontuário único. Portaria posterior do Ministério da Saúde (nº 1.220/2014) mitigou a interpretação da Lei dos 60 dias e passou a considerar o prazo a partir da data do diagnóstico da doença no exame (laudo patológico). Quer dizer, a data da assinatura do laudo patológico apontará o termo inicial para a contagem do prazo de 60 dias, obrigando os gestores públicos a tal determinação. A lei 13.896/2019, que entrou em vigência no dia 28/4/2020, por sua vez, com a intepretação mais adequada e consentânea com um diagnóstico mais célere que, além de diminuir os custos, irá proporcionar melhores condições de sucesso do tratamento, estabeleceu o prazo máximo de 30 dias para a confirmação da doença, in verbis: "Nos casos em que a principal hipótese diagnóstica seja a neoplasia maligna, os exames necessários devem ser realizados no prazo máximo de 30 (trinta) dias, mediante solicitação fundamentada do médico responsável". Outra inovação da lei é voltada para as crianças e adolescentes com câncer ou até mesmo com suspeita, que terão garantidos o tratamento universal e atendimento integral, em todas as fases. A própria lei delimitou a conceituação de atendimento integral como sendo aquele realizado nos diversos níveis de complexidade e hierarquia, bem como nas diversas especialidades médicas, de acordo com as necessidades de saúde da pessoa com câncer, incluídos assistência médica e de fármacos, assistência psicológica, atendimentos especializados e, sempre que possível, atendimento e internação domiciliares. Pode se dizer que a lei atendeu os reclamos da população brasileira em conferir a proteção necessária para o doente com câncer, além de, com base na recomendada medicina humanizada, introduziu atendimento multidisciplinar e cuidados paliativos ao paciente, extensivos aos familiares.  
domingo, 21 de novembro de 2021

Novas regras sobre eutanásia em animais

Percebe-se que, nos últimos anos, os animais vêm recebendo uma tutela legislativa diferenciada, assim como decisões jurisprudenciais favoráveis exaradas nos processos que envolvem a interpretação da Lei dos Crimes Ambientais. Até então as leis existentes preocupavam-se em resguardar o direito essencial ao meio ambiente, equilibrando-o ecologicamente com a indispensável proteção da fauna e flora. Basta ver que, no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 640 (ADPF), o ministro relator concedeu medida liminar determinando a suspensão de todas as medidas administrativas ou judiciais autorizadoras de sacrifício de animais silvestres como os domésticos ou domesticados que fossem apreendidos em situação de maus tratos. A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em ação intentada para impedir o abate dos animais que se encontravam em situação de maus tratos, considerou inconsistente e até mesmo ilegal a decisão tomada em muitos casos pela justiça ou por autoridades administrativas determinando o sacrifício dos animais. Nesse sentido a posição do ministro Gilmar Mendes, relator da ação: "No caso, observa-se que a interpretação da legislação federal proposta pelos órgãos administrativos e adotada pelas autoridades judiciais, ao possibilitar o abate de animais apreendidos em condições de maus-tratos, ofende normas materiais da Constituição."1 Nenhuma dúvida paira mais a respeito do status atribuído aos animais como seres sencientes, sujeitos de direitos despersonalizados, dotados de natureza emocional e passíveis de sofrimento, conforme foi reconhecido recentemente pela Lei 14.064/20. Os animais abandonaram definitivamente a incômoda classificação a eles atribuída pela lei 9.605/1998 e o Código Civil, que os consideravam bens móveis, sendo oportuno observar que, em recente decisão proferida pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, foi reconhecido, por unanimidade, o direito dos animais de figurarem como autores de ações judiciais visando pleitear o que a lei faculta, desde que corretamente representados.2 E é importante ressaltar que agora, com a lei referida acima (Lei 14.064/20), ocorre severa punição à prática de abuso, maus tratos, ferimentos ou mutilação a cães e gatos, considerados animais de estimação, com a aplicação da pena de reclusão de 2 a 5 anos. Na tutela progressiva ofertada pela legislação protetiva aos animais, foi sancionada a lei 14.228/21, que dispõe a respeito da proibição de eliminação de cães e gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres. O ponto fulcral da novatio legis, publicada no dia 20/10/21 e com vigência programada para 120 dias a partir de sua publicação oficial, é proibir terminantemente a eutanásia de cães e gatos abandonados, recolhidos da rua em situação de maus tratos ou não, pelos estabelecimentos oficiais referidos. Trata-se, na realidade, de uma determinação que coaduna com o artigo 25 § 1º da Lei dos Crimes Ambientais que, com a redação determinada pela lei 13.052/14, assim disciplina a matéria relacionada com os animais apreendidos: "Os animais serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de técnicos habilitados". Pode-se acrescentar aqui também a campanha de adoção de animais, prática que tem recebido adesão da comunidade. A eutanásia, compreendida na indução da cessação da vida animal, por meio de método tecnicamente aceitável e cientificamente comprovado, conforme preceitua o Conselho Federal de Medicina Veterinária (Resolução 1000/2012), apresenta-se como uma conduta contrária à legislação protetiva dos animais apreendidos sem doenças graves e infectocontagiosas. A própria lei traz em seu corpo uma exceção permissiva para a realização da eutanásia. É justamente quando os animais apresentarem casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais. Mesmo assim, há a necessidade se fazer a justificativa da medida extrema por meio do laudo do responsável técnico pelo estabelecimento que abriga os animais, juntando, quando for necessário, o resultado do exame laboratorial. Nesse caso, é de se observar que as entidades de proteção animal devem ter acesso irrestrito à documentação que comprove a legalidade da eutanásia. É, verdadeiramente, mais um importante passo que se dá ao combate ao especismo em que os seres humanos se colocam em situação privilegiada enquanto as demais espécies, que convivem com o prazer e a dor, ficam alojadas em um plano secundário, sem qualquer consideração. É salutar observar que os animais estão se alinhando aos homens em algumas circunstâncias. Em se tratando de xenotransplante, as pesquisas estão indicando que o porco transgenitalizado pode oferecer seu rim para o humano com uma longa margem de sucesso, sem rejeição. Daí surge um novo repositor de órgãos, que merece cuidados especiais. ____________ 1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/17/maioria-do-stf-conclui-que-abate-de-animal-em-situacao-de-maus-tratos-sem-risco-sanitario-viola-a-constituicao.ghtml 2 https://www.tjpr.jus.br/noticias/-/asset_publisher/9jZB/content/id/55859528.
domingo, 14 de novembro de 2021

