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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A prescrição frequentemente é objeto de disciplina especial nas leis falimentares1. A razão dessa disposição na lei concursal, afastada daquela prevista na lei geral civil, justifica-se pelos efeitos desencadeados pela quebra no direito dos credores, especialmente a suspensão das ações em tramitação contra o devedor falido e a inviabilidade da promoção de ações fundadas em direito líquido, que devem passar pela habilitação de crédito. Os dispositivos legais referidos na nota 1 cuidam só de um aspecto da prescrição nos processos concursais, que é aquele relativo às obrigações pecuniárias de responsabilidade do devedor. Dois regimes existem para disciplinar a matéria: o que consagra efeito interruptivo da prescrição à habilitação de crédito (ou, enfim, a qualquer ato, ainda que sem esse nome, representativo de pretensão de recebimento de direito em face do devedor falido, no respectivo processo concursal) e o que declara desde logo suspensa (ou interrompida) a prescrição por força da sentença declaratória de falência. Seguem o primeiro regime Alemanha2, França3, Itália4, Argentina5e México6, por exemplo. Esse regime na verdade obedece à regra geral. A iniciativa do credor, de sair da inércia e comparecer ao processo concursal, é que dá azo à interrupção da prescrição7. Espanha8 e Portugal9 seguem, hoje, outro regime, segundo o qual a sentença declaratória produz o efeito em relação à prescrição. É o ato judicial, independentemente de qualquer iniciativa do credor, que desencadeia efeito em relação à prescrição. O artigo 6.º, "caput", da lei 11.101/05 cuida da matéria, para dizer que a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição. Seguimos, portanto, o regime da península ibérica. O artigo 6º, inciso I, na redação que se pretende introduzir na lei 11.101/05, continua a consagrar o efeito suspensivo do curso prescricional pelo só efeito da declaração da falência ou do deferimento do processamento da recuperação judicial. Até aí, não há novidade. Ocorre que se acrescenta um dispositivo com o seguinte teor: O credor deverá apresentar pedido de habilitação ou reserva de crédito em no máximo três anos a contar da data de publicação da sentença que "decretar a falência". Alcançando apenas a falência, essa previsão contrasta com a ideia de suspensão até aqui vigente, que segue até o encerramento do processo falimentar. A marcação de prazo para a habilitação de crédito ou pedido de reserva é mais compatível com a ideia de interrupção do curso da prescrição do que com a ideia de suspensão. Parece que o uso da palavra suspensão não está correto. Assegurado ao credor o prazo de três anos para exercer o direito de ajuizar a habilitação de crédito, tem-se que a sentença declaratória de falência interrompe o prazo prescricional, que volta a correr, agora pelo prazo de três anos, qualquer que seja a pretensão titularizada pelo credor. Na prática falimentar, chegamos a ver uma habilitação de crédito apresentada 18 anos após a declaração de falência. Isso é uma anomalia. É preciso conferir à sentença declaratória de falência o efeito interruptivo do prazo prescricional. Assim compreendido o fenômeno, ter-se-á uma boa contribuição para a não eternização dos processos falimentares. Por certo a proposta andaria mais afeiçoada aos institutos relativos à prescrição se preferisse a interrupção à suspensão, noções essas que já estão consolidadas em nosso direito, mas que a legislação falimentar teima em ignorar. __________ 1 Art. 23, § 4.º, do decreto 917, de 21/10/1890: "A prescrição ficará interrompida..."; art. 50 da lei 2024, de 17/12/1908: "Durante a falência ficará interrompida a prescrição"; art. 50 do decreto 5746, de 9/12/1929: "Durante a falência ficará interrompida a prescrição"; art. 47 do Decreto-Lei 7661, de 21 de junho de 1945: "Durante o processo da falência fica suspenso o curso de prescrição relativa a obrigações de responsabilidade do falido". A insolvência civil, disciplina no Código de Processo Civil, é processo autônomo, forma concurso de credores, e disciplina a prescrição no artigo 777: "A prescrição das obrigações, interrompida com a instauração do concurso universal de credores, recomeça a correr no dia em que passar em julgado a sentença que encerrar o processo de insolvência". Outra lei que disciplina concurso de credores é a lei 6.024, de 13/3/1974, que cuida da intervenção e liquidação extrajudicial de instituição financeira. O artigo 18, "e", prevê, como efeito do decreto de liquidação extrajudicial, a "interrupção da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade da instituição". 2 Código Civil, § 209, 2, que prevê a interrupção da prescrição pela "apresentação de pretensão em falência". Para Enneccerus-Nipperdey, Tratado de derecho civil, tomo I, parte II, trad. da 39ª Ed. alemã por Blas Perez González, Barcelona, Bosch, 1950, p. 531, equipara-se à interposição de demanda o "comparecimento ao concurso" e, por isso, o efeito interruptivo. 3 A declaração do credor equivale a uma ação e tem o efeito de interromper a prescrição até a extinção do processo coletivo (Code de Commerce, 99.ª ed., Chaput-Rontchevsky, Paris, Dalloz, 2004, p. 840-841, nota ao art. 621-43; Georges Ripert, Tratado elemental de derecho comercial, v. IV, Buenos Aires, TEA, 1955, n. 2.708, p. 327. 4 Art. 2943 do Código Civil c.c. artigo 94 da Lei Falimentar. 5 Art. 32 da lei 24.522/95: "El pedido de verificación produce los efectos de la demanda judicial, interrumpe la prescripción e impide la caducidad del derecho y de la instancia". A doutrina esclarece que a verificação de créditos se assemelha a uma demanda judicial, ainda que não o seja, mas produz o efeito de interromper a prescrição. Assim, Roberto Garcia Martinez, Derecho concursal, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1997, p. 138. Pedro Figueroa Casas, Derecho concursal, org. de Adolfo A.N. Rouillon, Buenos Aires, La ley, 2004, p. 240, diz que a interrupção da prescrição é "consequência lógica da proibição de iniciar ações judiciais contra o falido". Cabe acentuar, entretanto, que a consequência lógica levaría à adoção do criterio da lei brasileira - efeito automático da sentença de quebra e não de ato do credor. 6 Articulo 134.- Interrumpen la prescripción del crédito de que se trate: I. La solicitud de reconocimiento de crédito aun cuando ésta no cumpla con los requisitos establecidos en el articulo 125 del presente ordenamiento o sea presentada de manera extemporánea; II. Las objeciones que por escrito se realicen respecto de la lista provisional. III. La sentencia de reconocimiento, graduación y prelación respecto de los créditos incluidos en ella, o IV. La apelación respecto de los créditos cuyo reconocimiento se solicite. 7 Piero Pajardi-Vittorio Colesanti, Codice del fallimento, 3.ª ed., Milano, Giuffrè, 1997, p. 566: "Corretamente, o efeito interruptivo da prescrição vem coligado à apresentação de uma demanda de admissão ao passivo (voltada a tutelar o direito do credor) e não à declaração de falência do devedor (que é destinada a provocar a execução concursal geral)". Gustavo Bonelli-Virgilio Andrioli, Il Fallimento, v, I, 3.ª ed., Milano, Francesco Vallardi, 1938, n. 284, p. 644, explica que a substituição do falido pelo administrador judicial é ipso jure e sem solução de continuidade. Por isso, não produz nenhuma suspensão do curso do prazo da prescrição das relações ativas ou passivas do falido. A suspensão decorre da "insinuazione nel passivo". O autor chama de errônea a suspensão da prescrição por força da sentença de quebra. 8 Art. 60 da Ley Concursal 22/2003. Segundo a doutrina de Fernando Juan Y Mateu, "a interrupção da prescrição é um efeito automático da declaração de concurso, vinculado exclusivamente a dita declaração (...) A interrupção da prescrição é um efeito que se produz ope legis, sem necessidade de que o juiz o ordene expressamente na decisão de declaração do concurso, que se produz à margem das vontades do devedor e dos credores; e se produz sem necessidade de atuação alguma nesse sentido por parte da administração concursal", in Comentario de La ley concursal, tomo I, Coord. de Ángel Rojo e Emilio Beltrán, Madrid, Civitas, 2004, p. 1112. 9 Art. 100 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
terça-feira, 24 de setembro de 2019

O fim da recuperação judicial

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone Diversos projetos de lei têm sido apresentados ao Congresso Nacional para alterar a Lei de Insolvência Brasileira. Com o entendimento de que os interesses dos credores não eram os únicos a serem afetados por uma crise do empresário devedor e de que a concordata era instrumento insuficiente ao empresário para a superação da crise, a lei 11.101 foi em 2005 promulgada. Dentre seus objetivos, orientava-se pela preservação da atividade empresarial, pois, nas palavras do senador Ramez Tebet, autor do relatório apresentado à Comissão de Assuntos Econômicos à época sobre o Projeto, "gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento social do país". Essa preservação da atividade empresarial, em benefício de todos os envolvidos, foi estruturada por meio de dois sistemas: a recuperação e a falência. Diante de uma crise econômico-financeira temporária e reversível, permitiu-se ao empresário devedor, por meio do instituto da recuperação, negociar com os seus credores uma solução comum para a superação da crise que acometia a atividade. A preservação da atividade empresarial viável sob a condução do empresário, orientada por um plano de recuperação judicial negociado com os credores, poderia resultar na maior satisfação de todos os interessados. A postergação injustificada de uma liquidação forçada de uma empresa economicamente inviável sob a condução do devedor, contudo, apenas protelaria sua falência e consumiria os recursos escassos. Inviável a condução da empresa pelo devedor, a decretação da quebra, com a imediata alienação dos bens, permitiria a preservação da empresa por meio da arrematação dos bens do falido por outros empresários, que passariam a desenvolver a atividade de forma mais eficiente e em benefício de toda a coletividade. Passados 14 anos de vigência da lei, todavia, tais objetivos não têm sido satisfatoriamente alcançados. Em estudo realizado pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Insolvência da PUC/SP (NEPI), em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), foi constatado que, embora 72,1% dos planos de recuperação judicial tenham sido aprovados pela Assembleia Geral de Credores, apenas 18,2% dos processos de recuperação judicial efetivamente conseguiram se encerrar sem a decretação da falência pelo cumprimento ao menos das obrigações vencidas nos dois primeiros anos, ainda que o plano mediano de pagamento das obrigações quirografárias seja de aproximadamente 10 anos. Se a recuperação judicial aparenta não permitir a concessão da recuperação apenas aos empresários com atividades economicamente viáveis, a falência também não tem sido eficiente a permitir a maximização do valor dos ativos e da satisfação dos interesses dos credores. Conforme estudo de Jupetipe, Martins, Mário e Carvalho, os processos de falência duraram, em média, 9,2 anos, com alienação de bens que resultou em perda de valor de 46,84% e ressarcimento aos credores de apenas 12,4% do montante devido. A lei 11.101/05, pelos resultados objetivamente colhidos até então, decerto, precisa de pontuais ajustes. Dentre as últimas alterações propostas ao Projeto de lei 6.229/2005, várias são pertinentes a tornar mais eficiente o procedimento de insolvência. Destacam-se as alterações no procedimento de verificação de crédito, com a limitação temporal às habilitações retardatárias e a formação do quadro geral de credores provisório; a desburocratização das publicações das convocações; a proteção ao investidor; a célere liquidação dos bens no procedimento falimentar, com determinação de prazo ao administrador judicial e previsão de valor mínimo escalonado de alienação. A inserção da proposta de alteração ao art. 56 da lei 11.101/05, à revelia da comunidade acadêmica e dos aplicadores, contudo, poderá colocar tudo a perder. Nos termos do dispositivo da proposta, diante da rejeição do plano de recuperação apresentado pelo devedor, permite-se a apresentação de plano alternativo pelos próprios credores, com a isenção das garantias pessoais prestadas pelos sócios em relação aos créditos a serem novados. A despeito dessa possibilidade de propositura, não foram inseridos qualquer parâmetros a exigirem que o empresário devedor requeira as medidas de reestruturação, nem foi permitido que os credores, ainda que possam apresentar plano alternativo, possam requerer o ingresso em recuperação do devedor em crise. A proposta de alteração da lei, sem maiores estruturações ou quaisquer análises, pode criar incentivo perverso. Ao permitir que o plano de recuperação judicial seja apresentado pelos próprios credores, sem que possam também requerer a recuperação do devedor ou sem que haja parâmetros para que esse seja compulsoriamente submetido ao procedimento, desincentiva a negociação entre devedor e credor na busca de uma solução comum. Mais que isso, incentiva os credores a rejeitarem quaisquer propostas apresentadas pelo devedor como condição para apresentarem o próprio plano de recuperação judicial a ser por eles próprios aprovado. A circunstância de a propositura do plano alternativo implicar a isenção das garantias pessoais prestadas pelos sócios em relação aos créditos a serem novados não freia o comportamento estratégico dos credores. Apenas fará com que a maioria dos credores, de modo ainda mais oportunista, aprove plano de recuperação judicial por ela proposto em detrimento dos próprios credores minoritários e detentores das garantias pessoais. Nesse cenário provável, com o risco de afastamento da condução de sua própria empresa e a possibilidade de confisco dos seus ativos pelos próprios credores à sua revelia e sem que haja absolutamente qualquer parâmetro que obrigue o empresário devedor a requerer as medidas de restruturação ou a elas se sujeitar, o comportamento esperado do empresário devedor será o de mitigar seu risco e maximizar sua utilidade. Mesmo em crise econômico-financeira, o empresário devedor simplesmente optará por não ingressar com o pedido de recuperação. Sem processo, as diversas alterações benéficas propostas pelo projeto de lei 6.229/2005 não terão onde ser aplicadas e, pior, o empresário brasileiro continuará sem ter um instituto adequado para que possa superar a crise financeira que acomete sua atividade e que permitiria o desenvolvimento econômico nacional.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! Um dos principais ramos na economia brasileira é o agronegócio, o qual abrange todos os processos e atividades sociais relacionados com a agricultura e a pecuária - incluindo não apenas as atividades no campo, mas também, por exemplo, a fabricação de máquinas e equipamentos agrícolas. Sua importância é inegável para o nosso país, representando cerca de um terço do PIB brasileiro1. Como não poderia deixar de ser, tal atividade econômica também pode, eventualmente, estar envolvida em processos de recuperação judicial. Ao lado das pessoas jurídicas, poderia o produtor rural - mesmo sendo uma pessoa física - ingressar com pedido de recuperação judicial? A resposta é positiva: nos termos do art. 971 do Código Civil, o "empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode (...) requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro". Verifica-se, portanto, que para que o produtor rural seja considerado empresário, deve promover o seu registro, observado o prazo mínimo de dois anos de exercício regular da atividade (art. 48, lei 11.101/2005). E a qualidade de empresário é indispensável para que possa ser deferido o pedido de recuperação judicial (art. 1º da lei 11.101/2005). Dessa constatação, abrem-se algumas questões polêmicas. Primeiro: deve a certidão comprobatória do registro ser apresentada já com a petição inicial da recuperação judicial ou se admite o registro posterior ao ajuizamento? A indagação foi respondida pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.193.115, em que se decidiu, por maioria (vencida a Min. Nancy Andrighi), que o "deferimento da recuperação judicial pressupõe a comprovação documental da qualidade de empresário, mediante a juntada com a petição inicial, ou em prazo concedido nos termos do CPC 284 [de 1973], de certidão de inscrição na Junta Comercial, realizada antes do ingresso do pedido em Juízo, comprovando o exercício das atividades por mais de dois anos, inadmissível a inscrição posterior ao ajuizamento"2. Em síntese, portanto, a inscrição do produtor rural no registro civil deve ser anterior ao pedido de sua recuperação judicial. Prevaleceu a tese de que, muito embora a atividade empresária possa se caracterizar independentemente de registro, o art. 48 da lei 11.101/2005 exige que essa atividade seja regularmente exercida para que se possa ingressar com o pedido de recuperação judicial. Segundo: o registro promovido pelo produtor rural possui caráter meramente declaratório ou constitutivo? A razão de ser dessa indagação é que, por vezes, o produtor rural promove o seu registro pouco antes da apresentação em juízo do pedido de recuperação judicial. Se o registro tiver caráter declaratório, não haverá problema nessa conduta, bastando que o produtor comprove que vinha exercendo sua atividade há pelo menos dois anos - ainda que na maior parte desse lapso temporal não estivesse inscrito como empresário. Por outro lado, se o registro ostentar caráter constitutivo, o produtor somente poderá lançar mão do pedido de recuperação judicial após dois anos contados do registro. Trata-se, portanto, de questão com inegável interesse prático. O assunto é bastante controvertido e o STJ ainda não se pronunciou definitivamente sobre o tema. Em sede doutrinária, curiosamente, há enunciados aprovados em eventos organizados pelo Conselho da Justiça Federal conflitantes. Confira-se:  Natureza declaratória do registro(III Jornada de Direito Comercial)  Natureza constitutiva do registro(III Jornada de Direito Civil)  Enunciado 96 A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis.  Enunciado 202 O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção.  Enunciado 97 O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido.   Igualmente, na jurisprudência também se encontram posicionamentos conflitantes. No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, tem predominado a tese de que o registro possui caráter declaratório, conforme levantamento realizado de 8.6.2005, data do início da vigência da lei 11.101/2005, até 30.3.20193: No STJ, o panorama é ainda incerto. O tema chegou a ser objeto de proposta de afetação de recursos repetitivos em 2017 (Proposta de Afetação no REsp 1.684.994/MT), rejeitada sob o fundamento de que não havia precedentes do STJ sobre a matéria, devendo-se aguardar o amadurecimento do debate sobre o tema naquele tribunal. Até o momento, existem alguns pronunciamentos em sede de Tutela Provisória em Recurso Especial, notadamente do Min. Marco Buzzi, asseverando que o registro em questão teria caráter constitutivo4. Trata-se, contudo, de decisões monocráticas, que não necessariamente refletem o entendimento do STJ a respeito da questão. A matéria está sob discussão no âmbito do Recurso Especial 1.800.032, cujo julgamento pela Quarta Turma se iniciou em 4.6.2019. O ministro Marco Buzzi, reafirmando o caráter constitutivo do registro já manifestado em decisões monocráticas anteriores, negou provimento ao recurso especial dos produtores rurais, dele divergindo o ministro Raul Araújo, que dava provimento ao recurso. Atualmente, o julgamento está suspenso, com pedido de vista ao Min. Luis Felipe Salomão. Trata-se de julgamento paradigmático, em que ingressaram como amici curiae a Federação Brasileira de Associações de Bancos - FEBRABAN e a Sociedade Nacional de Agricultura. Houve, ainda, pedidos de ingresso do Instituto de Direito de Recuperação de Empresas - IDRE (indeferido por ausência de representatividade nacional), bem como da ABIOVE - Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais e da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (ambos indeferidos porque formulados quando já iniciado o julgamento pelo colegiado). Espera-se que, em breve, o Superior Tribunal de Justiça possa definir sua posição quanto ao tema. Independentemente da tese a ser acolhida, o mais importante é que se saiba com antecedência as regras do jogo, e a consolidação da jurisprudência sobre a recuperação judicial do produtor rural consiste em importante passo nessa direção. Abraços, e até a próxima! __________ 1 PACHECO, Alessandro Mendes et al. A importância do agronegócio para o Brasil - revisão de literatura, Revista Científica Eletrônica de Medicina Veterinária, Ano X, n. 19, jul. 2012. (Acessado em 9/9/2019). 2 REsp 1193115/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/08/2013, DJe 07/10/2013. 3 Fonte: TRENTINI, Flavia et al. A recuperação judicial do empresário rural na jurisprudência do TJ/SP. Conjur (Acessado em 9/9/2019). 4 Entre outros, STJ, AgInt no TP 1918, julg. 21.5.2019 e TP 1923, julg. 8/4/2019.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Os tempos atuais, de intensa movimentação para a alteração da lei 11.101/2005, provocam reflexões a respeito de terem sido ou não alcançados os objetivos do Projeto de Lei Complementar 71/2003, relatado pelo senador Ramez Tebet, e que deu origem à nossa lei em vigor: 1 - Preservação da empresa; 2 - Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3 - Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4 - Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5 - Proteção aos trabalhadores; 6 - Redução do custo do crédito no Brasil; 7 - Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8 - Participação ativa dos credores; 10 - 11 - Maximização do valor dos ativos; 12 - Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 13 - Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Em matéria de segurança jurídica, um objetivo buscado pela nossa lei e que necessariamente passa pela atuação dos Tribunais, hoje os credores garantidos não têm certeza quanto à extensão de seus direitos pois têm sido homologados os planos de recuperação com previsão de liberação de garantias reais sem anuência do próprio credor. Há vários casos em que se constata a falta de proteção a trabalhadores, em oposição ao objetivo da lei, pois muitas recuperandas realizam demissões em massa sem pagamento de verbas rescisórias e depois apresentam planos com previsão de contagem do prazo de pagamento de 1 ano a partir da decisão de concessão da recuperação, agravando a situação dos credores de verbas de natureza alimentar. A participação ativa dos credores, por sua vez, é um objetivo que poderia ser alcançado com a instituição de comitê de credores, mas este órgão poucas vezes é instalado nas recuperações judiciais. A desburocratização da recuperação de ME/EPP certamente é um objetivo não alcançado e deve ser proposto um processo mais barato e menos burocrático, talvez extrajudicial ou com uma fase de mediação. O almejado rigor na punição de crimes falimentares ficou no plano legal, sem efeito prático, pois raras as condenações e raríssimas as condenações com réus cumprindo pena privativa de liberdade. Portanto, muitos objetivos não foram alcançados e mesmo assim a propõe-se a alteração da lei. Quanto aos quatro primeiros objetivos, certamente algumas empresas viáveis se recuperaram e tantas inviáveis faliram, mas a nossa lei não define precisamente o que é crise econômico-financeira, o que permite a empresários que não estejam em crise o uso indevido da recuperação. Também é possível a algum devedor alegar estar em crise, porém objetivamente sem capacidade de seguir na condução do negócio e de superar a crise, e ainda assim terá acesso à recuperação. A melhor forma de evitar que a recuperação seja desvirtuada é a adoção de critérios objetivos para a definição da crise e da viabilidade. Assim como o artigo 94 da lei 11.101/2005 estabelece objetivamente quem terá a falência decretada, deveria ser incorporado ao nosso sistema uma objetiva definição de crise, como, por exemplo, mediante a adoção de certos índices financeiros, assim como deveria haver critérios indicativos da insolvência do devedor, como o inadimplemento reiterado de impostos e encargos sociais. Em acréscimo, e tendo em vista que as propostas de mudança legislativa têm se encaminhado para a realização de uma perícia antes da decisão de processamento da recuperação, sugere-se que a análise preliminar seja feita para a constatação da real situação da devedora e com duplo objetivo: a) constatação da existência ou não de crise - caso não seja constatada a crise por meio de perícia, o juiz indeferirá a petição inicial. Com isso não haverá o uso da recuperação com o objetivo de retardar pagamentos e prejudicar credores; b) constatação ou não da situação falimentar - caso constatada a inviabilidade da devedora por meio da perícia, o juiz decretará a falência, e não simplesmente indeferirá a petição de inicial da recuperação judicial, como ocorre atualmente. A decretação da falência não devolverá o empresário inviável ao mercado, com prejuízo aos demais agentes econômicos. Além disso, permitirá a apuração das responsabilidades dos sócios e administradores. Cuidando ainda da fase inicial do procedimento de recuperação judicial, e considerando que a perícia prévia normalmente é realizada por quem atua como administrador judicial, podendo representar custos excessivos para a devedora, poderia ser feita uma simples constatação por 2 Oficiais de Justiça nas recuperações judiciais de pequenas e médias empresas, não integrantes de grupos econômicos, que são menos complexas. Caso constatado o normal funcionamento da devedora, a presença de estoques e o efetivo exercício de atividade pelos empregados, deveria o juiz dispensar a perícia e deferir o processamento da recuperação judicial. O procedimento de recuperação judicial, como enunciado acima, também deveria ser célere e eficiente. Porém, a falta de juízos especializados e de estrutura adequada no serviço judiciário não permite a almejada celeridade. A par disso, credores financeiros são concentrados e participam da maioria das recuperações, exigindo que as alterações dos planos possam ser submetidas aos seus órgãos internos de aprovação com tempo adequado para deliberação. Suspensões de assembleias-gerais de credores (AGCs) tornaram-se comuns, retardando o processo de aprovação do plano. Aprovado o plano, a lei estabelece um prazo de fiscalização do cumprimento por até 2 anos, totalmente divorciado das previsões contidas nos planos, muitos deles com obrigações por prazos muito além do biênio legal. A suspensão das AGCs deve ser limitada. Deliberações por escrito devem ser permitidas. O processo deve ser encerrado assim que aprovado o plano e concedida a recuperação, duas providências que podem tornar o processo mais rápido, barato e eficiente. Em resumo, as propostas de alteração na lei 11.101/2005 deveriam ser precedidas de uma avaliação do efetivo cumprimento dos objetivos traçados pelo projetista da lei em vigor, bem como da discussão sobre medidas aptas a tornar o processo mais barato e mais rápido, especialmente para pequenas e médias empresas. Além disso, se a recuperação e a falência devem se destinar, respectivamente, a empresas viáveis e inviáveis, é preciso que a legislação estabeleça critérios objetivos e passíveis de controle pelo Poder Judiciário desde o início do procedimento.
Texto de autoria Luiz Dellore e Christiane Barozi Porto Matias Introdução: o contexto onde se insere o debate Inúmeros aspectos que envolvem a recuperação judicial (RJ) têm sido palco de debates cada vez mais acirrados na doutrina e na jurisprudência, como se percebe por exemplo dos diversos textos desta coluna1. Um dos motivos para tanto é o crescimento do número de recuperações nos últimos anos, o que vem suscitando a necessidade de se buscar, cada vez mais, o melhor resultado útil do processo para todos os envolvidos: recuperandas, credores e sociedade. É compreensível que cada parte defenda com afinco seus próprios interesses, sempre se utilizando dos dispositivos legais de modo a tentar obter os resultados mais positivos para si, que levem às menores perdas e prejuízos possíveis. Assim, as negociações acerca do plano de recuperação são sempre movimentadas, recheadas de reuniões e posicionamentos diversos entre as partes envolvidas, muitas vezes se estendendo por um longo prazo. E isso pode levar à inviabilização do soerguimento de uma empresa potencialmente recuperável, assim como à diminuição (ou inexistência) da possibilidade de pagamento (ainda que mínimo) dos credores. A classificação das garantias (e sua submissão ou não à recuperação judicial) é ponto que sempre demanda específica análise e retificações frequentes, mesmo que a Lei de Recuperação Judicial (lei 11.101/2005), em seu art. 83, já discipline o assunto. O aperfeiçoamento das garantias, bem como a comprovação do efetivo cumprimento dos requisitos essenciais para tanto, são habitualmente alvo de inúmeros questionamentos. E grande parte dessas discussões são voltadas à garantia fiduciária, a qual não se submete à recuperação judicial. Previsão legal: a garantia fiduciária não se submete à RJ A garantia fiduciária é classificada como extraconcursal para efeito de identificação perante a recuperação judicial. É o que disciplina o § 3º do art. 49 da lei (grifos nossos): "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial". Em outras palavras, pela previsão legal, nenhum bem da empresa em recuperação que seja objeto de alienação fiduciária, arrendamento ou reserva de domínio, será alcançado pela recuperação. Portanto, pela letra da lei, não deveria haver maior discussão quanto a isso. Assim, a forma mais usual para que um credor não tenha seu crédito submetido à recuperação judicial é se valer da garantia fiduciária, seja de bens móveis ou imóveis. Contudo, é certo que essa previsão muitas vezes desagrada as empresas em recuperação e outros credores que não dispõem de garantias fiduciárias. Com isso, a (extra)concursalidade da dívida garantida por alienação fiduciária é objeto de frequentes debates e embates no Judiciário. Em nosso entender, a forma de se modificar a extraconcursalidade da garantia fiduciária é a alteração legislativa, valendo lembrar que estão em debates alterações da Lei de Recuperação e Falência. Porém, infelizmente, no Brasil muitas vezes se deixa de lado o caminho da alteração legislativa e se parte para a tentativa de uma "interpretação criativa" (em inúmeros casos claramente contra legem) mais favorável à parte interessada. É o que ocorre em relação à garantia fiduciária na RJ. Assim, o movimento das empresas em recuperação é usual na linha de tentar descaracterizar a garantia extraconcursal. Isso já foi tratado em artigo anterior nesta coluna2, onde se expôs parte dessa evolução e se destacou as idas e vindas acerca do assunto, apontando que, ao final, o STJ acaba por firmar e ratificar exatamente o que diz a lei, ou seja, certificando que a garantia fiduciária não se sujeita à RJ. Mas o texto anterior tratou do tema da cessão fiduciária sob a perspectiva da falta de registro; agora a análise se dá também em relação à necessidade de se individualizar os títulos. A (des)necessidade de registro e de identificação dos títulos objeto da cessão fiduciária de crédito: a posição do STJ Ultrapassada a questão do reconhecimento da extraconcursalidade da garantia fiduciária, a discussão jurídica passou a girar em torno da (i) necessidade ou não do registro do contrato, especialmente em relação a bens móveis (por exemplo, em relação a crédito) e (ii) da necessidade ou não de exata indicação dos títulos dados em garantia fiduciária. Inúmeras recuperandas passaram a defender a tese de que a ausência de registro e/ou de identificação precisa dos títulos objeto da chamada "trava bancária" teriam como consequência a reclassificação do crédito como concursal quirografário, e não extraconcursal. Portanto, se o credor fiduciário não registrasse, por exemplo, cada uma das notas promissórias ou recebíveis dados em garantia3, não se estaria diante de uma garantia fiduciária. Essa tese chegou a prevalecer em tribunais intermediários, em favor das empresas em recuperação4. E, por certo, a questão chegou ao STJ. No momento, já está sedimentada a posição de que a ausência de registro não afeta a extraconcursalidade. Merece destaque o seguinte caso, constante do informativo 578/STJ (REsp 1.412.529-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 2/3/2016, grifos nossos): "Não se submetem aos efeitos da recuperação judicial do devedor os direitos de crédito cedidos fiduciariamente por ele em garantia de obrigação representada por Cédula de Crédito Bancário existentes na data do pedido de recuperação, independentemente de a cessão ter ou não sido registrada no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor". Mas, e em relação à necessidade de se indicar de forma pormenorizada os títulos objeto da cessão fiduciária de crédito? A 3ª Turma, em importante precedente deste ano, bem decidiu acerca da desnecessidade de indicação de cada título, exatamente considerando o dinamismo e velocidade típicos desse mercado. No informativo 646/STJ, a questão foi assim sintetizada (REsp 1.797.196-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 12/4/2019, grifos nossos): "Na cessão fiduciária de direitos creditórios, para a perfectibilização do negócio fiduciário, o correlato instrumento deve indicar, de maneira precisa, o crédito objeto de cessão e não os títulos representativos do crédito. No voto condutor desse recurso, o relator ressaltou que, por ocasião da realização da cessão fiduciária, é absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido sequer tenha sido emitido (como é o caso da cessão de recebíveis), o que inviabilizaria a sua determinação no próprio contrato. Isto porque a cédula de crédito bancário admite que a cessão fiduciária respectiva recaia sobre um crédito futuro, ainda não performado (cf. art. 31 da lei nº 10.931/04)5. Em nosso entender, absolutamente correta essa interpretação. Caso contrário, simplesmente inviável a cessão fiduciária de crédito: deve-se indicar precisamente qual o crédito, mas não quais os títulos representativos desse crédito. Porém, vale destacar que a questão ainda não está definida. O tema está, no momento, em debate no âmbito da 2ª Seção do STJ (que reúne as duas turmas desse Tribunal que tratam do direito privado, a 3ª e 4ª Turmas), no REsp. nº 1.629.470, segundo noticiado pelo Migalhas6. Esse REsp teve origem na 4ª Turma, mas foi afetado para ser julgado na 2ª Seção, com a finalidade de que a questão seja pacificada. Até o momento, foram apenas dois votos, de um total de nove: a Ministra Relatora Maria Isabel Gallotti votou no sentido de considerar o crédito extraconcursal (em linha com a decisão proferida pela 3ª Turma e acima mencionada), ao passo que o Ministro Luís Felipe Salomão abriu a divergência7. Trata-se, sem dúvidas, de relevante caso a ser acompanhado e que possivelmente fixará a tese no âmbito do STJ. Até lá, temos instabilidade a respeito do tema. De qualquer forma, conveniente mencionar que, mesmo diante dessa indefinição no STJ, há diversos casos de concessão de efeito suspensivo a recursos especiais de credores que discutem essa tese. Isso de modo a obstar o levantamento, pelas recuperandas, de valores objeto de cessão fiduciária de créditos e que, nos tribunais de origem, foram liberados por falta de registro ou de individualização dos títulos cedidos8. Em síntese, para nós o imprescindível é que os créditos sejam identificáveis, conforme determinado pelo art. 18, IV, da lei 9.514/97. Porém identificação do crédito não significa total "especificação" do título, o que é inadmissível, sob pena de se inviabilizar a própria operação, com a obrigação de que os títulos (ainda inexistentes9 ou não performados) tenham as mesmas exigências dos direitos creditórios que representam. Esperamos, em prol da segurança jurídica e desenvolvimento da atividade econômica, que a questão seja assim pacificada pelo STJ. *Christiane Barozi Porto Matias é especialista em Direito Empresarial pela UEL. Advogada da Caixa Econômica Federal, com atuação na área de recuperação de crédito, especialmente recuperação judicial e falência. __________ 1 Para conhecer todos os textos já publicados, acesse. 2 Nesse sentido, conferir, de um dos autores desta coluna, texto de julho de 2018. 3 Isso, do ponto de vista prático, é algo inviável, dada a dinâmica e velocidade das relações empresariais - o que já foi reconhecido pelo STJ, como adiante se exporá. 4 Por exemplo, a Súmula 60 do TJSP, no sentido da necessidade de registro: "A propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor". Frise-se que súmula desse mesmo TJ deixa clara a possibilidade de alienação fiduciária para direitos de crédito: "Súmula 59: Classificados como bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de créditos podem ser objeto de cessão fiduciária". 5 No informativo 646/STJ consta o seguinte, conveniente para se compreender a questão do ponto de vista macro: "Dos termos dos arts. 18, IV, e 19, I, da lei 9.514/1997, ressai que a cessão fiduciária sobre títulos de créditos opera a transferência da titularidade dos créditos cedidos. Ou seja, o objeto da cessão fiduciária são os direitos creditórios que hão de estar devidamente especificados no instrumento contratual, e não o título, o qual apenas os representa. A exigência de especificação do título representativo do crédito, como requisito formal à conformação do negócio fiduciário, além de não possuir previsão legal - o que, por si, obsta a adoção de uma interpretação judicial ampliativa - cede a uma questão de ordem prática incontornável. Por ocasião da realização da cessão fiduciária, afigura-se absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido nem sequer emitido, a inviabilizar, desde logo, sua determinação no contrato. Registre-se, inclusive, que a lei 10.931/2004, que disciplina a cédula de crédito bancário, é expressa em admitir que a cessão fiduciária em garantia da cédula de crédito bancário recaia sobre um crédito futuro (a performar), o que, per si, inviabiliza a especificação do correlato título (já que ainda não emitido)". De seu turno, da ementa do acórdão consta o seguinte, conveniente para se compreender a questão do ponto de vista micro: "(...)6. Na hipótese dos autos, as disposições contratuais estabelecidas pelas partes não deixam nenhuma margem de dúvidas quanto à indicação dos créditos cedidos, representados por duplicatas físicas ou escriturais - sendo estas, por sua vez, representadas pelos correlatos borderôs, sob a forma escrita ou eletrônica -, os quais ingressarão, a esse título (em garantia fiduciária), em conta vinculada para esse exclusivo propósito. 7. A duplicata virtual é emitida sob a forma escritural, mediante o lançamento em sistema eletrônico de escrituração, pela empresa credora da subjacente relação de compra e venda mercantil/prestação de serviços (no caso, as próprias recuperandas), responsável pela higidez da indicação. 8. É, portanto, a própria devedora fiduciante que alimenta o sistema, com a emissão da duplicata eletrônica, que corporifica uma venda mercantil ou uma prestação de serviços por ela realizada, cuja veracidade é de sua exclusiva responsabilidade, gerando a seu favor um crédito, a permitir a geração de um borderô (o qual contém, por referência, a respectiva duplicata), remetida ao sacado/devedor. Já se pode antever o absoluto contrassenso de se reconhecer a inidoneidade desse documento em prol dos interesses daquele que é o próprio responsável por sua conformação. O pagamento, por sua vez, ingressa na conta vinculada, em garantia fiduciária ao mútuo bancário tomada pela empresa fiduciante, não pairando nenhuma dúvida quanto à detida especificação do crédito (e não do título que o representa), nos moldes exigidos pelo art. 18, IV, da lei 9.514/1997". 6 STJ debate cessão fiduciária na recuperação judicial do grupo da Drogaria São Bento. 7 Mais detalhes no andamento do recurso no STJ. 8 Como exemplo, o efeito suspensivo ao REsp nº 1.815.823, concedido no STJ nos seguintes termos: "A plausibilidade jurídica do direito invocado está presente mormente no que tange à alegação de desconformidade do acórdão recorrido com a orientação desta Corte a respeito da desnecessidade de discriminação e especificação dos títulos objeto da cessão fiduciária. (...) No que concerne ao perigo de dano, está evidenciado pela determinação contida no acórdão recorrido de restituição de elevada soma (e-STJ fls. 727-728), cujo valor histórico alegado seria de aproximadamente R$ 54 (cinquenta e quatro) milhões de reais (e-STJ fl. 789). Nesse contexto, o deferimento do pedido de tutela provisória é de rigor, para o fim de conferir efeito suspensivo ao recurso especial, com a consequente suspensão dos efeitos do acórdão recorrido, até ulterior deliberação desta Corte Superior. Desse modo, DEFIRO o pedido de tutela provisória para conferir efeito suspensivo ao recurso especial, nos termos da fundamentação acima, até o julgamento do recurso". Maiores informações podem ser obtidas no andamento do recurso. 9 Vale ressaltar que a cessão fiduciária de direito creditório futuro (e passível de determinação) é expressamente autorizada pelo § 3º do art. 1.361 do Código Civil.