O afeto acima de tudo

Foi noticiado pela imprensa que uma mãe ingressou com pedido judicial de pensão alimentícia em favor de sua filha e o pretenso pai contestou a paternidade, solicitando, para tanto, a realização do exame de DNA, que foi feito. Para surpresa da mãe, o exame excluiu a paternidade. A mãe, da mesma forma, posteriormente, submeteu-se ao mesmo exame, que resultou na sua exclusão da maternidade biológica, após sete anos de convivência com a criança.1 As suspeitas, inevitavelmente, voltaram-se contra o hospital responsável pelos partos. Diligências foram realizadas na maternidade e constataram que, no mesmo dia, em horário muito próximo, nasceram duas meninas, segundo o registro hospitalar. Os dois pais, as duas mães e as duas crianças fizeram o exame de DNA, que comprovou a troca das recém-nascidas. É indescritível o abalo emocional entre as pessoas envolvidas, até mesmo as crianças em receberem o resultado de que não são filhas biológicas dos pais com quem até então conviveram e sentiram-se incluídas naquele grupo que representava suas famílias. Para os genitores, que até então caminhavam pela via segura da genética, abre-se uma enorme vala com relação a uma indisfarçável frustração e insegurança da vida futura. E a indagação que passa a habitar a mente de cada um é se deve prevalecer a filiação sanguínea ou a construída pelo afeto, pela dedicação, pelo comprometimento, pelo apego, transversalizando e privilegiando uma vida até então consolidada em um lar sólido. Tanto é que os pais registraram as filhas e desconheciam por completo a hipótese de troca das recém-nascidas. As crianças cresceriam no seio de cada família, com a educação e costumes próprios e se tornariam adultas, constituindo novos núcleos familiares.   A rotina estaria desenhada se não tivesse sido descoberta a troca na maternidade. Após a Constituição Federal de 1988 ocorreu uma evolução, ainda em fase de efervescência, com relação ao direito de procriação. Todos os filhos, havidos ou não fora do casamento, assim como aqueles provenientes da adoção, gozam dos mesmos direitos, sem quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Nasce, então, não só pela introdução legal, mas também como um novo conceito social, a paternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto, que é o caso da adoção. A ascendência genética, por si só, já não é mais suficiente para determinar a filiação. Pelo contrário, em razão das novas práticas consolidadas no âmbito da dignidade da pessoa e no princípio do melhor interesse da criança, o vínculo da socioafetividade se expandiu e incorporou a contribuição daqueles que participaram da construção dos laços afetivos com a criança. Pai e mãe, desta forma, pelo novo perfil da família, não são só aqueles que cederam o material procriativo e sim aqueles que dispensaram afeto, que passa a ser a essência motivadora que ultrapassa até mesmo os ditames da lei, mas que exige uma solução jurídica e alcança situações até então não previstas, tudo para que o filho possa viver em harmonia e atingir a plena realização. É o mesmo critério adotado pela lei de adoção, que ainda permite ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica, após completar 18 anos de idade. Nesta linha de pensamento, no caso presente, apesar do DNA ter apontado outra família, a decisão é exclusiva dos pais e, ao que tudo indica, será mantida a documentação registral, sem prejuízo do reconhecimento da paternidade biológica. Assim, nada mais justo que as filhas trocadas tenham dois pais e duas mães, sem qualquer conflito. Privilégio para poucos. Em harmonia e em igualdades de condições, as duas famílias vão se juntar na relevante missão e cumprir a tarefa que lhes foi reservada pela vida e pela lei.  _____________ 1 https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/10/31/enquanto-ela-viver-vou-estar-do-lado-dela-diz-mae-de-crianca-trocada-na-maternidade-no-df.ghtml
domingo, 7 de novembro de 2021