Texto de autoria de João de Oliveira Rodrigues Filho Com o advento da Constituição Federal de 1988 o Ministério Público assumiu importante papel como função essencial à Justiça, ao lhe ser atribuída a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127 de nossa Carta Magna. Para o exercício de importantes funções, a Constituição da República outorgou à instituição autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento (art. 127, § 2º, da CF), e aos seus membros diversos predicamentos de poder (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio - art. 128, § 5º, inciso I, CF), com o escopo de garantir a independência funcional no desempenho das suas atribuições. Como bem acentua Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil, Volume I, Malheiros, 2016, páginas 881 e 882): O interesse público que essa Instituição tem o dever de resguardar não é o puro e simples interesse da sociedade no correto exercício da jurisdição como tal - que também é uma função pública -, porque dessa atenção estão encarregados os juízes, também agentes estatais eles próprios. O Ministério Público tem o encargo de cuidar para que, mediante o processo e o exercício da jurisdição pelos juízes, recebam o tratamento adequado certos conflitos e valores a eles inerentes, particularmente mediante o zelo por direitos e interesses indisponíveis, como está na Constituição Federal. A atuação do Ministério Público se dá tanto na condição de parte (art. 177 do CPC), quando atua com o titular da ação penal ou quando propõe ação civil pública na defesa dos direitos transindividuais (ainda que em sede de legitimidade extraordinária) ou como fiscal da lei (art. 178 CPC), condição na qual assume a posição de interveniente processual buscando zelar pela aplicação do ordenamento no interesse da sociedade. Especificamente no âmbito do direito de insolvência (lei 11.101/2005), houve o veto ao art. 4º da lei que assim dispunha: "Art. 4º O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência. Parágrafo único. Além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta". Muitas foram as razões dadas pela doutrina especializada para justificar o veto, prevalecendo a posição de que a intervenção pontual do Ministério Público nos demais dispositivos já existentes na lei 11.101/2005 conferiria celeridade processual aos processos de recuperação judicial e falência e não banalizaria a intervenção ministerial no sistema de insolvência, haja vista a desnecessidade de sua participação em todos os termos dos três processos de insolvência (recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência). A título de exemplo, remanesceram no texto da lei 11.101/2005 os seguintes dispositivos que reclamam a participação do Ministério Público: art. 52, V; art. 99, VIII; 142, § 7º; 154, § 3º. De toda forma, a atuação do Ministério Público no âmbito do processo civil e de microssistemas como o do sistema de insolvência deve ser pautada pela defesa de interesses públicos que atinjam ou influenciem a esfera pessoal e patrimonial de uma coletividade de indivíduos. Mas qual é esse interesse público? Como defini-lo para delinear o que seria passível de defesa pelo Ministério Público? Clássica é a definição atribuída a Renato Alessi (Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano - 1960) com a antiga bipartição entre interesse público primário e secundário. Em breve síntese, o interesse público primário seria o interesse geral da sociedade propriamente dito, sintetizado nas aspirações de justiça, segurança e bem estar social. Já o interesse público secundário seria a atuação do Estado como pessoa jurídica que é e que não poderia se chocar com o interesse público primário, justamente pela necessidade do próprio Estado, através de seus poderes e órgãos, buscar servir e atender as aspirações daqueles que se encontram em seu território. Como se pode perceber do quanto até aqui exposto, embora inegável a importância da participação do Ministério Público no sistema de insolvência, o fato é que carecemos de uma melhor sistematização objetiva sobre o âmbito e os limites de suas atribuições. Tal fator ocasiona insegurança jurídica, na medida em que, embora os membros do Ministério Público sejam comprometidos com suas atribuições institucionais, a atuação de tal órgão estatal acaba por se subordinar a um subjetivismo inevitável dos componentes dos respectivos quadros, pelas próprias características pessoais inerentes a cada indivíduo e, consequentemente, a uma pulverização de práticas sem qualquer uniformidade sistemática de atuação. Em outras palavras, em muitas situações semelhantes ou o membro do Ministério Público não atua, por entender não estar presente interesse público para funcionar no processo, ou atua tão somente para cientificar-se do ocorrido ou, ainda, atua de maneira mais intensa no processo, fornecendo subsídios para o enfrentamento da questão. Em todos esses exemplos, há perfeita justificativa para as posições adotadas, mas é inegável que o componente de subjetivismo influencia sobremaneira a intervenção ministerial no processo de insolvência e essas diferentes formas de atuação para uma mesma situação semelhante é uma quadra desfavorável à segurança jurídica que se espera do sistema de justiça. Mas como conciliar a necessidade de se estabelecer critérios mais objetivos de atuação do Ministério Público sem ferir sua independência funcional? Ainda que possamos recorrer ao próprio ordenamento jurídico para buscar uma sistematização mais objetiva na atuação do Ministério Público nos processos de insolvência, não podemos desconsiderar a existência de diversas cláusulas gerais existentes (normas de conteúdo intencionalmente aberto em sua semântica para permitir a maior porosidade do sistema jurídico frente às situações advindas do dinamismo social), as quais também não impedem o caráter de subjetivismo na atuação estatal, no momento de interpretação da norma a ser aplicada. Diante de tal quadra, em boa hora o advento da lei 13.655, de 25/4/2018, a qual promoveu a inserção de diversos dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para buscar garantir o alcance de maior segurança jurídica por poderes e órgãos estatais, quando da aplicação da lei ao caso concreto. De acordo com a exposição de motivos do projeto de lei 7.448, DE 2017, que resultou na lei 13.655/2018: A proposta pretende tornar expressos alguns princípios e regras de interpretação e decisão que, segundo a doutrina atual, devem ser observados pelas autoridades administrativas ao aplicar a lei. Vale dizer que algumas destas iniciativas já foram incorporadas ao novo código de processo civil. Assim, a proposta sugere parâmetros a serem observados quando autoridades administrativas tomam decisões fundadas em cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados. Busca também conferir aos administrados o direito a normas de transição proporcionais e adequadas, bem como estabelece um regime para que negociações entre autoridades públicas e particulares ocorram de forma transparente e eficiente. Sobre o âmbito de alcance das introduções trazidas pela Lei 13.655/2018, Odete Medauar (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - Anotada - Volume II, Quartier Latin, 2019, páginas 63/64) assim leciona: A ementa da referida Lei identifica o âmbito material específico de aplicação dos seus preceitos: criação e aplicação do direito público, visando à eficiência e segurança jurídica nessas situações. Em tese, incide nas decisões relativas a assuntos tratados em disciplinas do direito público, por exemplo: direito constitucional, direito administrativo, direito tributário, direito financeiro, direito processual, direito urbanístico, direito ambiental. Quanto às autoridades públicas que decidem, o art. 20 utiliza a expressão "esferas administrativa, controladora e judicial". Esfera administrativa mostra-se de sentido largo, para abranger todos agentes que decidem nos órgãos e entes da Administração direta e indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Esfera controladora diz respeito aos órgãos ou entes que exercem controle interno e externo sobre atuações da Administração Pública direta e indireta. Podem ser exemplificados, no controle interno, os órgãos contábeis e financeiros do próprio órgão ou ente público, as controladorias, as ouvidorias, as corregedorias; no controle externo, os tribunais de contas, o ministério público. Esfera judicial abarca os juízes e os membros dos tribunais do Poder Judiciário. Embora o Poder Judiciário se enquadre na condição de "esfera controladora" da Administração Pública, o dispositivo indicou explicitamente tal esfera, talvez por clareza. Perfeitamente aplicável os preceitos da lei 13.655/2018 à atuação do Ministério Público quando de sua atuação nos processos de insolvência. Isso porque o sistema de insolvência é de evidente interesse público, na medida em que sua eficiência proporcionará maior atração de investidores e, consequentemente, proporcionará o fortalecimento da economia brasileira. A própria lei reconhece o seu caráter de interesse público na medida em que determina a intervenção do Ministério Público, segundo suas próprias atribuições constitucionais. Logo, imprescindível que ao Ministério Público também se imponha as obrigações constantes da LINDB, para que em suas manifestações sempre demonstre e comprove as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB) Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB). Jamais deve ser buscado qualquer meio ou instrumento voltado a sufocar a independência funcional da atuação do Ministério Público, uma vez que qualquer ação nesse sentido se revestirá de inconstitucionalidade material, diante da importância constitucional atribuída expressamente a tal órgão de Estado. Todavia, o aprimoramento do sistema de insolvência também deve abarcar uma atuação mais objetiva do Ministério Público nos processos de recuperação judicial, extrajudicial e de falências, justamente para o alcance da tão almejada segurança jurídica no âmbito da lei 11.101/2005. A adoção dos mandamentos da lei 13.655/2018, que inseriu novos dispositivos na LINDB são plenamente compatíveis com a lei 11.101/2005, não somente para o Poder Judiciário, mas, também, aos membros do Ministério Público, na medida em que proporcionará maior transparência e objetividade de atuação, sem qualquer cerceamento de suas atribuições funcionais e sempre respeitando a busca da defesa do interesse público objetivado por tão importante instituição nacional.  
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos Sumário: 1. Introdução - 2. A interpretação do contrato conforme a real intenção das partes. A relação contratual por prazo indeterminado - 3. O procedimento para rescisão de contratos à luz do art. 473 do Código Civil - 4. O prazo razoável para a prorrogação e o momento para a decisão da questão - 5. Conclusão. 1. Introdução O presente artigo tem por objetivo examinar a possibilidade de prorrogação compulsória de contrato essencial para a empresa em recuperação judicial. A prática empresarial demonstra que, dependendo das circunstâncias, ao celebrar um contrato uma sociedade empresária pode ficar em situação de dependência econômica em relação à outra parte contratante. E isso é mais acentuado em contratos pactuados com cláusula de exclusividade, o que é frequente em contratos de distribuição. Assim sendo, a rescisão do contrato pode comprometer relevantemente as finanças da sociedade, se não houver tempo suficiente para que esta amortize os investimentos realizados para a execução do contrato. Também é comum encontrar, nessa relação obrigacional, contratos celebrados formalmente por prazo determinado, mas sendo renovados por vários anos consecutivos. Nesse caso, a não renovação do contrato interromperia fatalmente as atividades da sociedade em recuperação, tornando insuperável a sua crise econômico-financeira. Deste modo, questiona-se: pode, por exemplo, a sociedade em recuperação judicial requerer judicialmente a prorrogação desse contrato de distribuição? Caso positivo, qual o período razoável para tal prorrogação? 2. A interpretação do contrato conforme a real intenção das partes. a relação contratual por prazo indeterminado Para investigar se a relação contratual das partes era por prazo determinado ou por prazo indeterminado, faz-se necessária a utilização da boa-fé, tanto na sua função interpretativa quanto na sua função limitadora do exercício de direitos abusivos. Isto é, se a conduta das partes indica que a relação era por prazo indeterminado ou não. Importa destacar que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem, de acordo com o artigo 112 do Código Civil. Deste modo, a existência de cláusula expressa não é suficiente para concluirmos que os pactos tinham prazo certo, devendo ser investigada a vontade das partes ao celebrar o ajuste. Deste modo, é necessário identificar no caso concreto indícios de que a relação entre as partes funcionava por tempo indeterminado. Por exemplo, sucessivas renovações ao longo de muitos anos, continuidade da prestação de serviço após o fim do período contratual e a subsequente celebração de novo instrumento com efeitos retroativos, inclusão de novos serviços, prorrogação do contrato por período exíguo etc. Em muitos casos, a celebração de diversos contratos em caráter sucessivo mascara a intenção de colocar em vantagem a parte mais forte na relação contratual, pois esta pode terminar a relação contratual a qualquer tempo. Para a outra parte, ainda que também possua tal direito, a situação de dependência econômica decorrente do contrato desaconselha a rescisão, pois ficaria numa situação econômica difícil. Deste modo, deve-se privilegiar a real intenção das partes, ainda que esta venha não a corresponder à literalidade do contrato. A busca da vontade real deve ocorrer em relação a todas as disposições do pacto, incluindo o prazo do contrato e a sua abrangência. 3. O procedimento para rescisão de contratos à luz do art. 473 do Código Civil O Código Civil de 2002 estabelece restrições ao poder de livre denúncia de contratos. Entretanto, discute-se em doutrina se o parágrafo único do artigo 473 do Código Civil seria aplicável somente aos contratos por prazo indeterminado ou se este poderia também ser aplicado aos contratos por prazo certo. A melhor corrente doutrinária entende que o dispositivo legal também poderia ser utilizado nos contratos por prazo determinado, em algumas hipóteses. No entanto, se dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos, conforme disposto no art. 473 do Código Civil. Nesta segunda hipótese, a lei é clara em condicionar os efeitos da denúncia à concessão de prazo compatível com os investimentos. A ratio leges é permitir que o contratante amortize os investimentos realizados ao longo do tempo. Antes da concessão desse prazo, o contrato não pode ser rescindido unilateralmente. Na maioria das vezes, o abuso de direito ocorre quando o contratante exerce a denúncia do contrato com aviso prévio ínfimo, principalmente quando sua relação contratual com o contratado tenha durado longos anos, gerando confiança recíproca e maior integração entre ambas empresas. Também é comum a ruptura do contrato sem a concessão de nenhum aviso prévio, contrariando o disposto no parágrafo único do art. 473 Código Civil. Nessas hipóteses, o rompimento abrupto do contrato se revela abusivo e, assim, ilícito, como o STJ já teve a oportunidade de se manifestar1. A importância do aviso prévio razoável na denúncia em contratos, como por exemplo, de distribuição se justifica, pois o distribuidor precisa de tempo para amortizar os custos de seus investimentos, principalmente quando o contrato possui cláusula de exclusividade. Sem a concessão deste prazo, o revendedor não poderia se organizar para liquidar o seu estoque e dispensar os seus empregados ou, se quiser continuar no mesmo ramo de atividade, se reinserir no mercado mediante a distribuição de produtos de outro fabricante. Na hipótese de o fabricante tentar rescindir abruptamente o contrato, cabe ao distribuidor requerer em juízo (i) a prorrogação do contrato, a fim de que lhe seja garantido prazo para amortizar os seus investimentos ou (ii) indenização por perdas e danos. Destas duas possibilidades, deve-se, quando possível, prestigiar a execução específica da obrigação (a concessão de mais prazo contratual) ao invés da conversão da obrigação em perdas e danos. No direito das obrigações, a conversão em perdas e danos é sempre medida excepcional, quando a obrigação principal não puder ser satisfeita. O STJ tem precedentes no sentido da possibilidade de o Poder Judiciário impedir a resolução do contrato antes de decorrido prazo razoável para a amortização dos investimentos feitos2. Nesse contexto, a lei 11.101/2005 dispõe, no art. 47, que "a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". Assim, a recuperação judicial interessa não apenas à empresa em crise, mas aos credores, aos empregados (que manterão os seus empregados), ao fisco e à coletividade como um todo. Portanto, todos devem cooperar para o soerguimento da empresa, inclusive eventualmente sacrificando seus interesses individuais em prol do interesse coletivo. O art. 47 da LRF é um norte interpretativo para guiar a operacionalidade da recuperação judicial. Na interpretação dos preceitos legais, deve-se, sempre que possível, prestigiar a solução que melhor garanta a recuperação da empresa. A solução que não apenas prestigia, mas, em verdade, viabiliza o soerguimento empresarial, é a prorrogação dos contratos. Contudo, esta prorrogação não pode ser eterna, sob pena de se violar a liberdade de contratar das partes. A prorrogação é temporária, estritamente pelo tempo necessário para que a parte amortize os seus investimentos. 4. O prazo razoável para a prorrogação e o momento para a decisão da questão A lei não prevê quanto tempo é necessário para que os investimentos sejam amortizados. A análise desta questão depende, evidentemente, do exame da situação concreta das partes. De igual modo, em sendo o contrato provisoriamente prorrogado, a lei não determina em que momento o juiz deve se manifestar em definitivo sobre a matéria, inclusive com a definição do prazo final da prorrogação compulsória. Não havendo previsão específica em relação ao momento em que o juiz deve se pronunciar definitivamente acerca da questão, nos parece razoável que isto ocorra logo após a assembleia de credores que aprecie o plano de recuperação judicial. Havendo a rejeição do plano de recuperação judicial, a falência será decretada. De acordo com o art. 117 da LRF, "os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos, mediante autorização do comitê". Assim, após a rejeição do plano e a decretação da falência, o administrador judicial e o comitê devem ser ouvidos para que se avalie a conveniência, ou não, de se resolver os contratos. Feito isso, o juiz deve se pronunciar, em definitivo, sobre a prorrogação dos contratos. Havendo a aprovação do plano de recuperação judicial, seja com ou sem modificações, deve o juiz decidir pela homologação do plano. É nesse momento que o magistrado deve se pronunciar, em definitivo, sobre até quando deve vigorar a prorrogação dos contratos, pois já estará clara a situação econômica da devedora e de que forma esta pretende superar a sua crise econômico-financeira. Deste modo, embora não haja um momento específico previsto em lei para o pronunciamento judicial definitivo sobre a prorrogação dos contratos, nos parece razoável que isto ocorra após a assembleia de credores que aprecie a proposta de plano de recuperação judicial. 5. Conclusão Em síntese, concluímos que sendo os contratos por prazo indeterminado e, em algumas hipóteses também por prazo determinado, caso tenham sido feitos investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. A não concessão de prazo razoável é medida abusiva e faculta ao contratante ofendido o direito de requerer em juízo (i) a prorrogação do contrato, a fim de que lhe seja garantido prazo para amortizar os seus investimentos ou (ii) indenização por perdas e danos. Verificado o preenchimento dos pressupostos legais acima, não só pode o Judiciário prorrogar compulsoriamente os contratos pelo prazo necessário para que os investimentos realizados possam ser amortizados, bem como é recomendável fazê-lo em vista do contexto fático-jurídico do caso concreto, não sendo eventual indenização por perdas e danos medida mais adequada para viabilizar o soerguimento das recuperandas. Após a aprovação do plano de recuperação judicial deve o juiz decidir pela homologação do plano. É esse o momento oportuno para o magistrado se pronunciar, em definitivo, sobre até quando deve vigorar a prorrogação dos contratos, pois já estará clara a situação econômica da devedora e de que forma esta pretende superar a sua crise econômico-financeira. Deste modo, embora não haja um momento específico previsto em lei para o pronunciamento judicial definitivo sobre a prorrogação dos contratos, nos parece razoável que isto ocorra após a assembleia de credores que aprecie a proposta de plano de recuperação judicial. __________ 1 STJ, REsp 1.555.202/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª Turma, julgado em 13/12/2016, DJe de 16/03/2017. 2 "A regra deve ser tomada, por analogia, para solucionar litígios como o presente, onde uma das partes do contrato afirma, com plausibilidade, ter feito grande investimento e o Poder Judiciário não constata, em cognição sumária, prova de sua culpa a justificar a resolução imediata do negócio jurídico. Assim, a solução que melhor se amolda ao presente litígio é permitir a continuidade do negócio durante prazo razoável, para que as partes organizem o término de sua relação negocial. O prazo dá às partes a possibilidade de ampliar sua base de clientes, de fornecedores e de realizar as rescisões trabalhistas eventualmente necessárias" (REsp 972.436/BA, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, julgado em 17/03/2009, DJe de 12/6/2009 - grifo nosso).
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa Conforme dispõe o art. 6º, "caput", da lei 11.101/05, a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas de credores particulares do sócio solidário. Somente poderão prosseguir perante o juízo competente as ações de conhecimento e que demandem quantias ilíquidas que, todavia, deverão ser suspensas tão logo seja definida a existência do direito (an debeatur) e o seu valor (quantum debeatur), ficando os credores impedidos de prosseguir na execução de ativos contra a devedora falida ou em recuperação judicial. Essa suspensão de ações e execuções deve durar pelo prazo de 180 dias, conforme dispõe o art. 6º, parágrafo quarto, da lei 11.101/05. Entretanto, conforme reiterada jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, esse prazo de 180 dias poderá ser prorrogado, mediante decisão judicial, desde que comprovado que não houve a conclusão das negociações entre credores e devedora e que o atraso não seja atribuível à conduta da própria devedora. Trata-se do chamado stay period, instituto de inspiração no modelo norte-americano de insolvência e que adquire especial importância nos casos de recuperação judicial de empresas, na medida em que visa garantir à devedora um prazo para que consiga negociar um plano de recuperação com os seus credores, sem a pressão individual dos credores sobre o seu patrimônio, garantindo-se a neutralização dos chamados credores hold outs, cuja atuação egoísta colocaria a perder todo o esforço de negociação coletiva. Conforme já tive a oportunidade de explicar em obra publicada na Europa, "according to the US Bankruptcy Code, the filing of a voluntary or involuntary petition under Chapter 7 or Chapter 11 or the filing of a voluntary petition under Chapter 13 has the power to impose an automatic stay. It means that creditors are restrained or stayed from taking further actions against the debtor, the property of the estate, or the property of the debtor. (...) The stay is important in liquidation cases since it enables the trustee to promote the equality of the distribution of debtor's assets. Regarding to reorganization cases, the stay is salso importante since it provides a breathing space to permit the debtor to present a reasonable plan and focus on rehabilitation". (Costa, Daniel Carnio. Business Reorganization - US and Brazil - The new theories. NEA. 2018, Beau Bassin, pág. 05/06). No modelo norte-americano, a violação à ordem de stay traz como consequência a aplicação de penalidades judiciais, na medida em que o credor que prosseguiu indevidamente com sua execução contra a devedora incorreu em contempt of the court. Conforme dispõe a Sessão 362 (a), do US Bankruptcy Code, todas as ações ou medidas executivas promovidas pelos credores em violação à ordem de stay devem ser consideradas nulas e sem nenhum efeito. Mas não é só. Além da nulidade do ato executivo, as violações intencionais também serão puníveis nos termos da Sessão 362 (k) do US Bankruptcy Code. Vale dizer, o credor estará sujeito a indenizar a devedora recuperanda pelos prejuízos materiais, inclusive custas e honorários advocatícios, bem como ao pagamento de multa pelo juízo em razão do descumprimento da ordem judicial. Nos termos já expostos na obra Businees Reorganization - US and Brazil - The new theories, "in addition to the action be considered null, willful violations against the stay are also punishable under Section 362(k). An individual injured by any willful violation of the stay is entitled to recover actual damages, including costs and attorney's fees and, sometimes, depending on the situation, even punitive damages. (...) The punitive damages are normally restricted to exceptional cases where the creditor's conduct was not only willful, but also malicious or in bad Faith". (Op. Cit, pág. 50). No Brasil, a lei 11.101/05 não trata expressamente das consequências da violação à ordem de suspensão das ações e execuções contra a devedora em recuperação judicial. Há apenas a determinação de que os credores não prossigam com atos de expropriação de ativos da devedora durante o período de vigência da ordem de stay. Entretanto, a interpretação adequada da legislação de insolvência empresarial brasileira, comprometida com a realização dos objetivos do sistema dentro do qual a lei se insere, indica a necessidade de uma análise mais abrangente e sistemática, a fim de se garantir eficácia à ordem de suspensão determinada pelo juízo da recuperação judicial. Conforme já sustentado, a teoria da superação do dualismo pendular indica que a interpretação da lei deve buscar sempre a tutela dos objetivos do sistema de insolvência empresarial e não a tutela dos interesses das partes envolvidas no processo. Assim, a melhor interpretação que se deve dar ao stay period no direito brasileiro deve ser aquela que tutela a sua eficácia plena, garantindo-se que seja criado no processo um ambiente de negociação adequado, a fim de se tutelar, ao final, os benefícios sociais e econômicos decorrentes da preservação da atividade empresarial, com superação da crise. Nesse sentido, deve-se concluir, com facilidade, que os atos praticados pelo juízo cível ou trabalhista perante o qual prosseguiram indevidamente os atos de realização de ativos da devedora, em violação ao stay, devem ser considerados nulos e sem nenhum efeito. A violação do stay pode ser representada pelo prosseguimento de execução de crédito sujeito aos efeitos da recuperação judicial, mas também poderá ocorrer pela expropriação de bem essencial à recuperanda, ainda que o crédito não esteja sujeito aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do que dispõe o art. 49, parágrafo 3º, da lei 11.101/05. O próprio Superior Tribunal de Justiça já definiu que cabe ao juízo da recuperação judicial a decisão sobre a sujeição ou não de créditos ou credores aos efeitos do processo concursal. Da mesma forma, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que também cabe ao juízo da recuperação a avaliação sobre a essencialidade do bem objeto de uma execução de crédito não sujeito aos efeitos do processo concursal. Trata-se de competência funcional absoluta, de modo que os atos praticados por qualquer outro juízo devem ser considerados nulos, uma vez que ordenados por juízos absolutamente incompetentes. Confira-se, nesse sentido: AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DEFERIMENTO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. MEDIDAS CONSTRITIVAS IMPOSTAS AO PATRIMÔNIO DA RECUPERANDA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL, INDEPENDENTEMENTE DO DECURSO DO PRAZO DE 180 (CENTO E OITENTA) DIAS PREVISTO NO ART. 6º, § 4º, DA LEI N. 11.101/05. ART. 49, § 3º, DA LEI N. 11.101/2005. BENS ESSENCIAIS ÀS ATIVIDADES ECONÔMICO-PRODUTIVAS. PERMANÊNCIA COM A EMPRESA RECUPERANDA.COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AGRAVO IMPROVIDO. 1. A despeito de o art. 6º, § 4º, da Lei n. 11.101/05 assegurar o direito de os credores prosseguirem com seus pleitos individuais passado o prazo de 180 (cento e oitenta) dias da data em que deferido o processamento da recuperação judicial, a jurisprudência desta Corte tem mitigado sua aplicação, tendo em vista tal determinação se mostrar de difícil conciliação com o escopo maior de implementação do plano de recuperação da empresa. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no CC 143.802/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 19/04/2016) DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS POSTERIOR AO PEDIDO. NÃO SUJEIÇÃO AO PLANO DE RECUPERAÇÃO E A SEUS EFEITOS. PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO NO JUÍZO COMUM. RESSALVA QUANTO A ATOS DE ALIENAÇÃO OU CONSTRIÇÃO PATRIMONIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. 1. Os créditos constituídos depois de ter o devedor ingressado com o pedido de recuperação judicial estão excluídos do plano e de seus efeitos (art. 49, caput, da Lei n. 11.101/2005). Isso porque, "se assim não fosse, o devedor não conseguiria mais acesso nenhum a crédito comercial ou bancário, inviabilizando-se o objetivo da recuperação" (COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à lei de falências e de recuperação de empresas. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.191). 2. Nesse diapasão, devem-se privilegiar os trabalhadores e os investidores que, durante a crise econômico-financeira, assumiram os riscos e proveram a recuperanda, viabilizando a continuidade de sua atividade empresarial, sempre tendo em mente que a notícia da crise acarreta inadvertidamente a retração do mercado para a sociedade em declínio. 3. Todavia, tal raciocínio deve ser aplicado apenas a credores que efetivamente contribuíram para o soerguimento da empresa recuperanda no período posterior ao pedido de recuperação judicial - notadamente os credores negociais, fornecedores e trabalhadores. Não é o caso, por exemplo, de credores de honorários advocatícios de sucumbência, que são resultantes de processos nos quais a empresa em recuperação ficou vencida. A bem da verdade, são créditos oriundos de trabalhos prestados em desfavor da empresa, os quais, muito embora de elevadíssima virtude, não se equiparam - ao menos para o propósito de soerguimento empresarial - a credores negociais ou trabalhistas. 4. Com efeito, embora o crédito de honorários advocatícios sucumbenciais surgido posteriormente ao pedido de recuperação não possa integrar o plano, pois vulnera a literalidade da Lei n.11.101/2005, há de ser usado o mesmo raciocínio que guia o art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005, segundo o qual mesmo os credores cujos créditos não se sujeitam ao plano de recuperação não podem expropriar bens essenciais à atividade empresarial, na mesma linha do que entendia a jurisprudência quanto ao crédito fiscal, antes do advento da Lei n. 13.043/2014. 5. Assim, tal crédito não se sujeita ao plano de recuperação e as execuções prosseguem, mas o juízo universal deve exercer o controle sobre atos de constrição ou expropriação patrimonial, aquilatando a essencialidade do bem à atividade empresarial. 6. Recurso especial parcialmente provido. (REsp 1298670/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/05/2015, DJe 26/06/2015) Evidente, assim, que o ato praticado pelo juízo cível ou trabalhista, em violação à ordem de stay, deve ser considerado nulo, podendo ser reconhecida essa nulidade a qualquer tempo. Conforme ensina Arruda Alvim, "a incompetência material (ratione materiae) é aquela verificada em razão da matéria não caber dentro das atribuições de um determinado juízo. Ou seja, não se observam quais matérias determinado juízo está jurisdicionalmente apto a apreciar, como, v.g., a propositura de causa cível em juízo criminal. Quanto às causas cíveis e a competência material, cumpre-nos dizer, ainda, que, tratando-se de causas que versem sobre determinadas matérias, já varas (juízos) especializados, cuja competência é absoluta, exatamente porque ratione materiae (ex: varas de família, registros públicos etc.)" (Manual de Direito Processual Civil, 18 ed. São Paulo, Thompson Reuters, 2019, pág. 362). Mas não é só. Se a competência para definir se o bem pode ou não ser executado é do juízo da recuperação judicial, não pode o credor pedir a outro juízo (da execução cível ou trabalhista) que decida sobre essas questões a fim de pretender o prosseguimento indevido da execução. Tal situação é flagrantemente violadora dos princípios da boa-fé objetiva e da colaboração processual. A tentativa intencional de alguns credores de prosseguir nas execuções cíveis ou trabalhistas, não obstante a ordem de stay proferida pelo juízo concursal da recuperação judicial, vem ocasionando um imenso número de conflitos de competência desnecessários, diante do entendimento já consolidado do STJ de que a competência para decidir tais questões é do juízo recuperacional. Além disso, tal conduta coloca em sério risco os objetivos de interesse público/social do processo recuperacional. As atividades empresariais/comerciais da recuperanda certamente restarão ameaçadas na medida em que essas ordens constritivas, provenientes de outros juízos incompetentes, poderão comprometer o fluxo de caixa da devedora e a continuidade das suas operações. E mais. Essas medidas proferidas pelos juízos incompetentes têm o condão de tumultuar o ambiente de negociação buscado pela lei 11.101/2005, em prejuízo da preservação de todos os benefícios sociais e econômicos decorrentes da preservação da atividade empresarial (geração de empregos, circulação de riquezas, geração de tributos etc.). Nesse sentido, além da nulidade dos atos judiciais proferidos pelo juízo incompetente, a parte que requereu essas medidas de forma intencional, pretendendo realizar individualmente seu direito, não obstante os efeitos da recuperação judicial, deve ser considerada litigante de má-fé e sua conduta deve ser enquadrada como ato atentatório à dignidade da Justiça. Deve-se observar, todavia, que a punição do credor pela prática de ato atentatório à dignidade da Justiça pressupõe a existência de dolo. Vale dizer, o credor, ciente de que a questão está ou deve ser submetida ao juízo da recuperação, ainda assim pugna pelo prosseguimento da execução ou pugna pela expropriação de determinado ativo. Assim, se o credor está incluído na lista de credores da recuperação judicial, não lhe resta alternativa a não ser pleitear a liberação das execuções individuais ao juízo da recuperação judicial. Em relação aos credores não sujeitos (em princípio) aos efeitos da recuperação judicial, havendo alegação da devedora de que o bem é essencial ao desenvolvimento de sua atividade perante o juízo da recuperação, não poderá o credor - ciente dessa situação - pugnar provimento diverso perante o juízo da execução. Essas situações revelam a intenção de violar a ordem de stay. Conforme dispõe o art. 77 do CPC, aplicável ao sistema de insolvência empresarial por força do art. 189 da lei 11.101/05, é dever das partes e de todos aqueles que participem do processo, cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais (inc. IV) e não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso (inc. VI). O parágrafo segundo ao art. 77 do CPC estabelece que o ato atentatório da Justiça (previstos nos incisos IV a VI) poderá ser punido com a imposição de multa de até 20% sobre o valor da causa, sem prejuízo das sanções processuais, civis e criminais cabíveis. Os credores sujeitos à recuperação judicial são os destinatários da ordem de stay proferida pelo juízo da recuperação que, por sua vez, é o competente para deliberar sobre o prosseguimento ou não de execuções contra ativos da recuperanda. Nesse sentido, caberá ao juízo da recuperação judicial aplicar a penalidade, com fundamento no art. 77 do CPC, ao credor que pretender violar o stay, ainda que mediante a prática de atos em processo diverso, compensando-se, eventualmente, o valor da multa com eventual crédito a ser recebido pelo credor resistente nos autos da recuperação judicial. A jurisprudência já começa a adotar, em certa medida, esse entendimento, conforme se verifica de decisão pioneira proferida pelo Juiz João de Oliveira Rodrigues Filho, em exercício na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo/SP. Confira-se trecho da decisão de deferimento do processamento da recuperação judicial da devedora no processo n. 1039842-97.2019: 3) Determino, nos termos do art. 52, III, da Lei 11.101/2005, "a suspensão de todas as ações ou execuções contra os devedores", na forma do art. 6º da LRF, devendo permanecer "os respectivos autos no juízo onde se processam, ressalvadas as ações previstas nos §§ 1º, 2º e 7º do art. 6º dessa Lei e as relativas a créditos excetuados na forma dos §§ 3º e 4º do art. 49 dessa mesma Lei", providenciando a devedora as comunicações competentes (art. 52, § 3º). A ressalva acerca da continuidade da tramitação das ações acima elencadas, entretanto, não autoriza a prática de atos de excussão de bens da recuperanda, sem o crivo deste Juízo. Explico. De acordo com a jurisprudência do Colendo STJ, a competência para declaração da essencialidade de bem da recuperanda, seja de sua esfera patrimonial, seja de bens de propriedade alheia, mas insertos na cadeia de produção da atividade, é do Juízo no qual se processa a recuperação judicial. (...) Todavia, mesmo com a determinação do stay period e a jurisprudência consolidada do STJ sobre a competência do Juízo da recuperação judicial para deliberar sobre a essencialidade dos bens de propriedade ou posse da recuperanda, a realidade tem demonstrado a existência de diversos atos de constrição patrimonial contra a devedora emanados de Juízos diversos, por provocação de credores sujeitos ou não à recuperação judicial. Essa situação, além de ocasionar um imenso número de conflitos de competência desnecessários diante do entendimento já consolidado do STJ, compromete o fluxo de caixa e as atividades operacionais da atividade em recuperação, em razão da paralisia que se impõe sobre o bem no caso concreto, impedindo sua utilização justamente no momento de maior necessidade da recuperanda, além de tumultuar o ambiente de negociação buscado pela Lei 11.101/2005, que se faz presente durante o processamento da recuperação judicial. A boa-fé objetiva nas relações de ordem privada, consistente na verificação de eticidade da parte através de suas condutas, já presente em nosso ordenamento desde o advento da Constituição Federal de 1988 e mais especificada com o Código Civil de 2002, ganhou reforço para sua incidência no âmbito do processo civil, diante de sua previsão expressa no art. 5º ao lado da obrigação de cooperação processual pelas partes, elencada no art. 6º, todos do CPC. Assim, seja pela previsão contida no art. 49, caput e parágrafo 3º in fine, seja pela obrigação ex vi legis contida no art. 6º, caput, todos da Lei 11.101/2005, qualquer ato de credor, sujeito ou não à recuperação judicial, que busque pagamento fora dos termos da recuperação judicial ou excussão de bens essenciais à atividade, respectivamente, através de medidas adotadas em Juízos diversos que não o recuperacional, estará violando determinação legal e judicial, em absoluta contrariedade aos postulados da boa-fé e da cooperação processual, de modo a configurar ato atentatório à dignidade da justiça, conforme previsão do inciso IV do art. 77 do CPC. Diante do exposto, nos termos do parágrafo 1º do art. 77 do CPC, ficam todos os credores, sujeitos ou não à recuperação judicial, advertidos da necessidade de abstenção da busca de atos de constrição de bens contra a recuperanda, em Juízos diversos, sob pena de aplicação da sanção contida no parágrafo 2º do aludido artigo de lei, consistente em imposição de multa de até 20% do valor da causa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis nas esfera processual, civil e criminal. Nota-se, em conclusão, que a lógica do sistema norte-americano, que influenciou fortemente a lei 11.101/05, também tem aplicação no sistema brasileiro de insolvência empresarial, garantindo-se a efetividade do stay pela reconhecimento da nulidade dos atos praticados pelo juízo incompetente e também pela aplicação das penas previstas para a prática de ato atentatório da Justiça aos credores resistentes, que buscam driblar os efeitos da recuperação judicial. É a interpretação sistemática da regulação legal da insolvência empresarial, conjugada com a utilização das ferramentas processuais civis, em prol da garantia da eficiência e da racionalidade da aplicação jurisdicional.  
Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A Constituição Federal determinou que à microempresa fosse instituído um tratamento favorecido (art. 179), visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei. A concretização constitucional desse objetivo veio com a emenda constitucional 42, que modificou o artigo 146 da Constituição Federal e outorgou à lei complementar competência para instituir a definição do tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, permitindo, inclusive, a instituição de regime único de arrecadação. A Lei Complementar 123/2006, por sua vez, em atenção ao comando constitucional, criou o chamado simples, com várias facilidades, especialmente de ordem fiscal. Veja-se o grande esforço legislativo para se proporcionar à microempresa e empresa de pequeno porte a facilidade fiscal. A previsão do artigo 179 da Constituição Federal não era por si só suficiente para proporcionar vantagem para essas empresas. Houve necessidade de uma emenda constitucional e de uma lei complementar, instrumentos legislativos que exigem bastante apoio no Congresso Nacional, para que esses empresários fossem aquinhoados com um mecanismo fiscal adequado ou menos prejudicial. No campo do direito da insolvência, a lei 11.101/05 também se preocupou com a microempresa e empresa de pequeno porte. Daí a previsão dos artigos 70 a 72. Esses dispositivos, na redação original da lei, eram bastante acanhados, pois (i) abrangiam somente o passivo quirografário e permitiam o (ii) pagamento em 36 parcelas mensais, iguais e sucessivas. A semelhança com a antiga concordata preventiva foi lembrada pela doutrina1. Exigiu-se, entretanto, o pagamento de correção monetária e juros de 12% ao ano, com carência de 180 dias2. Na comparação com a prática do chamado plano geral para as empresas de médio e grande porte, essa previsão é bastante ruim para as pequenas empresas. Ao menos em São Paulo, há certa praxe de os planos preverem o pagamento de juros de 1% ao ano e atualização monetária pela TR, dada certa jurisprudência exigindo tais previsões nos planos de recuperação. Em outras palavras, a lei era prejudicial à pequena empresa, pois, em termos substanciais, exigia-lhe que suportasse mais encargos. No âmbito processual, a lei 11.101/05, também com o fito de favorecer a pequena empresa, foi eliminada a convocação de assembleia-geral de credores. A esses assegurou-se o direito de apresentarem objeção ao plano de recuperação especial, "nos termos do art. 55 desta lei", conforme previsão do parágrafo único do artigo 72. Aparentemente, a objeção teria a mesma natureza, seja na recuperação de plano geral seja na recuperação de plano especial. A objeção, na recuperação judicial com plano geral ou ordinário, tem a finalidade de propiciar a convocação da assembleia geral de credores. A objeção não é julgada pelo juiz, controvertendo a doutrina sobre a necessidade de ser motivada. A ausência de objeção implica aprovação tácita. A objeção acaba por representar um veículo que desencadeia o chamamento da assembleia geral de credores; trata-se de um mecanismo em que, na verdade, o credor pede mais diálogo, mais negociação com o devedor e tem em vista a assembleia de credores. Não se trata de efetiva resposta do credor ao plano, e, por isso, a objeção não assume caráter contestatório. Pois bem. Na recuperação da microempresa e empresa de pequeno porte, não será convocada assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano (art. 72). Como a finalidade da objeção, no plano geral ou ordinário, é propiciar a convocação da assembleia-geral de credores, ato esse inexistente no processo de recuperação judicial da pequena empresa, tem-se que, evidentemente, a objeção se afasta do perfil que lhe dá a lei na disciplina da recuperação judicial do plano geral. Qual a finalidade da objeção, então, e, principalmente, qual a amplitude da cognição judicial a respeito? Dizia o parágrafo único do artigo 72 que o juiz julgará improcedente o pedido de recuperação judicial e decretará a falência do devedor se houver objeções de credores titulares de mais da metade dos créditos quirografários. A previsão legislativa criava perplexidade, e a doutrina já havia percebido o problema logo no início de vigência da lei, momento em que a recuperação da pequena empresa assemelhava-se à concordata preventiva. Manoel Justino Bezerra Filho3 anotou "desvantagens para o pequeno empresário, pois, para os outros casos de recuperação judicial normal, se houver objeção dos credores, esta sempre poderá ser afastada pela assembleia geral". Para Carlos Henrique Abrão4, "há uma atecnia na redação da norma, uma vez que o decreto de improcedência exigirá um mínimo de segurança probatória, não se desejando que todo o poder emane dos credores e na intenção exclusiva deles de levar a empresa à quebra". Fábio Ulhoa Coelho5 escreve que a objeção só pode versar sobre a adequação da proposta do devedor à lei, e que, diante da não convocação de assembleia-geral de credores, a aprovação ou rejeição do plano cabe exclusivamente ao juiz. Carlos Klein Zanini6 escreve que a interpretação literal do dispositivo levaria à falência caso houvesse objeção por mais da metade dos créditos sujeitos à recuperação. Ao rejeitar tal modo de interpretação, sugere o exame da "fundamentação empregada na objeção, de modo que não se venham a admitir objeções meramente caprichosas, ou deduzidas com o propósito de chantagear o devedor". Vê-se certa insatisfação doutrinária com a disposição legal. O que se pode dizer é que a objeção será, necessariamente, objeto de cognição judicial. Ela terá de ser apreciada pelo juiz, pois, diferentemente do plano geral, ela não serve para chamar a assembleia-geral de credores. A lei não aponta o objeto da objeção, como o fez, por exemplo, com a impugnação ao pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial (art. 164, § 3º). Dada a limitação do plano de recuperação, na versão original da lei, o objeto da objeção, por certo, era, como escreve Fábio Ulhoa Coelho, a adequação da proposta à lei. Ainda aí, causa estranheza o seguinte ponto. Caso o plano tenha contemplado o pagamento em 36 parcelas, com juros e correção monetária, como mandava a lei, como o juiz poderia julgar a objeção apresentada por credores titulares de mais de metade dos créditos? A prevalecer a objeção, a lei teria dado com uma mão e tirado com a outra, pois a objeção potestativamente suplantaria a recuperação ajuizada pelo devedor. Ficaria sem sentido, então, a previsão do artigo 72 para objetar o plano de pagamento em 36 parcelas, como previa a lei originariamente. A adequação do plano à lei poderia ser controlada de ofício pelo juiz; aliás, para esse fim, a objeção sequer precisaria de quórum especial. Ocorre que a lei mudou7, e, ainda na tentativa de beneficiar a pequena empresa, estabeleceu-se a possibilidade de abatimento do valor das dívidas (art. 71, II), além de admitir a submissão de dívidas outras que não a de natureza quirografária. Na redação do art. 71, I, o plano especial abrangerá todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, excetuados os decorrentes de repasse de recursos oficiais, os fiscais e os previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49. Além do deságio, que já era corriqueiro, desde 2005, para a macroempresa, dilatou-se o âmbito dos credores submetidos. Antes limitado aos credores quirografários, agora o plano especial pode contemplar credores, basicamente, os credores trabalhistas e os credores com garantia real. Todavia, a lei não falou em classe de credores, nos moldes do artigo 41. A opção da lei foi a de remeter ao artigo 83 da Lei, que disciplina a ordem de pagamento dos credores na falência. A nova redação do parágrafo único do artigo 72 autoriza o julgamento de improcedência do plano especial se houver rejeição dos credores titulares de metade de qualquer uma das classes do art. 83, computados na forma do artigo 45. Algumas dessas alterações são positivas, embora a referência ao artigo 83 da Lei 11.101/05 seja desastrosa8. Não houve alteração do seguinte ponto. Apresentado o plano especial, não será convocada assembleia-geral de credores. Apesar de se prever o deságio, certamente a fonte das maiores controvérsias nos planos de recuperação judicial da macroempresa, não se previu nenhum espaço de negociação entre o devedor e os credores, e a negociação foi o grande mote para se alterar o regime de 1945. Certamente no afã de melhor aquinhoar a pequena empresa com a possibilidade de abatimento da dívida, não se apercebeu o legislador de que, correlatamente, precisaria instituir um mecanismo de diálogo entre os atores do processo. Se, para a hipótese de parcelamento automático, aos moldes da velha concordata, a objeção era e poderia ser limitada, ao prever outro meio de solução do passivo da empresa, a lei tinha de propiciar um instrumento apto a viabilizar a negociação. Continua sem alteração, no que nos interessa, o parágrafo único do artigo 72, segundo o qual "o juiz também julgará improcedente o pedido de recuperação judicial e decretará a falência do devedor se houver objeções, nos termos do art. 55 desta Lei, de credores titulares de mais da metade dos créditos previstos no art. 83, computados na forma do art. 45, todos desta lei". Não houve alteração do meio concedido ao credor nem alteração do quórum, embora tenha ocorrido nova disciplina sobre as classes. Permaneceu, portanto, a mesma objeção para a recuperação judicial assemelhada à concordata e para a recuperação judicial agora concebida como meio de reestruturação de dívida com a possibilidade de obtenção de abatimento do valor, com a seguinte observação. A limitação (sujeição somente dos quirografários) para o devedor implicava, correlatamente, uma limitação do teor da impugnação, que poderia versar sobre aspectos formais e sobre o parcelamento em si. A cognição judicial estava bastante limitada. Na medida em que se dilatou o âmbito dos meios de recuperação disponibilizados ao devedor ME ou EPP, que natureza ostenta a objeção do credor? Enquanto a objeção do plano geral é mecanismo apto a gerar a convocação da assembleia geral de credores, a objeção do plano especial não permite a convocação de assembleia, que inexiste nessa sistemática. A objeção, insista-se, que papel exerce no processo de recuperação judicial da microempresa e da empresa de pequeno porte? Vale lembrar que o deságio previsto aproxima o plano especial do plano geral, em que os deságios são constantes. A expressão financeira do deságio no âmbito do plano geral é objeto de negociação. Ressente-se de um espaço de negociação o processo de recuperação de microempresa. Vamos a um exemplo. O plano de recuperação da microempresa prevê deságio de 10% e pagamento em 36 parcelas, com atualização pela Selic. A maioria dos credores objeta o plano, para dizer que se trata de perda exagerada, e que o devedor tem força para pagar sem o deságio. Quais são os critérios pelos quais o juiz pode apreciar a objeção desse jaez? A única previsão da lei é a de que a objeção pela maioria dos credores leva à derrota do plano. Mais. A prevalecer o entendimento jurisprudencial segundo o qual o juiz não examina o conteúdo econômico financeiro do plano de recuperação, vai prevalecer a vontade do credor, e o deságio, mínimo que seja, ou razoável, poderá ser impugnado por determinada classe, e com êxito. Nessa circunstância, o juiz deve, cegamente, verificar a presença do quórum legal e decretar a falência ou deve examinar o conteúdo do plano de recuperação judicial e o seu contorno econômico, além de examinar, concomitantemente, o conteúdo da objeção? Onde há negociação o juiz não deve intervir. Essa é a essência do entendimento jurisprudencial segundo o qual o juiz não examina o conteúdo econômico-financeiro do plano, exceto para controle de legalidade. E onde a negociação está ausente, como na recuperação da pequena empresa? Haveria espaço para algo além do controle de legalidade? Quando se fala em ausência de negociação, fala-se em ausência de mecanismo processual apto a se chegar a esse momento. É claro que as partes podem, e devem negociar. Ocorre que para fins de interpretação e aplicação da lei, a lacuna relativa à falta de previsão de uma assembleia de credores ou de outra forma negociação ou, ainda de exame da manifestação do credor, leva à perplexidade que este texto procura acentuar. A verdade é que o grande esforço legislativo que se viu com a modificação constitucional e com a lei complementar 114/2006 não se repetiu na disciplina da insolvência da microempresa. E ela é merecedora de melhor atenção por parte do legislador. Oxalá na reforma da lei a microempresa seja aquinhoada com uma disciplina legal que atenda ao mandamento constitucional do tratamento favorecido, pois a lei 11.101/05 não atende a esse desiderato, seja no aspecto substancial, seja no aspecto processual, em que impera a incerteza e, até, um rigor maior em desfavor da empresa de pequeno porte e da microempresa. __________ 1 Sergio Campinho, Falência e recuperação de empresa, 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 183. Para Hélia Marcia Gomes Pinheiro, A recuperação da microempresa e da empresa de pequeno porte, "é, na verdade, uma verdadeira concordata preventiva dilatória", in A Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, Coord. Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 168. 2 Julio Kahan Mandel, Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas Anotada. São Paulo:Saraiva, 2005, p. 144, fez "destaque negativo para a fixação de uma taxa de juro elevada, de 12%, remuneração em média maior do que aplicações em caderneta de poupança". 3 Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 185. 4 Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Coord. de Paulo Fernando Campos Salles de Toledo e Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186. 5 Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186. 6 Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, coord. Francisco Satiro e Antonio Moraes Pitombo. São Paulo: RT, 2006, p. 323. 7 Lei Complementar 147/2014 deu nova redação aos artigos 71 e 72 da lei 11.101/05. 8 Alguns dos problemas causados por esse aspecto são enfrentados por Marcelo Barbosa Sacramone, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 297-298.  