Sigilo médico no autoaborto

Um fato ocorrido em hospital do interior do Estado de São Paulo chamou a atenção da comunidade médica a respeito da decisão proferida pela Justiça em caso de autoaborto. Em breve relato, uma gestante, após realizar manobras abortivas, veio a sentir fortes dores, oportunidade em que foi encaminhada a um hospital e logo entrou em trabalho de parto prematuro, sendo atendida por uma médica. Realizado o procedimento necessário, a profissional declarou à autoridade policial ter encontrado resquícios de medicamento abortivo na vagina da paciente, fato que ensejou a decretação da prisão preventiva da então gestante, que se livrou da segregação provisória pelo pagamento da fiança arbitrada.1 A paciente, após receber ameaças e se ver obrigada a mudar de cidade, intentou ação indenizatória contra o hospital pela quebra do sigilo médico da profissional responsável pelo atendimento e o Tribunal de Justiça, em grau de recurso, condenou o nosocômio a pagar a verba indenizatória de dez mil reais. O artigo 5º, §3º do Código de Processo Penal, faculta a qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de crime em que caiba ação pública, que é o caso do abortamento, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicar o fato à autoridade policial, que irá instaurar inquérito, se procedente a notitia criminis. Assim, levando-se em consideração o fato narrado, o vizinho da gestante teria plena legitimidade para fazer a delação à autoridade policial que, obrigatoriamente, deveria dar início à persecução penal. A médica que a atendeu e realizou o procedimento, no entanto, não está compreendida neste permissivo processual. Parece até uma incoerência, porém há razões legais para tanto. A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente foi atendida e que a médica constatou a presença de medicamento abortivo, tal fato, por si só, elege a profissional como depositária e guardadora de seu segredo. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares indicados para o caso. Tamanha é a importância do sigilo médico que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que o paciente tenha falecido, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Tanto é que o Código Penal, em seu artigo 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind do direito americano. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada da paciente, acarretando não só a inconveniente investigação policial como, também, a intranquilidade do espírito pela intromissão alheia. É certo que o sigilo relatado, compreendendo somente aquele revelado no exercício profissional, não vem revestido de caráter absoluto, pois, em algumas hipóteses, pode ser quebrado, tais como dever legal, justa causa ou autorização expressa do paciente. Mas, no caso presente, encontram-se ausentes tais requisitos. A preservação da confiança da paciente que procurou um atendimento médico de urgência, mesmo que o fato gerador seja considerado ilícito, jamais poderia ser quebrada, por se tratar de circunstância de caráter íntimo e direcionada para uma prestação de serviço mais eficiente e não pode provocar, em contrapartida, a exposição pública e submeter a pessoa que foi atendida a uma investigação penal. O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2217/2018), que contém as normas que devem ser seguidas pelos profissionais, em seu artigo 73 é taxativo ao afirmar que é vedado ao médico "Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente." Concluindo, todo o imbróglio foi criado pelo fato de ter a médica feito a revelação do autoaborto à autoridade policial. Daí surgem várias outras situações jurídicas, tais como o erro do médico em acreditar que fosse obrigado a denunciar o fato, o direito da paciente em pleitear indenização cível, a constituição de prova ilícita para a apuração penal, sem falar ainda do processo de cunho ético profissional. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 31 de outubro de 2021