Texto e autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, procurou instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelecer garantias de livre mercado. Em sua exposição de motivos, justificaram-se suas imprescindíveis relevância e urgência pela exigência de criação de ambiente institucional de segurança jurídica aos empresários, condição que facilitaria o investimento e pela redução dos diversos custos de transação em benefício do desenvolvimento econômico nacional. O art. 82-A, inserido na lei 11.101/05, a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF), contudo, se não devidamente interpretado, poderá vir em sentido diametralmente oposto ao objetivo pretendido pela Medida Provisória. A extensão da falência da sociedade aos sócios é medida excepcionalíssima no Direito brasileiro. Pelo art. 81 da LREF, apenas nas hipóteses de sociedades tipicamente com sócios de responsabilidade ilimitada e solidária, a falência da sociedade será estendida aos seus sócios integrantes. A interpretação restritiva permitia a decretação apenas a sociedades com utilização diminuta na prática, como as sociedades em nome coletivo, as sociedades em comandita simples, quanto aos sócios comanditados, as sociedades em comandita por ações, quanto aos sócios diretores, e as sociedades em comum. A restrição da extensão da quebra apenas aos sócios de responsabilidade ilimitada ocorria justamente para facilitar a proliferação de negócios jurídicos e o empreendedorismo. Ainda que empreender possa ser atividade arriscada, os diversos sócios eram incentivados a reciprocamente contribuir com bens ou serviços para o exercício da empresa por meio da constituição de sociedade que asseguraria a preservação de seus patrimônios individuais. A sociedade limitada e a sociedade anônima, utilizadas em grande medida por essa razão, permitiriam aos sócios, na hipótese de sucesso do empreendimento, a partilha entre si dos resultados. No caso de insucesso da empresa, entretanto, com eventual decretação da falência da sociedade, a responsabilidade dos sócios quotistas seria restrita ao valor do capital social a ser integralizado e a dos acionistas ao valor das respectivas ações subscritas. Decretada a falência da sociedade, esses sócios de responsabilidade limitada poderiam livremente continuar a desempenhar atividade empresarial e não responderiam com seus bens pessoais para a satisfação das dívidas da sociedade, o que delimitava o risco do investimento individual. O art. 82-A, todavia, subverte essa lógica. Pela sua redação, a extensão dos efeitos da falência passa a ser admitida quando estiverem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica. Pelo novo dispositivo inserido, ainda que os sócios possuam responsabilidade limitada pelas obrigações sociais, desde que tenham abusado da personalidade jurídica, seja por meio do desvio de finalidade ou por meio da confusão patrimonial, poderão ter a falência decretada. Por consequência, independentemente do prejuízo causado ou da solvência do sócio ou administrador, todos os seus ativos serão arrecadado e o produto de sua liquidação, juntamente com o produto da liquidação dos bens da sociedade, será utilizado para a satisfação de todos os credores, sejam eles da sociedade ou credores particulares do sócio falido. Decerto a fraude e o abuso da pessoa jurídica devem ser coibidos. A extensão da falência aos sócios e administradores, contudo, não parece ser o melhor meio de fazê-lo. Os atos ilícitos praticados pelos sócios de responsabilidade limitada, controladores e administradores da sociedade falida já eram disciplinados pela redação original do art. 82 da LREF, sem prejuízo dos diversos dispositivos societários, de que o art. 245 da lei 6.404/76 é mero exemplo. Mesmos nesses tipos societários em que a falência não poderia ser estendida originalmente aos sócios, tanto esses quanto os administradores poderiam ser pessoalmente responsáveis pelo cometimento de atos ilícitos que produzissem prejuízo à Massa. A disciplina da responsabilização, sem extensão da falência, garantia segurança jurídica aos sócios e administradores, cujo ilícito poderia ser eventualmente reconhecido. Permitia-se o ressarcimento da Massa e dos credores indiretamente afetados pela redução do patrimônio social, mas com a segurança jurídica de que a constrição dos bens particulares seria realizada apenas nos limites dos prejuízos efetivamente causados. A segurança também era preservada aos credores sociais. Com a responsabilização dos sócios e administradores ao ressarcimento do prejuízo causado, permitia-se apenas a constrição de ativos, mas não a inclusão concomitante do passivo particular do sócio. Desta forma, assegurava-se a busca dos ativos sem que houvesse a partilha do produto da liquidação do escasso ativo da sociedade falida com todos os demais credores particulares do sócio. A conversão do art. 82-A em lei, assim, não apenas subverterá o sistema de insolvência vigente, como comprometerá os próprios objetivos de se aprimorar a segurança jurídica e de se facilitar o investimento e o desenvolvimento econômico nacional buscados pela própria Medida Provisória 881/2019.  
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, caro amigo leitor, como está? O tema que trago no texto de hoje parte de certa perplexidade de minha parte, no exercício da advocacia no campo da recuperação judicial. Para entender o ponto, vamos devagar: nos últimos anos, uma das principais garantias que vem se consolidando é a alienação fiduciária. A alienação fiduciária, prevista pelo art. 1.361 do Código Civil para os bens móveis, consiste em direito real de garantia mediante o qual o devedor e proprietário do bem aliena a coisa ao credor com o intuito de garantir determinada dívida. Com a alienação, o devedor passa a ser depositário e possuidor direto do bem, enquanto o credor detém a propriedade e a posse indireta da coisa sob condição resolutiva (propriedade resolúvel)1. Os bens imóveis também podem ser dados em alienação fiduciária, nos termos da lei 9.514/1997. A relevância de aludida garantia no âmbito da recuperação judicial é evidente, pois os credores fiduciários são considerados extraconcursais, conforme art. 49, §3° da lei 11.101/2005. E isso por uma razão simples: é que os bens dados em alienação fiduciária estão sob a propriedade resolúvel dos credores, e não mais da devedora em recuperação. Assim, se o plano apresentado pela recuperanda dispõe que haverá deságio (desconto do valor realmente devido), tal condição não afetaria os credores extraconcursais. Além disso, os credores não sujeitos à recuperação judicial não precisam aguardar o trâmite do procedimento recuperacional para excutir a garantia (stay period, art. 6º da lei 11.101/2005)2. A depender, portanto, da liquidez do bem dado em alienação fiduciária, ocupar a posição de credor extraconcursal pode representar importante vantagem estratégica. A excussão de garantias fiduciárias, via de regra, pode ser realizada extrajudicialmente, ou seja, independentemente do ajuizamento de medida judicial pelo credor. Nesse sentido, por exemplo, quanto aos bens imóveis, a lei 9.514/1997 estabelece o seguinte procedimento: (i) intimação do devedor fiduciante pelo oficial do Registro de Imóveis a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, acrescidas de encargos e despesas (art. 26, § 1º); (ii) decorrido o prazo sem a purgação da mora, averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos (art. 26, § 7º); (iii) realização de público leilão do imóvel pelo credor fiduciário para a alienação do imóvel (art. 27). Mesmo em relação aos bens móveis, o decreto-lei 911/1969 prevê o ajuizamento de ação judicial especificamente para a busca e apreensão do bem, que normalmente se encontra na posse do devedor fiduciante, ficando o credor fiduciário autorizado a "vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato", nos termos do art. 2º do referido diploma. Ocorre que, por variadas razões, em vez de buscar a excussão extrajudicial de sua garantia, pode o credor fiduciário preferir ajuizar uma ação de execução contra o devedor fiduciante e pedir a penhora dos direitos aquisitivos deste justamente sobre o bem que havia sido dado em garantia fiduciária. Tal possibilidade é assegurada pelo art. 835, XII do CPC, que prevê expressamente a penhora sobre "direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia". O problema é que tal conduta tem sido interpretada por alguns precedentes como uma espécie de renúncia tácita à garantia fiduciária, com a consequente submissão do credor fiduciário à recuperação judicial como credor quirografário, na ausência de qualquer outra garantia de seu crédito. Confira-se: Recuperação judicial - Ajuizamento de execução individual - Renúncia à garantia fiduciária em relação à cédula de crédito bancário e Instrumento Particular de Confissão de Dívida - Caracterização - Créditos que devem ser habilitados como quirografários - Decisão reformada - Recurso provido (TJSP, AI 2197310-53.2018.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 7.11.2018, grifou-se) AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CESSÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. DECISÃO QUE REJEITOU A IMPUGNAÇÃO AO CRÉDITO APRESENTADA PELAS RECUPERANDAS. HIPÓTESE DE ACOLHIMENTO. AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE EXECUÇÃO PELO CREDOR. RENÚNCIA À GARANTIA FIDUCIÁRIA QUE É INEQUÍVOCA NO CASO CONCRETO. CRÉDITO ASSUME NATUREZA QUIROGRAFÁRIA. EXTRACONCURSALIDADE PREVISTA NO ART. 49, §3º, LEI Nº 11.101/05, AFASTADA. ART. 66-B, §5º, LEI Nº 4.728/65, E ART. 1.436, III E §1º, CC. RECURSO PROVIDO. (TJSP, AI 2100475-37.2017.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Alexandre Lazzarini, julg. 26.3.2018, grifou-se) Tal posicionamento parece equivocado, não sendo possível extrair do simples ajuizamento da execução que teria havido renúncia - ainda que tácita - à garantia fiduciária. Várias razões podem explicar a propositura da ação de execução: (i) o credor fiduciário busca utilizar uma só medida para atingir outros bens do patrimônio do devedor fiduciante, além daquele dado em garantia fiduciária; (ii) o credor fiduciário acredita ter maior segurança jurídica em um procedimento judicial de expropriação de bens do executado; ou (iii) o credor fiduciário quer evitar a incidência do perdão legal previsto no art. 27, § 5º da lei 9.514/1997, para o caso em que, iniciada a excussão extrajudicial da alienação fiduciária de imóvel, não se atinge o valor mínimo do lance no segundo leilão (valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais). Todos esses são argumentos justificáveis, que afastam a hipótese de renúncia tácita da garantia fiduciária pelo credor. De toda sorte, e agora pensando como advogado, dada a insegurança jurídica na matéria, notadamente no âmbito do TJ/SP, tal risco deve ser ponderado sempre que o credor fiduciário preferir se valer da ação de execução contra o devedor fiduciante. Abraços, e até a próxima! __________ 1 Luiz Dellore e Carolina Campos Rizzato. Consolidação de bem alienado fiduciariamente durante o stay period. Migalhas, publicado em 9/4/2019. 2 Apesar disso, a jurisprudência tem estabelecido restrições à excussão da garantia fiduciária quando se tratar de bem essencial à atividade da recuperanda, como apontado no texto da nota anterior. V. tb. Paulo Furtado. A cessão fiduciária de recebíveis e a proteção aos bens essenciais durante o "stay period". Migalhas, publicado em 29/1/2019, e Daniel Carnio Costa. Teoria da essencialidade de bens e as travas bancárias na recuperação judicial de empresas. Migalhas, publicado em 18/12/2018.  
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Recentemente foi noticiada a realização da primeira reunião, no Conselho Nacional de Justiça, de um grupo de trabalho constituído para a modernização e efetividade da atuação do Poder Judiciário nos processos de recuperação judicial e falências. De acordo com a manifestação do presidente do CNJ, algumas propostas seriam analisadas com maior atenção, tais como: (i) perícia prevista em processos de recuperação judicial para evitar a utilização fraudulenta ou de má-fé desse tipo de processo em prejuízo dos credores e da sociedade em geral; (ii) da gestão democrática de processos, com utilização de mediação entre credores e devedores; (iii) da uniformização do procedimento utilizado pelos juízes para fazer o controle de legalidade do plano de recuperação judicial; (iv) da implementação pelos Tribunais de varas especializadas com competência regional, a fim de assegurar eficiência e melhores resultados nesses processos; (v) do fomento à capacitação de magistrados e servidores, e por fim; (vi) à colaboração internacional e à troca de informações entre juízos de insolvência, sobretudo em casos de repercussão internacional. Já tivemos a oportunidade de tratar, nesta coluna, da indevida utilização da perícia prévia como regra geral ("Perícia prévia na recuperação judicial: a exceção que virou regra?", Migalhas, 2/5/2018). Vale registrar, por oportuno, que a justificativa apresentada pelo presidente do CNJ, para a adoção da perícia prévia, seria o combate ao uso fraudulento da recuperação judicial. Ocorre que a lei 11.101/2005 já contém os remédios adequados para o combate à má-fé: (i) fiscalização das atividades do devedor pelo administrador judicial; (ii) afastamento do devedor da condução dos negócios; (iii) responsabilização do devedor por crime falimentar. Basta que estes instrumentos sejam aplicados que a má-fé nos pedidos de recuperação judicial será adequadamente combatida. Além disso, se a lei 11.101/2005 não atribuiu ao juiz uma cognição exauriente na fase inicial do processo de recuperação judicial, pois deixou aos credores a análise da viabilidade da superação da crise do devedor, após a apresentação do plano, não seria mais adequada a realização de uma perícia no curso do procedimento, de modo a propiciar aos credores as informações necessárias para uma decisão refletida sore o plano? Os credores, com base na perícia realizada pelo administrador judicial, teriam acesso a informações menos enviesadas do que aquelas contidas no estudo de viabilidade econômico-financeira realizado por pessoa contratada pelo devedor. Com isso, poderiam os credores decidir se a empresa deve ou não permanecer no mercado. Com a perícia prévia, que propicia o indeferimento do processamento, o juiz simplesmente devolve ao mercado uma empresa inviável, quando, pelos objetivos do nosso sistema de insolvência, deveria ser processado o pedido e, caso constatada a inviabilidade do plano de recuperação, ser decretada a falência e retirado do mercado o empresário. Enfim, a ideia de uma perícia em tese é boa, mas encontra-se fora de lugar ao ser colocada antes do deferimento do processamento da recuperação judicial. Quanto à gestão democrática, trata-se de denominação atribuída a uma audiência concentrada, em que são ouvidos os interessados e decididas várias questões que, no mais das vezes, poderiam ter sido enfrentadas previamente pelo juízo falimentar, sem maiores delongas. A realização da audiência dessa natureza não se justifica em todos os casos, mas apenas naqueles de maior complexidade que recomendem uma atuação mais incisiva do juiz, de acordo com o seu discernimento. Nos processos falimentares e de recuperação judicial o juiz conta com o administrador judicial, auxiliar que deve atuar para a consecução dos objetivos da lei 11.101/2005. Por exemplo, a falência é um processo que exige muitas providências materiais, como arrecadação, avaliação e alienação de bens, que devem ser realizadas com agilidade pelo administrador judicial, dispensando audiências presididas pelo juiz. Na recuperação judicial, por sua vez, o devedor e os credores têm papel relevante para a solução da crise, cabendo ao Juiz intervir em situações excepcionais, quando perceber o retardamento indevido desta solução. A mediação poderá entrar aí, como instrumento adicional para auxiliar devedor e credores a melhor a superarem os obstáculos que surgirem na negociação. Exemplos de mediação temos nos casos da recuperação judicial da Saraiva e da EDB. Casos especialíssimos podem exigir uma audiência, como recentemente se deu no processo da Avianca, em que o magistrado buscou uma composição entre os arrendadores das aeronaves e a companhia aérea em recuperação, ou no caso da Libra Santos, em que se foram exigidas explicações a respeito da notícia de encerramento das atividades da devedora. Enfim, o sistema processual confia no discernimento do juiz para a realização de audiência, nos casos em que ele reputá-la adequada o bom êxito do processo de falência ou de recuperação judicial, não havendo necessidade de imposição, como regra, de um ato processual muitas vezes desnecessário. Quanto à proposta de uniformização do procedimento de controle de legalidade do plano de recuperação, além de avançar na esfera de atuação jurisdicional de cada magistrado, suscita algumas questões prévias referentes ao momento do controle da legalidade e cuja resposta poderia tornar o processo mais eficiente. Seria possível a análise da legalidade do plano pelo juiz, antes da assembleia-geral de credores, a partir das objeções dos credores, evitando-se a invalidação posterior e a necessidade de apresentação de novo plano? Antes mesmo do aviso do plano aos credores, o juiz poderia determinar ao administrador judicial a análise da legalidade das cláusulas? Logo no início do procedimento o juiz já deveria relacionar as cláusulas que considera ilegais, de modo a evitar a apresentação do plano com tais ilegalidades? Enfim, o controle de legalidade do plano de recuperação pode até ser feito por etapas, no curso do procedimento, com a atuação do administrador judicial, dos credores e do juiz, mas a esfera jurisdicional não pode ser invadida por determinações administrativas. Finalmente, a mais relevante das propostas contidas na manifestação do presidente do CNJ consiste na especialização dos juízos de insolvência e na capacitação de magistrados e servidores. Nesta coluna, em artigo publicado em 23/10/2008, observamos que somente serão atingidos os objetivos da nossa legislação de insolvência (1 - Preservação da empresa; 2 - Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3 - Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4 - Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5 - Proteção aos trabalhadores; 6 - Redução do custo do crédito no Brasil; 7 - Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8 - Participação ativa dos credores; 10 - 11 - Maximização do valor dos ativos; 12 - Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 13 - Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial) se forem assegurados os meios adequados para a sua consecução e se os intérpretes das normas pautarem sua atuação de acordo com os objetivos positivados. Nenhuma legislação de insolvência terá seus objetivos alcançados sem contar com uma magistratura com condições materiais e humanas de bem aplicar a lei. Nesse sentido, juízos regionais especializados em falências e recuperações tendem a aplicar a legislação de forma mais rápida e eficiente, desenvolvendo os meios adequados à obtenção dos resultados buscados pelo legislador. O Tribunal de Justiça de São Paulo já adotou tal iniciativa legislativa, criando varas regionais especializadas, e realiza estudos para a implantação dessas unidades judiciárias. Além disso, as varas de falências e recuperações judiciais têm peculiaridades que justificam estudos específicos para a adequação do quadro funcional ao volume de serviço. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo está realizando análise do dimensionamento da força de trabalho, sob os aspectos qualitativo e quantitativo, nas 1ª. e 2ª. Varas de Recuperações Judiciais da comarca da capital. Diante de tudo o que foi exposto, ousamos sugerir ao Conselho Nacional de Justiça o seguinte: primeiro, implantar as varas regionais, com a força de trabalho adequada; em seguida, capacitar os juízes, para os objetivos da lei, com a consciência de que esta capacitação terá suas limitações decorrentes da ausência de atuação prática; após um ano, reunir esses juízes, já capacitados e com experiência própria, para discussão sobre as práticas que julgarem mais adequada (perícia antes ou depois do deferimento do processamento da recuperação; procedimento do controle de legalidade do plano etc). Hoje, não há como exigir de juízes não especializados que apliquem práticas que eles conhecem superficialmente e sem que possam compreender as graves consequências de sua implantação, ainda que venham a ser recomendadas pelo CNJ.  
Texto de autoria de Luiz Dellore e Carolina Campos Rizzato  Contextualização do tema A recuperação judicial (RJ) no Brasil é regida pela lei 11.101/05 e corresponde a um benefício legal colocado à disposição do empresário que enfrenta uma crise econômico-financeira de caráter superável. Trata-se, portanto, de um procedimento que auxilia na reorganização da empresa por meio da renegociação das suas dívidas, mediante um processo judicial perante o Poder Judiciário1. Para que o objetivo de reorganizar a empresa seja atingido, o legislador oferece à empresa recuperanda algumas benesses, como por exemplo o denominado stay period, conforme disposto no art. 6° da lei 11.101/05. No stay period, por 180 (cento e oitenta) dias haverá a suspensão das ações e execuções movidas contra a empresa recuperanda. A rigor, esse período não pode ser prorrogado em razão de proibição da própria lei, em seu art. 6°, §4°. Na prática, entretanto, a jurisprudência tem admitido a prorrogação em alguns casos2. A contagem do stay period é feita em dias3, iniciando-se após a decisão que defere o processamento da recuperação judicial. A concessão de um período em que há suspensão das ações e execuções movidas contra a empresa devedora tem como objetivo principal permitir que a empresa consiga reorganizar suas atividades, possibilitando um fôlego e evitando eventual constrição de bens que possa obstar o prosseguimento da recuperação judicial. Assim, a premissa do stay é bastante clara, no sentido de permitir a sobrevivência da empresa até a aprovação do plano de recuperação. Entretanto, na prática forense surgem inúmeros debates acerca do stay, como por exemplo se é possível, ou não, a consolidação da propriedade de um bem garantido fiduciariamente durante o stay period. É o que enfrentaremos neste artigo. Alienação fiduciária em garantia A alienação fiduciária, prevista pelo art. 1.361 do Código Civil, é o direito real de garantia em que o devedor e proprietário do bem aliena a coisa ao credor com o intuito de garantir determinada dívida. Com a alienação, o devedor passa a ser depositário e possuidor direto do bem, enquanto o credor detém a posse indireta da coisa sob condição resolutiva (posse resolúvel). Havendo adimplemento da obrigação assumida pelo devedor, o contrato de alienação fiduciária é resolvido e o devedor volta a ser proprietário do bem. Porém, se houver inadimplemento da obrigação, o credor poderá reaver a posse direta do devedor, executando (excutindo) a sua garantia. Neste caso, haverá a consolidação da propriedade do bem dado em garantia em nome do fiduciante (credor). Vale destacar que a consolidação da propriedade fiduciária pelo credor é ato anterior ao leilão para alienação do bem dado em garantia. Ademais, a consolidação da propriedade não significa, necessariamente e de forma imediata a perda da posse do bem pelo devedor. 2.1. Alienação fiduciária no âmbito das recuperações judiciais A alienação fiduciária é amplamente utilizada no âmbito das recuperações judiciais, de modo que a lei 11.101/05 oferece condições especiais à esta modalidade de garantia real. Isso porque a Lei de Recuperações Judiciais determina que os credores fiduciários são considerados extraconcursais, ou seja, não se submetem à RJ, nos termos do art. 49, §3°. Assim, se o plano apresentado pela recuperanda dispõe que haverá deságio (desconto do valor realmente devido), esta característica não afetará os credores extaconcursais, que terão suas condições contratuais mantidas, recebendo exatamente o mesmo valor que foi acordado contratualmente. Além disso, os credores não sujeitos à recuperação judicial não precisam aguardar o trâmite do procedimento recuperacional, de modo que ocupar a posição de credor fiduciário é bastante conveniente, sob a perspectiva do credor, no âmbito de uma recuperação judicial. No entanto, para que possa gozar dos benefícios conferidos à sua posição, o credor fiduciário deve cumprir alguns requisitos que lhe garantam a extraconcursalidade de seu crédito, como por exemplo a alienação fiduciária ser anterior ao pedido de recuperação4. A consolidação do bem alienado fiduciariamente DURANTE o stay period Chega-se agora ao ponto central do tema: uma vez não realizado o pagamento do devedor, existindo garantia fiduciária (que é extraconcursal), é possível se iniciar a consolidação da propriedade durante o stay period? Ou é necessário aguardar os 180 dias para somente aí proceder-se à consolidação da propriedade? Conforme já exposto, a consolidação da propriedade fiduciária é um dos passos na execução da garantia - mais precisamente, no caso de bem imóvel, é o ato em que o tabelião promove a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do credor, em razão do inadimplemento da obrigação assumida pelo devedor. Assim, a consolidação da propriedade fiduciária não implica imediatamente na perda da posse do bem pelo devedor. Isso porque, caso não haja pagamento ou qualquer forma de composição, após a consolidação haverá a alienação do bem em leilão (CC, art. 1.364) e consequente entrega da posse - eventualmente mediante o uso de medida judicial específica para isso. Vale relembrar que o objetivo da concessão do prazo do stay é justamente permitir que a recuperanda tenha um fôlego para reorganizar suas atividades, evitando qualquer situação que obste o prosseguimento da recuperação judicial, como uma constrição patrimonial. Assim, partindo do pressuposto de que a consolidação do bem não implica na perda imediata da posse pelo devedor, é possível concluir que não haveria óbice à consolidação durante o stay, pois isso não configura a tomada do bem dado em garantia. Contudo, os Tribunais não analisam a questão apenas sob essa perspectiva. O TJSP, nas suas 2 Câmaras Especializadas em Direito Empresarial - e, portanto, com competência para analisar o tema - tem julgados no sentido de que não é possível haver a consolidação da propriedade fiduciária quando o imóvel em comento for considerado essencial à atividade da empresa. Nesse sentido, inicialmente trazemos julgados da 1ª Câmara Reservada (grifos nossos): "Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Decisão que deferiu tutela de urgência para suspender a consolidação da propriedade de dois imóveis alienados fiduciariamente à agravante durante o stay period. Manutenção. Bens essenciais ao soerguimento das recuperandas. Unidades produtivas. Atividade agrícola. Art. 49, §3º, da lei nº 11.101/05. Circunstâncias do caso concreto que justificam a manutenção da decisão agravada. Recurso não provido". (TJSP; Agravo de Instrumento 2122353-81.2018.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Garça - 3ª Vara; Data do Julgamento: 05/09/2018; Data de Registro: 06/09/2018) O Desembargador Relator entendeu pela inviabilidade da consolidação dos imóveis dados em garantia fiduciária, alegando, em síntese: (i) o caráter essencial dos imóveis na manutenção das atividades das recuperandas; (ii) que a consolidação poderia obstar a recuperação judicial, haja vista que, uma vez consolidada a propriedade, a posse poderia ser postulada pelo credor fiduciário ou pelo eventual arrematante, prejudicando assim a recuperanda; (iii) o prazo de stay period tem como objetivo a reorganização das empresas, podendo garantir a purgação da mora e a manutenção dos imóveis pelos devedores. Nesse mesmo sentido, da mesma Câmara, trazendo outros argumentos, o seguinte acórdão (grifos nossos): "A reintegração de posse é mera consequência da consolidação da propriedade e, na forma da lei 9.514/97, pode ser postulada tanto pelo credor fiduciário como pelo arrematante. Parece extremamente severo sustentar que a propriedade pode ser perdida durante o pedido de reorganização da empresa, preservando-se apenas a sua posse direta. Isso porque, passado o período de seis meses, a sorte do imóvel dado em garantia já estará selada. Ainda que a devedor fiduciante consiga reorganizar-se e reunir recursos para purgar a mora, isso não mais será possível, uma vez que a propriedade plena já estará em definitivo consolidada nas mãos da credora fiduciária. Razoável, portanto, em harmonia com a própria finalidade do stay period, se evite nesse meio tempo situação definitiva e irreversível de perda da propriedade, permitindo à devedora soerguer-se, purgar a mora e retomar o contrato". (TJSP; Agravo de Instrumento 2135163-59.2016.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jaú - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/08/2018; Data de Registro: 22/08/2018) De seu turno, se o imóvel dado em garantia fiduciária não for bem essencial, portanto, é possível prosseguir com a consolidação da propriedade sem qualquer restrição. É o que consta do seguinte julgado, da 2ª Câmara Reservada (grifamos): "Agravo de instrumento - Decisão que rejeitou os pedidos de suspensão da consolidação/leilão de propriedade das garantias de alienação fiduciária dos imóveis - Elementos que indicam a extraconcursalidade do crédito discutido, sendo inaplicáveis os efeitos do "stay period" (Lei 11.101/05, art. 49, §3º) - Exceção de mencionado dispositivo que abrange apenas os "bens de capital essenciais", que não é o caso dos autos - Validade do procedimento de consolidação da propriedade dos imóveis alienados fiduciariamente - Observância da Lei nº 9.514/97 - Precedentes jurisprudenciais - Decisão mantida - Recurso desprovido." (TJSP; Agravo de Instrumento 2059745-47.2018.8.26.0000; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Porto Ferreira - 1ª Vara; Data do Julgamento: 06/06/2018; Data de Registro: 06/06/2018) Vale ressaltar, por fim, que até o presente momento não há acórdão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema5. Conclusão. Considerando o exposto, tendo em vista (i) a extraconcursalidade da garantia fiduciária e (ii) o fato de que a consolidação da propriedade, por si só, não importa em perda da posse do bem, parece-nos que não haveria qualquer óbice legal à consolidação da propriedade de qualquer imóvel durante o stay period. Contudo, necessário consignar que a jurisprudência do TJSP, no momento, consagra o entendimento no sentido de não permitir a consolidação da propriedade fiduciária durante o stay period quando se tratar de imóvel essencial às atividades da recuperanda. *Carolina Campos Rizzato é bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, aprovada no exame de Ordem. Ex-estagiária da Caixa Econômica Federal, na área de recuperação judicial. __________ 1 Para uma visão geral acerca do procedimento da RJ, vide o seguinte texto desta coluna. 2 Mas isso é assunto para outro texto. 3 Acerca de ser dias úteis ou corridos, a questão já foi enfrentada em coluna anterior, mas segue polêmica, sendo recomendável sempre verificar qual é o entendimento adotado pela vara em que tramita o processo. 4 Há uma série de debates a respeito dessa questão, como por exemplo se existe a necessidade de registro para que haja a extraconcursalidade, quando se está diante de bens móveis. A respeito, conferir. 5 Ainda que não haja decisão colegiada do STJ acerca do tema, existem algumas decisões monocráticas, como por exemplo a seguinte: "AGRAVO DE INSTRUMENTO - BUSCA E APREENSÃO - AGRAVADO EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CONTRATO DE CRÉDITO BANCÁRIO, COM GARANTIA FIDUCIÁRIA - BANCO CREDOR TITULAR DA POSIÇÃO DE PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO NÃO SE SUJEITA AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL - BEM EM GARANTIA ESSENCIAL À ATIVIDADE PRODUTIVA DA EMPRESA RECUPERANDA - PERMANÊNCIA NA POSSE DURANTE O PRAZO DE BLINDAGEM - INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 49, § 3°, E ART. 6°, § 4°, AMBOS DA LEI 11.101/05 - RECURSO DESPROVIDO. O credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, via de regra, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, a teor do art. 49, § 3°, da Lei 11.101/05. Todavia, constatado que o bem dado em garantia ao banco credor é essencial à atividade produtiva da empresa recuperanda, deve permanecer na sua posse durante o prazo de blindagem. (Recurso Especial n° 1.790.086 - MT. Relator: Ministro Marco Buzzi. Publicado no DJE em 11/02/2019)". Vale aduzir que dessa decisão pode até se defender que é possível a consolidação durante o stay, sendo vedada apenas a perda da posse, na linha do que defendemos no texto. Mas necessário esperar algum julgado de Turma para efetivamente se verificar qual a posição do STJ.
Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira O juízo da recuperação judicial, muitas vezes, é solicitado a decidir questões de urgência envolvendo a empresa em recuperação. No bojo do respectivo processo, o devedor apresenta um requerimento que envolverá proteção a bens jurídicos de seu interesse. Isso pode ocorrer de plano, já com a petição inicial da recuperação judicial, como supervenientemente, após a prolação do despacho de processamento. O primeiro ponto, certamente, é discutir o cabimento de tais postulações. A lei é omissa a respeito, e o assunto envolve competência do juízo. Deve ser reconhecido que o Juízo da recuperação é dotado do poder geral de tutela provisória, dada a magnitude dos bens jurídicos que estão envolvidos no processo. Sob a égide do CPC de 1973, falava-se em poder geral de cautela destinado à efetividade da prestação jurisdicional, com assento constitucional (art. 5º, XXXV). Ainda que não existisse previsão expressa1 do poder geral de cautela na lei ordinária, ele era algo "que prescinde de declaração legal, carecendo, quando muito, de uma regulamentação do seu modus operandi"2. Era uma norma de encerramento do processo cautelar, uma norma em branco3, embora de caráter subsidiário4. O artigo 799 era meramente exemplificativo5. No CPC 2015, a tutela provisória de urgência pode ser cautelar ou antecipada, antecedente ou incidental, e é uma expressão da exigência de razoável duração do processo (CF, art. 5º, inc. LXXVIII). O artigo 297 é bastante amplo na outorga de poderes: "o juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para a efetivação da tutela provisória". E, como foi deixado de lado o critério de tipicidade das cautelares, o artigo 301 do CPC, depois de dar alguns exemplos, assegura o poder-dever do juiz de efetivar "qualquer outra medida idônea para asseguração do direito". O que tinha caráter subsidiário no CPC de 1973, assumiu foros de regra geral no CPC de 2015, dada a atipicidade das cautelares. O arrolamento constritivo de bens era uma cautelar típica; agora, é concedida com base no poder geral de cautela. Pela generalidade6, o artigo 301 é a sede do poder geral de cautela e do poder geral de antecipação. Na verdade, há um conjunto normativo apto a oferecer ampla tutela ao jurisdicionado (art. 139, IV, 297 e 301, todos do CPC), seja no campo cautelar seja no campo da antecipação, fugindo de discussões estéreis que, por muito tempo, consumiu a doutrina brasileira com reflexo detrimentoso à jurisprudência. Da prerrogativa do poder geral de tutela provisória está revestido, também, o juiz da recuperação judicial (art. 189 da lei 11.101/05). A jurisdição da recuperação acha-se revestida desse poder geral de tutela provisória para que os objetivos estampados no artigo 47 da lei 11.101/05 possam ser alcançados em sua plenitude. Já se decidiu que7, "ao julgador há de ser dado certo campo de atuação além dos limites literais da lei para que prevaleça o princípio da manutenção da empresa que revele possibilidade de superar a crise econômico-financeira pela qual esteja passando". O poder geral de tutela provisória8 assegura a competência para apreciação de pontos que, sob essa ótica, possam ser de interesse para o processo de recuperação e para o devedor em recuperação, e mesmo para os credores. E os assuntos são os mais variados possíveis9. Em discussão sobre fraude no processo de recuperação, com repercussão na vida social, decidiu-se10: "Atos judiciais como o determinado nestes autos inserem-se no poder de cautela do Magistrado a quem a Lei impõe verificar nos processos de recuperação judicial a adequação do pedido à finalidade de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor. Não há necessidade de ajuizamento de demanda própria com a finalidade da verificação da ocorrência de eventuais fraudes como pretendeu o Relator Sorteado. Na recuperação judicial, os atos em defesa do interesse de credores estão inscritos no objetivo da recuperação judicial, como se lê na regra-fim (LREF, art. 47)". Embora não seja difícil reconhecer ao juízo da recuperação o poder geral de tutela provisória, já não é tarefa fácil delimitar os limites da atuação jurisdicional no âmbito do processo de recuperação. Há uma tendência natural do devedor de se acomodar debaixo da proteção conferida pelo processo de recuperação, e a sua perspectiva será sempre a de dilatar essa proteção, com medidas requeridas incidentalmente no referido processo. Há que se estabelecer uma limitação objetiva a esse poder geral. Certamente, um primeiro corte diz respeito às relações creditícias. O artigo 49 contém o marco temporal que subordina créditos ao processo de recuperação, e que são os créditos existentes na data do pedido. Tudo o que disser respeito a esses créditos é de competência do juízo da recuperação judicial. Ainda que o crédito seja extraconcursal, a jurisprudência tem reconhecido a competência do juízo da recuperação para apreciar questões relativas à penhora, por exemplo. Ocorre que a empresa em recuperação se mantém na posse de seus bens e prossegue, normalmente, suas operações. E é aí que pode surgir algum conflito. Como já foi dito, é comum o devedor levar esses conflitos ao conhecimento do juízo da recuperação, seja a pedir medidas cautelares, seja mesmo na distribuição por dependência de ações de conhecimento, na pressuposição de que teria um tratamento mais favorecido dada a natural sensibilidade do juízo da recuperação para com a situação da empresa em crise. A jurisprudência, contudo, estabelece a correta distinção. Vejamos alguns precedentes. Na ação de despejo por falta de pagamento promovida contra a recuperanda, a competência do juízo da recuperação é absoluta para examinar a essencialidade dos bens11. É preciso ressaltar que essa competência é adstrita ao crédito anterior à distribuição da recuperação judicial e suas consequências. Em relação à essencialidade dos bens, não há dúvida de que a competência é do juízo da recuperação, ainda que os bens tenham sido alienados fiduciariamente12. A dificuldade, por certo, reside em saber o que é bem essencial. Rejeitou-se, todavia, a competência do juízo da recuperação para autorizar a recuperanda a participar de licitações e fornecimento ao poder público sem apresentação de certidões13. Nessa hipótese, as regras gerais de competência devem ser observadas, sem a atração do juízo da recuperação. Esse precedente é expressivo. A vida da empresa em recuperação segue sem vinculação ao juízo da recuperação, exceto se pretender a alienação de bens (art. 66 da LFR) e, evidentemente, em tudo o que diz respeito ao plano de recuperação. Caso precise ajuizar ação, ou defender-se, tomará tais providências sem o apelo ao guarda-chuva do juízo da recuperação. O Superior Tribunal de Justiça14 entendeu ser uma exceção ao juízo universal a competência para processar ação relativa a contrato celebrado após a recuperação judicial. A devedora pretendida homologar um acordo, e levou o requerimento ao juízo da recuperação. Além do pedido de homologação, requereu e obteve o bloqueio dos bens da parte contrária. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, corretamente, anulou a decisão, por incompetência absoluta do juízo da recuperação para conhecer do pedido e para decretar a medida cautelar do bloqueio de bens, em decisão mantida pelo STJ. A ser esse o critério, e nos parece que ele está correto, também o poder geral de tutela provisória seguirá a mesma regra. Isto é: o juízo da recuperação não dispõe do poder geral para decidir sobre negócios celebrados pela recuperanda após a distribuição do processo de recuperação, e não dispõe por lhe falecer competência para tanto. Em conclusão, o juízo da recuperação judicial acha-se revestido da competência para decidir tutela provisória, a favor ou contra a empresa em recuperação. O limite objetivo envolve a relação jurídica deduzida na postulação. Tratando-se de fato ou negócio posterior à distribuição da recuperação judicial, o respectivo juízo é absolutamente incompetente tanto para apreciar qualquer tutela provisória, como qualquer tutela de caráter declaratório, sem sentido amplo. Não há prevenção do juízo da recuperação para conhecer de ações outras envolvendo o devedor, com a ressalva do § 8º do artigo 6º, da lei 11.101/05. O chamado juízo universal, como o chama o STJ, limita-se a examinar o risco da efetivação de atos materiais para a recuperação da empresa em crise. __________ 1 A lei norte-americana, em suas disposições gerais (Capítulo I, Seção 105), atribui expressa competência ao juiz falimentar para emitir qualquer ordem, processo ou decisão necessária ou apropriada para realizar as disposições da lei, ainda que de ofício. 2 Donaldo Armelin, Tutela jurisdicional cautelar. Artigo publicado na Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, v. 23, jun. 1985, p. 119. 3 A expressão é de Galeno Lacerda, Comentários ao CPC, v. VIII, tomo I, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 136. 4 José Roberto dos Santos Bedaque, Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. Tentativa de sistematização. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 209. 5 Sydney Sanches, Poder cautelar geral do juiz. São Paulo: RT, 1978, p. 109, com referência a diversos outros autores, entre eles Barbosa Moreira, Pestana de Aguiar, Sergio S. FAdel. 6 Humberto Theodoro Júnior, Curso de direito processual civil, v. I, 57ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 619, fala em "poder tutelar geral do juiz". 7 TJ/SP, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, AI 657.733-4/6-00, j. 27/10/2009, rel. Des. Lino Machado. 8 O TJ/RJ, em interpretação do artigo 49, §3º, da Lei 11.101/05, serve-se do poder geral de cautela para estabelecer limitação temporal à chamada trava bancária. Nesse sentido, Agravo Interno no AI 0057025-15.2013.8.19.0000, da 2ª Câmara Cível, j. 28/05/2014, rel. Des. Alexandre Freitas Câmara. 9 a) "Credor com garantia fiduciária sobre direitos creditórios. Alegação, da recuperanda, de que o credor fiduciário promoveu retenções ilegais de valores diretamente na sua conta bancária. Ressalvado o meu entendimento pessoal, alinho-me à orientação traçada por esta Turma Julgadora e com assento em julgados da Corte Superior para dispensar o registro da cédula de crédito bancário no Registro de Títulos e Documentos do domicílio da devedora como pressuposto para a constituição da garantia fiduciária e aplicação da exceção do § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, mantida a necessidade de descrição (especialização) dos títulos entregues em garantia. Valores retidos em conta bancária vinculada a contrato que, apesar de garantido por "cessão fiduciária de títulos em cobrança", não cuidou de descrever os títulos cedidos em garantia, a revelar a ilegalidade das retenções. Decisão mantida. Recuperação Judicial. Astreintes. Fixação de multa diária decorrente do poder geral de cautela. Valor que deve ter a potencialidade de dissuadir o devedor de descumprir a ordem. Multa que pode ser revista. Pedido de limitação. Avaliação, por ora, inviável. Recurso desprovido" (TJSP; Agravo de Instrumento 2138286-31.2017.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Garça - 1ª Vara; Data do Julgamento: 25/02/2019; Data de Registro: 26/02/2019); b) "RECUPERAÇÃO JUDICIAL CONVOLADA EM FALÊNCIA - MONTEX MONTAGEM INDUSTRIAL LTDA. - INDISPONIBILIDADE DE BENS - FRAUDE - CONFUSÃO PATRIMONIAL - GRUPO ECONÔMICO - CONTRADITÓRIO DIFERIDO - POSSIBILIDADE - Fortes indícios de confusão patrimonial, fraude e formação de grupo econômico familiar - Caso em que, diante do risco da dilapidação patrimonial iminente, mostra-se cabível o contraditório diferido - Decreto de indisponibilidade dos bens de todos os sócios da falida MONTEX, bem como de bens de terceiros (ora agravante FELIPE PINTO RODRIGUES - sócio da MF TECH) - Considerando o âmbito do poder geral de cautela, nada impede que o juiz, de ofício ou a requerimento, e independentemente de prévia oitiva, determine medidas adequadas para evitar risco ao resultado útil do processo, diferindo o contraditório para momento posterior, como se depreende dos arts. 9º, 139, 297, 300, 314 e 526, CPC/2015 - Situação em que se está se buscando a preservação dos bens envolvidos nas transações suspeitas - Indisponibilidade dos bens que fica mantida" (TJSP; Agravo de Instrumento 2215822-84.2018.8.26.0000; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Araras - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/02/2019; Data de Registro: 07/02/2019); c) AGRAVO - TUTELA DE URGÊNCIA - ARRESTO - Recuperação Judicial - Denúncias graves de esvaziamento do estabelecimento da devedora, mudança de endereço sem comunicação dos credores, encerramento das atividades há mais de um ano, corte de energia elétrica - Pretensão da credora ao arresto de maquinário, colocando-se como fiel depositária, suportando as custas para tal implementação - Cabimento - Poder geral de cautela do Juiz - Atos falimentares presentes que devem ser analisados no Juízo Recuperacional - Preservação do patrimônio dos credores que se mostra necessária até eventual novação (em razão da concessão da recuperação judicial) ou arrecadação (decorrente da convolação em falência) - Agravo provido, com determinação. Dispositivo: provimento ao recurso para determinar o arresto do bem indicado, nomeando-se a credora agravante como fiel depositária. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2216724-08.2016.8.26.0000; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jandira - 1ª Vara; Data do Julgamento: 03/07/2017; Data de Registro: 10/7/2017). 10 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2189884-92.2015.8.26.0000, j. 29/02/2016, rel. Des. Ricardo Negrão, m.v. No mesmo sentido, entre outros, com uso do poder geral de cautela no processo de recuperação judicial: 2ª Câmara de Direito Empresarial, AI 2066869-23.2014.8.26.0000, j, 26/01/2015, rel. Des. Araldo Telles; Câmara Reservada à Falência e Recuperação, AI 0081082-73.2011.8.26.0000, j. 23/08/2011, rel. Des. Elliot Akel. 11 TJ/SP,27ª Câmara de Direito Privado, AI 2174553-65.2018.8.26.0000, j. 12/03/2019, rel. Des. Daise Fajardo Nogueira Jacot. 12 TJ/SP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 11/3/2019, rel. Des. Maurício Pessoa. 13 TJ/SP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 27/2/2019, rel. Des. Araldo Telles. 14 3ª Turma, RESP 1.1766.412, j. 12/02/2019, rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa a) Suspensão da prescrição e das ações, execuções e de atos de constrição O projeto altera o momento de suspensão da ações e execuções movidas contra o devedor em recuperação judicial, aproximando o modelo brasileiro do sistema do automatic stay do direito dos EUA. Nesse sentido, propõe que as ações e execuções movidas contra o devedor sejam suspensas já a partir da distribuição do pedido de recuperação judicial e não mais somente a partir do deferimento judicial do processamento do pedido. No modelo atual da lei 11.101/05, quando o devedor ajuíza o pedido de recuperação, essa notícia se torna pública. Nesse sentido, os credores iniciam uma verdadeira corrida contra o patrimônio da devedora, na tentativa de realizar seu crédito ou parte dele antes que o juiz defira o processamento da recuperação judicial, quando então todos os credores ficariam obstados de prosseguir nas suas ações e execuções. A eventual demora do juízo em deferir o processamento da recuperação pode representar a falência da devedora pela ação de seus credores, já que não existe qualquer proteção legal ao devedor durante esse período de tempo que medeia a distribuição da ação e a decisão de deferimento do processamento, quando a partir de então entraria em vigor o stay period. Tal modificação vem em boa hora, considerando que o processo de recuperação judicial visa neutralizar os dois principais obstáculos que uma empresa em crise enfrenta para conseguir uma renegociação global com seus credores: a existência de credores resistentes (hold-outs), que por suas ações individuais contra a devedora inviabilizar a reorganização global e iniciam uma verdadeira corrida entre os credores contra o patrimônio da devedora. Assim, o procedimento da recuperação judicial deve, necessariamente, obstar os credores de avançar individualmente contra o patrimônio da devedora durante o período de negociação de um plano de recuperação. Além disso, a decisão da maioria dos credores deve vincular a todos, inclusive aos credores resistentes (que, se pudessem, iniciariam aquela corrida contra os ativos da devedora, deflagrando o mesmo comportamento dos demais credores). E mais. Antecipando a suspensão das ações e execuções para o momento da distribuição do pedido de recuperação judicial, o projeto oferece ao juiz do caso um tempo e uma tranquilidade maiores para analisar se o pedido ajuizado tem mesmo condições de ser processado, sem pressão da demora poder inviabilizar uma empresa em princípio viável. A perícia prévia, prática jurisprudencial que se tornou bastante difundida a partir de 2011 (e que visa analisar se a empresa tem ao menos em tese condições de gerar os benefícios econômicos e sociais que a lei busca preservar com a recuperação judicial - empregos, tributos, circulação de bens, produtos e serviços, geração de riquezas etc.) poderá ser feita sem a pressão (e a pressa) de se deferir o processamento para proteger a devedora contra os seus credores. Trata-se, portanto, de providência que não favorece apenas a devedora, como se poderia pensar apressadamente. A antecipação dos efeitos da suspensão é providência benéfica também aos credores, na medida em que dará ao magistrado a possibilidade de verificar, com mais acuidade, se o pedido deve mesmo ser processado ou se seria o caso de indeferir a petição inicial, deixando aos credores - ao mercado - a decisão de prosseguir individualmente em suas execuções ou de requerer, pelas vias próprias, a decretação da falência, com instalação de um concurso de credores. b) A amplitude da suspensão - quaisquer atos de constrição ou retenção judiciais e extrajudiciais - ações judiciais e arbitragens O projeto deixa claro que a suspensão não se refere apenas ao andamento das ações e execuções individuais em curso contra a devedora que ajuíza o pedido de recuperação judicial. O efeito suspensivo decorrente do ajuizamento do pedido recuperacional também impede o credor de exercer qualquer forma de retenção, arresto, penhora ou constrição judicial ou extrajudicial contra o devedor, incluídas aquelas dos credores particulares do sócio solidário. Nesse sentido, não poderá o credor exercer qualquer ato de que impeça a devedora de reaver seus ativos, como exercer o direito de retenção em ações possessórias. Nem mesmo atos extrajudiciais poderão ser exercidos pelos credores, como a aplicação da conhecida "trava bancaria", situação em que o credor instituição financeira desconta valores depositados em uma conta sob sua gestão para o pagamento de dívida inadimplida pelo devedor, desde que tal crédito esteja incluído na recuperação judicial. Não poderá o credor, a partir do ajuizamento da recuperação judicial requerer nem mesmo a penhora ou o arresto de ativos da devedora, nem qualquer outro tipo de ato de constrição judicial em ações cautelares ou executivas que já estejam em curso. Também os credores particulares do sócio, que é devedor solidário juntamente com a empresa que requereu a recuperação judicial, ficará obstado de exercer qualquer ato de constrição judicial ou extrajudicial contra ativos da empresa devedora. O esclarecimento trazido pela proposta de alteração legislativa visa, portanto, dissipar as divergências jurisprudenciais sobre o alcance da suspensão decorrente do automatic stay. Não ficarão suspensas, todavia, ações que já estiverem em curso contra a devedora, nas quais o credor demande quantia ilíquida. Nesses casos, as ações deverão seguir normalmente, perante os juízos de origem, até que sejam definidas a existência e o valor do crédito, após o que deverá o credor solicitar a habilitação do seu crédito no processo de falência ou de recuperação judicial, a fim de recebe-lo conforme a ordem de prioridade legal ou como definir o plano de recuperação aprovado pelo conjunto de credores de sua mesma classe. A novidade trazida pela proposta de reforma reside no esclarecimento de que as discussões arbitrais, nas quais se demandem quantias ilíquidas, seguem a mesma sorte das ações judiciais, ou seja, as arbitragens também devem prosseguir até definição da existência do crédito e de seu valor, após o que deverá o credor solicitar a habilitação do referido crédito no processo de falência ou recuperação judicial. É importante destacar que, em nenhum caso, uma ação que já esteja em andamento contra a devedora - e que demanda quantia ilíquida - deve ser encaminhada ao juízo da falência ou da recuperação judicial. Os processos deverão prosseguir normalmente nos juízos de origem (Estatal ou Arbitral) e somente depois de definidas a existência e o valor do crédito, deverá o credor solicitar sua habilitação no processo concursal. Relativamente ao crédito trabalhista, as ações já em curso deverão prosseguir normalmente até julgamento definitivo pelo juízo trabalhista. Mas a reforma propõe deixar bem claro que, mesmo depois da falência ou da recuperação judicial iniciada, as reclamações trabalhistas deverão ser ajuizadas normalmente perante a Justiça do Trabalho, que é a única competente para definir a existência e o valor do crédito trabalhista. Entretanto, depois de definido o crédito e o seu valor pelo juízo especializado trabalhista, caberá ao juízo da recuperação ou da falência conferir se a atualização do crédito obedece aos critérios da Lei de Falências e Recuperação de Empresas, a fim de se garantia a par conditio creditorum. Nesse sentido, a reforma propõe que o juízo trabalhista, depois do julgamento final da reclamação ajuizada pelo credor trabalhista, deverá expedir ofício ao juízo concursal com informação do valor do crédito atualizado até a data do pedido da recuperação judicial ou da decretação da falência. Na prática, o juízo concursal deverá autuar o ofício trabalhista em incidente próprio e o administrador judicial deverá conferir o cálculo apresentado pelo juízo trabalhista, a fim de garantir que a atualização feita naquele juízo obedece ao critério do juízo concursal, ou seja, está limitada até a data da decretação da quebra ou do ajuizamento da recuperação judicial. Deve ser conferido, também, se o cálculo feito pelo juízo trabalhista incluir apenas as verbas trabalhistas ou também inclui outras verbas de outra natureza, como fiscais (custas) e honorários advocatícios (pertencentes ao advogado e não ao credor trabalhista). Feito isso, o crédito exclusivamente trabalhista deverá ser incluído no quadro geral de credores, na classe própria. Em qualquer caso, tanto o juízo cível/arbitral, quanto o juízo trabalhista, poderá solicitar ao juízo concursal (falência/recuperação judicial) a reserva de valores que estimar devidos. Depois de reconhecida definitivamente a existência do crédito e o seu valor, deverá ser providenciada a sua normal habilitação para inclusão no quadro geral de credores. É importante destacar que o pedido de reserva não é feito pelo credor, mas sim pelo juízo por onde tramita a ação trabalhista ou que demande quantia ilíquida. A reserva deve ser solicitada mediante ofício judicial. Vale destacar, ainda, que a decretação da falência ou a recuperação judicial não prejudicam a possibilidade de adoção da via arbitral para solução de conflitos. Nesse sentido, havendo cláusula de arbitragem em algum contrato firmado pela empresa ora falida ou em recuperação judicial, a arbitragem será adotada como forma de solução do conflito, cabendo ao juiz da recuperação judicial qualificar o crédito para fins de inclusão no quadro geral de credores. c) Suspensão do despejo A proposta de reforma estabelece que a suspensão das ações impede também a realização do despejo da devedora em recuperação judicial. A mudança vem em boa hora e se destina a esclarecer divergências jurisprudenciais nesse sentido. Há entendimentos jurisprudenciais no sentido de que a ação de despejo, por tratar de obrigação de dar coisa certa, não estaria incluída no âmbito da suspensão legal, que atingiria apenas a cobrança da dívida. Entretanto, é evidente que o despejo é uma forma de execução coercitiva diretamente relacionada à exigibilidade da dívida. Vale dizer, se a dívida de aluguel é exigível e não foi paga, está autorizado o despejo. Mas, se a dívida de aluguel teve sua exigibilidade suspensa, pois está incluída na recuperação judicial, não faz mesmo sentido que seja autorizado o correlato despejo. Nesse sentido, a reforma deixa claro que não poderá ser realizado o despejo da devedora em razão de dívida de aluguel sujeita aos efeitos da recuperação judicial. Dizendo de outra forma, não cabe o despejo em razão do não pagamento de aluguéis vencidos até a data do pedido de recuperação. Evidentemente, se o não pagamento do aluguel refere-se a período posterior ao ajuizamento da recuperação judicia, trata-se de dívida extraconcursal, sendo plenamente possível a execução da dívida e o correspondente despejo. d) Suspensão de execuções trabalhistas contra responsável subsidiário Segundo a proposta, as execuções trabalhistas movidas contra a devedora que pediu recuperação devem ser suspensas, uma vez que tal dívida está sujeita aos efeitos do processo concursal e deverá ser objeto da negociação global. Mas, além disso, não poderá o juízo trabalhista pretender prosseguir a execução trabalhista contra eventual responsável subsidiário, por desconsideração da personalidade jurídica. Tornou-se prática no juízo trabalhista a tentativa de driblar a proteção legal oferecida pela recuperação judicial à empresa devedora. Os juízos trabalhistas passaram a desconsiderar a personalidade jurídica da empresa para atingir os bens particulares dos sócios ou de outras empresas coligadas ou integrantes do mesmo grupo econômico. Assim agindo, alguns credores - sujeitos ao concurso - acabavam recebendo integralmente seu crédito, colocando em risco a possibilidade dos demais credores trabalhistas de receberem ao menos parte dos seus créditos. E mais. Essa atitude colocava em risco a negociação global para reestruturação da empresa, prejudicando a geração dos postos de trabalho, em prejuízo ao interesse dos demais credores trabalhistas dependentes das atividades da empresa. Portanto, visando garantir os benefícios sociais e econômicos da recuperação judicial, a proposta estabelece que o crédito trabalhista terá sua exigibilidade suspensa (contra o devedor principal e contra o devedor subsidiário) até que a negociação coletiva seja definida no processo de recuperação judicial, ou seja, até a homologação do plano ou a convolação da recuperação judicial em falência. e) Prazo de suspensão - até o encerramento do processo de recuperação judicial A reforma propõe uma mudança bastante relevante no que tange à duração do stay period. No sistema atual, o prazo de suspensão das ações e execuções movidas contra a devedora em recuperação judicial não poderia durar mais do que 180 dias contados da data do deferimento do processamento do pedido. Esse prazo foi idealizado para ser improrrogável. Entretanto, a jurisprudência dos Tribunais definiu que caso os credores não tivessem votado o plano de recuperação judicial dentro do prazo de 180 dias, as ações e execuções deveriam continuar suspensas, desde que esse atraso não pudesse ser atribuído à conduta da própria devedora. Na prática, o prazo de 180 dias se tornou prorrogável na grande maioria dos casos, na medida em que a realidade mostrou que, seja pela complexidade dos processos recuperacionais, seja pela burocracia e pela falta de estrutura judiciaria, raramente foi possível realizar uma AGC com votação do plano de recuperação em menos de 180 dias. Nesse sentido, a proposta de reforma propõe que o prazo de suspensão das ações e execuções tenha validade até o final do processo de recuperação (que ocorrerá com a homologação do plano aprovado pelos credores). A proposta de mudança traz maior segurança ao processo recuperacional, na medida em que a instabilidade relativa à proteção legal (prorrogação ou não do stay period) colocava em risco o sucesso da reestruturação da empresa. Isso porque, o levantamento da suspensão das ações antes da renegociação das dívidas, liberaria os credores para avançar individualmente contra os ativos da devedora, iniciando aquela corrida dos credores que, certamente, levaria a devedora à falência. Conforme já dito, a suspensão das ações e execuções individuais é um dos fundamentos da recuperação judicial, sem a qual resta totalmente inviabilizada a possibilidade de negociação global e reestruturação da empresa, com prejuízo à manutenção dos benefícios econômicos e sociais buscados pela recuperação judicial. f) Créditos fiscais, FGTS, penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho e contribuições sociais e seus acréscimos legais Propõe o projeto de reforma da lei, que não somente as execuções fiscais (créditos tributários) fiquem imunes aos efeitos da recuperação judicial, mas também as execuções de outros créditos equiparados, como FGTS, multas administrativas trabalhistas e contribuições sociais. Compreende-se a tentativa do legislador de oferecer uma maior proteção aos créditos tributários e equiparados, na medida em que um dos objetivos da recuperação judicial da empresa é preservar o recolhimento de tributos e garantir os interesses sociais na proteção aos trabalhadores. Entretanto, a proteção desses interesses relevantes deve ser compatibilizada com os demais valores objetivados pela recuperação judicial da empresa consistentes na preservação da atividade como fonte produtora de empregos, produtos, serviços e circulação de riquezas em geral. Nesse sentido, a proteção ao crédito tributário ou equiparado não poderá se dar de forma absoluta, em prejuízo da própria reorganização da empresa. Daí a necessidade de que exista uma legislação adequada que permita a empresa em crise, normalmente detentora de um elevado grau de endividamento fiscal, repactuar de maneira razoável e factível esse passivo extraconcursal com as autoridades fiscais. Do contrário, caberá ao Poder Judiciário realizar uma interpretação adequada desses dispositivos, aplicando o que propõe a teoria da superação do dualismo pendular, fazendo com que a melhor interpretação/aplicação da lei seja aquele que preserva não apenas o interesse do fisco (como credor), mas sim o interesse social/público de preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da manutenção de uma atividade empresarial viável. O projeto propõe, ainda, que o juízo da recuperação não terá competência para decidir sobre a constrição e expropriação de bens nas execuções fiscais (e equivalentes) que prosseguirem durante o curso da recuperação judicial. Tal disposição está em confronto com a própria lógica do processo recuperacional e com o entendimento consolidado do STJ que já afirmou que o juízo coletivo é quem tem condições de compatibilizar a realização do interesse do credor extraconcursal com os demais interesses sociais e coletivos envolvidos no processo de recuperação da empresa. Note-se que o entendimento do STJ não se formou em razão de qualquer dispositivo legal expresso da Lei 11.101/05, mas sim em função da lógica recuperacional e do juízo de ponderação de valores, próprios da interpretação jurisdicional. Aplicando-se nesse aspecto a teoria da divisão equilibrada de ônus, não se poderá admitir a interpretação que afirme que o Poder Público não ofereça a sua dose de sacrifício para a preservação dos benefícios sociais decorrentes da recuperação da empresa que exerce a sua função social. Não se pode confundir interesse público primário com interesse público secundário. O interesse do fisco que é merecedor de proteção na recuperação judicial é aquele que se identifica com o interesse público primário (interesse público por excelência de realização do bem comum) e não o interesse público secundário (interesse egoístico do órgão público como credor, pensando nos seus próprios cofres). Nesse sentido, essa norma proposta pela reforma não deve prevalecer, preservando-se a competência do juízo da recuperação para decidir sobre a possibilidade/compatibilidade da expropriação de um ativo envolvido em execução extraconcursal, de modo a preservar a prevalência do interesse social sobre o interesse particular de um credor específico (ainda que seja o fisco, agindo no seu interesse público secundário). E caso aprovada, essa norma certamente será neutralizada pela interpretação jurisprudencial compatível com a lógica do sistema recuperacional e com a ponderação de valores envolvidos no processo de recuperação da empresa em crise.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Para que serve uma lei de insolvência?

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone Num ambiente de apresentação de reformas para a Lei de Recuperação de Empresas e Falência nacional, primeiro passo para se verificar se a lei cumpre a sua finalidade é identificar quais são seus objetivos. O sistema de insolvência procura disciplinar uma situação de crise econômico-financeira do empresário devedor, que não conseguiu satisfazer suas obrigações ou não possui condições de fazê-lo. Sua criação reflete a inadequação do sistema de execuções individuais de satisfação dos credores quando há inadimplemento geral do empresário devedor. Diante da insuficiência de ativos a satisfazer todos os credores, a legislação processual asseguraria execuções individuais para que os credores pudessem, mediante a constrição de ativos do devedor, satisfazer os seus créditos. Na hipótese de insolvabilidade do devedor, em que os seus ativos seriam insuficientes para a satisfação de todos os credores, o credor que primeiro conseguisse fazer a constrição de ativos do devedor teria maior probabilidade de ser satisfeito integralmente, ainda que isso implicasse a impossibilidade de satisfação dos demais credores que o sucedessem. Essa situação incentivaria os comportamentos oportunistas dos credores em detrimento de toda a coletividade. Como a legislação processual estabeleceria um sistema de tratamento preferencial ao credor que obtivesse a primeira penhora, o sistema geraria uma disputa pelos ativos do devedor. Por uma lado, a disputa pelo ativo exigiria dos credores que monitorassem a situação econômico-financeira do devedor de forma a serem os primeiros a executarem individualmente e a realizarem a constrição dos ativos na iminência de qualquer inadimplência, o que geraria maiores custos. Por outro, a penhora seria realizada individualmente por cada um dos credores e na medida dos ativos suficientes à satisfação do seu crédito. A liquidação dos ativos penhorados nos processos de execução individual, a depender do montante do débito executado, poderia gerar o fracionamento do estabelecimento empresarial, em detrimento da maximização do valor da liquidação coletiva dos bens e dos interesses de todos os demais envolvidos. A criação de um sistema próprio de insolvência para lidar com o inadimplemento geral por empresários devedores procura assegurar alguns objetivos diversos da execução individual, restrita à máxima satisfação do crédito do exequente que adquire pela penhora o direito de preferência. Embora haja intensa controvérsia doutrinária sobre a forma de sua aplicação, podem ser apresentados ao menos três objetivos principais de um sistema de insolvência. O primeiro deles é a maximização de valor da empresa em crise e a redução dos custos para a satisfação dos credores. O credor individual não poderia comprometer, com a liquidação forçada e fracionamento do estabelecimento empresarial, a satisfação de todos os demais credores. O sistema deveria, para tanto, estabelecer regras para incentivar os comportamentos coletivos e reduzir as estratégias individuais em detrimento dos demais. Decerto a lei 11.101/05 preconiza o comportamento colaborativo através da universalidade do Juízo falimentar, com a reunião de ativos do devedor e, na recuperação judicial, por meio da suspensão das ações e execuções em face da recuperanda, dos quóruns de maioria para a aprovação de plano de recuperação, etc. Entretanto, compromete a colaboração pretendida ao não incluir todos os credores no procedimento de recuperação judicial. Credores titulares da posição de proprietários fiduciários, arrendadores mercantis, proprietário vendedor com cláusula de reserva de domínio ou credor em decorrência de adiantamento de contrato de câmbio não se sujeitam a recuperação judicial e poderão acarretar, para a tutela do crédito individual, a liquidação forçada falimentar do empresário devedor em detrimento de todos os demais interessados. Outrossim, incentiva as estratégias individuais em detrimento da coletividade ao assegurar que o crédito, em face dos coobrigados, não será novado em razão da recuperação judicial. Como, ainda que o devedor principal se sujeite a recuperação judicial, o credor conserva seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados em regresso, o credor terá todo incentivo individual de concordar com um plano de recuperação judicial insatisfatório e em detrimento do interesse da coletividade de credores, desde que seja satisfeito pelos demais coobrigados não sujeitos à recuperação. O segundo objetivo é a apropriada alocação dos custos do insucesso. O sistema de insolvência deve buscar a alocação dos custos do fracasso conforme a responsabilidade de cada agente. As consequências negativas devem ser suportadas por aqueles que foram os principais causadores da crise do devedor ou que poderiam mais eficazmente evitá-la. Se na falência, de forma a serem incentivados a serem eficientes no exercício de seus poderes e funções, os sócios ou administradores não poderiam ser satisfeitos com o recebimento da liquidação dos ativos ou a conservação da propriedade dos bens em detrimento da satisfação dos credores, isso não ocorre na recuperação judicial tal qual disciplinada pela lei 11.101/05. Apesar de em recuperação judicial, não há impedimento para que os sócios ou administradores sejam recompensados com dividendos ou alta remuneração, mesmo sem que os créditos tenham sido totalmente adimplidos. Tampouco há impedimento para que o devedor submeta os credores discordantes do plano de recuperação judicial, em conveniência própria, a pagamento menor do que eles teriam direito na hipótese de liquidação forçada. Além dos sócios e administradores, a quem devem ser imputados os custos do fracasso, referidos custos também devem ser imputados aos credores que teriam maiores condições de verificar a crise do devedor. Na perspectiva dos credores, os custos do inadimplemento devem ser suportados por aqueles que têm maiores condições de diligenciar para tomar as melhores decisões. Os credores mais vulneráveis ou cuja relação creditícia não possa ser por eles evitada devem possuir privilégio na satisfação dos referidos créditos até porque teriam dificuldades para mitigar o risco, ainda que conhecido. Na lei 11.101/05, contudo, a recuperação judicial pode prever o pagamento prioritário de credores menos favorecidos em detrimento de credores mais vulneráveis. Não obstante, pode assegurar o comprometimento do próprio conjunto de ativos em detrimento da garantia de satisfação dos próprios credores não sujeitos à recuperação judicial e que sequer teriam deliberado sobre o plano de recuperação, como os credores tributários ou com créditos advindos após a recuperação judicial em virtude de uma liquidação dos principais bens do devedor ainda durante a recuperação judicial. Por fim, o terceiro objetivo consiste na apropriada distribuição de valor entre os interessados. Assim como os custos do insucesso deveriam ser alocados aos responsáveis pela crise, o sistema de insolvência procuraria, diante da incapacidade de pagamento geral do devedor, assegurar uma distribuição de valor aos diversos interessados de forma diversa do que resultaria das execuções individuais. Ainda que se sustente que essa distribuição de valor não deveria ocorrer apenas para maximizar a satisfação dos interesses dos credores em igualdade, mas também para a satisfação dos interesses de todos aqueles envolvidos com a atividade empresarial, o objetivo somente poderia ser atendido se a alocação de poder para decidir o destino da atividade permitisse a consideração desses interesses. Decerto, como mais diretamente afetados pela crise, a atribuição de poderes aos credores para decidir sobre a viabilidade econômica do empresário em recuperação judicial seria harmônica à proteção dos interesses dos diversos interessados na preservação da empresa, como os credores, trabalhadores, consumidores e a comunidade beneficiada indiretamente pelo seu desenvolvimento. Como os credores procurariam maximizar a satisfação dos seus créditos e sofreriam os maiores efeitos de uma decisão equivocada, presumiu-se que votariam conforme o melhor entendimento sobre a viabilidade econômica da empresa conduzida pelo devedor em recuperação ou, caso inviável, optariam pela falência. Na lei 11.101/05, todavia, como nem todos os credores se sujeitam a recuperação judicial e não há exigência para que haja a satisfação prioritária de créditos mais favorecidos, mesmo que referentes a créditos não sujeitos à recuperação judicial, há incentivos para que os credores sujeitos aprovem recuperações judiciais de empresários sabidamente ineficientes e com atividades inviáveis justamente para que possam auferir a satisfação de seus créditos em detrimento dos demais credores. Em suma, somente a partir da identificação dos objetivos do sistema de insolvência podemos verificar se a Lei de Recuperação de Empresas e Falência nacional tem criado os incentivos adequados para que eles sejam alcançados. Pelo que se verificou, contudo, as reformas são urgentes.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! As empresas, nos dias atuais, cada vez mais têm se organizado em estruturas complexas, formadas por várias sociedades e denominadas grupos empresariais. É comum, apenas para ficar em um exemplo mais comum e básico, que exista em um grupo uma sociedade holding ou sociedade-mãe - que administra participações em outras sociedades - e sociedades operacionais, que exercem determinada atividade econômica e estão submetidas ao controle da holding. Situações de crise econômico-financeira podem atingir uma sociedade isolada, mas também podem comprometer todo o grupo empresarial. Nesse último caso, é possível que a recuperação judicial deva ter por perspectiva a reestruturação de todas as empresas que compõem o grupo. É precisamente aqui que se encontram os fenômenos da consolidação processual e da consolidação substancial. Embora cada vez mais relevantes e frequentes, não foram objeto de disciplina na lei 11.101/2005 (LRF), que se limitou a regular a recuperação judicial e extrajudicial e a falência do "empresário" e da "sociedade empresária" (art. 1º), no singular. Desse modo, na ausência de previsão legal - pelo menos até que entre em vigor eventual reforma à LRF -,1 coube à doutrina e à jurisprudência delimitar os contornos da consolidação processual e substancial. Vamos a eles. 1. Consolidação processual: o litisconsórcio ativo na recuperação judicial A consolidação processual nada mais é do que a possibilidade de que sociedades ingressem, conjuntamente, com um só pedido de recuperação judicial. Em síntese, portanto, é uma hipótese de litisconsórcio ativo, em que mais de uma sociedade pede que seja processada a sua recuperação judicial. Na ausência de disciplina sobre o assunto na lei especial, devem ser aplicadas, de forma subsidiária, as regras do Código de Processo Civil (art. 189, LRF). Basta, para que seja admitido o litisconsórcio, que exista a afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito (art. 113, III, CPC). Não é preciso haver comunhão de direitos ou obrigações (art. 113, I), o que exigiria que os patrimônios e credores de todas as sociedades recuperandas fossem os mesmos. Nem mesmo é necessária a demonstração de que existe conexão (art. 113, II). Suficiente, apenas, haver alguma afinidade entre as sociedades em recuperação judicial. Essa afinidade é preenchida pela mera inserção das sociedades em um mesmo grupo econômico. O grupo pode ser de direito (formalmente constituído entre sociedade controladora e sociedades por ela controladas, por meio de convenção arquivada perante a Junta Comercial - arts. 265 e 271 da lei 6.404/1976) ou de fato (que se forma entre sociedades relacionadas em decorrência da participação que uma possui no capital social das outras, sem que tenha sido ajustada, todavia, qualquer convenção sobre sua organização formal e administrativa)2. Como a afinidade exigida pelo art. 113, III do CPC se dá por ponto comum "de fato ou de direito", a consolidação processual é admitida tanto no caso de grupo de direito como no de fato3. As razões para que seja admitida a consolidação processual são essencialmente as mesmas do litisconsórcio: promover economia processual (evitando a repetição de atos processuais, o que ocorreria se os pedidos de recuperação das sociedades fossem processados em separado), evitar eventuais decisões conflitantes e reduzir os custos decorrentes do processo de recuperação judicial, providência importante para sociedades que se encontram em situação de crise econômico-financeira. A principal discussão que se poderia suscitar quanto à consolidação processual se verifica nos casos em que as sociedades possuem seu "principal estabelecimento" em comarcas distintas. É que a regra de competência territorial para a recuperação judicial (art. 3º, LRF) tem sido interpretada como absoluta4 e o litisconsórcio - como hipótese de cumulação subjetiva de demandas - não pode implicar derrogação a regras de competência absoluta (art. 327, § 1º, II do CPC)5. O assunto ainda não recebeu a devida atenção da jurisprudência. Os juízes muitas vezes têm interpretado o "principal estabelecimento" como o centro de decisões da sociedade, ou seja, onde ocorrem suas deliberações mais relevantes6 (e não sua sede formal ou onde se concentra o maior volume de atividades econômicas, como verificado em alguns precedentes)7. Esse entendimento nos parece correto. Contudo, em um grupo econômico, frequentemente os tribunais fogem da discussão tomando por perspectiva o local de que partem as decisões mais relevantes para o grupo como um todo, buscando estabelecer o mesmo "principal estabelecimento" para todas as sociedades relacionadas. Sem embargo dessa questão, é importante que se faça uma advertência: a consolidação processual não afasta a autonomia patrimonial das sociedades recuperandas8, que devem continuar a apresentar listas de credores individualizadas e, mais importante, ter o seu plano deliberado pela Assembleia Geral de Credores em votações separadas por seus respectivos credores. Resumindo em uma frase: a consolidação processual não acarreta de forma automática a consolidação substancial9. 2. A polêmica consolidação substancial: competência e requisitos A consolidação substancial significa ir um passo além da consolidação processual: nesta hipótese, as sociedades recuperandas não apenas têm o pedido processado conjuntamente, como sua autonomia patrimonial é excepcionalmente afastada, de maneira a unificar as listas de credores das sociedades e, consequentemente, fazer com que o seu plano de recuperação judicial seja deliberado em assembleia única, por todos os credores de todo o grupo econômico consolidado. Com a consolidação substancial, passa-se a ter situação de litisconsórcio unitário (art. 116, CPC), em que todas as sociedades do grupo terão inevitavelmente o mesmo destino: ou terão seu plano de recuperação judicial aprovado, ou este será rejeitado, com a consequente decretação de falência de todo o grupo. Trata-se de instituto que, assim como a consolidação processual, não se encontra regulado na LRF. Contudo, diversamente do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, tendo em vista as drásticas consequências que acarreta, alterando de forma significativa o quórum na Assembleia Geral de Credores e o poder de voto de cada credor no conclave, a consolidação substancial traz consigo diversas polêmicas, que vêm sendo enfrentadas pela jurisprudência. A primeira polêmica se refere à competência para determinar a consolidação substancial: seria ela do juiz ou da Assembleia Geral de Credores? Uma interpretação sistemática conduz à conclusão de que se trata de matéria a ser deliberada pelos próprios credores em assembleia, ressalvados os casos extremos de confusão patrimonial e desvio de finalidade, que poderiam ser apreciados pelo juiz a título de desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do Código Civil) - situação em que os responsáveis pelas fraudes também devem responder pessoalmente pelos seus atos, sem prejuízo da apuração de eventual responsabilidade criminal10. Isso porque, nos termos do art. 35, I, alínea "f" da LRF, compete à Assembleia Geral deliberar sobre "qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores". Por óbvio, a possibilidade de unificação das listas de credores entre todas as sociedades do grupo e o afastamento de sua autonomia patrimonial (art. 266 da lei 6.404/1976) afetam de forma expressiva o interesse dos credores envolvidos na recuperação judicial, que passarão a ter como seu devedor todo o grupo econômico e votarão sobre o plano, de forma diluída em meio a todos os demais credores do grupo, em uma só assembleia unificada. Deve a consolidação substancial, portanto, em regra, ser deliberada em Assembleia Geral de Credores. Como, no momento em que se realizar tal assembleia, ainda não terá se verificado tal consolidação, a votação para este fim deve se dar separadamente entre os credores de cada sociedade envolvida11. A segunda polêmica sobre a consolidação substancial, caso se entenda que tal medida compete ao juiz, diz respeito aos requisitos para que ela seja determinada. Evidentemente, não basta a mera existência de um grupo econômico de direito ou de fato porque, como já dito e reconhecido pela jurisprudência, a consolidação processual na recuperação judicial (litisconsórcio ativo) não leva automaticamente à consolidação substancial. Por isso mesmo, não servem justificativas genéricas para que ocorra tal unificação de ativos e passivos, como a existência de sócios comuns ou escopo comum das sociedades envolvidas. Mais do que a simples existência de um grupo econômico, a consolidação substancial exige a efetiva confusão patrimonial entre as sociedades ou, pelo menos, expressiva integração, com adoção, entre outras evidências, de contas centralizadoras, regime de caixa único e coincidência de instalações12. Também se admite a consolidação substancial se a atividade econômica das sociedades é unificada, com objeto social coincidente. Ainda, a mera existência de garantias cruzadas entre as sociedades do grupo (por exemplo, prestação de fianças ou avais por algumas sociedades em obrigações contraídas por outras), por si só, é comum a muitos grupos e não conduz à consolidação substancial13, mas pode ser evidência de confusão patrimonial se forem numerosas e assumirem expressiva relevância em relação ao passivo de todo o grupo, a ponto de conduzir à conclusão de que o destino da recuperação judicial de todas as sociedades será inevitavelmente o mesmo. * * * Consolidação processual e substancial são fenômenos que, embora não regulados em lei, são cada vez mais frequentes nas recuperações judiciais. Na prática, a consolidação processual não envolve grande polêmica, sendo suficiente para tal a existência de um grupo econômico de fato ou de direito. As controvérsias ficam reservadas para a consolidação substancial, tanto no que tange a quem compete determinar tal providência - se ao juiz ou à Assembleia Geral de Credores - quanto aos requisitos para que se verifique a unificação de ativos e passivos do grupo, afastando a autonomia patrimonial das sociedades que o compõem. Enfim, é preciso que a consolidação substancial seja determinada com cautela e seja devidamente justificada, para não se transformar em uma perigosa arma de manipulação do quórum na Assembleia Geral de Credores, em que alguns credores podem ter o seu poder de voto diluído em meio a todo o grupo empresarial. Por hoje, ficamos por aqui. Um abraço e até a próxima! __________ 1 Sobre o ponto, discutindo as inovações do PL 10.220/2018 (em trâmite na Câmara dos Deputados) em matéria de consolidação processual e substancial, Andre Vasconcelos Roque, Projeto de lei e recuperação judicial: O que vem por aí?, Migalhas, publicado em 15/5/2018. 2 "O grupo de fato é aquele integrado por sociedades relacionadas tão somente por meio de participação acionária, sem que haja entre elas uma organização formal ou obrigacional. As relações jurídicas mantidas entre as sociedades que integram o grupo devem ser fundamentadas nos princípios e nas regras que regem as relações entre as companhias isoladas" (Nelson Eizirik, A lei das S/A comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. v. 3, p. 515-516) 3 "Assim, a formação do litisconsórcio ativo, na hipótese, foi corretamente deferida, uma vez que restou demonstrada a existência do grupo econômico de fato, considerando-se, ainda, que o ajuizamento separado das ações de recuperação de cada uma das empresas interligadas, comprometeria a própria eficiência do processo recuperacional, afetando o possível soerguimento do grupo econômico, tendo em vista que haveria a possibilidade de serem proferidas decisões conflitantes" (TJ/SP, AI 2126008-61.2018.8.26.0000, 2ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Maurício Pessoa, julg. 27.8.2018). 4 "A circunstância de as recuperandas não terem impugnado a decisão declinatória proferida pelo relator do agravo de instrumento (nº 348379-48.2015.8.09.0000) no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás não interfere no conhecimento do incidente, pois a norma constante do artigo 3º da lei 11.101/05 encerra regra de competência absoluta, afastando eventual alegação da existência de preclusão quanto à suscitação do conflito" (STJ, CC 146.579, Segunda Seção; Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 11.11.2016). V. tb.: TJSP, AI 2139422-63.2017.8.26.0000, 1ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Lazzarini, julg. 9.8.2017 e TJPR, ConCompCv 1605387-5, 18ª CC., Rel. Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea, julg. 3.5.2017. 5 Entre outros: "5. Desta forma, tendo em vista a incompetência da Justiça Federal para processar e julgar a ação proposta em face do Município do Rio de Janeiro e, tendo em vista, ainda, que a cumulação de ações, de acordo com o art. 327, §1º, II, do Código de Processo Civil estabelece, dentre outros requisitos, que o réu seja o mesmo e que o juízo seja competente para apreciar todas as ações cumuladas, escorreito o juízo a quo ao excluir o Município do Rio de Janeiro do feito. 6. Ainda que se vislumbre que os objetos possam ser conexos, tal fato não deslocaria a lide de competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, vez que a competência absoluta não se altera pela conexão" (TRF 2ª R., AI 0010163-85.2016.4.02.0000, 5ª Turma, Rel. Des. Fed. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, julg. 21.2.2017). 6 Nesse sentido: "Recuperação judicial. Competência para o processamento. Principal estabelecimento. Local de onde emanam as principais decisões estratégicas, financeiras e operacionais da sociedade. Competência do foro da Comarca de Mogi das Cruzes. Agravo provido" (TJSP, AI 2249580-54.2018.8.26.0000, 1ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 30.1.2019). 7 Exemplificativamente: "Para fins da competência visando o processamento da ação de recuperação judicial, entende-se por principal estabelecimento o local no qual se desenvolve a maior parte das atividades relacionadas ao objeto social da empresa recuperanda. E, analisando a documentação colacionada aos autos infere-se que o local onde se concentra o maior volume de negócios é na Comarca de Campo Grande/MS" (TJMS, AI 1400242-03.2019.8.12.0000, 2ª CC., Rel. Des. Eduardo Machado Rocha, DJMS 7.2.2019) 8 A esse respeito, estabelece o art. 266 da lei 6.404/1976, que trata das relações entre as sociedades em um grupo, que "[a]s relações entre as sociedades, a estrutura administrativa do grupo e a coordenação ou subordinação dos administradores das sociedades filiadas serão estabelecidas na convenção do grupo, mas cada sociedade conservará personalidade e patrimônios distintos" (grifou-se). 9 "Nesse sentido, a superação da mera consolidação processual e a adoção da consolidação substancial não constituem o resultado da aplicação de uma regra geral, mas, isso sim, uma excepcionalidade, o que impõe seja proferida uma decisão especificamente motivada, não podendo ser admitido um simples deferimento implícito e decorrente da admissão de um litisconsórcio ativo, pois isso pode, simplesmente, implicar numa consolidação processual" (TJSP, AI 2032440-88.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 20.6.2018). 10 A esse respeito, estabelece corretamente o PL 10.220/2018, em trâmite na Câmara dos Deputados e que se propõe a alterar a LRF: "Art. 69-M. O juiz determinará, de ofício, a consolidação substancial de ativos e passivos de agentes econômicos integrantes do mesmo grupo econômico que estejam ou não em recuperação judicial, quando constatar: I - confusão entre ativos ou passivos dos devedores, modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou recursos; ou II - envolvimento dos devedores em fraude que imponha consolidação substancial. § 1º O enquadramento em qualquer hipótese prevista no caput implicará, para todos os fins, a desconsideração da personalidade jurídica dos agentes econômicos envolvidos e a apuração de responsabilidade criminal". 11 Nesse sentido: "Recurso tirado contra decisão que acolheu pedido da credora para determinar que os credores de cada uma das devedoras, em votações separadas, deliberem sobre a consolidação substancial, com a aprovação ou não de plano unitário e comunhão de ativos e passivos. Decisão acertada. Admissão do litisconsórcio ativo que não encaminha, obrigatoriamente, à consolidação substancial. Necessidade de anuência da maioria dos credores de cada uma das devedoras, sob pena de subversão do instituto" (TJSP, AI 2072604-95.2018.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Araldo Telles, julg. 30.7.2018). V. tb.: TJSP, AI 2165440-24.2017.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Marcondes, julg. 12.11.2018; TJSP, AI 2178269-37.2017.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Marcondes, julg. 12.11.2018; TJRJ, AI 0052769-87.2017.8.19.0000, 8ª CC., Rel. Des. Cezar Augusto Rodrigues Costa, julg. 22.9.2017; TJRJ, AI 0057021-07.2015.8.19.0000, 14ª CC., Rel. Des. José Carlos Paes, julg. 25.11.2015; TJPR, AI 1.098.575-2, 17ª CC., Rel. Des. Lauri Caetano da Silva, julg. 26.3.2014; TJRS, AI 0182096-46.2018.8.21.7000, 5ª CC., Rel. Des. Isabel Dias Almeida, julg. 26.9.2018. 12 "O trâmite da recuperação com a consolidação de ativos e passivos de vários devedores componentes de um mesmo grupo econômico, mesmo ausente específica regra positivada e tal qual admitido por numerosos julgados, pode se tornar, até mesmo, obrigatório diante de uma confusão patrimonial explícita (com aplicação do artigo 114 do CPC de 2015) e gera consequências muito graves e que condicionam o trâmite de toda a recuperação judicial, sendo seu escopo a economia de recursos e a cooperação de todas empresas envolvidas para um maior eficiência em sua atuação diante de uma situação de crise econômica e financeira (...) Uma unificação procedimental ampla precisa derivar, no entanto, de maneira explícita, da afirmação da unidade gerencial, da integração patrimonial ou da simbiose do objeto social dos devedores, que buscam superar uma conjuntura desfavorável em conjunto, reunindo suas forças e conformando uma interdependência, não se admitindo a utilização da consolidação substancial como forma artificial de simples diluição de créditos. Nesse sentido, a superação da mera consolidação processual e a adoção da consolidação substancial não constituem o resultado da aplicação de uma regra geral, mas, isso sim, uma excepcionalidade" (TJSP, AI 2032440-88.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 20.6.2018). V. tb.: TJSP, AI 2169130-27.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Lazzarini, julg. 4.12.2018. 13 TJSP, AI 2218060-47.2016.8.26.0000, 2ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 12.6.2017.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho O art. 49, parágrafo 3º, da lei 11.101/2005 dispõe o seguinte: "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) §3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis , de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Parte da doutrina confere a tal dispositivo legal interpretação restritiva, sustentando que o texto refere-se apenas a coisas móveis ou imóveis. Essa tese faz sentido e decorre da própria proteção outorgada pela parte final do texto legal. Créditos são bens imateriais; não são passíveis de qualificação como bens de capital suscetíveis de alienação fiduciária. Somente bens desta natureza, que são materiais, e não os direitos de créditos, imateriais, é que não podem ser retirados da posse do devedor, quando essenciais à sua atividade. Nesse sentido a lição de Manoel Justino Bezerra Filho: "o termo "proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis do início do §3o do art. 49 completa-se com a parte final do parágrafo, que não permite a venda ou retirada de bens de capital. Esta proibição final não pode ser aplicada à cessão; na cessão de recebíveis não há possibilidade de venda ou retirada de bens, há apenas apossamento puro e simples do dinheiro recebido" (Lei de Recuperação de Empresas e falência: comentada artigo por artigo 12ª. ed São Paulo: RT, 2017, p. 175). É verdade que o Superior Tribunal de Justiça adotou interpretação extensiva do parágrafo 3º, do art. 49, no sentido de que a alienação fiduciária de coisa móvel (máquinas e equipamentos) e a cessão fiduciária de créditos (recebíveis) se equivalem, justamente por possuírem a mesma natureza jurídica. Porém, é preciso ir além e realizar-se uma interpretação extensiva de todo o dispositivo legal. Em outras palavras, se o credor fiduciário de recebíveis assim como o proprietário fiduciário de bens materiais não estão sujeito à recuperação, os recebíveis essenciais merecem proteção semelhante aos bens de capital essenciais. Ambos não podem ser retirados da disponibilidade do devedor, a fim de que se preserve a finalidade do processo de recuperação, sem prejuízo da proteção ao credor garantido, como, aliás, constou do parecer 534/2004, do Senador Ramez Tebet, relativo ao projeto que deu origem à lei 11.101/2001: "(...) no caso da alienação fiduciária e de outras formas de negócio jurídico em que a propriedade não é do devedor, mas do credor, é preciso sopesar a proteção ao direito de propriedade e a exigência social de proporcionar meios efetivos de recuperação às empresas em dificuldades. Por isso, propomos uma solução de equilíbrio: não se suspendem as ações relativas aos direitos dos credores proprietários, mas elimina-se a possibilidade de venda ou retirada dos bens durante os 180 dias de suspensão, para que haja tempo hábil para a formulação e a aprovação do plano de recuperação judicial." A solução equilibrada, no caso da cessão fiduciária de créditos, não foi prevista no parágrafo 3º, mas esta lacuna pode ser suprida pela norma do parágrafo 5º., do art. 49, segundo o qual, "tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras, ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4o do art. 6o desta lei". A norma do § 5º do art. 49 se refere a direitos creditórios e títulos de crédito, ou seja, neste dispositivo legal está clara a intenção de tratar de garantias reais sobre créditos (ou recebíveis). Aqui cuida-se de direito real de garantia que recai sobre outro direito, incorpóreo, diferentemente da norma prevista no parágrafo 3º, que se refere a coisas corpóreas, suscetíveis de posse. Tratando-se de garantia que tem por objeto uma prestação pecuniária de terceiro, o devedor não pode simplesmente apropriar-se dos valores pagos, referentes aos créditos que deu em garantia. Isso seria anular pura e simplesmente o direito do credor. A solução, portanto, é exigir do devedor que substituía os créditos dados em garantia e já satisfeitos por outros créditos. Nesse sentido, aliás, é a compreensão do professor da USP, Eduardo Munhoz, em artigo indispensável sobre o tema: "A semelhança das figuras (cessão fiduciária e penhor) pode justificar tratamento também similar pela LRF. Ou seja, o crédito cedido fiduciariamente, desde que essencial à atividade empresarial (parte final do § 3º do art. 49), tanto quanto o objeto do penhor, deve ficar depositado, em conta vinculada à recuperação judicial, durante o stay period, assegurando-se, por outro lado, a renovação das também à hipótese de cessão fiduciária, em virtude da natureza fungível do crédito. De fato, a propriedade do credor é sobre créditos, bens fungíveis, de modo que não ofenderia o seu direito de proprietário a eventual renovação da garantia pelo devedor por outros créditos de mesmo valor e natureza, portanto, hábeis a substituir os primeiros." ("Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa". In: Revista do Advogado, n. 105, ano XXIX,. São Paulo: AASP, setembro de 2009, pp. 44/45). A solução doutrinária acima mencionada também tem amparo na jurisprudência do TJSP: "RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CREDOR TITULAR DE CRÉDITO GARANTIDO POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS CONTRA TERCEIRO - PAGAMENTOS RELATIVOS À GARANTIA QUE DEVEM SER FEITOS MEDIANTE DEPÓSITO EM CONTA VINCULADA À RECUPERAÇÃO - ART 49, § 5° DA LEI 11 101/2005 - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO." (AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 628.519-4/2 - CÂMARA ESPECIAL DE FALÊNCIAS E RECUPERAÇÕES JUDICIAIS). Do voto do relator. Des. Elliot Akkel, consta que "as regras do § 3o e do § 5o do art. 49 da Lei 11.101/2005 não se excluem. Ao contrário, podem ser complementares, como na espécie, uma vez que, configurada eventualmente a alienação fiduciária de direitos creditórios, induvidosamente e da mesma forma tratar-se-ia de "crédito garantido" por "direitos creditórios", na dicção do § 5o." Portanto, durante o "stay period", a proteção para credores garantidos por máquinas e equipamentos essenciais é a manutenção do bem na posse do devedor, que tem interesse na conservação do bem. Já a proteção para os credores garantidos por direitos de crédito (recebíveis) é o depósito do valor dos créditos objeto da garantia até que seja realizada a substituição ou renovação das garantias liquidadas ou vencidas. Com isso o devedor mantém a sua operação e continua a faturar, gerando novos créditos que serão oferecidos em garantia para o credor. Trata-se de solução que assegura efetividade à lei 11.101/2005, tendo amparo na doutrina e na jurisprudência, além de ser encontrada em outras leis de insolvência, como observa Leonardo Adriano Ribeiro Dias: "(...) À semelhança do que ocorre nos Estados Unidos, a utilização das garantias em dinheiro, presente ou futuro, deveria ser permitida caso o credor consinta ou o juiz autorize, quando assegurada a a proteção adequada ao titular do crédito garantido. Essa proteção poderia se dar, e.g., pela liberação parcial dos valores gravados até o limite da dívida garantida, com compromisso de pagamento dos juros incidentes; pela substituição da garantia por outros recebíveis com vencimento posterior; pela assunção do compromisso de reposição das garantias liberadas, sob pena de vencimento total da dívida; e assim por diante." (Financiamento na Recuperação Judicial e na Falência. São Paulo. Quartier Latin: 2014; pp.305/306). Por fim, importante destacar que o devedor tem direito à liberação, tão-somente, dos recursos necessários à manutenção da atividade empresarial, e não à totalidade dos recebíveis cedidos fiduciariamente. O controle da essencialidade cabe ao juízo da recuperação judicial, com o auxílio do administrador judicial. É conveniente que seja instaurado um incidente processual, para a demonstração dos valores essenciais pela recuperanda, evitando-se, com isso, tumulto nos autos da recuperação. Por meio da análise das demonstrações financeiras, extratos bancários e outros documentos, o administrador judicial extrairá as informações relativas ao valor das despesas da recuperanda que são essenciais ao seu funcionamento, como impostos, locação, aquisição de matéria-prima, folha de pagamento, serviços de terceiros. O Juiz decidirá qual o montante a ser liberado à devedora, presente o requisito da essencialidade, enquanto o excedente poderá ser disponibilizado aos credores garantidos. Com essa solução, o processo de recuperação judicial poderá cumprir seu propósito de forma mais eficiente. Assegura-se a manutenção das atividades da recuperanda e, ao mesmo tempo, é oferecida proteção adequada aos interesses dos credores garantidos.