O xenotransplante bem sucedido

A humanidade recebeu com júbilo indisfarçável a notícia de que foi realizado com sucesso um transplante de rim entre animais de espécies diferentes, mais precisamente, um xenotransplante, em que uma mulher recebeu o rim de um porco. Xenotransplante, na precisa definição de Marcelo Coelho, é "o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis".1 Não que a notícia cause estranheza - levando-se em consideração a evolução da transplantação que vai ganhando espaços até então desconhecidos - mas sim pela exemplar conduta científica e o resultado atingido. Para tanto a equipe de transplantes, após anos de pesquisa, usou o rim de um porco devidamente preparado e geneticamente modificado, para afastar uma molécula que provoca rejeição em humanos. Em seguida, fora do corpo da mulher, que já se encontrava com a morte encefálica decretada, o rim suíno foi ligado às veias e artérias e, sem qualquer rejeição, funcionou perfeitamente por 54 horas de observação. Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilizar a realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano. Dá-se a impressão que se trata de um relato de ficção científica, principalmente pela utilização de um rim suíno quando a regra aconselha o transplante de órgãos entre humanos e, mesmo assim, como é sabido, com certa frequência, ocorre a rejeição. No caso específico, realizado por transplantadores de um hospital de Nova York, o estudo científico obedeceu a todas as fases, além de, rigorosamente, atender os princípios norteadores da Bioética para a realização do procedimento invasivo. A paciente, quando viva e lúcida, havia assinado um documento em que registrou sua vontade de ser doadora de órgãos post mortem. Com a decretação de sua morte encefálica a equipe médica consultou os familiares que endossaram seu consentimento. Prevaleceu, desta forma, a autonomia da vontade da paciente, reforçada ainda pela adesão dos familiares, revelando, de forma inequívoca, a vontade de se oferecer como doadora, mesmo em se tratando de transplante realizado em pessoa já morta, mas suficiente para avaliar o órgão transplantado. O benefício resultante do estudo é infindável e deixou transparecer que o estudo merece continuidade uma vez que trouxe dividendos favoráveis à saúde humana, apesar do pouco tempo em que o rim permaneceu atrelado ao corpo da doadora, com visível resultado mais do que satisfatório. É evidente que há ainda uma longa trajetória científica a ser percorrida, mas, pelo menos para o momento, reacende a esperança de encontrar mais uma opção, que certamente trará inúmeros benefícios para o homem. Finalmente, em razão do princípio da justiça distributiva, o feito médico deve ser compartilhado com toda a humanidade. Se um determinado e inédito procedimento médico foi bem sucedido e trouxe benefício comprovado, deve ser utilizado por todas os pacientes que se encontram em situação idêntica. O benefício, desta forma, deve ser distribuído entre aqueles que necessitam de um transplante de rim, com o intuito de atingir uma vida saudável. É de conhecimento público, pelas informações veiculadas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, que o Brasil goza de destaque mundial na realização de transplantes de órgãos, apesar ainda da baixa taxa de doadores efetivos e da consequente diminuição em razão da pandemia da Covid-19. A escassez de órgãos humanos faz com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante longo período nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível e muitas vezes vão a óbito sem atingir o objetivo almejado. É de se esperar que o estudo anunciado, estribado no melhor embasamento científico e ancorado pelo pensamento bioético, proporcione uma acalentadora esperança para a humanidade. __________ 1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante - ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56.