Texto de autoria de Luiz Dellore e Andressa Borba Pires INTRODUÇÃO Como destacado em texto anterior1, a Assembleia Geral de Credores (AGC) é ato de grande importância para o procedimento da recuperação judicial, que não encontra similar no processo civil brasileiro. Trata-se da ocasião em que os credores, divididos em 4 classes, se reúnem para deliberar sobre matérias de interesse comum e, em especial, para a aprovação ou rejeição do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa devedora. 1) DA DIVISÃO POR CLASSES E DO DIREITO DE VOTO EM AGC. A divisão rígida dos credores por classes é estabelecida na lei (11.101/2.005, a LRF, artigo 41) para fins de votação do plano: I- credores trabalhistas; II- credores titulares de garantia real - penhor ou hipoteca, no limite do valor da garantia; III- credores quirografários - classificação residual; IV- Microempresas - ME ou Empresas de Pequeno Porte - EPP Além desses, existem ainda os credores extraconcursais, ou seja, aqueles cujos créditos não se submetem à recuperação judicial (LRF, art. 49, §§ 3º e 4º2) e, assim, não são atingidos pelo plano de recuperação judicial (PRJ). Por tal razão, não votam na AGC. Na prática, verifica-se que a divisão por classes é também utilizada pelas recuperandas para estabelecer, no PRJ, as condições de pagamento dos créditos concursais (LRF, artigo 50). Possuem direito a voto os credores concursais, ou seja, os titulares de créditos sujeitos ao processo de recuperação judicial, listados numa das quatro classes acima indicadas e que constam do quadro geral de credores (QGC). Se ainda não houver QGC, será considerada a relação de credores apresentada pelo administrador judicial ou então, a relação apresentada pelo devedor, caso ainda não apresentada a segunda lista (LRF, artigo 7º, §2º)3. É considerada, para fins de quórum e votação, a lista de credores vigente na data da assembleia, com as alterações e inclusões determinadas por decisões proferidas em habilitações ou impugnações de crédito. Ou seja, possuem direito a voto os credores titulares de créditos habilitados ou alterados por incidentes processuais julgados, conforme estabelece o artigo 39 da LRF. Todavia, não terão direito a voto em assembleia os titulares de créditos retardatários, salvo no caso de créditos trabalhistas. Conforme prevê o artigo 10, §1º da LRF, são considerados créditos retardatários aqueles objetos de habilitações apresentadas após o prazo de 15 dias da publicação do primeiro edital, previsto no artigo 52, §1º da LRF (vide LRF, artigo 7º, §1º). Também não terão direito a voto, como destacado acima, os credores titulares de créditos extraconcursais, conforme expressa previsão do artigo 39, §1º da LRF. O voto em assembleia não precisa ser justificado, mas deve ser racional, caso contrário poderá ser reconhecido como abusivo, conforme entendimento jurisprudencial atual. Para ilustrar, podemos citar o precedente da recuperação judicial da empresa Schahin4, em que o TJSP manteve a homologação do PRJ, sendo desconsiderados os votos de credores integrantes da Classe II, em razão da intransigência (recusa em negociar) e da irracionalidade econômica do voto. Segundo esse entendimento, o credor tem, por exemplo, o direito de rejeitar o plano se a falência lhe for mais favorável economicamente ou se o plano não possuir viabilidade econômica, ou seja, havendo motivação econômica para tanto. As decisões são tomadas, em assembleia, por maioria de voto dos credores votantes (ou seja, os credores concursais). Com exceção da aprovação do plano, o quórum de aprovação das matérias pela AGC é de mais da metade do valor dos créditos presentes, independentemente de classe (LRF, artigo 42). Como exemplo, necessário mais da metade dos créditos para a suspensão dos trabalhos da assembleia5. Nas deliberações sobre o PRJ, considera-se aprovado o plano se houver maioria dos votos em cada uma das classes. O quórum legal de aprovação é o seguinte, estabelecido pelo artigo 45, LRF: - maioria simples de presentes (por cabeça) nas classes I e IV e, - maioria de presentes (por cabeça) e de créditos presentes (por valor) nas classes II e III. A lei estabelece, ainda, quórum alternativo de aprovação (o chamado cram down), situação em que o juiz pode conceder a recuperação judicial, se presentes determinados requisitos legais estabelecidos no artigo 58, §1º da LRF. Ou seja, ainda que não haja a aprovação tal qual inicialmente prevista, se algum quórum específico for atingido, o PRJ é considerado aprovado. É uma segunda chance dada pela própria lei para a aprovação do plano. É relativamente comum, no cotidiano forense, a aprovação por cram down6. Homologado o plano, é concedida a recuperação judicial, devendo ser implementadas as condições de pagamento e os meios de recuperação nele previstos, conforme o artigo 61 da LRF. Se não for homologado o plano ou em caso de descumprimento do plano durante o período de fiscalização (2 anos da concessão), a recuperação judicial é convolada em falência (LRF, artigo 61, §1º). 2) DA POSSIBILIDADE DE SE PLEITEAR O CÔMPUTO DO VOTO EM DOIS CENÁRIOS OU O DIREITO DE VOTO QUANDO HOUVER PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DE IMPUGNAÇÃO OU HABILITAÇÃO DE CRÉDITO Como já salientado em nossa coluna anterior, a pendência de julgamento de impugnação de crédito não é motivo para cancelamento ou adiamento da AGC, ou tampouco para a invalidação de seu resultado, conforme expressa disposição legal (LRF, artigo 39, §2º). Mas como fica a votação diante dessa situação? Afinal, com o julgamento da impugnação, é possível que um credor tenha sua situação consideravelmente alterada, o que inclusive pode levar a resultados totalmente distintos em relação à deliberação do PRJ. Para ilustrar, consideremos duas situações hipotéticas de discussão, em incidente de impugnação: (i) credor pleiteia reconhecimento de extraconcursalidade de crédito listado pela recuperanda e administrador judicial como quirografário (classe III); (ii) credor pleiteia classificação como crédito com garantia real (classe II), que no entanto foi listado pela recuperanda e administrador judicial como quirografário (classe III). Tais situações podem provocar mudança da composição de forças entre as classes e conferir, inclusive, maior poder ao credor na mesa de negociação. Nesse caso, enquanto pendente a decisão da impugnação de crédito, o credor poderá pleitear pedido liminar incidental, com fulcro no artigo 300 do CPC (tutela de urgência), para que sejam colhidos seus votos nos dois cenários possíveis, a saber: 1) em conformidade com a lista de credores apresentada pelo administrador judicial (que é o que ocorreria se nada fosse pleiteado); e 2) de acordo com o pleiteado na impugnação de crédito - valor e classe indicados pelo credor no incidente pendente de julgamento (esse é efetivamente o pedido da liminar). É certo que este pedido deve ser formulado antes da realização da AGC, pois após a sua realização não há como se cogitar de qual seria, hipoteticamente, o resultado. O pedido liminar pode ser formulado nos autos principais da RJ ou no incidente da respectiva impugnação. Deferida a liminar, o administrador judicial (AJ) colherá os votos das duas formas distintas. E algumas vezes em quaisquer cenários o resultado da deliberação ficará inalterado. Porém, em outras oportunidades, a depender da mudança de composição de forças entre os credores votantes, os resultados serão distintos em cada cenário. Deferida a liminar pelo juiz, caso não haja tempo hábil para a intimação formal do AJ, o próprio credor interessado poderá levar a decisão para a AGC e nela intimar o administrador7. O que se verifica, na prática, é o próprio administrador judicial, na instalação da AGC, comunicar aos credores presentes acerca da decisão proferida. Vale exemplificar. Um credor é listado pela recuperanda e pelo AJ como titular de crédito quirografário (classe III) no valor de R$10 milhões, mas pleiteia o reconhecimento da existência de garantia real e, assim, a retificação do quadro geral, de forma a ser listado na classe II, pelo valor de R$20 milhões. A impugnação pende de julgamento, mas a AGC já foi designada. Assim, vale ao credor formular esse pedido ao juiz que - presentes os requisitos da situação de urgência (a rigor sempre presente) e da robustez das alegações da impugnação (esse requisito presente ou não, a depender do caso concreto), o deferirá. Nesse caso, se deferido o pedido liminar, seu voto será apurado de duas maneiras: de acordo com a lista do AJ e de acordo com o pleiteado na impugnação de crédito. O credor titular de crédito não listado pelo administrador judicial, de igual forma, pode pleitear nos autos da recuperação judicial o direito de voto em assembleia, na pendência de julgamento de habilitação de crédito. Quando do julgamento das impugnações ou habilitações de crédito pode-se verificar mudanças substanciais do quadro de credores, decorrente da retificação de valor e classe dos créditos ou da inclusão de créditos. Mas a decisão judicial posterior, como já dito no início deste tópico, não provoca a invalidação das deliberações da AGC. Assim, a apresentação de pedido liminar incidental é medida salutar e recomendável. Reconhecido o perigo de dano ao impugnante (em razão do menor poder de voto se computado com base em valor inferior do crédito e/ou em classe diversa) ou ao habilitante (em razão do não exercício do direito de voto), bem como a probabilidade do direito de crédito (comprovada por meio da instrução documental do incidente), é deferido o pedido liminar incidental, de forma a estabelecer ao administrador judicial que realize a apuração dos votos em ambos os cenários, ou seja, pela relação do art. 7º, §2º da LRF (quadro de credores apresentado pelo administrador judicial) e pelo valor e classificação pretendidos na impugnação ou habilitação de crédito. Na prática é comum, às vésperas da AGC, que seja proferida decisão possibilitando ou não que o credor tenha seu voto apurado em lista apartada. Se não deferido o pedido liminar incidental, em regra tem o credor pouco tempo para a interposição de recurso de agravo de instrumento com pedido de concessão de antecipação de tutela recursal. Verifica-se, assim, uma verdadeira corrida ao Judiciário (ao 1º grau e ao respectivo Tribunal), para pleitear a urgente apreciação da matéria. É possível que a decisão acerca dos cenários distintos seja proferida momentos antes da instalação da assembleia e anunciada aos credores presentes, pelo administrador judicial, causando surpresa na AGC e mudança repentina do cenário acerca do qual se imaginava para a votação. Esse tipo de situação é comum na rotina das AGCs8. Caso a apuração do voto no segundo cenário provoque mudança do resultado da deliberação do plano, essa situação é levada pelo AJ à apreciação judicial. Ou seja, ambos os cenários de votação são submetidos ao juízo recuperacional. O juízo, nessa situação, decide qual dos cenários deve prevalecer. Para tanto, parece razoável o julgamento anterior da impugnação de crédito, se reunir condições para tanto. Se o incidente ainda não estiver em fase que possibilite o pronto julgamento, a situação deverá ser decidida pelo juízo, avaliando as peculiaridades do caso concreto. 3) DA DELIBERAÇÃO SOBRE A CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL Também na votação em AGC é possível que se delibere a respeito da chamada consolidações substancial. Apesar da ausência de previsão legal, hoje se admite que os credores podem deliberar, em AGC, acerca da consolidação substancial, aprovando ou rejeitando a unificação dos ativos do grupo econômico para pagamento de todos os credores, indistintamente, de forma a desconsiderar a individualidade e autonomia patrimonial de cada empresa do grupo. Trata-se, em caso de aprovação em AGC, de consolidação substancial voluntária. A doutrina também reconhece a consolidação substancial obrigatória, quando reconhecida pelo juízo, caso entenda presentes determinados requisitos, como no caso de confusão patrimonial. Na hipótese de consolidação substancial, é apresentado plano único e realizada uma única votação (quórum único, baseado em lista de credores consolidada). Em recente assembleia realizada nos autos da recuperação judicial da SPMar9, foi realizada a votação acerca da consolidação substancial de parte do grupo econômico e a separação do plano de uma empresa - e isso foi aprovado pela unanimidade dos credores. Ou seja, o conjunto dos credores decidiu que, dentro de um grupo econômico, uma empresa teria um plano separado, com credores e votação separada, ao passo que as demais empresas teriam um plano único, com votação unificada (consolidação substancial). Tal cisão foi implementada em benefício da coletividade dos credores, tendo sido possibilitada graças a negociação das recuperandas com os credores, inclusive os extraconcursais. Na hipótese de consolidação processual, que se refere ao litisconsórcio ativo, ou seja, o ajuizamento de pedido de recuperação judicial de forma conjunta por várias empresas, são apresentados diversos planos, bem como realizadas votações separadas, baseadas nas diversas listas de credores, podendo ser realizadas diversas AGC ou uma única (porém com votações separadas). Acerca dessa situação, vale mencionar o precedente da recuperação judicial do grupo PDG10. As recuperandas apresentaram, num primeiro momento, planos de recuperação judicial separados para cada SPE com patrimônio de afetação, na tentativa de compatibilizar o regime de afetação com a processo de recuperação judicial. Apresentaram, também, um plano de recuperação judicial unificado para o restante do grupo (holding e SPEs sem patrimônio de afetação), ou seja, um misto de consolidação processual e consolidação substancial. Ao final das negociações com os credores, foi apresentado um plano unificado para as sociedades do grupo econômico (em consolidação substancial), reconhecendo-se que o patrimônio de afetação não se sujeita à recuperação judicial. O plano apresentado nesses moldes foi aprovado pelos credores concursais, em AGC. CONCLUSÃO Verifica-se, assim, algumas das inúmeras situações passíveis de serem enfrentadas por credores e recuperandas às vésperas e na própria assembleia, ato de extrema relevância para o processo recuperacional. É preciso estar atento para que se saiba (i) o que será deliberado (PRJ, eventual suspensão e inclusive consolidação substancial, (ii) quais são os quóruns necessários para aprovação das deliberações (conforme as deliberações a serem tomada) e (iii) quem são os votantes. Além disso, é preciso saber que o cenário que está no edital da AGC pode vir a ser alterado por força de liminares, proferidas pelo juiz da causa ou pelo respectivo TJ. E isso tudo no âmbito de um ato que demanda muito de todos: - para as recuperandas (que despendem com locação de espaço e contratação de equipe de apoio para a realização do ato) - para os credores (que precisam se deslocar pelo país, de dimensões continentais, ou até mesmo de outros países, no caso de credores estrangeiros) - para o administrador judicial (que disponibiliza sua equipe em diversas ocasiões - ao menos em duas, se não instalada a assembleia em primeira convocação). Assim, as formalidades da AGC podem e devem ser repensadas para, por exemplo, se colher eletronicamente os votos dos credores, de forma a conferir maior praticidade e economicidade ao ato, evitando-se deslocamentos e custos desnecessários para sua realização. __________ Texto em coautoria: Andressa Borba Pires é graduada pela USP. Advogada da Caixa Econômica Federal, com atuação na área de recuperação judicial e falência. __________ 1 O que acontece na assembleia geral de credores realizada na recuperação judicial? 2 São credores extraconcursais: - proprietário fiduciário (titular de crédito garantido por garantia fiduciária), - arrendador mercantil (leasing), - proprietário ou promitente vendedor de imóvel com cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, - proprietário com reserva de domínio e - titular de crédito derivado de adiantamento a contrato de câmbio para exportação (ACCs) - créditos tributários (conforme CTN, artigo 187 e LRJ, artigo 6º, §7º; assim, mesmo com a RJ as execuções fiscais prosseguem normalmente) - créditos pós-concursais (posteriores ao pedido de recuperação judicial) 3 Para uma visão geral acerca do procedimento de uma recuperação judicial e suas diversas fases e listas, vide coluna anterior. 4 Processo 10371333120158260100, 2ª Vara Falência e RJ de São Paulo. 5 Como caso concreto, a deliberação, aprovada por maioria, acerca da suspensão da AGC da RJ do grupo Sete Brasil (processo 0142307-13.2016.8.19.0001, em trâmite na 3ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro. 6 Podemos citar a deliberação acerca do PRJ do Grupo Renuka do Brasil em AGC realizada em 29/08/2018, referente ao processo 10996714820158260100, em trâmite na 1ª Vara de Falência e RJ de São Paulo. No caso, o plano foi homologado e a recuperação judicial concedida nos seguintes termos: "Segundo consta da ata da AGC, houve a aprovação de mais da metade dos créditos presentes no ato, a rejeição do plano em somente uma das quatro classes votantes, qual seja, a classe II, na qual foi obtida uma aceitação ao plano superior a 1/3 dos créditos e credores votantes. Logo, perfeitamente possível a concessão da recuperação judicial pretendida, com fulcro no art. 58, § 1º, da Lei 11.101/2005, até mesmo porque não há qualquer previsão no plano de tratamento diferenciado para os credores que o rejeitaram". 7 Para evitar quaisquer dúvidas nesse sentido, vale requerer ao magistrado que essa informação conste expressamente da decisão que concede a liminar. 8 Podemos citar como exemplo, no âmbito do TJSP, de concessão de antecipação de tutela recursal para fins de votação em AGC o agravo de instrumento 20824172020168260000, posteriormente ratificado no acórdão que deu provimento ao recurso do credor: "Vistos. Trata-se de agravo de instrumento voltado contra decisão que indeferiu a participação dos agravantes em assembleia-geral de credores, pelo valor dos créditos por eles apontado em incidente processado na forma da lei e que ainda não foi solucionado. Para evitar prejuízo, em antecipação de tutela, defiro, em parte, a pretensão recursal, autorizando a participação dos agravantes no conclave, pelos valores pretendidos, mas que deverão ser computados em separado pelo administrador judicial. Comunique-se. Processe-se ouvindo-se, simultaneamente, a recuperanda e o administrador judicial. Oportunamente, ao Ministério Público. Int.". 9 Processo 10808719820178260100, que trata da RJ da empresa SPMar. 10 Processo 10164223420178260100, que tramita na 1ª VFRJ de São Paulo.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa Um dos maiores obstáculos à recuperação judicial de empresas, no Brasil, é a chamada "trava bancária" que permite ao credor financeiro, em razão da natureza fiduciária de sua garantia, bloquear o acesso da devedora aos depósitos bancários realizados por seus clientes em razão dos negócios desenvolvidos pela própria empresa. É preciso, inicialmente, entender o problema. Pois bem, no modelo brasileiro de recuperação judicial, o legislador optou por excluir os credores titulares de garantias fiduciárias dos efeitos da recuperação judicial. Nesse sentido, conforme dispõe o art. 49, §3º da lei 11.101/05, "tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva (...)". As alienações fiduciárias são aquelas em que a garantia fiduciária é representada por bem imóvel ou móvel infungível. As cessões fiduciárias, por sua vez, são aquelas em que a garantia é composta por títulos de crédito ou direitos, presentes ou futuros. Tratando-se, portanto, de cessão fiduciária de recebíveis futuros, a devedora deverá abrir uma conta bancária na instituição financiadora, onde deverão ser depositados esses recebíveis, constituindo-se a garantia do financiamento. Caso a empresa descumpra sua obrigação de pagar as parcelas do financiamento, a instituição financeira bloqueia seu acesso à referida conta bancária e passa a retirar os valores lá depositados para quitação do financiamento. Essa é a conhecida trava bancária. Atento à sinalização legislativa, o mercado financeiro se adaptou ao benefício, de modo que quase a totalidade dos financiamentos empresariais oferecidos por instituições financeiras são, atualmente, garantidos por alienação ou cessão fiduciária. Assim o fazendo, a legislação brasileira excluiu dos efeitos da recuperação judicial um dos principais credores de uma empresa em crise, considerando que é função dos bancos, financiar a atividade empresarial. Uma empresa, ao necessitar de investimentos para o desenvolvimento de sua atividade, normalmente busca os bancos para obtenção de financiamentos que serão, naturalmente, garantidos fiduciariamente. Ocorre que, havendo a necessidade de utilização da ferramenta da recuperação judicial para superação de eventual crise, a empresa não terá a possibilidade de renegociar as dívidas bancárias, que certamente representarão parcela importante de seu endividamento total. Daí a grande dificuldade que as empresas enfrentam para superar suas crises com utilização da recuperação judicial: alguns dos seus principais credores não se sentam à mesa para negociar, restando inviabilizada a reestruturação global de suas dívidas. Esse cenário revela, na verdade, um problema estrutural do sistema brasileiro de recuperação judicial. O modelo brasileiro de recuperação judicial inspirou-se no modelo moderno criado nos Estados Unidos da América, no final do século passado. O modelo norte-americano propõe que a recuperação judicial deve ser realizada através da aplicação de uma solução de mercado para a crise da empresa, o que somente pode ser obtido através da negociação entre credores e devedora. Entretanto, para que exista de fato uma negociação efetiva entre credores e devedora, é preciso criar um ambiente que neutralize a ação dos chamados credores hold outs (credores resistentes à negociação e que pretendem prosseguir com a realização individual de seus créditos, sem consideração à existência dos demais credores). O professor Thomas H. Jackson1, ao escrever sobre o tema em seu livro The logic and limits of Bankruptcy Law, explica as dificuldades que enfrente uma empresa em crise, mesmo sendo viável, para conseguir criar um ambiente de negociação global capaz de conduzir à sua reestruturação efetiva. Thomas H. Jackson traz o exemplo do dilema do prisioneiro, da teoria dos jogos, para explicar o problema a ser neutralizado pelo sistema de recuperação judicial de empresas. Imagine uma empresa cujo valor de liquidação seja de 50 mil dólares, mas que esteja devendo a cada um de seus quatro credores o valor de 50 mil dólares. A empresa tem 50, mas deve 200 e, portanto, encontra-se insolvente. Nesse raciocínio, havendo a liquidação da empresa, cada credor receberia potencialmente 12.5 mil dólares. Entretanto, se mantida em funcionamento, a empresa poderia gerar um valor de going concern capaz de garantir o pagamento de 25 mil dólares para cada credor. Racionalmente, seria vantagem para os credores aceitar uma proposta de renegociação no montante de 25 mil dólares, ao invés de assistir a liquidação da atividade, que geraria apenas 12.5 mil dólares para cada credor. Entretanto, a teoria dos jogos demonstra que os credores não agem dessa forma racional e com espírito coletivo. A tendência é que o credor se comporte de forma egoísta e tente individualmente a realização do seu crédito na máxima extensão. Nesse sentido, imagine que os credores 1, 2 e 3 concordem com a proposta de negociação. Se o credor 4 não concorda com a proposta de 12.5 e dispara uma execução individual contra a devedora para tentar penhorar (e garantir prioridade na execução do ativo) os 50 mil de ativos da devedora (pagando-se integralmente), tal comportamento influenciará os demais credores, que diante disso, também dispararão suas execuções individuais contra a devedora. O resultado será o abandono da negociação coletiva e a liquidação da atividade e, ao final, todos receberão menos na liquidação do que teriam recebido na hipótese de aceitação do plano de recuperação apresentado pela devedora. Diante disso, os americanos criaram um modelo de recuperação pensado para neutralizar esse credor resistente (hold out), que é fundado em dois pilares fundamentais: a suspensão das ações individuais contra a devedora durante o período de negociação (stay period) e a regra de que a decisão da maioria dos credores vincula a todos os credores, inclusive os credores dissidentes. Segundo o modelo norte-americano, não deve haver hold outs, como pressuposto de criação de um ambiente capaz de conduzir à solução de mercado, em benefício da preservação da empresa e dos interesses dos próprios credores. Entretanto, embora o modelo brasileiro tenha se inspirado no modelo norte-americano, a lei 11.101/05, como já visto, preservou como hold out um dos principais credores de uma empresa em crise, qual seja, os bancos (titulares de garantias fiduciárias)2. Percebe-se, portanto, que a exclusão dos credores garantidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial é providência que viola a própria lógica/essência do modelo recuperacional adotado pelo Brasil. Como será possível garantir uma negociação coletiva, se o principal credor da empresa em crise poderá prosseguir com suas execuções individuais e o resultado da negociação com os demais credores não vai atingir os seus créditos? E mais. Se a garantia fiduciária consistir em ativo essencial ao desenvolvimento da atividade da devedora, sem o qual restará prejudicada a continuidade da empresa? Conforme já explicado por Thomas H. Jackson, esse credor bancário (hold out) será responsável pela liquidação da atividade e todos os credores acabarão recebendo menos na liquidação do que receberiam na hipótese de recuperação. E mais grave ainda. O desaparecimento da atividade empresarial viável, fará desaparecer os empregos, os tributos, as riquezas, os produtos e serviços que eram importantes para o desenvolvimento da sociedade e da economia. Deve-se lembrar que segundo o art. 47 da lei 11.101/05, a preservação da função social da empresa é o vetor principal de interpretação e de aplicação de seus institutos. Como resolver esse dilema? A resposta passa necessariamente pela correta interpretação do art. 49, §3º da lei 11.101/05 e, principalmente, pela adequada aplicação da exceção trazida nesse mesmo dispositivo legal, mas em sua parte final. Senão, vejamos. A interpretação e a aplicação dos dispositivos legais, no modelo brasileiro de recuperação de empresas, deve obedecer ao previsto na teoria da superação do dualismo pendular. Segundo a teoria da superação do dualismo pendular3, a melhor interpretação da lei não será aquela que prestigiar o interesse de credores ou da devedora, mas sim aquela que viabilizar de maneira mais intensa o atingimento dos objetivos maiores do sistema, revelados pela preservação da função social da empresa. Vale destacar que a aplicação dessa teoria já foi, inclusive, reconhecia pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do agravo de instrumento no Resp 1308957/SP. Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, "com o advento da lei 11.101/05, o ordenamento jurídico pátrio supera o dualismo pendular, havendo um consenso na doutrina que a interpretação das regras da recuperação judicial deve prestigiar a preservação dos benefícios sociais e econômicos que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, e não os interesses de credores ou devedores, sendo que, diante das várias interpretações possíveis, deve-se escolher aquelas que busca conferir maior ênfase à finalidade do instituto da recuperação judicial". Da mesma forma, deve-se ter em vista a aplicação da teoria da divisão equilibrada de ônus4, segundo a qual credores e devedores devem assumir ônus no processo recuperacional de modo que prevaleça o interesse social ao interesse particular de credores ou devedores. Cabe ao juiz fazer o controle da posição processual das partes a fim de garantir que o processo atinja a sua finalidade social, prevenindo-se condutas tendentes a transformar interesses parciais dos titulares de direitos envolvidos na recuperação judicial em verdadeiras barreiras intransponíveis ao atingimento do objetivo social do sistema. Assim, art. 49, §3º da lei 11.101/05 deve ser interpretado de forma compatível com a realização das finalidades do sistema recuperacional, em sintonia com a preservação da função social da empresa. Muito embora a lei exclua os créditos garantidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial, não se pode permitir que o credor bancário execute sua garantia em prejuízo da coletividade de credores, colocando em risco o atingimento de uma solução de mercado que permita o prosseguimento da atividade empresarial viável e geradora de benefícios econômicos e sociais. O direito brasileiro prestigia de maneira intensa a função social dos institutos do direito privado, sendo inegáveis as limitações ao exercício da propriedade privada, em função da sua função social. Da mesma forma, a função social dos contratos limita a autonomia privada da vontade. No mesmo sentido atua a função social da empresa ao exigir que os credores, num ambiente de recuperação judicial, exerçam seus direitos em consonância com a preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade viável. Vale destacar que, segundo o Código Civil (conhecido como Código Reale), somente se considera regular o exercício de um direito, desde que observada a sua função social. Conforme dispõe o art. 187 do Código Civil de 2002, também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O direito civil brasileiro adotou como princípios a eticidade e a sociabilidade, de modo a refletir uma nova perspectiva de exigências de condutas legítimas pelo cidadão, em abandono ao ideal individualista que regia o Código Civil de 1916. Nesse diapasão, é correto afirmar que a legislação de regência concede aos credores garantidos fiduciariamente o direito de não se sujeitar ao processo de recuperação judicial. Entretanto, como já dito, o exercício desse direito deve observar a função social da empresa, uma vez que tal direito está sendo analisado no contexto do processo de recuperação judicial. O segredo para compatibilizar esse dispositivo com as finalidades do sistema recuperacional está na interpretação adequada da ressalva constante na parte final do art. 49, §3º da lei 11.101/05, segundo a qual não se permite ao credor titular da garantia fiduciária, durante o prazo de suspensão de 180 dias (stay period), a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Alberto Caminã Moreira, em artigo publicado nessa mesma coluna5, já abordou com muita precisão as discussões que gravitam em torno da interpretação aplicada pelos Tribunais a esse dispositivo legal. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, por exemplo, que não é cabível a aplicação da ressalva nos casos em que a garantia fiduciária recai sobre dinheiro ou recebíveis futuros, pois o contrato de cessão fiduciária de crédito transfere ao credor a propriedade dos créditos até liquidação da dívida. Segundo decidido pela Min. Maria Isabel Gallotti, "nem haveria mesmo que se dizer que tais bens incorpóreos não poderiam ser retirados do estabelecimento do devedor porquanto esses títulos, de regra, estão na posse do credor para que ele possa receber diretamente do devedor os créditos cedidos fiduciariamente" (Recurso Especial 1.263.500-ES, j. em 5/2/2013). Recentemente, ao analisar o conceito de bem de capital, o Ministro Marco Aurélio Bellizze conferiu interpretação bastante restritiva e destacou que, para ser caracterizado como bem de capital, o bem precisa ser corpóreo (móvel ou imóvel), deve ser utilizado no processo produtivo e deve se encontrar na posse da empresa. Disse, ainda, que a exigência legal de restituição do bem ao credor fiduciário, ao final do stay period, encontrar-se-ia absolutamente frustrada, caso se pudesse conceber o crédito, cedido fiduciariamente, como sendo bem de capital. Explicou que a utilização do crédito garantido fiduciariamente, independentemente da finalidade, "além de desvirtuar a própria finalidade dos 'bens de capital', fulmina por completo a própria garantia fiduciária, chancelando, em última análise, a burla ao comando legal que, de modo expresso, exclui o credor, titular da propriedade fiduciária, dos efeitos da recuperação judicial". Novamente remeto o leitor ao excelente artigo de Alberto Caminã publicado nessa mesma coluna6 para observação da discussão acerca das interpretações sobre o que seria um bem de capital essencial que justifique a aplicação da exceção legal. Embora os argumentos acima expostos sejam judiciosos e bem fundamentados, tendem a interpretar o dispositivo legal de modo a prestigiar o interesse do credor e em prejuízo do objetivo do próprio sistema, na medida em que a retirada da empresa de ativos essenciais ao desenvolvimento de sua atividade impossibilitará a preservação de sua atividade e de todos os benefícios econômicos e sociais dela decorrentes. Conforme já afirmado, deve-se aplicar ao sistema recuperacional a interpretação conforme as teorias da superação do dualismo pendular e da divisão equilibrada de ônus. Assim, relembre-se, a melhor interpretação que se deve dar aos institutos da recuperação judicial é aquela que permita o aplicador da lei atingir de maneira mais eficaz os resultados de interesse social tutelados pelo sistema recuperacional e não os interesses parciais de credores ou devedores. A viabilização da superação da crise atende à tutela de interesses públicos e sociais consistentes na preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável, quais sejam, a geração de empregos, o recolhimento de tributos, a circulação de bens, produtos, serviços e a geração de riquezas. Os interesses maiores, garantidos pelo sucesso da recuperação da empresa, devem se sobrepor aos interesses particulares e parciais, de credores e devedores, dentro do processo de recuperação judicial. O interesse parcial de credor ou devedor nunca poderá se transformar em barreira intransponível à realização do interesse maior, de natureza pública/social, decorrente da preservação dos benefícios oriundos da atividade empresarial saudável. Não me parece que a interpretação restritiva, que permite que o credor realize sua garantia sobre bem ou ativo sem o qual a empresa reste impossibilidade de prosseguir (embora viável) seja a mais adequada às finalidades do sistema. Permitir que o credor financeiro retire os recebíveis essenciais da recuperanda, mesmo durante o prazo de negociação do plano (stay period), viola a lógica do sistema e transforma o direito do credor numa barreira intransponível à realização do interesse social, em detrimento dos próprios objetivos do sistema recuperacional. E mais. Segundo a teoria da divisão equilibrada de ônus, conforme já visto, todos os credores e devedores devem assumir ônus no processo de recuperação judicial, de modo que suas condutas viabilizem o atingimento do resultado maior do processo recuperacional. Mesmo o credor não sujeito à recuperação judicial, por ser titular da posição de credor fiduciário, deverá suportar ônus de não retirar do estabelecimento comercial um bem de capital essencial ao desenvolvimento da empresa, com o fim de se garantir o sucesso da recuperação judicial da devedora. É essa a essência desse dispositivo legal: impor limitação ao credor não sujeito em função da preservação da função social da empresa. Se assim é, não se pode admitir que outras interpretações, mais restritivas, liberem os credores para realizar suas garantias em detrimento da função social da empresa. Tendo em vista tudo o que já foi dito, resulta cristalino que a expressão legal "retirada" deve ser lida como "realizada" ou "fruída em detrimento da devedora". Não se deve permitir que a credora titular da garantia fiduciária "execute", "frua", "realize" o bem objeto da garantia em detrimento do funcionamento da devedora. Da mesma forma, a expressão "bem de capital essencial à atividade da devedora" deve ser interpretada como sendo qualquer bem, objeto da garantia fiduciária, cuja retirada, fruição imediata, excussão ou realização de qualquer forma coloque em risco a manutenção das atividades empresariais. E não é só. O período de duração em que o credor fiduciário não pode realizar sua garantia deve coincidir com o prazo de proteção conferido à devedora para negociação do plano. Conforme já definido pelo STJ, o prazo de 180 dias poderá ser prorrogado judicialmente, desde que o atraso na realização da Assembleia Geral de Credores não seja atribuído à conduta da devedora. Portanto, conclui-se que o credor fiduciário, muito embora conserve seus direitos de propriedade sobre a coisa, não poderá realizar, executar, fruir, retirar ou de qualquer forma excutir o bem objeto da garantia, durante o período de proteção da devedora (stay period) - 180 dias ou mais, desde que haja prorrogação judicial - na medida em que tal pretensão implique em risco de encerramento das atividades empresariais da devedora. Aliás, a interpretação literal aplicada pelo STJ à ressalva legal certamente levaria à criação de situações violadoras do princípio da isonomia entre os credores titulares da mesma posição jurídica. Isso porque, o credor titular de uma alienação fiduciária sobre a máquina industrial não poderia vender a máquina para realização de seu crédito, ao passo que o credor titular da cessão fiduciária de recebíveis, poderia fazê-lo sem qualquer restrição. Ora, à luz do art. 49, §3º da lei 11.101/05, os credores titulares da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis estão sujeitos ao mesmo regime jurídico, não sendo razoável que o interprete os coloque em situações diametralmente opostas em relação ao exercício do direito de propriedade sobre a coisa objeto da garantia. E nem se diga que a liberação da trava bancária na cessão fiduciária equivale a esvaziar a garantia, o que não aconteceria no caso da máquina industrial, que lá permaneceria existindo. A garantia não é o dinheiro e sim os recebíveis, e esses continuarão existindo na medida em que as atividades da empresa sejam preservadas. Vale destacar que o STJ já definiu, com toda a razão, que o juízo da recuperação judicial deve fazer o controle de essencialidade de bens a fim de autorizar ou não a realização de penhoras ou de qualquer ato de excussão judicial proveniente de outros juízos e relativos aos créditos extraconcursais/não sujeitos, inclusive créditos fiscais ou mesmo com origem posterior ao ajuizamento da recuperação judicial. Portanto, se o STJ entende que mesmo em relação aos credores totalmente extraconcursais/não sujeitos, não se pode admitir que a realização do crédito represente barreira intransponível ao sucesso da recuperação judicial, por qual razão se daria interpretação mais favorável aos credores com cessão fiduciária títulos ou recebíveis (tendo em conta que credores fiduciários são relativamente impactados pela recuperação judicial como explicado acima)? Tudo isso fundamenta a conclusão de que a melhor interpretação que se deve dar ao art. 49, §3º da lei 11.101/05 é aquela que equilibra o exercício do direito do credor fiduciário com a preservação da empresa e a tutela de sua função social. Qualquer ativo que seja essencial à restruturação da empresa viável - seja bem de capital ou não - deverá ser preservado durante o período em que a devedora negocia um plano de superação da crise com seus credores. Poderá o magistrado, no exercício da divisão equilibrada de ônus, estipular uma indenização adicional em razão da retenção da garantia pelo devedor, conforme bem observado por Alberto Camiña, mas nunca será adequado permitir ao credor fruir da garantia em detrimento dos objetivos maiores do processo recuperacional. __________ 1 Thomas H. Jackson. The logic and limits of bankruptcy law. BeardBooks, chapter 1. 2 Além do fisco, cuja discussão fica reservada para outra oportunidade, mas que tem gerado problemas equivalentes. 3 COSTA, Daniel Carnio. Reflexões sobre processos de insolvência: divisão equilibrada de ônus, superação do dualismo pendular e gestão democrática de processos. In: Bernardo Bicalho de Alvarenga Mendes (Org). Aspectos Polêmicos e Atuais da Lei de Recuperação de Empresas. 1 ed. Belo Horizonte. D'Plácido, 2016. V. 01, pág. 71/101 4 Vide nota 1, supra. 5 Insolvência em foco. 6 Nota 5, supra.
terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Bem de capital na recuperação judicial

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A lei 11.101/05, que dispõe sobre a recuperação judicial, organizou esse instituto de maneira cuidadosa e organizada e tratou de disciplinar a disputa entre os credores e o devedor em dificuldade econômico-financeira. Os credores, na corrida contra o tempo, pretendem, se livres forem, receber, cada um, em primeiro lugar, pois sabem que não sobrarão meios de pagamento para todos. O legislador conhece essa disposição dos credores. Por isso, a lei estabeleceu mecanismos de contenção desses credores, levando-os a certos comportamentos; a lei, na verdade, retira de todos os credores o poder de excutir o patrimônio do devedor, conduzindo-os à negociação destinada à reestruturação da dívida. A lei desarma, ainda que momentaneamente, os credores na luta contra o devedor, pois as execuções são todas suspensas. A suspensão das execuções e das ações decorre da lei e não de ato judicial. Trata-se de efeito ope legis do despacho de processamento. Em nosso sistema, nem todos os credores estão submetidos ao processo de recuperação judicial. A fazenda pública, no que toca aos créditos tributários, e, basicamente, os credores que se enquadrarem nos §§ 3º e 4º do art. 49, estão excluídos dos efeitos do processo de recuperação, no sentido de que o crédito por eles titularizados não sofre a suspensão das execuções; nem ações novas estão impedidas de serem ajuizadas. Todavia, mesmo os credores excluídos do processo de recuperação são convocados a oferecer sua parcela de contribuição para a reorganização do devedor. Muito embora as execuções desses credores extraconcursais não sejam suspensas, nem seja obstada a distribuição de novas execuções, por determinado período de tempo alguns bens não podem ser expropriados ou, de alguma forma, retirados da posse do devedor. Essa previsão está contida na parte final do § 3º do artigo 49 da lei 11.101/05, alvo de considerável discussão jurisprudencial. Segundo tal dispositivo, o credor que for proprietário de bens em garantia fiduciária, credor com bem objeto de arrendamento mercantil, ou o credor promitente vendedor de imóvel, não se submete à recuperação judicial, "não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial". A discussão que se estabeleceu na prática envolve a abrangência da expressão "bens de capital", e é esse o ponto examinado nesta coluna. A lei, além de se referir a bem de capital, ainda o revestiu da nota de essencialidade, que cumpre observar também. Bem classificado como bem de capital está temporariamente fora do alcance do processo de execução ou de uma ação de busca e apreensão. Os bens de capital, na hipótese, são de propriedade de terceiros e estão no uso do devedor em recuperação judicial. Não obstante a propriedade seja alheia, restringe-se a posse do bem. No prazo de suspensão das ações e execuções, não permite a lei a venda ou a retirada do bem do estabelecimento do devedor. Com isso, embora não seja dono, o devedor em recuperação continua usando o bem alheio. Há uma clara compressão do direito de propriedade, que não pode ser exercido em sua integralidade, com a agravante de que a lei não prevê nenhum ressarcimento pelo não gozo da coisa pelo proprietário. Por certo a função social da propriedade seria invocada para legitimar, sob o aspecto constitucional, tal uso da coisa pelo não-dono, especialmente no contexto de recuperação judicial, em que todos os credores veem a compressão dos respectivos direitos, sendo certo que o direito de crédito também é elemento do direito de propriedade. É certo, também, que o prazo pelo qual o devedor pode usar a propriedade alheia é de 180 dias, que é o prazo do stay. Nesse prazo instituído por lei o proprietário é obrigado a suportar o uso de seu bem por parte de um terceiro, sem nenhuma previsão legal, como já dito, de ressarcimento por não poder gozar da coisa, e, para piorar, a jurisprudência tem admitido o alargamento desse prazo de suspensão(desde que por razões não atribuíveis ao devedor), o que comprime ainda mais o direito de propriedade. O dono, então, passa a pacientar a impossibilidade de gozo de um direito constitucionalmente assegurado, sofrendo suspensão do seu direito de propriedade por um período superior ao que a lei prevê. Esse uso vantajoso de bem alheio deve ser indenizado? Afinal de contas, tratando-se de bem de capital, está ele sendo usado para a produção de outros bens e, então, o devedor está obtendo clara vantagem patrimonial com base em bens de propriedade de terceiros. Há claro enriquecimento do devedor em detrimento do proprietário. Desfalcar o proprietário de capital de auferir renda que o bem pode lhe proporcionar ofende o direito de propriedade. É plausível, portanto, a indenização ao proprietário; o uso do bem alheio após o vencimento do prazo instituído em lei, por certo representa aguda obtenção de vantagem à margem da previsão que o legislador entendeu como razoável, como legítimo sofrimento do proprietário. A indenização não nasce após o vencimento do prazo do stay. Ela apenas torna-se mais ostensiva e gravosa. Para além da questão da indenização, a noção de bem de capital precisa ser colocada em evidência. Trata-se de expressão própria da seara econômica. No estudo dos fatores de produção, ou agentes de produção, três elementos são decisivos, o trabalho, a terra e o capital. Já os economistas clássicos discorreram sobre esses fatores. A terra e o trabalho são os fatores originários, e o capital é derivado da terra e do trabalho. As noções de trabalho e terra são até intuitivas, e a noção de capital é mais delicada. O § 3º do art. 49 utiliza-se da noção de capital no sentido de fatores da produção, e os economistas divergem sobre o alcance da expressão. Para um autor contemporâneo, "os economistas usam o termo capital para se referir ao estoque de equipamentos e estruturas usados para a produção. Ou seja, o capital da economia representa o estoque de bens produzidos no passado que está sendo usado no presente para se produzirem novos bens e serviços. No caso da nossa empresa produtora de maçãs, o estoque de capital inclui as escadas usadas para subir nas macieiras, os caminhões usados para transportar as maçãs, os galpões usados para armazenar as maçãs e até as próprias macieiras"1. Nessa mesma linha outro professor diz que "O termo 'capital' usualmente tem diferentes significados, inclusive na linguagem comum é entendido como 'certa soma em dinheiro'. Todavia, o conceito a ser apreendido aqui é: 'capital é o conjunto (estoque) de bens econômicos heterogêneos, tais como máquinas, instrumentos, terras, matérias-primas etc, capaz de reproduzir bens e serviços'"2. No Novíssimo Dicionário de Economia, de Paulo Sandroni, bens de capital recebeu a seguinte definição: "São bens que servem para a produção de outros bens, especialmente os bens de consumo, tais como máquinas, equipamentos, material de transporte e instalações de uma indústria. Alguns autores usam a expressão bens de capital como sinônimo de bens de produção; outros preferem usar esta última expressão para designar algo mais genérico, que inclui ainda os bens intermediários (matéria-prima depois de algumas transformações, como, por exemplo, o aço) e as matérias-primas". Para alguns autores, portanto, há um gênero, que são os bens de produção, dos quais os bens de capital são espécie, ao lado das matérias-primas, que podem ser compreendidas como insumos. A lei incorpora, sem sombra de dúvida, a noção econômica de bens de capital, e, de plano, já surge a discussão sobre a interpretação restritiva ou ampliativa da expressão. Dir-se-ia, por um lado, que a lei de recuperação está voltada à reestruturação da dívida da companhia, e, então, para alcançar essa finalidade, a interpretação seria sempre teleológica e ampliativa. Outra interpretação possível seria a restritiva. Como se trata de norma excepcional, uma norma que comprime o direito de propriedade, não se poderia lançar mão de uma interpretação ampliativa acerca da parte final do § 3º do art. 49; uma mesma lei pode conter dispositivos que levem a interpretação ampliativa e outros que levem a interpretação restritiva, que, na hipótese, é a aconselhável. A jurisprudência, à falta de uma clara diretriz, ainda não está consolidada. Por exemplo. A Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP decidiu que a soqueira não é bem de capital de uma usina de açúcar e álcool. Após o corte da cana de açúcar, a raiz que sobra, um palmo para cima da terra e um palmo para baixo da terra, recebe o nome de soqueira, que tem valor, pois dele vem a rebrota da cana. A seguirmos o exemplo do pé de maçã, dado por Gregory Mankiw, parece que a soqueira é bem de capital, pois, após o corte da cana de açúcar, ela não segue com o produto. Ela permanece na terra e pode ser usada na safra seguinte; é um instrumento de certa permanência entre os meios de produção da usina. Há um critério utilizado pela doutrina jurídica para a definição de bem de capital, que pode ser bastante útil para a compreensão do problema. Prestigiado autor escreveu que "insumos e bens de capital assemelham-se sob o aspecto de que servem para criar outros bens econômicos e não são fontes de fluxos de serviços de consumo utilizados diretamente como meio para alcançar objetivo, mas diferem sob o aspecto do período de aplicação no processo produtivo: os insumos participam de um único ciclo operacional, porque destruídos ou transformados na produção, e os bens de capital, embora não sejam perpétuos (estão sujeitos a desgaste, a obsolescência), têm prazo de vida útil superior à duração de um ciclo operacional"3 (sem grifo no original). Referido autor funda-se no ciclo operacional para estabelecer a distinção entre bens de capital e insumo (sem entrar aqui na discussão sobre o significado de insumo). Trata-se de um critério prático, de fácil emprego na prática. Sob outra ótica, pode-se falar em bens intermediários e bens finais. A farinha é um bem intermediário, e o pão o bem final. A linha é um bem intermediário, e a blusa é o bem final. O leite é um bem intermediário, e a vitamina produzida pela lanchonete é o bem final. Ocorre que, além da farinha, da linha e do leite, outros bens são utilizados para a realização do produto final. E aqui surge a seguinte diferença: alguns bens seguem com o produto final, e outros permanecem com o produtor. O cilindro, a máquina de costura e o liquidificador permanecem com o produtor. E aqui surge a distinção entre bens intermediários e bens de capital. Os primeiros seguem com o produto final, e os segundos apenas se desgastam4. Não se pretende definir o que é bem de capital. Para a solução dos problemas práticos, é importante considerar que o bem dado em garantia, para ser considerado bem de capital, deve servir a mais de um ciclo operacional, e, ao seu final (do ciclo), ele deve permanecer com o possuidor, e estar apto a ingressar em outro ciclo operacional; o bem de capital não segue com o produto final e deve estar apto a ser devolvido para o proprietário caso o inadimplemento fique patenteado. Com isso, afasta-se da noção de bem de capital o estoque e a matéria-prima. O assunto já foi apreciado pela jurisprudência, e parece que ainda não está definitivamente consolidado. Soja e milho são bens de capital de uma empresa do agronegócio? Tais produtos foram dados em garantia de dívida, que, inadimplida, e estando a devedora em recuperação judicial, foram objeto de arresto. A devedora suscitou conflito de competência no STJ, que discutiu se esses bens eram ou não bem de capital. Para a Ministra Maria Isabel Gallotti, "estoque e, portanto, mercadorias destinadas à venda, não podem ser compreendidas como bem de capital, precisamente porque, uma vez vendidas, ficaria inteiramente sem objeto a garantia fiduciária, dado que os bens alienados, obviamente, não poderia ser entregues, ao final do stay period, ao titular da propriedade resolúvel. Isso implicaria, renovada vênia, venda a non domino, com a chancela judicial...". "Os títulos de crédito dados em alienação fiduciária sequer estão na posse direta do devedor e, muito menos, são bens utilizados como insumo de produção". Dinheiro e commodities não são bens de capital, reconheceu a julgadora. Considera o voto da relatora: "tenho que, por bem de capital, deve-se compreender aqueles imóveis, máquinas e utensílios necessários à produção. Não é, portanto, o objeto de comercialização da pessoa jurídica em recuperação judicial, mas o aparato, seja bem móvel ou imóvel, necessário à manutenção da atividade produtiva, como veículos de transporte, silos de armazenamento, geradores, prensas, colheitadeiras, tratores, para exemplificar alguns que são utilizados na produção dos bens ou serviços". Embora seguido por outros dois, esse voto não prevaleceu. Orientou-se a seção de direito privado do STJ no sentido de que o conflito de competência não é veículo adequado para decidir se determinado bem pode ou não ser considerado bem de capital. O conflito apenas decide sobre competência. Prevaleceu o voto do ministro Luis Felipe Salomão, que, sobre bem de capital, adiantou o seu pensamento: "é factível que mesmo os insumos incorporados aos produtos fabricados ou comercializados ou a matéria-prima objeto de comercialização no agronegócio possam ser passíveis de enquadramento na ressalva legal, inserindo-se no conceito de bem de capital". A prevalecer a orientação emanada do Conflito de Competência 153.473, só por meio de recurso especial o assunto poderá ser examinado pelo STJ; como a questão é eminentemente fática, fica a questão sobre a aplicação da Súmula 7 e a chamada jurisprudência defensiva. Seja como for, pouco tempo após o julgamento desse conflito de competência, o STJ julgou o RESP 1.758.746, que discutiu a caracterização da trava bancária como bem de capital. Ao rejeitar tal possibilidade, a decisão conceituou: "De todo o exposto, para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, "bem de capital", ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period". Essa definição é útil, pois, o bem não deve ser consumível e deve ser apto a ser entregue ao titular da propriedade fiduciária ao final do stay. Essa noção, claramente, afasta a matéria-prima como bem de capital. Afinal, a matéria-prima esgota-se em um ciclo produtivo, e, por isso mesmo, não pode ser entregue ao titular da propriedade fiduciária ao fim do prazo de suspensão da ação. Não se pode dizer que essa decisão, da 3ª Turma do STJ, vai prevalecer, pois ao menos um integrante da 4ª Turma já se pronunciou em sentido contrário. Esse precedente da 3ª turma encarece ainda o seguinte aspecto: é preciso, em primeiro lugar, definir se o bem objeto da controvérsia é ou não bem de capital. O passo seguinte é a verificação de essencialidade. A verificação da qualidade de bem de capital não deve ser feita abstratamente, senão que com os olhos postos na atividade efetivamente desenvolvida pela empresa, sem descurar da conexão com o contrato/estatuto social5 e à luz da concreta utilidade do bem no processo produtivo. Bem que, em tese, pode ser de capital para uma empresa, não o será para outra. Por exemplo, o TJ/SP decidiu que um veículo Kombi não é essencial à atividade usineira. Não significa que para uma empresa de transporte de coisas, ou mesmo de pessoas, não o seja. Reconheceu-se que prensa e empilhadeiras são bens de capital em empresa de estamparia; para outro tipo de atividade esses bens não necessariamente serão de capital. Impressora foi reconhecida como bem de capital de uma gráfica; já para outro tipo de atividade, a impressora poderá não ser bem de capital, por mais essencial que possa ser para o bom andamento dos trabalhos. Equipamento para rastreamento de veículos, em caso de recuperação judicial de uma transportadora, foi considerado bem imprescindível à "proteção do patrimônio essencial das recuperandas", em aplicação analógica do artigo 92 do Código Civil, que trata dos bens principais e acessórios. Estando o bem principal protegido da excussão, também estará o bem acessório. Essa interpretação alargada tem apoio na lei civil. Para finalizar, cabe o registro de que o ônus de provar a essencialidade do bem é do devedor. Não deve ser admitida a presunção de essencialidade de todos os bens que se encontrem no estabelecimento do devedor em recuperação judicial. Para a lei 11.101/05, existem bens essenciais, que o devedor pode reter sob seu poder por determinado período, e os bens não essenciais, de livre constrição e apreensão. A se presumir a essencialidade, tudo estaria protegido, e nada poderia ser retirado, o que afastaria qualquer eficácia do comando legal, e se chegaria a um resultado interpretativo absurdo; a lei jamais teria aplicação. Em conclusão, para a aplicação da ressalva constante da parte final do §3º do artigo 49 da lei 11.101/05, o operador do direito deve, em primeiro lugar, verificar se se trata de bem de capital. Para tanto, deve verificar se o bem tem vida útil superior à de um ciclo operacional e se ele segue ou não com o produto final. Se não se tratar de bem de capital, está prejudicada a análise da essencialidade. Em segundo lugar, e assentada a premissa de que se trata de bem de capital, verifica-se a essencialidade do bem para o funcionamento da empresa. É ônus do devedor demonstrar a essencialidade do bem para a atividade que desempenha. __________ 1 N. Gregory Mankiw, Princípios de microeconomia. Trad, da 3ª ed. norteamericana. São Paulo: Thomson, 2005, p. 404. 2 Juarez Alexandre Baldini Rizzieri, Manual de Economia - Equipe de Professores da USP, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 22. No glossário dessa obra, parece que a noção de bem de capital é mais restrita: "bens utilizados na fabricação de outros bens, mas que não se desgastam totalmente no processo produtivo. É o caso de máquinas, equipamentos e instalações". Sem grifo no original. Por essa noção, a matéria-prima está excluída da noção de bem de capital. 3 José Luiz Bulhões Pedreira, no livro Demonstrações financeiras da companhia, Forense, 1989, p. 189. 4 Exemplos colhidos do livro de Maura Montela, Descomplicando a Economia, 2ª ed. São Paulo: Clube dos Autores, 2016, p. 31-32. 5 Já se decidiu que "AGRAVO DE INSTRUMENTO. Recuperação judicial. Bens vinculados à alienação fiduciária, ao arrendamento ou à reserva de domínio não se submetem aos efeitos da recuperação. Bens de capital essenciais à atividade da agravante. Suspensão do processo pelo prazo de 180 dias (art. 6º, §4º e art. 49, §3º, da lei. 11.101/2005). Essencialidade examinada a partir do objeto social da recuperanda. Manifestação favorável do administrador judicial. Suspensão da execução extrajudicial até o término do stay period do art. 49, §3º, da lei 11.101/05. Recurso provido. (TJ/SP; AI 2252251-21.2016.8.26.0000; Relator (a): Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Ribeirão Preto - 8ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 9/6/2017; Data de Registro: 9/6/2017). 
terça-feira, 20 de novembro de 2018

A (in)eficiência da recuperação judicial

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A lei de recuperação de empresas e falência, lei 11.101/05, consagrou a empresa como importante instrumento de política pública e de desenvolvimento econômico nacional. Separada do conceito de empresário, a empresa, concebida juridicamente em seu perfil funcional como atividade econômica, foi elevada a fim para a tutela dos interesses de todos os por ela afetados. Sua preservação assegura não apenas os interesses dos credores na maior satisfação de seus créditos, mas também dos empregados na manutenção de seus postos de trabalho, dos consumidores com a redução de preços e aumento da concorrência, e da coletividade em que inserida em virtude da manutenção dos contratos e da circulação de riqueza. Diante de crise econômico-financeira que acomete o empresário devedor e que poderá ser apenas temporária e reversível, a Legislação conferiu a recuperação judicial como alternativa ao empresário para superá-la. Para que não se estimulasse o comportamento oportunista do credor em resistir à composição individual para obter todas as vantagens da restruturação da dívida enquanto os ônus fossem suportados por apenas alguns credores, o instituto da recuperação judicial foi criado como uma forma de permitir a negociação coletiva com todos os credores. Essa negociação coletiva somente poderia ser realizada mediante a criação de um ambiente favorável a tanto. Os custos de transação foram reduzidos, com o controle da simetria informacional por meio do administrador judicial; desestimularam-se os comportamentos oportunistas dos credores, com a determinação de suspensão de todas as ações e execuções em face da recuperanda por 180 dias; e organizou-se o processo de negociação com o estabelecimento de uma Assembleia Geral de Credores e quóruns de votação. Entretanto, a recuperação judicial, com a manutenção do empresário devedor na condução de sua atividade, nem sempre será o melhor para a proteção dos interesses públicos a que o instituto foi destinado. Os problemas que causaram a crise econômica do devedor podem não ser transitórios ou superáveis, mas poderão ser decorrentes de uma ineficiência do empresário, de falhas gerenciais ou da inadequação dos produtos ou serviços às necessidades dos consumidores. Nessa situação de inviabilidade da condução da atividade econômica conforme plano de recuperação judicial, a falência poderá ser economicamente mais eficiente à proteção de todos os interesses. A atividade econômica poderá ser preservada por meio de sua transferência a outro empresário que a desenvolva de forma mais eficiente. A liquidação dos ativos na falência permitiria a diverso empresário adquirir o conjunto de ativos para desempenhar a atividade, com a melhor alocação dos diversos fatores de produção. Se inadequada a atividade à demanda do mercado, mesmo a liquidação separada dos ativos permitirá melhor alocação dos recursos escassos, simplesmente por meio do aproveitamento dos bens úteis em finalidade diversa e que melhor os aproveite. A concessão de uma recuperação judicial de um empresário com atividade econômica inviável apenas acarretaria maior perda de valor a todos os envolvidos. A manutenção de uma atividade ineficiente consome os recursos escassos. O não adimplemento dos contratos permite ganho de vantagem competitiva em relação aos demais, com prejuízos à livre concorrência. O não recolhimento de impostos impede a destinação de recursos pelo Estado à mitigação dos problemas sociais e e benefício da coletividade em que a empresa atua. Por fim, a não retirada do agente econômico deficitário ainda implica aumento do risco do crédito, com redistribuição dos referidos custos a todos, mas notadamente aos empresários mais necessitados e com maior possibilidade de inadimplemento, o que reduz a possibilidade de sucesso mesmo das recuperações judiciais de atividades econômicas viáveis e afeta os próprios postos de trabalho que se procurava, num primeiro momento, preservar. A experiência do decreto-lei 7.661/45 e que atribuiu ao Judiciário o poder de preservar a atividade e assegurar a proteção dos interesses de todos os afetados, mediante a concessão da concordata ao comerciante de boa fé, revelou-se um fracasso. A falta de estrutura adequada para se aferir a viabilidade da atividade desenvolvida pelo devedor, a assimetria informacional e a onerosidade para obtê-la fizeram com que o Judiciário resolvesse os danos aos interesses apenas imediatamente perceptíveis, descurando dos efeitos de longo prazo. A concordata revelou-se, assim, um mecanismo comumente utilizado pelos devedores com atividades inviáveis para prosseguirem atuando, mesmo com agravamento da crise e deterioração do patrimônio garantidor dos credores. Diante desse cenário, a alocação do poder pela lei 11.101/05 foi realizada de forma a concentrar a decisão da viabilidade ou não da atividade do empresário devedor naqueles que sofreriam todos os seus efeitos imediatos. Os credores obteriam todos os benefícios de uma decisão correta e suportariam todos os custos de eventual insucesso imediatamente com a redução do patrimônio do devedor e, por consequência, do montante de adimplemento de seus créditos. Teriam, assim, os maiores incentivos econômicos a tomarem a decisão mais consciente. A tutela dos interesses dos terceiros, ainda que sem voto na Assembleia Geral de Credores, não é contrária à alocação exclusiva do poder aos credores. Ao tutelar seu interesse patrimonial na satisfação de seus créditos, esses credores assegurariam a recuperação judicial apenas dos empresários com atividades econômicas viáveis e garantiriam a decretação da falência e o melhor aproveitamento dos recursos dos demais, com benefício a todos. Isso significa que os objetivos pretendidos pela lei 11.101/05 estão sendo efetivamente alcançados? Os interesses de todos os afetados estão sendo realmente protegidos? Faltam maiores estudos jurimétricos sobre o cumprimento dos planos de recuperação judiciais e sobre a continuidade do desenvolvimento da atividade empresarial pelo devedor. A ampla quantidade de pedidos de aditamentos de planos de recuperação judiciais, o aumento do rating pelas instituições financeiras em face dos empresários em recuperação judicial, a dificuldade de obtenção de novos financiamentos da atividade empresarial e a rotineira previsão de alienação de unidade produtivas nos planos de recuperação judicial, entretanto, apontam para uma resposta negativa. Mas se o instituto aparentemente não preserva o desenvolvimento da atividade empresarial pelo empresário devedor, por que os credores têm aprovado (segundo dados obtidos pelo Observatório da PUC-SP em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria, 79,8% dos processos têm o plano de recuperação judicial aprovado pelos credores) planos de recuperação judicial de atividades econômicas sabidamente inviáveis? Uma das possíveis explicações a tanto é a incorreção dos incentivos legais. Ainda que a recuperação judicial seja, em geral, pior para o interesse de todos os afetados pela atividade inviável, poderá ser mais conveniente para os interesses apenas de uma parte da coletividade de credores e que se sujeita à recuperação. Para apenas indicar alguns, o primeiro desses incentivos equivocados pode ser apontado como o tratamento dos créditos tributários pela Lei, assim como sua dispensa de satisfação ou de equacionamento pela jurisprudência por ocasião da concessão da recuperação judicial. Como os créditos tributários não se sujeitam à recuperação judicial, mas apenas à falência, e não há na recuperação judicial obrigação de pagamentos prioritários conforme ordem legal de preferência, todos os créditos menos privilegiados que os tributários teriam incentivo a aprovar plano de recuperação judicial sabidamente inviável para terem a perspectiva de receberem mais do que na falência. Por seu turno, mesmo os credores com garantia real e que, portanto, receberiam tratamento falimentar mais benéfico aos créditos tributários poderão ter incentivos em aprovar planos de atividades econômicas inviáveis. Como as garantias dos coobrigados do devedor, avais e fianças de terceiros, não se sujeitam à recuperação judicial do empresário, referidos credores poderão concordar com pagamentos desprezíveis ou muito arriscados previstos no plano de recuperação, ainda que em detrimento de toda a coletividade de credores, desde que obtenham maior satisfação por esses terceiros. Dessa forma, embora tenha ocorrido notório avanço nacional na disciplina da insolvência, com o deslocamento do poder decisório aos credores, enquanto não se alterar a estrutura legal de modo a permitir que os credores efetivamente apreciem se a recuperação judicial é melhor do que a falência a todos, continuar-se-á a privilegiar o devedor e apenas alguns credores, em detrimento dos interesses públicos e da própria credibilidade do instituto da recuperação judicial.
terça-feira, 23 de outubro de 2018

Disposições iniciais do projeto de lei 10.220/18

Texto de autoria de Paulo Furtado É louvável a positivação dos objetivos da nossa legislação de insolvência, por meio da inclusão do art. 2º-A à lei 11.101/2005.No PLC 71/2003, relatado pelo senador Ramez Tebet, já haviam sido estabelecidos os objetivos da futura Lei 11.101/2005, que viria a substituir o Decreto-lei 7661/45: 1 - Preservação da empresa; 2 - Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3 - Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4 - Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5 - Proteção aos trabalhadores; 6 - Redução do custo do crédito no Brasil; 7 - Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8 - Participação ativa dos credores; 10 - 11 - Maximização do valor dos ativos; 12 - Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 13 - Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Caso tais objetivos houvessem sido positivados em 2005, como agora se pretende, a invocação indiscriminada do art. 47 da lei 11.101 certamente teria sido muito menor, pois quem milita na área sabe que os intérpretes recorrem "ad nauseam" ao princípio da preservação da empresa para sustentar a manutenção de empresas que não mais reúnem condições de prosseguir no mercado e que deveriam falir, sem prejuízo de seus ativos serem rapidamente arrecadados, alienados e novamente empregados por outros empresários.No projeto de lei 10.220/2018, são claramente estabelecidos os seguintes objetivos da nossa legislação de insolvência, por meio da inclusão do art. 2o-A à Lei 11.101/2005: 1 - preservação de empresas viáveis ("devedor viável"); 2 - liquidação de empresas inviáveis (por meio do processo de falência); 3 - preservação dos ativos (e "realocação eficiente de recursos na economia"); 4 - fomento ao empreendedorismo ("retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica"); 5 - preservação e estímulo ao mercado de crédito.Mas não basta enunciar objetivos. Eles somente serão atingidos se previstos os meios adequados para a sua consecução e se os intérpretes das normas pautarem sua atuação de acordo com os objetivos positivados. Como os intérpretes finais destas normas são os juízes, nenhuma legislação de insolvência terá seus objetivos alcançados sem contar com uma magistratura com condições materiais e humanas de bem aplicar a lei.Nesse sentido, é positiva a ideia de juízos regionais especializados em falências e recuperações, pois ao longo do tempo tendem a aplicar a legislação de forma mais rápida e adequada, desenvolvendo os meios mais eficientes à obtenção dos resultados buscados pelo legislador. Porém, não se pode esquecer que o Brasil é uma República Federativa e que os Estados têm competência para disciplinar sua organização judiciária, de modo que a imposição de regionalização e de competência concentrada na Comarca da Capital, como se pretende introduzir com os parágrafos 1o. e 3o. do art. 3º., suscita discussão quanto à sua inconstitucionalidade.Embora nas capitais estejam os processos de insolvência mais complexos - o que resulta, ao longo do tempo, em maior experiência dos juízes destas comarcas -, não se pode exigir que um Estado da Federação adote um único critério econômico para instituir juízo especializado em insolvência (passivo superior a 300.000 salários mínimos) e fique impedido de considerar outros aspectos que considerar relevantes (número de empregados, arrecadação tributária etc).Outro aspecto do projeto que suscita debate diz respeito à competência atribuída ao Conselho Nacional e Justiça (CNJ) pelo teor do art. 3º-A e parágrafos. De acordo com esse dispositivo, o CNJ poderá realizar avaliação sobre a distribuição de competência em matéria falimentar, o que é positivo. Porém, sua atuação deverá ser compatível com a autonomia dos Estados na sua organização judiciária.O CNJ poderá realizar pesquisas para avaliar os resultados, atuando para melhorar a aplicação da lei no âmbito judicial, recomendando o aperfeiçoamento da estrutura material e funcional existente (mais ou menos juízos especializados, quadro mínimo de servidores por processo etc). Porém, a Constituição Federal não atribuiu ao CNJ competência para formação e aperfeiçoamento de juízes, como consta do projeto de lei. Esta relevante atribuição é reservada à Escola Nacional de Formação e de Aperfeiçoamento dos Magistrados (ENFAM), que funciona junto ao Superior Tribunal de Justiça e atua em conjunto com as Escolas Estaduais de Magistratura. O CNJ e a ENFAM têm atuações complementares, ao passo que o projeto de lei contém norma que parece concentrar atribuições em um único órgão, em desacordo com a Constituição Federal. Em resumo, a incorporação dos objetivos da nossa legislação de insolvência ao Direito Positivo merece apoio, assim como é salutar a especialização de juízos como instrumento adequado para que tais objetivos sejam alcançados, respeitadas a autonomia dos Estados na sua organização judiciária, bem como da ENFAM e das Escolas Estaduais de Magistratura nos cursos de formação e aperfeiçoamento dos juízes.
Texto de autoria de Luiz Dellore e Andressa Borba Pires Introdução O procedimento da recuperação judicial (RJ) é bastante distinto do procedimento comum, como já destacado em coluna anterior1. Mas, dentro do procedimento recuperacional, algo consideravelmente específico e que não encontra similar no processo civil brasileiro é a assembleia geral de credores (AGC). Considerando que o cerne do processo de RJ é a negociação do plano entre os credores e a empresa recuperanda, a AGC é considerada um ato de grande relevância para o processo, sendo a ocasião em que os credores deliberam sobre o plano de recuperação judicial apresentado. Ou seja, a AGC é um momento bastante relevante para a RJ. Mas a realidade mostra que a AGC em si não é o momento para as negociações: na prática, as efetivas negociações são prévias à AGC e restritas, ao menos quanto as classes II e III, aos maiores credores (que definem o resultado das deliberações nas respectivas classes). Assim - e a afirmação é feita sem qualquer juízo de valor, mas apenas narrando o que acontece na prática -, em regra as negociações para a aprovação do plano são limitadas a alguns poucos credores, tendo como escopo que sejam acomodados os interesses das maiorias necessárias à sua aprovação, ficando os demais credores como mero espectadores. O fato é que a AGC não acontece no fórum, não é presidida pelo juiz, pode se alongar por horas (ou por semanas ou meses) e tem toda uma dinâmica própria, desconhecida por muitos profissionais. E neste texto o que se busca é, exatamente, apresentar uma visão geral acerca dos aspectos mais relevantes de uma AGC, à luz da Lei de Recuperação e Falência (LRF, L. 11.101/2.005) e da prática do foro. Convocação da AGC A lei determina que a data designada para a realização da assembleia não excederá o prazo de 150 dias2 contados do deferimento do processamento da recuperação judicial (artigo 56 §1º, LRF). Mas a AGC sempre será realizada? Não necessariamente. Se a empresa em recuperação for microempresa ou empresa de pequeno porte que apresente plano especial disciplinado na Seção V da Lei (artigo 72, LRF), a recuperação judicial é concedida pelo juiz se atendidas as exigências legais. Todavia, se houver objeções de credores titulares de mais da metade de qualquer das classes do artigo 83, LRF, é decretada sua falência. Fora disso, a AGC será convocada em algumas situações. A Assembleia pode ser convocada pelo (i) juiz nas hipóteses previstas no artigo 35 da LRF. Em suma, para deliberação sobre qualquer matéria que possa afetar os interesses dos credores, ou seja, sempre que julgar oportuna. No mais, a AGC pode também ser convocada pelo juiz (ii) a pedido de credores que representem pelo menos ¼ do valor dos créditos em determinada classe (artigo 36, §2º, LRF). Os credores podem, ainda, requerer sua convocação para deliberar sobre a constituição ou substituição de membros do Comitê de Credores (artigo 52, §2º, LRF). Além disso, a AGC também pode ser convocada pelo juiz (iii) a pedido do próprio Comitê de Credores3 (artigo 36 §3º, LRF). Mas a situação mais usual de convocação da AGC se dá para deliberar sobre o plano se ao menos um credor apresentar objeção ao PRJ (artigo 56, LRF), que pode ser de mérito (a ser discutido em AGC, podendo ensejar a apresentação de aditivo, pela recuperanda) ou versar sobre aspecto legal do plano (o que não é tratado na AGC, devendo ser apreciado pelo juiz). Se não houver objeção ao PRJ por nenhum credor, não haverá AGC e o plano será homologado pelo juízo, que exercerá apenas o controle de legalidade, ou seja, não apreciará o aspecto negocial ou as condições de pagamento nele contidas4. Em razão dessa mecânica, sob a perspectiva do credor, é sempre recomendável apresentar objeção, exatamente para possibilitar que o plano seja objeto de deliberação em assembleia. A realização da AGC envolve o custeio de algumas despesas que, a depender do porte da RJ, podem ser consideravelmente elevadas. Além dos custos com a publicação de edital, há o valor da locação e organização do espaço onde ocorrerá a AGC. Se o número de credores for pequeno, uma simples sala de reuniões em um escritório de advocacia ou hotel já pode ser suficiente; porém, há casos de AGCs realizadas em clubes, centros de convenções e até em ginásios esportivos. As despesas de convocação e realização da AGC são suportadas pela recuperanda, se convocada pelo juízo. São, todavia, suportadas pelos credores, se convocada a seu pedido ou a pedido do Comitê de Credores (artigo 36 §3º, LRF). Os credores devem ser convocados da realização da Assembleia por meio de publicação de edital, com antecedência mínima de 15 dias. A publicação é feita no órgão oficial (DJE) e em jornais de grande circulação nos locais da sede e filiais da recuperanda, sendo afixada cópia do edital nessas localidades (artigo 36, LRF). No edital de convocação devem constar informações que possibilitem ao credor conhecer o local, data e hora da assembleia, ordem do dia e local para obtenção de cópia do plano (artigo 36, LRF). Esta última exigência se mostra de pouca aplicabilidade atualmente, nos locais em que há processo eletrônico e o PRJ pode ser facilmente acessado pela internet. No edital serão indicadas duas datas para a AGC -primeira e segunda convocações -, com um intervalo mínimo de 5 dias entre ambas (artigo 36, I, LRF). Procedimentos prévios à AGC: Credenciamento, presença e instalação O credor poderá votar pessoalmente ou ser representado na AGC por mandatário ou representante legal. Ou seja, o credor pode, pessoalmente, manifestar-se nos debates e deliberar na AGC, tendo direito a voz, no momento dos debates. Não há necessidade de se fazer representar por advogado (não há necessidade de capacidade postulatória, por não ser um ato efetivamente judicial), o que corrobora o espírito da Lei, de privilegiar a negociação em detrimento do formalismo. Assim, poderão se pronunciar e debater na Assembleia os diferentes atores envolvidos: o trabalhador da recuperanda, o fornecedor, o negociador do banco credor, o consumidor, o advogado etc. Nesse sentido, o ambiente de uma AGC é extremamente democrático, muitas vezes existindo, na mesma assembleia, a manifestação de um trabalhador humilde e do credor financeiro internacional. Caso o credor seja representado por mandatário ou representante legal, há um procedimento burocrático prévio a se observar: deve ser entregue o documento que comprove seus poderes, ao administrador judicial, até 24h antes da data da Assembleia (artigo 37 §4º, LRF). Essa regra se aplica também aos credores pessoas jurídicas, que devem, portanto, realizar o credenciamento com antecedência, para garantir o direito de voto. Assim, não é possível apenas no dia da AGC apresentar a procuração - o que por vezes advogados não acostumados às AGCs costumam pleitear, em regra sem êxito. O credor trabalhista ou titular de crédito decorrente de acidente do trabalho também pode ser representado pelo sindicato da categoria profissional, desde que conste na relação de associados apresentada ao administrador judicial até 10 dias antes da AGC. No dia da Assembleia, o credor ou seu mandatário/representante legal devem comparecer na hora designada para a instalação ou em horário prévio indicado no edital, para assinatura da lista de presença. Esse cadastramento em horário prévio é comum em recuperações judiciais maiores, que possuem um número grande de credores concursais e ouvintes, de forma a evitar filas, tumulto e atraso na instalação da Assembleia. A lista de presença deve ser assinada até o momento da instalação da AGC, sob pena de o credor não poder votar na AGC. O rigor no controle de horário e a pontualidade da instalação da AGC dependem do administrador judicial. Assim, importante estar no local da assembleia antes do horário estabelecido no edital para sua instalação, de forma a evitar contratempos e o impedimento de votar. Há casos extremos de credores que chegaram poucos minutos após o momento de instalação e que são impedidos de votar. Isso, por óbvio, é uma absoluta falta de bom senso e apenas atravanca a AGC e a RJ - pois essa situação é de ser levada ao Judiciário que, possivelmente, afastará a rigidez exagerada e determinará a normal participação do credor5. Caso algum credor não tenha se habilitado no prazo de 24h ou tenha chegado à AGC após sua instalação, poderá pleitear perante o administrador judicial a participação como ouvinte, situação em que não terá direito a voto, nem participará das deliberações. Caso a AGC seja suspensa, o credor ouvinte poderá pleitear a participação na assembleia que será realizada em continuidade. No cotidiano, o que usualmente se verifica é que os administradores judiciais deleguem essa decisão ao Judiciário, ou seja, orientam ao credor a apresentar tal pedido em juízo, nos autos da recuperação judicial, sendo objeto de apreciação judicial. Em regra, diante da suspensão da AGC e comparecimento do credor, o Judiciário autoriza a posterior participação com voto, de modo a se verificar, da forma mais ampla possível, o interesse do conjunto dos credores - o que, afinal, é o objetivo da AGC. Mas é certo que o melhor seria isso ficar restrito ao âmbito da AGC e não ter de ser decidido pelo juiz. Convocada a AGC, apresentadas as procurações e assinada a lista de presença, passa-se à verificação de quórum. Em primeira convocação, é instalada se presente o quórum estabelecido na lei, ou seja, a presença de credores titulares de mais da metade dos créditos de cada classe. Na prática, poucas são as assembleias instaladas em primeira convocação. Em regra, as classes 1 e 4 (trabalhistas e microempresas) não atingem a maioria de créditos presentes nessa primeira convocação. Mas, ainda assim, por vezes há o quórum na primeira assembleia, de modo que o credor cauteloso - se não tiver certeza quanto à ausência de quórum - não deve confiar que a AGC não será instalada na primeira assembleia. Mas, não havendo o quórum na primeira assembleia, parte-se para a segunda convocação, em que a AGC será instalada independentemente do número de credores presentes. Presidência da AGC Em regra, o administrador judicial presidirá os trabalhos da assembleia e indicará como secretário um dos credores (artigo 37, LRF). Todavia, o presidente será o maior credor, caso exista incompatibilidade do AJ ou nas deliberações sobre seu afastamento. Assim, reitere-se, o juiz não estará presente nem presidirá a AGC. Cada AJ tem seu próprio "estilo" na condução dos trabalhos, o que reflete na diversidade de como são realizadas as AGCs nos processos de recuperação judicial. Alguns administradores, por exemplo, são mais rigorosos em relação a representação e horários de instalação da AGC (como visto no tópico acima); outros mais flexíveis. Alguns são mais rigorosos quanto à retomada dos trabalhos após uma suspensão momentânea; outros permitem a extensão "tácita" dessa suspensão (vide item abaixo). Alguns AJ presidem de forma mais ativa, realizando, inclusive, a inversão da ordem do dia; outros permitem à recuperanda, que em tese deveria apenas prestar esclarecimentos e aditivos ao PRJ, uma atuação mais incisiva. Ao AJ compete presidir e manter a ordem da AGC, além de disponibilizar lista de presença, compor a mesa (composta por presidente e secretário - qualquer dos credores ou membro da equipe do AJ, caso ninguém se ofereça), colher as declarações de voto e ressalvas, encerrar os trabalhos, lavrar a ata, promover a leitura aos presentes, colher a assinatura de dois representantes de cada classe, promover a juntada da ata e da lista de presentes aos autos, comunicando o resultado, dentre outras atribuições relacionadas à Assembleia. Votações na AGC: Aprovação do PRJ, suspenção da AGC e outros A AGC tem diversas atribuições, previstas no artigo 35 da lei 11.101/2005, podendo deliberar sobre qualquer matéria que possa afetar os interesses dos credores. Mas a principal delas, sem dúvidas, é a votação do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa em recuperação (sua aprovação, rejeição ou modificação). A ordem do dia constará do edital de convocação da AGC, devendo ser de conhecimento prévio do credor, para que possa estar preparado para as deliberações que serão realizadas na assembleia. Pela atual legislação6, os credores não podem impor uma modificação à devedora, ou seja, qualquer alteração do plano, ainda que sugerida pela maioria dos credores, deve ser aceita pela recuperanda. Na prática das RJs é bastante comum - e desgastante - a suspensão da AGC, de forma a possibilitar a continuidade das tratativas com credores. Isso quando ainda não há consenso para a aprovação do PRJ, mas também não há o objetivo, dentre os credores, em já negar o plano e levar a empresa à falência. Com a suspensão da AGC as recuperandas evitam que o plano seja deliberado precocemente e, dessa forma, seja rejeitado, provocando a convolação da RJ em falência. Essa suspensão pode ser para o mesmo dia (algumas horas depois) ou para outra data (alguns dias ou mesmo semanas ou meses); tudo a depender do acordo entre a recuperanda e credores, com auxílio do AJ. A suspensão tem de ser votada e aprovada pela maioria dos créditos presentes à AGC (artigo 42, LRF). É corriqueira, ainda, a sucessão de suspensões. Em alguns casos, essas suspensões chegam a somar mais de uma dúzia, como na recuperação judicial da Sete Brasil ou até mesmo quase três dezenas, como na RJ da OAS (entre AGCs para deliberação e para implementação do PRJ). Quando as suspensões são sucessivas, cada uma por algumas horas, a AGC pode se prolongar pela noite e madrugada. O que se percebe é que com esses adiamentos - seja no mesmo dia ou para posteriores datas - a Assembleia vai se esvaziando ao longo do tempo, permanecendo ou comparecendo apenas os principais credores. Afinal, há o custo do credor e de seu advogado de perderem dias de trabalho para comparecer a uma AGC que se prolonga por horas; sem falar nos gastos com deslocamento e hotel, quando se está diante de AGC realizada em comarca distinta do credor. Uma vez colhidos os votos dos presentes, o AJ verificará se houve aprovação ou rejeição do PRJ. Vale destacar que uma vez aprovado o PRJ na AGG e homologado o plano pelo juízo, se necessário a recuperanda poderá apresentar novo Plano, submetendo novamente à deliberação dos credores, em nova assembleia. É o que ocorre, por exemplo, em caso de dificuldade no cumprimento do PRJ pela empresa. Como exemplos, pode-se mencionar (i) a recuperação judicial do Grupo Mangels, que teve o plano aprovado em 2014 e aditivo ao plano aprovado em 2016, bem como (ii) o Grupo Renuka do Brasil, com planos apresentados em 2016, 2017 e 2018. A AGC também tem como atribuição a deliberação sobre o pedido de desistência da recuperação judicial. A aprovação do pedido, pela AGC, é requisito para que haja homologação judicial (art. 52, §4º, LRF). Há também, ao longo da LRF, outras hipóteses que devem ser objeto de deliberação na AGC. Como exemplos, (a) a indicação do gestor judicial, nas hipóteses excepcionais em que o devedor é afastado da administração da empresa (artigo 64, LRF) e (b) a deliberação sobre qualquer matéria de interesse dos credores no processo de recuperação judicial, como a deliberação sobre a venda de Unidade Produtiva Isolada (UPI), sobre a proposta vencedora no processo competitivo de alienação de UPI ou sobre o empréstimo DIP Finance. Credores com direito a voto A regra básica é que o voto do credor será proporcional ao valor do crédito, nas deliberações da AGC (artigos 38 e 42, LRF). Excepcionalmente, há o voto por cabeça nas classes 1 e 4, nas deliberações sobre o plano (artigo 45 §2º LRF). Apenas votam os credores concursais, não os extraconcursais ou quem ainda não foi reconhecido como credor. Importante ressaltar que a pendência de julgamento de impugnação de crédito não é motivo para cancelamento da Assembleia, nem para invalidação de seu resultado (artigo 39 §2º, LRF). Isso motiva que haja, muitas vezes, um contencioso em juízo para se definir quem e como votará em AGC. Mas, dadas as diversas possibilidades em relação a esse tema, o assunto será tratado em posterior texto. Conclusão Do brevemente exposto aqui, percebe-se como a AGC tem todo um procedimento próprio, dentro da recuperação judicial (que por sua vez já apresenta diversas peculiaridades processuais). Assim, importante que o profissional esteja ciente do que pode ocorrer em uma assembleia, para não ser surpreendido por aspectos procedimentos próprios das AGCs - existindo o agravante de que cada AJ pode apresentar uma condução diferenciada. Assim, o melhor é, no caso de eventuais dúvidas procedimentais acerca da AGC, sempre provocar o AJ por escrito acerca de determinado ponto para, com base nessas respostas, se necessário, acionar o Judiciário (antes ou após da AGC, a depender do problema que se tenha) para corrigir eventuais as falhas procedimentais. __________ Texto em coautoria: Andressa Borba Pires é graduada pela USP. Advogada da Caixa Econômica Federal, com atuação na área de recuperação judicial e falência. __________ 1 Para ter uma visão geral do procedimento de RJ. 2 A respeito da contagem de prazo - infelizmente, ainda algo polêmico no cotidiano forense, com decisões divergentes proferidas pelos tribunais - conferir texto anterior desta coluna. 3 Ainda que haja a previsão do Comitê de Credores na legislação, sua instalação não é algo que seja muito comum no cotidiano forense. 4 A respeito do controle do PRJ pelo juiz, sugere-se a leitura de texto anterior desta coluna. 5 Nesse sentido, conferir caso em que o TJSP entendeu ser exagerada a impossibilidade de credor votar em assembleia porque o preposto chegou 1 minuto atrasado à AGC. 6 Está em tramitação no Congresso projeto de nova lei de recuperação judicial e falência, sendo que diversos textos desta coluna já analisam o novo diploma - como, exemplificadamente, e, especificamente quanto ao credor poder apresentar PRJ.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa 1 - Qualificação profissional e princípios de atuação. A lei 11.101/05 estabelece que o administrador judicial deve ser preferencialmente profissional com conhecimento em direito, administração de empresas, economia ou contabilidade ou ser pessoa jurídica especializada. Segundo o projeto, o mais importante para a boa atuação do administrador judicial não é propriamente a formação acadêmica do profissional, mas sim a forma como a atividade deve ser desenvolvida. Mais importante do que a formação daquele que será o responsável pela administração judicial, será que o profissional tenha experiência comprovada e estrutura organizacional adequada ao desempenho adequado dessas funções. Assim, segundo o projeto, o administrador judicial será pessoa natural ou jurídica idônea, com experiência comprovada e estrutura organizacional adequada ao exercício das suas funções. E mais. Os juízes deverão dar prioridade na nomeação de profissionais que tenham recebido algum tipo de certificação profissional oferecida por entidade idônea. Isso porque, objetiva-se que a atuação do administrador judicial paute-se nos princípios da eficiência, da independência, da celeridade e da economia processual. Importante destacar a preocupação do projeto em reafirmar que a atuação do administrador judicial não deve ser vinculada à tutela dos interesses da devedora, nem dos credores. Sua atuação pauta-se pela independência. Além disso, deve o administrador judicial atuar com um agente eficaz para a realização dos objetivos do processo de recuperação judicial. Daí que sua atuação deve pautar-se na eficiência, na celeridade e na economia processual. 2- Funções comuns do administrador judicial O art. 22, I, da lei 11.101/05 traz as funções que devem ser desempenhadas pelo administrador judicial, tanto em processos de falência, quanto em processos de recuperação de empresas. O projeto manteve as funções originalmente previstas na lei, mas agregou algumas novidades. Inicialmente, vale destacar que a comunicação entre administrador judicial e credores pode ser feita de forma direta e por meio eletrônico (e-mail). O administrador judicial deve manter um site na internet com todas as principais informações do processo, a fim de garantir o acesso de todos aos dados do processo, conferindo transparência à sua atuação. A utilização da internet para comunicação e publicação de informações do processo são compreendidos pelo projeto como formas eficazes, mais econômicas e menos burocráticas de comunicação de atos e de contato dos credores com os atos do processo falimentar ou recuperacional. O projeto ainda explicita que caberá ao administrador judicial presidir as assembleias gerais de credores (AGC). Caberá também ao administrador judicial zelar pela regularização do passivo fiscal. No que tange a esse aspecto, é necessário cuidado para não carrear ao administrador judicial a responsabilidade pelo pagamento do passivo fiscal. No caso de recuperação judicial, deverá o administrador judicial alertar o juízo e os credores acerca da conduta fiscal da recuperanda, indicando a necessidade ou não de regularização fiscal. No que diz respeito à falência, a regularização fiscal identifica-se com o pagamento do passivo fiscal em obediência a ordem de prioridade legal, com observância das reservas de crédito fiscal. 3- Funções transversais do administrador judicial - mediação. A lei 11.101/05, no seu art. 22, I, II, e II, define quais são as funções a serem desempenhadas pelo administrador judicial na condução de um processo de insolvência empresarial (falência ou recuperação de empresas). A definição legal observa o fato de que o processo de insolvência empresarial é estruturado em duas linhas de trabalho paralelas e simultâneas. Por essa razão, devem ser chamadas de funções lineares do administrador judicial. Há a linha de trabalho que é utilizada em todo processo de falência e de recuperação judicial, que diz respeito à formação das listas de credores. Nessa linha de trabalho, a lei prevê quais são as funções desenvolvidas pelo administrador judicial para definir quem são os credores sujeitos ao processo concursal e quais são o valor e a natureza de seu crédito. Nas recuperações judiciais, deve o administrador judicial desempenhar as funções previstas no art. 22, inc. II, da lei 11.101/05 que são relacionadas à apresentação do plano de recuperação judicial, convocação da assembleia geral de credores, realização da assembleia, votação do plano e fiscalização do cumprimento do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores. Nas falências, deve o administrador judicial desenvolver atividades relacionadas à arrecadação de ativos, avaliação, venda e pagamento dos credores, que estão previstas no art. 22, III, da lei 11.101/05. Conforme já observado, essas funções regularas em lei buscam são as chamadas funções lineares do administrador judicial. Mas, além das funções lineares, o administrador judicial deve exercer outras funções que não estão expressamente previstas em lei, nem são relacionadas diretamente às linhas de trabalho já definidas em lei, mas que decorrem da interpretação adequada da lei. Deve-se garantir que o procedimento de insolvência atinja os seus objetivos com eficiência. Assim, na recuperação judicial, deve-se garantir a preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial (geração de rendas, empregos, recolhimento de tributos, circulação de produtos, serviços e riquezas) através da criação de um ambiente transparente e de confiança, de modo a viabilizar a negociação entre credores e devedores de um plano de recuperação da empresa em crise. Já na falência, deve-se buscar garantir os mesmos valores, mas através da venda da empresa em bloco (preservando diretamente os empregos, rendas, tributos, circulação de produtos, serviços e riquezas) ou através da venda de ativos (permitindo que ativos vinculados à atividades improdutivas, passem a ser utilizados no desenvolvimento de outras atividades empresarias geradoras daqueles mesmos benefícios econômicos e sociais). Entretanto, esses objetivos somente serão atingidos, com eficiência, se o administrador judicial atuar de forma comprometida com o resultado do processo, exercendo funções que vão além daquelas expressamente previstas em lei e que perpassam simultaneamente as duas linhas de trabalho paralelas e simultâneas previstas para os procedimentos falimentares e recuperacionais. Essas novas funções do administrador judicial devem ser chamadas de funções transversais. É função transversal do administrador judicial agir verdadeiramente como auxiliar do juízo na condução do processo (e não como advogado que se manifesta nos autos mediante intimação). Assim, deve o administrador judicial estar em permanente contato com o magistrado, alertando-o de fatos e circunstâncias relevantes do processo, mesmo que não tenha sido intimado para tanto. Deve o administrador judicial fiscalizar o cumprimento dos prazos processuais por todos os agentes envolvidos no caso, alertando o juízo com a antecedência necessária para que as questões sejam decididas tempestivamente. Assim, não deve o administrador judicial aguardar que a serventia judicial certifique o decurso de determinado prazo e publique a referida certidão para somente depois disso requerer ao juiz a providência necessária ao bom andamento do feito. O atraso resultante da burocracia judiciária e do excesso de trabalho das serventias judiciais certamente impactará negativamente o resultado do processo. Por isso que o administrador judicial deve agir de forma a neutralizar esse atraso, antecipando ao magistrado a ocorrência esses fatos processuais relevantes e garantindo a tempestividade e a efetividade das decisões judiciais. Também é função transversal do administrador judicial atuar como mediador de conflitos entre credores e devedora. O acompanhamento muito próximo da evolução do processo pelo administrador judicial vai permitir que possa identificar os gargalos da negociação entre credores e devedora. Nesse sentido, poderá o administrador judicial, sempre mediante autorização e supervisão judicial, agir como um catalizador de consensos, mediando conflitos pontuais e permitindo que o processo atinja os seus objetivos maiores. Daí que poderá o administrador judicial requerer a realização de audiências com o juiz do feito ou mesmo sessões de mediação e conciliação. A atividade de fiscalização das atividades da empresa em recuperação judicial deve ser feita de forma a assegurar a transparência necessária ao sucesso das negociações entre credores e devedores. Daí que é função transversal do administrador judicial produzir relatórios consistentes de fiscalização da empresa, o que impõe a necessária conferência dos dados apresentados pela devedora. Nesse diapasão, por exemplo, não faz sentido que o administrador judicial, no exercício de suas funções fiscalizadoras, limite-se a colher os dados que lhe são fornecidos pela empresa e os repasse ao processo para conhecimento do juiz e dos credores. Deve o administrador judicial elaborar o seu relatório, conferindo os dados que foram fornecidos pela empresa devedora. O administrador judicial deve exercer função análoga a de auditor, na medida em que deverá conferir a base dos dados informados pela devedora, cotejando os dados com a realidade de atuação da empresa. Processos de insolvência empresarial são fundamentais para a economia do país, na medida em que o sucesso dessas ferramentas judiciais impactam diretamente na preservação dos benefícios sociais e econômicos decorrentes da atividade empresarial. Assim, pode-se afirmar com segurança que a preservação dos empregos dos trabalhadores e da circulação de riquezas em geral dependem do funcionamento eficaz dos processos de recuperação judicial de empresas e também dos processos de falência. E o sucesso dos processos de recuperação judicial ou de falência de uma empresa está diretamente relacionado à atuação do administrador judicial que é nomeado pelo juiz para auxiliá-lo na gestão desses casos. Portanto, espera-se que os administradores judiciais exerçam suas funções com amplitude, lineares e transversais, comprometendo-se com o sucesso dos processos de insolvência e, dessa forma, colaborando para a superação da crise econômica que assola o Brasil. O projeto acolhe a percepção da existência de funções transversais do administrador judicial, relacionadas à interpretação adequada de suas funções e à necessidade de que sua atuação seja pautada pelo comprometimento com o resultado eficaz do processo, com a economia processual, com independência e profissionalismo. Percebe-se, assim, que o projeto identificou algumas funções transversais importantes do administrador judicial e as definiu expressamente como funções legais de atuação do administrador judicial. Nesse sentido, o projeto estabelece que é função do administrador judicial atuar como MEDIADOR DE CONFLITOS (art. 22, I, j). Essa função poderá ser exercida para resolução de questões pontuais que surjam durante o curso da recuperação judicial, envolvendo a negociação entre devedora e credores. Mas também poderá ser exercida no processamento e julgamento das impugnações de crédito, viabilizando um julgamento mais rápido e baseado no consenso, em benefício da efetividade do processo de insolvência. 4- Funções do administrador judicial na recuperação judicial O projeto preserva basicamente as funções do administrador judicial na recuperação judicial, que são relacionadas à fiscalização das atividades da recuperanda, com apresentação de relatórios mensais. Entretanto, o projeto estabelece que caberá ao administrador judicial, no exercício de sua função, fiscalizar se a devedora também está cumprindo com o pagamento do parcelamento fiscal exigido como pressuposto para a concessão da recuperação judicial. Por fim, o projeto exclui a fiscalização do cumprimento do plano de recuperação judicial, depois de sua homologação judicial, porque segundo o novo sistema proposto, a recuperação judicial será encerrada no momento da homologação do plano, não mais existindo a fase de fiscalização do cumprimento do plano pelo prazo de dois anos. 5- Funções do administrador judicial na falência O projeto continua conferindo ao administrador judicial a função de relacionar os processos judiciais e arbitrais e assumir a representação judicial da massa falida e propor as medidas mais adequadas aos interesses da massa falida com vistas ao encerramento desses processos. Além disso, o projeto define a necessidade de oitiva do Ministério Público previamente à decisão sobre os destinos que serão dados às ações judiciais e às demais medidas tomadas no interesse da massa falida. Segundo o projeto, cabe ao administrador judicial apresentar relatório sobre as causas e as circunstâncias que conduziram à situação de falência, no qual apontará a responsabilidade civil e penal dos envolvidos, observado o disposto no art. 186, no prazo de cem dias e, no caso de microempresas e empresas de pequeno porte, cinquenta dias, contado da data da assinatura do termo de compromisso, prorrogável por igual período. No que diz respeito à arrecadação de ativos na falência, caberá ao administrador judicial arrecadar os bens e os documentos do devedor e elaborar o auto de arrecadação, nos termos estabelecidos nos art. 108 e art. 110, sem exceder o prazo de dez dias, contado da data de assinatura do termo de compromisso, exceto se houver autorização expressa do juiz. No que tange à venda de bens na falência, o projeto estabelece que o administrador terá o prazo de 180 dias, contado da data da juntada do auto de arrecadação, para providenciar a alienação dos ativos arrecadados, sob pena de perder sua remuneração e poder ser destituído da função. Pretende-se, com isso, garantir maior agilidade na venda de ativos, neutralizando eventual inércia do administrador judicial. É certo, todavia, que a venda de bens pode ser retardada não apenas em função da conduta do administrador judicial. Bem por isso, o projeto estabelece medidas para neutralizar as dificuldades com a avaliação do bem e com os procedimentos de venda, que serão analisados oportunamente. O projeto pretende dar maior transparência ao processo de falência. Nesse sentido, impõe ao administrador judicial o dever de apresentar ao juiz para a juntada aos autos, até o décimo dia do mês seguinte ao vencido, conta demonstrativa da administração que especifique, com clareza, a receita e a despesa incorridas no mês anterior. E mais. A preocupação do projeto com a transparência do processo de recuperação judicial ou de falência é tão intensa, que o art. 23 do projeto impõe ao administrador a pena de suspensão de recebimento de sua remuneração enquanto estiver em atraso com a apresentação dos relatórios previsto na lei e de prestação de contas, mantendo a possibilidade - como já existe na lei - de destituição do administrador judicial que pessoalmente intimado, deixa de apresentar os relatórios no prazo de 5 dias. Exige, ainda, o projeto que o administrador providencie a inscrição da massa falida no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ. Diante da necessidade de que os processos de falência tenham um desfecho rápido e eficaz, passou a ser função expressa do administrador judicial, requerer o encerramento da falência nas hipóteses previstas nesta lei. Por fim, cabe ao administrador judicial não somente avaliar os bens arrecadados pela massa falida para fins de venda, mas também cabe ao administrador judicial providenciar prontamente a avaliação dos bens do devedor que tenham sido dados em garantia. 6- Remuneração do administrador judicial A função do administrador judicial deve ser exercida de forma profissional. Nesse sentido, sua remuneração também deve acompanhar os mesmos critérios utilizados para as funções exercidas na iniciativa privada. Do contrário, seria muito difícil atrair para o exercício dessa função os profissionais de mercado. Daí que o projeto fixa com mais clareza quais são os critérios que deverão ser utilizados pelo juiz no momento da fixação da remuneração do administrador judicial. Segundo o art. 24, caput, do projeto, a remuneração do administrador judicial será fixada pelo juiz, observados: I - a capacidade de pagamento do devedor ou da massa falida; II - o grau de complexidade do trabalho; e III - as funções a serem desempenhadas em consonância com a qualidade e a celeridade exigidas por processo de recuperação judicial e falência. Nota-se que o projeto excluiu desses critérios "os valores praticados no mercado para o desenvolvimento de atividades semelhantes". Isso não quer dizer, todavia, que os valores praticados na administração judicial não devam ter correspondência com os valores praticados na iniciativa privada. Isso é necessário como pressuposto de atração dos melhores profissionais para essa importante área. A razão para essa exclusão é a dificuldade de se encontrar no mercado privado função que seja semelhante àquela desenvolvida na administração judicial. Entretanto, continua válida a comparação feita entre os valores praticados por empresas de auditorias e a administração judicial, dada a similaridade (ainda que parcial) dessas funções. Apesar das intensas discussões havidas em relação ao estabelecimento do limite no valor da remuneração do administrador judicial de 5% do valor do passivo (recuperação judicial) ou dos ativos realizados (falência), o projeto preservou o parágrafo primeiro do art. 24, que dispõe sobre essa limitação. Nesse sentido, deve-se atentar que o percentual estabelecido por lei é apenas um limitador e não um critério para fixação da remuneração do administrador judicial. Vale dizer, o juiz fixará a remuneração do administrador judicial conforme os critérios estabelecidos pelo art. 24, caput, da lei, mas esse valor deverá ser limitado a 5% do valor do passivo (na recuperação judicial) ou do ativo realizado (na falência). O projeto estabelece, de maneira bastante clara, que no caso de processos de falência, deverá ser reservado quarenta por cento do montante devido ao administrador judicial para pagamento após o atendimento ao disposto nos art. 154 e art. 155, exceto se houver sido contratado seguro específico. Esse esclarecimento se faz necessário diante da existência de entendimentos jurisprudenciais no sentido de que essa reserva, prevista na lei, também deveria ser aplicada nas recuperações judiciais. Entretanto, o trabalho a ser desenvolvido nas recuperações judiciais, de duração muito menor que nas falências, seria incompatível com a referida reserva, cuja aplicação oneraria demasiadamente a devedora (responsável pelo pagamento) com a obrigação de pagamento de uma única vez, ao final, de parcela representativa de quase metade dos valores devidos. Mantém-se a regra de que o administrador judicial que for substituído preserva o direito ao recebimento de remuneração proporcional, mas aquele que renunciar sem relevante razão ou for destituído por desídia, dolo ou culpa ou descumprimento de suas obrigações perderá o direito a remuneração. 7- Procedimento para nomeação do administrador judicial na recuperação judicial O projeto cria um procedimento licitatório simplificado para a escolha e nomeação do administrador judicial, bem como para a fixação de sua remuneração. Segundo o projeto, deferido o processamento da recuperação judicial, o juiz abrirá processo simplificado para a apresentação, em até cinco dias, de propostas de interessados em desempenhar a função de administrador judicial, as quais indicarão, detalhadamente: I - o valor total da remuneração, a forma e o prazo de pagamento; II - o escopo do trabalho e a avaliação fundamentada sobre o grau de complexidade do trabalho, incluídos a quantidade de credores, a pluralidade de devedores ou de filiais e a extensão da responsabilidade assumida, entre outros; III - os custos para o desempenho fiel de suas funções, que contemplarão a descrição de recursos humanos, equipamentos, instalações, materiais a serem utilizados e eventual valor do prêmio de seguro de responsabilidade profissional. Na hipótese de não existirem interessados em participar do processo competitivo para administrador judicial, o juiz indicará um profissional, que lhe apresentará proposta de remuneração nos termos estabelecidos no § 5º. Decorrido o prazo para a apresentação de propostas pelos interessados, o juiz deverá aguardar pelo prazo de dois dias por eventuais manifestações do devedor e dos credores sobre as propostas. Decorrido o prazo de manifestação dos credores e da devedora, o juiz considerará o teor das propostas apresentadas e as eventuais manifestações dos interessados para escolher o administrador judicial e fixar o valor da remuneração do administrador judicial, no prazo de dez dias. Vale observar, que embora o texto do projeto se refira apenas à fixação da remuneração do administrador judicial, o mesmo procedimento, pela lógica, deve valor também para a nomeação ou escolha do administrador judicial. O processo licitatório deve valer para a escolha do administrador judicial e também para a fixação de sua remuneração, já que esse aspecto é um daqueles que devem compor a proposta a ser apresentada pelos interessados em exercer essa função. Destaque-se que o projeto está atento à possibilidade de prorrogação do prazo da recuperação judicial para além da data quando, pela lei, deveria estar encerrada, havendo uma sobrecarga de trabalho ao administrador judicial. Isso porque, a proposta apresentada pelo administrador judicial leva em consideração o tempo de duração legal do processo. Nesse sentido, havendo uma prorrogação do andamento do processo, poderá o administrador judicial requerer uma complementação de sua remuneração. Nesse sentido, o projeto dispõe que, na hipótese de não encerramento da recuperação judicial com observância aos prazos previstos nesta lei, o administrador judicial apresentará ao juiz proposta de honorários complementares, desde que não tenha contribuído para o atraso do processo. Esse processo licitatório, embora burocratize a nomeação do administrador judicial, confere maior transparência à recuperação judicial. A nomeação do administrador judicial é de fundamental importância para o sucesso da recuperação judicial. Nesse sentido, é necessário um maior cuidado na escolha do profissional que desempenhará essa função. Esse processo licitatório, diminui a possibilidade de nomeações baseadas exclusivamente na amizade/confiança entre o juiz e o nomeado, sem qualquer base na competência ou na estrutura de trabalho apresentada pelo administrador judicial. Assim, qualquer pessoa/empresa interessada em exercer a função de administrador judicial poderá apresentar sua proposta e o juiz terá de justificar objetivamente as razoes da escolha de uma proposta em detrimento da outra, sempre com atenção aos critérios estabelecidos pelo art. 24, caput, da lei. Muito embora o projeto não seja expresso sobre a aplicação desse processo licitatório às falências, é razoável interpretar que sua aplicação também se estende aos processos falimentares, a partir da decretação da quebra. O projeto ainda estabelece que nenhum pagamento será feito ao administrador judicial que tiver atribuições vencidas e pendentes de cumprimento. Essa é mais uma ferramenta para garantir a eficiência na atuação do administrador judicial. Em relação à fiscalização dos pagamentos e a sua compatibilidade com os limites estabelecidos em lei (seja o percentual de 5%, seja a compatibilidade dos valores pagos com o serviço efetivamente prestado), o projeto adotou o modelo que já vem sendo aplicado pela 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo onde a remuneração é revista, no mínimo, semestralmente, observada a nova realidade das funções a serem desempenhadas pelo administrador judicial. A prática tem mostrado que, em muitos casos, há nomeação do administrador judicial e fixação de seus honorários. Entretanto, há recurso de algum interessado contra essa decisão judicial e o Tribunal acaba por conceder efeito suspensivo ao recurso. Tal situação é extremamente prejudicial ao andamento do caso em primeiro grau, na medida em que o administrador judicial corre o risco de prestar o serviço sem saber o valor que irá receber ou mesmo sem saber se receberá algo pelo trabalho desenvolvido. Atendo a isso, o projeto estabelece que o credor que houver se manifestado no prazo a que se refere o art. 24, § 6º, o devedor, o administrador judicial e o Ministério Público poderão recorrer da decisão que fixar a remuneração do administrador judicial, com fundamento na capacidade de pagamento do devedor, no grau de complexidade do trabalho e nos valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes. Entretanto, o recurso da decisão que fixar a remuneração do administrador judicial não terá efeito suspensivo e a remuneração do administrador judicial será paga em conformidade com os valores fixados pela decisão do juízo até que seja julgado o recurso. O projeto excluiu o tratamento diferenciado da remuneração do administrador judicial para recuperação judicial de empresas de pequeno porte e microempresas. De fato, não fazia sentido limitar a 2% do passivo a remuneração do administrador judicial nesses processos, visto que o passivo já seria proporcionalmente menor que nos casos de devedoras de grande porte. Assim, a redução do percentual sobre um passivo já reduzido acabava resultando em remunerações incompatíveis com os trabalhos necessários mesmo em casos mais simples. Destaque-se que continua sendo obrigação do devedor ou à massa falida arcar com as despesas relativas à remuneração do administrador judicial e das pessoas eventualmente contratadas para auxiliá- lo conforme estabelecido no § 1º do art. 22. A decisão de homologação dos honorários do administrador judicial constitui título executivo judicial, cujas obrigações poderão ser objeto de cumprimento no próprio processo de recuperação judicial, se for o caso. Por fim, vale ressaltar que o pagamento do administrador judicial poderá ser feito com valores obtidos mediante financiamento DIP, que é regulado pelo projeto. Conforme consta da proposta, na recuperação judicial, a remuneração e as despesas do administrador judicial poderão ser financiadas observado o procedimento estabelecido no art. 69-A ao art. 69-I.
terça-feira, 11 de setembro de 2018

Recuperação judicial e licitação

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira Importante decisão foi tomada pela Primeira Turma do STJ, no julgamento do agravo em recurso especial 309.867, que admitiu a participação de empresa em recuperação em procedimento licitatório sem a apresentação de certidão negativa de distribuição de processo de recuperação judicial. A controvérsia examinada surgiu porque o artigo 31, inciso II, da Lei das Licitações, que é a lei 8.666/93, contém a seguinte exigência para participar da licitação (fase de habilitação): "Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a: (...) II - certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física". A empresa recorrente, em recuperação judicial, sustentou que a exigência legal diz respeito a falência e concordata, sem alcançar o instituto da recuperação judicial; afirmou ser ilegal a exigência de apresentação de certidão negativa. Além disso, afirmou que o artigo 52, II, da lei 11.101/05, derrogou o referido dispositivo da lei de licitações. O relator fez questão de registrar doutrina que defende a exigência de certidão, sob pressuposto de que há presunção de insolvência sobre o devedor em recuperação judicial, mas não a acompanhou. Preferiu doutrina em sentido contrário, que disse "se a Lei de Licitações não foi alterada para substituir certidão negativa de concordata por certidão negativa de recuperação judicial, não poderia a Administração passar a exigir tal documento como condição de habilitação, haja vista a ausência de autorização legislativa". Depois de invocar o escopo do artigo 47 da lei 11.101/05, concluiu o voto vencedor: "Entendo, portanto, incabível a automática inabilitação de empresas em recuperação judicial unicamente pela não apresentação de certidão negativa, principalmente considerando que a lei 11.101, de 9/2/2005, em seu art. 52, I, prevê a possibilidade de elas contratarem com o Poder Público, o que, em regra geral, pressupõe a participação prévia em licitação". Consta do acórdão, ainda, o parecer exarado pela AGU, segundo o qual a apresentação de certidão positiva não é causa de imediata inabilitação, devendo ser examinada a real situação econômico-financeira da empresa. Por fim, o acórdão invoca precedente do STJ, que é a AgRg na MC 23.499, j. 18/12/2014. Pois bem. O assunto não é de simples solução nem de pouca relevância. Existem empresas que se dedicam, precipuamente, a prestar serviços e vender bens ao poder público e, portanto, participam regularmente de licitação. A distribuição da recuperação judicial pode representar o fim da empresa caso ela seja automaticamente proibida de concorrer em processos licitatórios. O remédio transformar-se-ia em veneno letal. O primeiro ponto digno de relevo é de ordem constitucional. O artigo 37, XXI, da Constituição Federal, diz que somente as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações serão feitas pela lei. A qualificação econômica é um mandamento constitucional, e é bastante razoável que assim seja, pois a idoneidade para a contratação é de observância tanto no âmbito privado como no âmbito público. Pode se discutir se a apresentação de certidão negativa é um elemento aferidor da qualificação econômica, pois, ao menos em tese, uma empresa em recuperação pode ostentar tanto a qualificação técnica como a qualificação econômica para contratar com o poder público. A certidão apenas relata a pendência do processo de recuperação, sem nenhum conteúdo a mais, sem permitir qualquer conclusão sobre a concreta situação da empresa. Uma outra interpretação diria que a certidão mostrando a distribuição da recuperação judicial é índice de crise, o que seria suficiente para afastar o concorrente do certame. Essa interpretação representaria, por certo, uma presunção abstrata de incapacidade econômica, à qual não se pode chegar, pois somente a verificação concreta de cada empresa à luz do edital expedido pela administração pública e de seu objeto é que autorizará conclusão a favor ou contra a empresa. A recuperação judicial evidencia que a empresa tem dívida; segundo a prática, a maioria das dívidas são de natureza bancária. Ora, uma empresa pode ter dívida bancária, não ajuizar recuperação judicial e participar do processo licitatório (superar a fase de habilitação). A exigência de certidão dispensaria tratamento diferente a duas empresas que estão, substancialmente, em pé de igualdade, pois ambas possuem dívidas; a diferença é que uma dívida é de conhecimento público, atestada pela certidão, e a outra dívida não é de conhecimento público, estando, por certo, apenas registrada nos livros contábeis da empresa, que são sigilosos (Código Civil, art. 1.190-1.191). A publicidade do processo de recuperação poderia favorecer uma concorrente que conta com o sigilo de sua contabilidade, e que poderia, em tese, estar com a mesma dificuldade financeira da empresa em recuperação. Nessa circunstância, o princípio da igualdade vem à tona. O STF decidiu, no julgamento da ADI 3.735, que "a igualdade de condições dos concorrentes em licitações, embora seja enaltecida pela Constituição (art. 37, XXI), pode ser relativizada por duas vias: (a) pela lei, mediante o estabelecimento de condições de diferenciação exigíveis em abstrato; e (b) pela autoridade responsável pela condução do processo licitatório, que poderá estabelecer elementos de distinção circunstanciais, de qualificação técnica e econômica, sempre vinculados à garantia de cumprimento de obrigações específicas". Nesse julgamento, de relatoria do Min. Teori Zavascki, o Min. Ricardo Lewandowski consignou que "Todos nós sabemos que a Lei 8.666, a Lei das Licitações, é extremamente complexa, inviabiliza as licitações na prática e facilita as fraudes". A exigência pura e simples de certidão como mecanismo de inabilitação da empresa em recuperação judicial não se afina com o princípio constitucional da igualdade que rege a exigência de licitação, pois o simples fato de um conjunto de dívidas tornar-se público, a ponto de constar de uma certidão emitida pelo Poder Judiciário, não deve afastar o devedor que compete com outro, igualmente com dívidas, que, entretanto, não são públicas. O documento público, a certidão de distribuição da recuperação judicial, apenas atesta, formalmente, a existência de dívida, e a disposição do devedor de entender-se com os seus credores. Não se pode extrapolar o seu significado e extrair conclusões que não se ajustam ao mandamento constitucional. É evidente que o poder contratante tem o direito de ser informado (e o dever de informar-se) sobre a situação financeira de quem pretende participar de licitação, mas a ausência de certidão não é decisiva para o poder público e pode ser completamente dispensada, sem prejuízo algum. Aliás, a certidão pode ser suprida por outro meio de informação, como, por exemplo, o constante do artigo 69, que exige seja acrescido após o nome empresarial a expressão 'em recuperação judicial'. Com isso, ainda na fase de habilitação, o poder público obrigatoriamente já será informado da situação da devedora, sem a necessidade da certidão. É certo que, pela lei 8.666/91, a certidão, sobre ser documento informativo, é uma barreira à participação na licitação, em qualquer circunstância, o que, por certo, é uma demasia. A exigência da fase de habilitação deve ser proporcional, e coerente com o objeto da futura contratação. Saber da existência de dívida pouco auxilia o poder público, que não está dispensado de proceder à verificação da capacidade econômico-financeira. Não por outra razão a lei 8.666/93, estatui que para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados exclusivamente a documentação relativa a "qualificação econômico-financeira" (Art. 27, III). E o artigo 31, além da certidão, exige a apresentação de demonstrações financeiras "que comprovem a boa situação financeira da empresa". Tal comprovação permitirá ao poder público examinar o mérito, examinar o que realmente interessa para fins de se chegar à contratação. Pode ser que um concorrente apresente certidão negativa de distribuição de recuperação judicial, mas não passe no requisito que interessa, isto é, a comprovação da boa situação financeira da empresa; e vice-versa. No caso apreciado pelo STJ, o plano de recuperação já havia sido aprovado. Esse é um ponto decisivo a ser enfatizado. Ora, se a dívida foi reestruturada, ao menos em tese ela cabe no fluxo de caixa do devedor. Presume-se então que ocorreu o saneamento financeiro da empresa. Nessa circunstância, não deve existir nenhum obstáculo de ordem formal à participação da empresa no mercado, ainda que para participar de licitações. Possuir dívidas não é necessariamente um sinal de crise; o controle do passivo à luz do fluxo de caixa da empresa é inerente à atividade empresarial, e o financiamento por meio de terceiros, seja para a expansão da atividade seja para capital de giro, é negócio corriqueiro no meio empresarial. Esse fato, a pendência de recuperação judicial, por si só, não deve ser obstáculo à participação em licitação, nem é fator conclusivo sobre capacidade econômico-financeira. A reestruturação da dívida, por meio do processo de recuperação pode, na realidade, fortalecer a empresa, que estará financeiramente mais equilibrada e com mais aptidão para atuar no mercado. A barreira da certidão não se justifica, o que não dispensa, por óbvio, o exame casuístico da capacidade econômico-financeira. Podemos dizer, a bem da verdade, que a dificuldade à empresa, que, no caso julgado pelo STJ, gerou a necessidade de impetração de mandado de segurança para participar do certame, não é causada somente pela lei das licitações. A própria lei 11.101/05 também contribui para essa dificuldade do devedor. Como se sabe, a lei instituiu o que se convencionou chamar de período de fiscalização. Após a aprovação do plano de recuperação, a empresa "permanecerá em recuperação judicial" pelo prazo de dois anos, diz o artigo 61. Esse dispositivo causa embaraços à empresa. Mesmo com a reestruturação do seu passivo, o simples fato de se encontrar em recuperação judicial dificultará o acesso ao crédito e à obtenção de novos contratos, como aqueles que são celebrados com o poder público, que dependem de licitação. a aprovação do plano de recuperação implica a reestruturação do passivo e a sua acomodação ao fluxo de caixa, liberando a empresa para empreender sua vida econômica. A artigo 61 dilata a agonia do devedor, pois causa-lhe embaraços no quotidiano dos negócios, e foi um fator que levou à impetração do mandado de segurança e o recurso julgado pelo STJ; o período de supervisão não se justifica. Caso a nossa lei previsse, após a aprovação do plano de recuperação judicial, o encerramento imediato do processo, a empresa estaria livre para seguir seu caminho, agora com o passivo reorganizado. E apresentar-se-ia perante o mercado e seus concorrentes em igualdade de condições. Sem o sinal de estar em crise, que é a obrigatória menção ao fato de estar em recuperação judicial em todos os atos, contratos e documentos firmados (art. 69). Chama a atenção, por fim, o registro do relatório do acórdão, segundo o qual o juízo universal expede certidão mensal para atentar a plena capacidade econômico-financeira da recuperanda. À luz da jurisprudência do STJ, não cabe ao Judiciário o exame do conteúdo econômico-financeiro do plano de recuperação judicial, e, por maioria de razão, atestar a capacidade econômico-financeira da recuperada. O caso em apreço mostra que a lei 11.101/05 precisa ser alterada, para prever, após a aprovação do plano de recuperação, a extinção imediata do processo, liberando a empresa para atuar livremente no mercado, inclusive perante o Poder Público; a lei das licitações também precisa ser alterada, para afastar a exigência de apresentação de certidão, que não tem o condão de, por si só, proteger o poder público.
Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A maior eficiência do procedimento falimentar e a possibilidade de o empresário falido rapidamente se recuperar são os principais objetivos pretendidos por todas as propostas de alterações da Lei de falência atual, a lei 11.101/05. Um procedimento célere e que permitisse ao credor efetivamente satisfazer seu crédito com a liquidação dos ativos do devedor reduziria o risco de contratação dos agentes no mercado, com ganhos sistêmicos. Uma falência mais eficaz resultaria, ainda, em melhor alternativa ao credor, o qual, diante de um plano de recuperação judicial, teria melhores condições para aferir a viabilidade econômica da manutenção do devedor na condução de sua atividade empresarial. A despeito de inovações legais serem necessárias, a utilização judicial de medidas cautelares para a apuração de responsabilidade dos sócios e administradores por eventuais desvios de ativos praticados em detrimento dos demais credores tem sido crescentemente utilizada também como importante instrumento para garantir que os credores possam ter seus créditos em maior medida satisfeitos diante de um empresário de má fé. Os limites da utilização dessas medidas cautelares e a possibilidade de decretação do sigilo processual das investigações em relações às próprias partes e seus patronos, contudo, vêm sendo questionados diante das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. A exigência da publicidade é princípio básico da administração pública e modo de realização dos demais princípios constitucionais. Em face do poder judiciário, o princípio da publicidade assegura, em sua vertente externa, que todos tenham acesso aos julgamentos e atos processuais, o que garante a independência e imparcialidade do juiz no julgamento e na condução do processo. Em sua vertente interna, como conhecimento das decisões pelas próprias partes, a publicidade assegura o exercício do contraditório e da ampla defesa pela parte que, insatisfeita, poderá ainda recorrer à instância superior, quando admissível. Esse direito à publicidade, entretanto, não é absoluto. Caso estejam presentes, no processo falimentar, indícios de que tenha ocorrido desvio ou ocultação de bens, possível a instauração pelo administrador judicial de incidente cautelar para a apuração do referido desvio. Referido incidente permitirá não apenas a arrecadação de eventuais bens para a satisfação dos credores, como eventual responsabilidade dos sócios ou administradores da falida. Para que esses objetivos possam ser alcançados, excepcionalmente a mitigação da publicidade dos atos processuais poderá ser exigida. Além da preservação da intimidade, em casos em que a publicidade poderá implicar constrangimento à própria parte, a publicidade externa dos atos processuais poderá ser restringida em face dos terceiros sempre que sua realização impeça a própria efetividade do ato jurisdicional. Excepcionalmente, todavia, a própria publicidade interna poderá ser restringida. Medidas investigativas para apuração dos desvios de ativos ou de responsabilização dos sócios ou administradores de sociedades falidas poderão ser determinadas mesmo sem que haja conhecimento da própria parte investigada ou de seus patronos. O interesse público incidente no procedimento falimentar para a satisfação dos interesses da coletividade de credores e para a preservação da própria empresa em crise e dos interesses que nela estão envolvidos conflita-se com a exigência de publicidade e fiscalização pelo falido dos atos processuais. Sua ciência sobre as diligências realizadas para a localização dos ativos poderá permitir ao devedor promover nova dissipação dos bens ou a criação de obstáculos para a apuração de suas condutas. Esse direito de controle dos atos judiciais pelo falido por meio da publicidade, desde que presentes as circunstâncias que indiquem que podem comprometer a efetividade das medidas, deve ser sopesado com a relevância social e o interesse público na apuração dos atos de desvio ou ocultação praticados e em detrimento da coletividade de credores. Ainda que tal determinação de segredo possa indicar, num primeiro momento, afronta a direitos constitucionais ou às próprias prerrogativas dos advogados, a restrição da publicidade mesmo interna não é nova no direito brasileiro. O Código de Processo Civil previu a possibilidade da decretação de medidas cautelares como arresto ou sequestro sem a informação prévia à parte adversa sempre que necessária para assegurar a utilidade do provimento, a qual poderia ser comprometida caso houvesse a ciência da parte. Nessas hipóteses excepcionais, o direito constitucional ao contraditório não é totalmente suprimido, mas apenas diferido. A verificação da ocorrência de desvio de ativos da Massa Falida ou sua ocultação pode ser realizada, caso as circunstâncias fáticas exijam, sem a ciência imediata do devedor ou de seu patrono, desde que demonstrado que esse conhecimento possa obstar a efetividade da medida ou comprometer o intuito de preservar os bens da Massa Falida ou apurar eventual conduta ilícita de seus sócios ou administradores. Apurada sua ocorrência, entretanto, a responsabilização civil dos infratores e as constrições sobre os ativos dela decorrentes serão realizadas sob o crivo do contraditório, respeitado o devido processo legal, e com o exercício da prerrogativa do advogado de consultar o incidente de investigação tão logo o resultado da diligência seja comunicado no feito. Diferido excepcionalmente esse contraditório, portanto, harmonizam-se os direitos e garantias constitucionais do empresário falido, de seus sócios ou administradores eventualmente infratores com a persecução do interesse social de celeridade e eficiência da prestação jurisdicional no procedimento falimentar para a satisfação da coletividade de credores.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! Em um dos primeiros textos nesta coluna, expusemos como seria o passo a passo de um processo de recuperação judicial1. Muitas dúvidas têm ocorrido no cotidiano forense, entretanto, quanto à habilitação, divergência ou impugnação de créditos neste procedimento. Não tem sido raras, por exemplo, as habilitações protocoladas nos autos da recuperação judicial, em que pese a lei determinar que sejam apresentadas ao administrador judicial. Pensando nestas dificuldades, elaborei este guia rápido, para que os que não estão habituados aos ritos próprios da recuperação judicial possam se orientar. Quando você está de acordo com o valor e a classificação do crédito, que bom: nada há a fazer a esse respeito. Mas e quando há algum equívoco, que medida tomar? Vamos às principais dúvidas. 1. Habilitação, divergência e impugnação: qual a diferença? Habilitação, divergência e impugnação são medidas absolutamente distintas, mas que por vezes provocam confusão. Primeiro, vamos retomar o quadro esquemático do procedimento da recuperação judicial que já inserimos nesta coluna, mas com destaque para tais medidas: Como se vê, a habilitação e a divergência são apresentadas em momento anterior, após a publicação do edital com a primeira relação de credores, que é elaborada pelo administrador judicial a partir da lista de credores apresentada pela própria empresa recuperanda e de sua documentação contábil. Habilitação e divergência se distinguem entre si por um pequeno detalhe: (i) na habilitação, o crédito não foi contemplado na primeira relação de credores e o credor pretende obter a sua inclusão; (ii) na divergência, o credor está listado na primeira relação de credores, mas discorda do valor de seu crédito, de sua classificação (trabalhista, com garantia real, quirografário ou microempresa/empresa de pequeno porte) ou mesmo de sua indevida inclusão (por exemplo, no caso de credor que pretende ver reconhecida a sua extraconcursalidade, ou seja, a não submissão à recuperação judicial). A impugnação, por sua vez, é apresentada em estágio posterior, após a apreciação das habilitações e divergências pelo Administrador Judicial, o que leva à elaboração de uma segunda lista de credores. Caso o credor não concorde com a inclusão, exclusão, valor ou classificação de seu crédito nesta segunda lista, poderá então se valer da impugnação. 2. Para quem eu apresento a habilitação ou a divergência? O art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005 é claro: as habilitações e divergências devem ser protocoladas perante o Administrador Judicial. Então, caro amigo leitor, lembre-se: em princípio, nada de protocolar a habilitação ou a divergência no juízo da recuperação judicial, ok? Digo "em princípio" porque, na prática, o edital com a primeira relação de credores determinará onde e como serão apresentadas a habilitação e a divergência (por exemplo, em vias físicas no escritório do Administrador Judicial, ou por e-mail ou mesmo - contrariando a lei - perante o juízo da recuperação judicial). Em síntese: sempre olhe o edital com a primeira relação de credores, lembrando que, em regra, tais medidas não serão protocoladas em juízo. 3. Qual o prazo para apresentar a habilitação ou a divergência? Essa pergunta também encontra resposta no art. 7º, § 1º da lei 11.101/2005: o prazo para tais medidas é de 15 (quinze) dias. Referido prazo se inicia na data de publicação no Diário Oficial do edital com a primeira relação de credores. Aí você pode me perguntar: dias úteis ou corridos? A lei 11.101/2005 é omissa a este respeito, mas como se diz que esta é uma fase administrativa de verificação dos créditos, que se processa perante o Administrador Judicial (a quem incumbe receber as habilitações e divergências e as apreciar), recomendo que esse prazo seja cumprido em dias corridos. É que, no âmbito das habilitações e divergências, sequer chega a ser instaurado processo judicial (no máximo, um processo administrativo), então não dá para descartar a hipótese de que alguém sustente - e eu concordaria! - que a contagem de prazos do CPC é inaplicável a esta situação. E, como sempre digo, discussão doutrinária só é boa no prazo dos outros... 4. Quais documentos devem instruir a habilitação/divergência? A relação de documentos que devem instruir a habilitação ou a divergência pode ser deduzida a partir do art. 9º da lei 11.101/2005. São os seguintes documentos: (i) procuração e, se pessoa jurídica, seus atos constitutivos; (ii) planilha demonstrativa do valor do crédito, atualizado até a data do pedido de recuperação judicial (apenas no caso de habilitação ou se houver alguma divergência quanto ao valor constante da primeira relação de credores); (iii) documentos comprobatórios do crédito objeto de habilitação ou divergência (contratos, aditivos, anexos, etc.); (iv) documentos comprobatórios das garantias prestadas ao credor (por exemplo, escritura de hipoteca, no caso de garantia real) De acordo com o art. 9º, parágrafo único da lei 11.101/2005, os documentos relacionados nos itens (iii) e (iv) devem ser exibidos "no original ou por cópias autenticadas se estiverem juntados em outro processo". Entretanto, não é incomum que o Administrador Judicial aceite cópias simples de tais documentos, sobretudo nos casos em que as habilitações ou divergências são apresentadas por e-mail. Se a questão não estiver prevista no edital com a primeira relação de credores, é sempre bom consultar previamente o Administrador Judicial a respeito da necessidade ou não de apresentação de documentos originais/cópias autenticadas2. 5. Apresentei a habilitação/divergência, e agora? Uma vez apresentadas as habilitações ou divergências, o Administrador Judicial irá verificar se estão corretamente instruídas. Caso esteja faltando algo, é comum que o Administrador Judicial entre em contato com o advogado do credor (por telefone ou e-mail, por exemplo), solicitando documentos adicionais. Superada esta etapa de verificação preliminar, o Administrador Judicial apreciará as habilitações e divergências e apresentará a segunda relação de credores. Como se trata de simples procedimento administrativo, não há a possibilidade de condenação em verbas sucumbenciais nesta etapa. 6. Já foi publicada a segunda relação de credores, o que faço? Publicado no Diário Oficial o edital com a segunda relação de credores, terão os credores, recuperandas e o Ministério Público o direito de consultar os documentos em posse do Administrador Judicial que embasaram a apreciação das habilitaçoes, divergências e a elaboração dessa segunda lista (art. 8º da lei 11.101/2005). A razão disso é evidente: é que esses são os legitimados para apresentar eventual impugnação judicial a essa segunda lista de credores, na qual poderão postular a inclusão de novos créditos, a exclusão de créditos, a modificação de seu valor ou a sua classificação. Caso se pretenda impugnar vários créditos, terá que ser apresentada uma impugnação para cada crédito (art. 13, parágrafo único da lei 11.101/2005). 7. Não apresentei habilitação/divergência antes, posso impugnar? A lei 11.101/2005 não exige que o credor tenha apresentado habilitação ou divergência após a publicação da primeira lista de credores para que possa apresentar impugnação judicial à segunda lista de credores elaborada pelo Administrador Judicial. Aliás, há outros legitimados (recuperandas e Ministério Público) que, pela letra da lei, somente poderiam atuar nesta etapa judicial. Como se não bastasse, as habilitações retardatárias (ou seja, apresentadas após o prazo legal) serão processadas como impugnação (art. 10, § 5º da lei 11.101/2005), tudo a evidenciar que a apresentação dessa última medida pelo credor independe de prévia habilitação ou divergência. Claro que a opção do credor pela impugnação judicial não é isenta de riscos: como aqui temos um verdadeiro incidente processual, que será processado e julgado pelo Poder Judiciário, caso o credor saia derrotado, haverá a possibilidade de que seja condenado em honorários sucumbenciais3. 8. Para quem eu apresento a impugnação? Aqui, a situação é diferente da habilitação ou da divergência: tal medida deve ser protocolada perante o juízo da recuperação judicial (art. 13 da lei 11.101/2005). Isso não significa, entretanto, que a impugnação deva ser protocolada como simples petição nos autos da recuperação judicial. Como ela será autuada em apartado (art. 13, parágrafo único da Lei 11.101/2005), normalmente deverá ser protocolada como um incidente, a ser distribuído por dependência à recuperação judicial. Não custa alertar mais uma vez: caso pretenda impugnar vários créditos, apresente uma impugnação para cada crédito. 9. Qual o prazo para apresentar a impugnação? Essa pergunta deve ser respondida à luz do art. 8º, caput, da lei 11.101/2005: o prazo para tais medidas é de 10 (dez) dias. Referido prazo se inicia na data de publicação no Diário Oficial do edital com a segunda relação de credores. Mais uma vez, deve ser respondida a pergunta: dias úteis ou corridos? Para variar, a lei 11.101/2005 é também omissa a este respeito. Trata-se, porém, de um incidente processual, de maneira que, a rigor, a forma de contagem em dias úteis estabelecida pelo CPC/2015 deveria ser aplicada. Contudo, recente decisão do STJ no Recurso Especial 1.699.528 pode lançar alguma dúvida a esse respeito: embora referido precedente diga respeito especificamente à forma de contagem (em dias corridos) do stay period (prazo de suspensão da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, conforme previsto no art. 6º, caput, da lei 11.101/2005) e do prazo para a apresentação do plano de recuperação judicial (art. 53 da lei 11.101/2005), há passagens neste acórdão que podem vir a ser generalizadas para a contagem de outros prazos previstos na lei 11.101/20054, como o da impugnação5. Recomenda-se, portanto, que se consulte se há alguma deliberação específica do juízo da recuperação judicial a respeito da forma de contagem desse prazo. 10. Apresentei a impugnação, e agora? Apresentada a impugnação, seguem-se as seguintes etapas: (i) contestação do credor que teve o seu crédito impugnado no prazo de 5 cinco dias, se a impugnação não foi apresentada pelo próprio credor (art. 11, da lei 11.101/2005); (ii) manifestação da recuperanda, também no prazo de 5 (cinco) dias (art. 12, caput, da lei 11.101/2005); (iii) parecer do Administrador Judicial, a ser apresentado, mais uma vez, no prazo de 5 (cinco) dias (art. 12, parágrafo único, da lei 11.101/2005); (iv) deferimento de eventuais provas que se reputem necessárias e, uma vez encerrada a instrução, julgamento da impugnação. Como já advertido, havendo resistência da parte que sair derrotada, de acordo com a jurisprudência dominante, haverá a sua condenação nas verbas sucumbenciais. Contra referida decisão, caberá agravo de instrumento, nos termos do art. 17 da lei 11.101/2005, Naturalmente, se houve arbitramento de verba sucumbencial na decisão agravada e o agravante tiver insucesso em segunda instância, poderá ainda ser condenado em honorários recursais (art. 85, § 11 do CPC). 11. Mas já foi até homologado o quadro-geral de credores... Bom, nesse caso, já tendo sido homologado o quadro-geral de credores, não mais cabe impugnação. Mas nem tudo está perdido: poderá o credor ainda ingressar com ação de retificação do quadro-geral de credores, que tramitará pelo procedimento comum e deverá ser distribuída por dependência ao juízo da recuperação judicial (art. 10, § 6º da lei 11.101/2005). * * * Como já apontado no texto em que se apresentou o procedimento da recuperação judicial, o cotidiano forense mostra que, infelizmente, muitos profissionais que atuam nas RJs não conhecem seus trâmites básicos, o que causa uma série de tumultos e dificulta o andamento de um procedimento já complexo. Continuamos, portanto, no nosso intento de contribuir para que as fases procedimentais previstas na legislação sejam observadas por todos que atuam nas recuperações judiciais. Espera-se que o presente artigo possa auxiliar nas principais dúvidas em matéria de habilitação, divergência e impugnação. Abraços, e até a próxima! __________ 1 Andre Roque e Luiz Dellore. O passo a passo de um processo de recuperação judicial. Migalhas. 2 Na prática, é bastante comum que os credores entrem em contato com o Administrador Judiciais por telefone ou e-mail para tirar eventuais dúvidas. A cautela é bem-vinda. 3 Nesse sentido, v. TJSP; AI 2102676-65.2018.8.26.0000; Ac. 11636311; Guarulhos; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Maurício Pessoa; Julg. 24/07/2018; TJSP; AI 2038302-40.2018.8.26.0000; Ac. 11636815; Campinas; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Claudio Godoy; Julg. 23/07/2018; TJMS; AI 1404526-88.2018.8.12.0000; Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Amaury da Silva Kuklinski; DJMS 02/07/2018. 4 Confira-se a seguinte passagem da ementa: "5. O microssistema recuperacional e falimentar foi pensado em espectro lógico e sistemático peculiar, com previsão de uma sucessão de atos, em que a celeridade e a efetividade se impõem, com prazos próprios e específicos, que, via de regra, devem ser breves, peremptórios, inadiáveis e, por conseguinte, contínuos, sob pena de vulnerar a racionalidade e a unidade do sistema. 6. A adoção da forma de contagem prevista no Novo Código de Processo Civil, em dias úteis, para o âmbito da Lei 11.101/05, com base na distinção entre prazos processuais e materiais, revelar-se-á árdua e complexa, não existindo entendimento teórico satisfatório, com critério seguro e científico para tais discriminações. Além disso, acabaria por trazer perplexidades ao regime especial, com riscos a harmonia sistêmica da LRF, notadamente quando se pensar na velocidade exigida para a prática de alguns atos e na morosidade de outros, inclusive colocando em xeque a isonomia dos seus participantes, haja vista a dualidade de tratamento" (STJ, REsp 1.699.528, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/04/2018). 5 Sobre a insegurança causada por essa decisão na contagem dos prazos processuais na recuperação judicial, Luiz Dellore. O STJ decidiu que a contagem de prazos, na recuperação judicial, é em dias corridos: e agora? Migalhas.
Texto de autoria de Paulo Furtado Enquanto são discutidas as propostas de alteração da lei 11.101/2005, é possível implementar desde logo medidas adequadas ao aumento da eficiência do procedimento de recuperação judicial, utilizando-se dois instrumentos muito úteis, que são o negócio jurídico processual e o calendário processual. Dispõe o art. 190 do novo Código de Processo Civil: "Versando o processo sobre direitos que admitem autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Par. único - De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade". Esse o teor do art. 191 do novo Código de Processo Civil: "De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso. Par. 1º. - O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais devidamente justificados. Par. 2º. - Dispensa-se a intimação das partes para a prática do ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário". O negócio jurídico processual: a) tem como fundamento o princípio da autonomia da vontade; b) será admitido quando se tratar de direitos passíveis de autocomposição; c) as partes sejam capazes e estejam em situação de equilíbrio; d) tem por finalidade tornar mais eficiente o procedimento. O calendário processual, que tem por objeto a disciplina das datas para a prática de atos processuais ou a fixação de datas de audiências, dispensa a intimação das partes. O procedimento de recuperação judicial, por sua vez, tem por fundamento a preservação da empresa e por finalidade viabilizar a superação da crise por meio de uma solução negociada entre o devedor e seus credores. De acordo com o professor Francisco Satiro, esse processo judicial se justifica porque, diante da complexidade estrutural das atividades empresariais atuais e da multiplicidade de credores com interesses e objetivos no mais das vezes incompatíveis, a tarefa de negociação e composição de débitos, ou mesmo de restruturação de negócios, tende a ser inefetiva (Castro, Rodrigo Rocha Monteiro de; Warde Júnior, Walfrido Jorge; Guerreiro, Carolina dias Tavares (coord.). Direito Empresarial e Outros Estudos em Homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Quartier Latin, 2013, Capítulo 5, Autonomia dos Credores na Aprovação do Plano de Recuperação judicial; pp. 102/104). Para que o processo de recuperação seja eficiente, o professor Eduardo Secchi Munhoz destaca que são necessárias certas medidas, adotadas pela lei 11.101/2005: a) a suspensão das ações e execuções contra o devedor, de modo a interromper a corrida individual dos credores, evitando a liquidação precipitada de bens integrantes do patrimônio do devedor; b) divisão dos credores em classes, a fim de assegurar que a vontade dos credores na recuperação seja manifestada de forma coerente com as características e prerrogativas contratuais de cada crédito, evitando-se, com isso, desvios de ordem hierárquica dos créditos; c) decisão por maioria, dentro de cada classe, para evitar situações de hold up, nas quais algum credor, por conta de uma situação particular, poderia, isoladamente e contra a vontade da maioria, impedir uma solução avaliada melhor para todos. (Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa. Revista do Advogado. AASP. Ano XXIX, nº 105, setembro de 2009, p. 115-128.). Não há incompatibilidade entre o modelo de negociação para superação da crise (os planos normalmente modificam os direitos dos credores, alterando valores, prazos e condições de pagamento) e o modelo agora adotado para o direito processual (que admite negociação sobre forma dos atos processuais, fixação de prazos para a realização dos atos pelos sujeitos do processo e alteração de atos do procedimento). O que não pode ser negociado pelas partes são apenas os atos essenciais do procedimento de recuperação judicial, como, por exemplo, a suspensão das ações e execuções individuais por 180 ("stay period"), que é fundamental para que os credores não destruam o valor da organização empresarial. Também a divisão de credores em classes e a deliberação por maioria são aspectos essenciais do procedimento de negociação, para que credores de hierarquia superior não sejam tratados de forma pior do que credores de hierarquia inferior, e para que uma minoria não impeça uma solução considerada mais satisfatória pela maioria dos credores de determinada classe. Contudo, outros atos do procedimento e a forma de realização destes atos podem ser objeto de negócio jurídico processual. A título de exemplo: a) devedor e credores podem pactuar a forma de manifestação da vontade dos credores a respeito do plano, estabelecendo o voto escrito e não em assembleia, desde que seja possível ao administrador judicial conferir a autenticidade do voto; b) as partes podem ajustar nova modalidade de comunicação dos atos processuais, desde que sejam seguras, como, por exemplo, a publicação no endereço eletrônico do administrador judicial, eliminando-se as custosas publicações de editais; c) é possível que as impugnações sejam processadas extrajudicialmente pelo administrador judicial que a impugnação integralmente processada seja protocolada em juízo para decisão, poupando-se o cartório de repetidos atos de comunicação; d) podem ser ajustadas sessões de mediação, de modo a permitir que os interessados apresentem suas necessidades e a devedora proponha um plano para a superação da crise que atenda aos diferentes grupos de credores; e) é viável a fixação de calendário processual, com o objetivo de trazer previsibilidade, celeridade e economia ao procedimento, ficando os credores cientes desde o início das datas em que os atos processuais serão praticados, incluindo a apresentação do plano e as datas de realização da assembleia geral de credores. Credores e devedora ajustaram calendário e negócio jurídico processual, nos autos do processo 1056004-07.2018.8.26.0100, da 2ª vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo. A assembleia foi realizada logo no início do procedimento, permitindo uma aproximação entre devedora e credores, mais abertas ao diálogo, criando-se a expectativa de que a solução consensual quanto ao processo é o primeiro passo para a elaboração de um plano de recuperação judicial equilibrado. Também é possível a eliminação ou redução do prazo de fiscalização judicial, estabelecendo as partes que o processo será encerrado com a decisão de concessão da recuperação, exatamente como se dá na recuperação extrajudicial. A permanência do devedor em estado de recuperação por dois anos gera vários entraves, quer sob o aspecto financeiro, quer sob o aspecto negocial. Além de gastos com assessores financeiros, advogados e pessoas que devem estar à disposição do administrador judicial para prestar informações sobre as atividades, o devedor tem restrição de acesso ao crédito, pois as instituições financeiras são obrigadas a adotar provisões mais conservadoras nas operações com os devedores em recuperação e os demais agentes econômicos sentem-se inseguros em contratar com quem está no regime de recuperação judicial. Por outro lado, se os credores são reunidos para decidirem sobre o conteúdo do seu direito de crédito, não há razão para proibi-los de escolherem se querem ou não fiscalizar o devedor que está obrigado a satisfazer o crédito. Os credores podem optar por uma fiscalização extrajudicial, nomeando pessoa de sua confiança, com acesso à contabilidade e ao caixa da recuperanda. Tal forma de monitoramento das atividades do devedor poderá ser mais barata e menos burocrática, superando as vantagens da fiscalização pelo administrador judicial. E mesmo depois da sentença de encerramento da recuperação, os credores poderão requerer a falência ou a execução do título, em caso de descumprimento das obrigações previstas no plano. Enfim, os negócios jurídicos processuais são plenamente compatíveis com o procedimento de recuperação judicial e podem contribuir para que ele se torne um instrumento mais eficiente para a superação da crise econômico-financeira do empresário.
Texto de autoria de Luiz Dellore Introdução Como já exposto anteriormente nesta coluna, uma vez deferida a recuperação judicial os credores se submetem a ela, podendo participar das negociações acerca do plano de recuperação, o qual preverá as condições de pagamento dos créditos e a forma de soerguimento da empresa1. Mas, mesmo em relação a um plano em que houve intensa negociação, e que pode ser considerado favorável aos credores, é inegável que há perdas quanto ao crédito. Seja em relação à forma de pagamento, alongamento do pagamento, juros, correção ou mesmo - o que é muito comum - desconto no próprio valor principal a ser recebido, o que usualmente se denomina de haircut. Logo, é claro que, do ponto de vista do credor, a recuperação traz prejuízos. Contudo, é certo que o cenário falimentar em regra é muito pior2. Como poderia, então, o credor não se submeter à recuperação judicial, e ter seu crédito inteiramente protegido, mesmo no caso de RJ de determinada empresa? São poucas as ferramentas para isso na legislação, merecendo destaque a garantia fiduciária - seja de bens móveis ou imóveis (lei 11.101/2005, art. 49, § 3º). Assim, tratando-se de crédito garantido fiduciariamente, o credor fiduciário não se submete à recuperação judicial. Portanto, mesmo em um cenário de crise para a empresa devedora e deferimento de sua recuperação, o crédito fiduciário não é objeto de novação, ou seja, não se sujeita às condições de pagamento previstas no PRJ aprovado, sendo considerado "extraconcursal", isto é, permanecem as condições contratuais originárias. Enquanto isso, os créditos concursais se submetem ao PRJ aprovado. A garantia fiduciária na RJ De início, destaque-se que muitas vezes, no ambiente das recuperações, a existência da garantia fiduciária como crédito extraconcursal não é vista com bons olhos. Recuperandas, demais credores e por vezes mesmo administradores judiciais, promotores e magistrados apontam que não é adequado que, enquanto todos façam sacrifícios, apenas alguns poucos credores não tenham de contribuir para a salvação da empresa3. De qualquer forma, trata-se da previsão legal a qual, inclusive, permanece no projeto que atualiza a lei de recuperação judicial4. Assim, em meu entender, se não se entende correta essa previsão, é necessária alteração legislativa, e não uma decisão judicial - claramente ativista - para afastar a extraconcursalidade de um crédito com garantia fiduciária. Mas essa conduta judicial por vezes se verifica, o que apenas contribui para um cenário de insegurança jurídica, sendo um péssimo exemplo para potenciais investidores e na verdade inibindo a atividade econômica como um todo. Afasta-se a previsão legal para (tentar) salvar uma empresa em detrimento da coletividade, pois com isso o ambiente de insegurança inibe o crédito (ou o torna mais caro) para todas as demais empresas, afetando as relações comerciais. Mas o foco desta coluna não é a (in)conveniência da garantia fiduciária como extraconcursal, tema a ser tratado de lege ferenda. Vejamos o assunto de lege lata. O tema vem regulado no art. 49, § 3º (grifei): Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) § 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. A previsão é bastante clara: créditos com garantia fiduciária não se submetem à RJ, de modo que são, portanto, extraconcursais5. Como já mencionado acima, a previsão legal muitas vezes não é bem recebida pelas empresas, que várias vezes tentam afastar a extraconcursalidade. Mas o STJ já se manifestou acerca do tema e, felizmente (no meu entender, por certo), cumpriu com o seu papel institucional e constitucional: deu a última palavra em relação à interpretação infraconstitucional, afirmando o que diz a lei, no sentido da não sujeição à RJ do crédito com garantia fiduciária. São inúmeros julgados nesse sentido, como o seguinte (grifei): RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO GARANTIDA POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. NATUREZA JURÍDICA. PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. NÃO SUJEIÇÃO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. "TRAVA BANCÁRIA". 1. A alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, possuem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitando aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da lei 11.101/2005. 2. Recurso especial não provido. (REsp 1202918/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/03/2013, DJe 10/04/2013) Perceba-se que esse julgado trata, ainda, de outro tema que foi objeto de debate - igualmente já superado: seria possível a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis e títulos de crédito (a denominada "trava bancária"), com a consequente extraconcursalidade desse crédito? A resposta do STJ foi positiva6. Diante dessa firme posição do STJ, outros argumentos passaram a ser utilizados pelas empresas em recuperação para tentar afastar a garantia fiduciária. Aí é que surgiu o debate acerca do registro. Cessão fiduciária sem registro segue sendo crédito extraconcursal? Após a definição do STJ quanto à extraconcursalidade da cessão fiduciária, passaram algumas recuperandas a afirmar que a ausência de registro do contrato relativo a bens móveis desnaturaria a garantia como extraconcursal. Assim, a ausência de registro da trava bancária faria com que o crédito fosse concursal, especificamente quirografário. Essa tese encontrou acolhida em diversos locais, chegando até mesmo a ser sumulada no âmbito do TJSP. Nesse sentido, as Súmulas 59 (acerca da possibilidade de cessão fiduciária de direito de crédito) e 60 (acerca da necessidade de registro) desse Tribunal: Súmula 59: Classificados como bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de créditos podem ser objeto de cessão fiduciária. Súmula 60: A propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor Ou seja, a ausência de registro, no cartório de títulos e documentos, da cessão fiduciária de crédito, afastaria a extraconcursalidade, passando o crédito a ser concursal. Apesar de a tese ter encontrado guarida em alguns tribunais intermediários, não foi essa a posição que prevaleceu no STJ. Em síntese, o Tribunal Superior decidiu, no final de 2015, que o registro é declaratório (finalidade é dar ciência e ser oponível a terceiros) e não constitutivo - portanto, no sentido contrário ao da Súmula 60/TJSP. Logo, não é requisito, para que o crédito seja extraconcursal, o registro da cessão fiduciária de crédito. Nesse sentido, a síntese do julgado, constante do informativo 578/STJ (grifei): DIREITO EMPRESARIAL. NÃO SUJEIÇÃO A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS DE CRÉDITO CEDIDOS FIDUCIARIAMENTE. Não se submetem aos efeitos da recuperação judicial do devedor os direitos de crédito cedidos fiduciariamente por ele em garantia de obrigação representada por Cédula de Crédito Bancário existentes na data do pedido de recuperação, independentemente de a cessão ter ou não sido registrada no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor. (...) REsp 1.412.529-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 17/12/2015, DJe 2/3/20167. Apesar dessa firme posição do STJ, seguem existindo julgados de 1º e 2º grau, em alguns Estados do Brasil, reconhecendo a concursalidade de cessão fiduciária não registrada, o que corrobora o cenário de insegurança jurídica. Nesse caso, necessário que o credor fiduciário ingresse com recurso (agravo de instrumento da decisão de 1º grau ou recurso especial da decisão colegiada) e pleiteie antecipação de tutela recursal para que não haja a submissão desse crédito à recuperação judicial. E já há precedentes de concessão de liminares para atribuir efeito suspensivo aos especiais, mesmo no âmbito do TJ/SP8, mesmo que a Súmula 60-ainda não tenha sido revogada. O ideal seria, sem dúvidas, o alinhamento jurisprudencial dos tribunais intermediários e juízos de origem à posição do STJ. Mas, persistindo decisões divergentes, conveniente seria o uso de um instrumento capaz de proferir uma decisão vinculante - seja IRDR, IAC ou recurso especial repetitivo. Acompanhemos a sequência desse tema, inclusive no âmbito dos debates legislativos acerca da alteração da lei. __________ 1 Vide especificamente o texto que trata do trâmite da RJ em juízo. 2 Pior para o credor mas, eventualmente, melhor para a sociedade, conforme texto anterior nesta coluna. 3 Nesse sentido, por exemplo, texto anterior nesta coluna. 4 O Projeto de Lei que modifica a lei de recuperação não altera a extraconcursalidade da garantia fiduciária (o PL pode ser consultado aqui, e com uma primeira análise aqui). 5 É certo que existem ressalvadas no final do parágrafo, mas o tema foge dos objetivos deste texto. 6 No âmbito do informativo de jurisprudência 518/STJ esse mesmo julgado é reproduzido com interessante explicação: "DIREITO EMPRESARIAL. NÃO SUJEIÇÃO DO CRÉDITO GARANTIDO POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITO CREDITÓRIO AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. O crédito garantido por cessão fiduciária de direito creditório não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da lei 11.101/2005. Conforme o referido dispositivo legal, os créditos decorrentes da propriedade fiduciária de bens móveis e imóveis não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. A cessão fiduciária de títulos de crédito é definida como "o negócio jurídico em que uma das partes (cedente fiduciante) cede à outra (cessionária fiduciária) seus direitos de crédito perante terceiros em garantia do cumprimento de obrigações". Apesar de, inicialmente, o CC/2002 ter restringido a possibilidade de constituição de propriedade fiduciária aos bens móveis infungíveis, a Lei n. 10.931/2004 contemplou a possibilidade de alienação fiduciária de coisa fungível e de cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição contrária, é atribuída ao credor a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito. Além disso, a lei 10.931/2004 incluiu o art. 1.368-A ao CC/2002, com a seguinte redação: "as demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial". Desse modo, pode-se concluir que a propriedade fiduciária contempla a alienação fiduciária de bens móveis, infungíveis (arts. 1.361 a 1.368-A do CC) e fungíveis (art. 66-B da lei 4.728/1965), além da cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito. Assim, o crédito garantido por cessão fiduciária de direito creditório, espécie do gênero propriedade fiduciária, não se submete aos efeitos da recuperação judicial. Como consequência, os direitos do proprietário fiduciário não podem ser suspensos na hipótese de recuperação judicial, já que a posse direta e indireta do bem e a conservação da garantia são direitos assegurados ao credor fiduciário pela lei e pelo contrato. REsp 1.202.918-SP, Rel. Min. Villas Bôas Cueva, julgado em 7/3/2013". 7 Acima reproduziu-se apenas a síntese do julgado no informativo de jurisprudência. Segue aqui o restante do que constou do informativo: "É a partir da contratação da cessão fiduciária, e não do registro, que há a imediata transferência, sob condição resolutiva, da titularidade dos direitos creditícios dados em garantia ao credor fiduciário. Efetivamente, o CC limitou-se a disciplinar a propriedade fiduciária sobre bens móveis infungíveis, esclarecendo que "as demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial" (art. 1.368-A). Reconhece-se, portanto, a absoluta inaplicabilidade à cessão fiduciária de títulos de crédito (bem móvel, incorpóreo e fungível, por natureza) da disposição contida no § 1º do art. 1.361 do CC ("Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro"). Já no tratamento ofertado pela lei 4.728/1995 no § 3º do art. 66-B, não se faz presente a exigência de registro, para a constituição da propriedade fiduciária, à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito. Além disso, o § 4º dispõe que se aplica à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito o disposto nos arts. 18 a 20 da lei 9.514/1997. Segundo o art. 18 da referida lei, o contrato de cessão fiduciária em garantia, em si, opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos até a liquidação da dívida garantida. Por sua vez, o art. 19 confere ao credor fiduciário direitos e prerrogativas decorrentes da cessão fiduciária que são exercitáveis imediatamente à contratação da garantia, independentemente de seu registro. Por outro lado, o posterior registro da garantia ao mútuo bancário destina-se a conferir publicidade a esse ajuste acessório, a radiar seus efeitos perante terceiros, função expressamente mencionada pela lei 10.931/2004 ao dispor sobre Cédula de Crédito Bancário. Note-se que o credor titular da posição de proprietário fiduciário sobre direitos creditícios não opõe essa garantia real aos credores do recuperando, mas sim aos devedores do recuperando (contra quem, efetivamente, far-se-á valer o direito ao crédito, objeto da garantia), o que robustece a compreensão de que a garantia sob comento não diz respeito à recuperação judicial. O direito de crédito cedido não compõe o patrimônio da devedora fiduciante (que sequer detém sobre ele qualquer ingerência), sendo, pois, inacessível aos seus demais credores e, por conseguinte, sem qualquer repercussão na esfera jurídica destes. Não se antevê, desse modo, qualquer frustração dos demais credores do recuperando que, sobre o bem dado em garantia (fora dos efeitos da recuperação judicial), não guardam legítima expectativa. Aliás, sob o aspecto da boa-fé objetiva que deve permear as relações negociais, tem-se que compreensão diversa permitiria que o empresário devedor, naturalmente ciente da sua situação de dificuldade financeira, ao eleger o momento de requerer sua recuperação judicial, escolha, também, ao seu alvedrio, quais dívidas contraídas seriam ou não submetidas à recuperação judicial. Por fim, descabido seria reputar constituída a obrigação principal (mútuo bancário representado por Cédula de Crédito Bancário emitida em favor de instituição financeira) e, ao mesmo tempo, considerar pendente de formalização a indissociável garantia àquela, condicionando a existência desta última ao posterior registro. Assim, e nos termos do art. 49, § 3º, da lei 11.101/2005, uma vez caracterizada a condição de credor titular da posição de proprietário do bem dado em garantia, o correlato crédito não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, remanescendo incólumes os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, conforme dispõe a lei especial regente". 8 Como exemplo, a seguinte decisão: "Processo 2213926-74.2016.8.26.0000. 1. Fls. 2220/2222: Cuida-se de pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso especial interposto por CAIXA ECONÔMICA FEDERAL contra acórdão da 1ª Câmara de Direito Privado deste Tribunal de Justiça (fls. 2195/2199, mantido às fls. 2336/2340). Alega que a fumaça do bom direito decorre da natureza extraconcursal dos créditos bloqueados, pois decorrentes de cessão fiduciária em garantia de recebíveis, em consonância com entendimento firmado pelo STJ. Sustenta, no mais, que o perigo na demora consiste na possibilidade de levantamento dos valores que atingem mais de oitocentos mil reais. Postula a suspensão da ordem de restituição de valores. É a síntese do necessário. Viável se mostra a concessão do efeito suspensivo. A jurisprudência do egrégio Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que a excepcional concessão de efeito suspensivo a recurso especial está condicionada à probabilidade de seu provimento (fumus boni iuris) e à iminência de grave dano a ser causado pela decisão recorrida (periculum in mora). Nesse sentido: (...) De fato, a despeito do disposto na súmula 60 ("A propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor"), verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que o crédito garantido por cessão fiduciária não se submete ao processo de recuperação judicial, independentemente de registro em Cartório de Títulos e Documentos (REsp 1508155, relator o ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, in DJe de 4/11/2016). Cuida-se, pois, de questão relevante e suficiente a caracterizar o fumus boni iuris. A par disso, também presente o periculum in mora, uma vez que, caso não concedido o efeito suspensivo, o recorrente terá que cumprir a determinação de restituição de, ao menos, R$ 882.042,47 - parcela incontroversa, mas passível de alteração porque a recorrida alega o montante de R$ 1.435.227,45. As consequências oriundas do levantamento dos valores justificam a concessão, em caráter excepcionalíssimo, do efeito suspensivo pretendido até a efetivação do exame de admissibilidade, cessando, de imediato, caso este se mostre negativo. Assim, defiro o pedido de efeito suspensivo ao recurso especial. Oficie-se, com urgência, comunicando o mm. juiz a quo. 2. Aguardem-se as contrarrazões. São Paulo, 5 de outubro de 2017. LUIZ ANTONIO DE GODOY Presidente da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça".