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Olhares Interseccionais

Temas relevantes e atuais do Direito, com recorte crítico e acadêmico, destacadamente nas áreas das ciências criminais e dos direitos humanos.

Fabio Francisco Esteves, Aléssia Tuxá, Jonata Wiliam, Marco Adriano Ramos Fonsêca, Lívia Sant'anna Vaz, Charlene da Silva Borges, Saulo Mattos, Wanessa Mendes de Araújo, Vinícius Assumpção e Camila Garcez
É torrencial e ácida a chuva de gente negra que se derrama no cotidiano em formato de pedaços de carne ensanguentados e selados por chumbo. Aliás, viver negramente não sugere eufemismos, ainda mais quando perspectivas sufocantes sobre classe, gênero e sexualidade constituem a encruzilhada desse existir. É melhor falarmos logo em genocídio antinegro. A contínua, massiva, sistemática e gratuita morte de pessoas negras não cabe na literatura. É tão assustadoramente real, que desdenha da mais tormentosa ficção afropessimista.  E com tanta nervura exposta, essa morte coletiva negra é invisibilizada por quem, com sobra de tempo, brinca de blackface e antirracismo de ocasião. A branquitude - muitos/as de uma alvura postiça - é perita na arte de se manter no poder e explorar a carne negra. E, justamente por isso, cenas desse genocídio antinegro entram no especulativo e lucrativo mercado midiático, cujo critério é: quem pode oferecer mais detalhes sobre o suplício deste ou daquele corpo negro? São tantas formas de nos matar. São várias as maneiras de nos fazer morrer de "morte natural". Do excesso de sal e gordura na alimentação desconectada de princípios alimentares ancestrais, passando pela saúde mental interrompida pela parábola neoliberal da meritocracia, aos tiros certeiros de balas perdidas, aquelas que devastam sonhos das comunidades negras, interrompem grávidas, abortam a ingenuidade das crianças, antes mesmo que consigam chegar nas sinaleiras da vida, onde costumam segurar placas de papelão nas mãos que anunciam: tenho fome! Há quem prefira dizer que essas crianças famintas esquecidas nas ruas são apenas mais um caso de insegurança alimentar. É fome grotesca, quer saber, é fome, e, como sempre, no Brasil a fome é negra. "      (...) tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome   Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino em algum lugar                   (...) se tem gente com fome dá de comer. (Solano Trindade)1" "A felicidade do branco é plena. A felicidade do preto é quase." Queria tanto discordar de Emicida. Sinto uma espada atravessar meu corpo, em corte diagonal, quando ouço esse trecho de Ismália. Penso: será sempre assim a condição da negritude, uma atmosfera de falta, subtração, a variar somente na intensidade dessa falta de si, desse sentir-se estranho e deslocado em convívio com o mundo branco? Difícil escapar daquela cena musical, do quase .... que angustia o coração, e que é real num país que se recusa a discutir seriamente seus conflitos étnicos e raciais, e não consegue assumir historicamente que a (falsa) abolição da escravização não assegurou o respeito à dignidade do povo negro, a suas tradições religiosas e elaborações linguísticas, lançando-o em um mar social de explorações e criminalizações destinadas a novas formas de aprisionamento. Do ferro quente lançado em seus rostos, das correntes amarradas em seus pulsos, diretamente para os porões de viaturas e cárceres imundos. Canta Lazzo Matumbi, nos lembre sempre daquela música que diz: "no dia 14 de maio, eu saí por aí/ Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir/ Levando a senzala na alma, eu subi a favela/Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci/ Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia/Um dia com fome, no outro sem o que comer/Sem nome, sem identidade, sem fotografia/ O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver."  Esse negro poeta musical também nos entrega um pouco de vigor ao cantar os versos: "mas minha alma resiste, meu corpo é de luta/Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu." Conseguiremos resistir e (re) existir a esse desperdício de vidas negras, marcado por uma ciranda infinita de assassinatos, violências obstétricas e sexuais? Outro dia a placa de um restaurante zen mostrava: "a alimentação cura e a arte salva".  Algo assim. A população negra, como regra, está exposta a uma alimentação de baixa qualidade nutritiva, isso quando não está inserida num quadro crônico de fome. Ou seja, é alvo do que se pode chamar de racismo alimentar, que resulta em nutricídio.2 E quem está agonizando no dia a dia, tentando garantir um prato de feijão com arroz, catando restos, não tem espaço mental, por óbvio, para a arte.  Aquela frase zen, na prática, não acolhe a população negra. Carolina de Jesus deixou anotado em seu diário: "eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu estou sonhando.3" E no subúrbio ferroviário tem muita gente morrendo de "invasão domiciliar". Lá pelas tantas e, às vezes em plena luz do dia, tem gente preta sendo exterminada. Ninguém sabe. Ninguém viu. A história se repete por anos, investigações não são iniciadas ou esbarram em ausência de informações probatórias sobre a autoria delitiva. Códigos de silêncios celebram o genocídio da juventude negra. Cadáveres adiados. Parece que foi essa a expressão usada por Zaffaroni em A Questão Criminal para se referir à situação dos/as que são alcançados/as pelo sistema de justiça criminal. Ainda é pouco. O pensamento de João Costa Vargas é mais certeiro, precisamos compreender que "a morte negra não causa escândalo."4 O Brasil é um país antinegro. Talvez por isso as frequentes condenações injustas de pessoas negras, uma espécie de morte social, não causam o impacto reflexivo que deveriam proporcionar. A branquitude segue inabalável em seu percurso histórico de expropriação material, carnal, espiritual e emocional de pessoas negras. Tem gente preta desaparecendo, transformando-se em gotas de sangue que jorram dos olhos de mães pretas. Há dores que nem a força do atabaque acalma, nem a magia de estar descalço na terra molhada, esperando Exu passar, consegue dar conta, porque ser mãe numa comunidade negra periférica é experenciar um constante déjà vu sobre a morte precoce do próprio/a filho/a. Ao abrir o email institucional, algumas mensagens eletrônicas portavam o título Nota de Falecimento: "Com pesar comunicamos o falecimento de .... O sepultamento será .....". Essas notas têm um sabor emocional adstringente. Quando será a minha vez? Uma nota sobre um parente próximo? Naquela semana, percebeu-se que as notas se referiam também a parentes distantes, que eram sempre no mesmo formato, embora motivadas por uma intenção burocrática de prestar condolências. Na hora da morte, o Estado não perderia o caráter insosso de sua existência. Naqueles dias, um pensamento diferente apareceu quando a pele preta reluziu mais forte nas reflexões diárias. Nem isso. Nem mesmo essa frieza burocrática estatal que presta solidariedade sobre a morte de um parente, a comunidade preta tem direito. Não que seja grande coisa. Não bastassem os corpos negros em que tropeçamos nos noticiários e nas calçadas periféricas, é mais uma evidência de que "a morte negra não causa escândalo." __________ 1 Poema Tem gente com fome, de Solano Trindade, em Cantares ao meu povo, 1961. Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2022. 2 Expressão usada pelo médico e intelectual Dr. Llaila O. Afrika para designar o limitadíssimo acesso da população negra a alimentos saudáveis, frescos, e como essa população, em um cenário problemático de nutrição global, tem sofrido com o consumo de produtos ultraprocessados, sendo alcançada por doenças como diabetes e pressão alta, além de integrar com destaque o mapa da fome mundial. É autor dos livros Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race e African Holistic Health. 3 Jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014, p. 29. 4 VARGAS, João Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.48, n. 2, p.83-105, jul./dez., 2017.
Até que os leões possam contar suas próprias históriasOs caçadores sempre serão os heróis das narrativas de caça. Provérbio bakongo As vivências do racismo são como feridas abertas que não cicatrizam. De tanto doer, chegamos até a "esquecer" que elas estão lá, latentes, em carne viva. Certa feita, uma pesquisadora da área da educação e relações raciais me perguntou de inopino, no início de uma entrevista: "qual a sua experiência mais violenta de racismo?". Embora engasgada, a resposta saltou da minha boca sem que eu pudesse dosar as palavras: "eu apanhei!". Os traumas (coloniais)1 daquela lembrança "quase esquecida" latejaram no meu corpo e meus olhos quiseram transbordar. Engoli o choro como, muitas vezes, minha menina engoliu. Permanecemos alguns segundos em silêncio, enquanto eu ouvia aquela voz: "neguinha aguenta, neguinha aguenta!", era o que dizia um dos meus agressores enquanto me batia. Eu ainda não tinha nem oito anos de idade, quando "gritaram-me negra",2 mais uma vez!   A pesquisadora interrompeu a entrevista. Nunca mais nos encontramos, mas, depois daquele dia, uma pergunta passou a rondar meus pensamentos por alguns poucos pares de anos, até hoje. Por que eu não contei aos meus pais essa e outras tantas experiências de racismo que sofri na infância? Há alguns dias, foi exaustivamente noticiada e festejada a reação de Giovana Ewbank, mulher branca, diante de ataques racistas cometidos contra seus filhos, duas crianças negras. Giovana reagiu como toda mãe deveria ter o direito de reagir. Mas mães pretas não têm! Quando Taís Araújo, mulher negra, revelou publicamente que a cor do seu filho fazia com que as pessoas mudassem de calçada, sua fala foi invalidada, deslegitimada. Ela teve sua dor de mãe preta negada e ainda sentiu na pele, ela própria, mais uma vez, o racismo. Sim, Tais foi taxada de vitimista e sofreu ofensas racistas por quebrar o silêncio acerca do racismo contra crianças negras, por proteger o seu filho. Os dois episódios, tratados de maneira tão diferentes, demonstram que não há toga, jaleco ou qualquer roupa de grife que seja capaz de nos proteger do racismo, de "revestir" a nossa pele preta para imunizá-la. Nosso corpo é um alvo sempre disposto e exposto! Afinal, quem se importa com a dor da mãe preta? Aquela que prefere que seus pretinhos tomem chuva do que saiam "armados" com guarda-chuvas ou usem casacos com capuz; aquela que permanece em angustiante vigília enquanto seus filhos não retornam para casa; e que, depois de enterrarem seus meninos - quase (nunca) homens feitos - encontrados pelas balas perdidas, precisam transformar luto em luta. Enquanto isso, a guerra antinegra segue seu curso, responsável por 77,9% do número de homicídios cometidos no Brasil (que representam 20,4% dos homicídios cometidos no mundo) Dentre os assassinados, 91,3% eram negros e 50% tinham entre 12 e 29 anos.3 Num modelo de mundo tão estruturalmente racista como esse em que vivemos, no qual a violência racista não encontra qualquer limitação geográfica ou etária, apenas quando pessoas brancas reagem ao racismo que violenta nossos corpos todos os dias, ele, enfim, se torna realidade. Mas se somos nós a defendermos nossas crias, esse mesmo racismo encarnado atravessa nossas existências, sangrando velhas/novas feridas eternizadas. Precisamos, então, de proteção das/os brancas/os? Não foi o que nos ensinou a nossa ancestralidade, que abriu caminhos em meio às opressões coloniais escravagistas e, com isso, confirmou que não precisamos e que não podemos contar com a defesa de uma branquitude que colheu e segue colhendo privilégios às custas de sangue, suor e lágrimas negros Se não é possível imaginar quais serão nossas reações quando o racismo nos atingir às escâncaras, mesmo que através das mais costumeiras formas, quando sua violência é direcionada a nossas filhas e filhos, não é difícil antever a ventania que nos invade e nos enche de fúria. Afinal, a queimadura é sempre certa quando se brinca com fogo. Tinha razão Luiz Gama quando dizia que "essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões onde arde o fogo sagrado da liberdade"!4 Da nossa liberdade, pois o nosso útero-cabaça é umbigo-berço do mundo; não gera e protege apenas nossas crianças! Protege o quilombo inteiro! Enfim, entendi, o porquê eu, menina preta em meio à branquitude, silenciava frente às violências racistas que me afligiam quando ainda nem sabia nominá-las: eu estava, instintivamente, tentando proteger os meus pais do próprio racismo. Com o tempo, aprendi a me defender, a responder à altura, a bater de volta. O que teria sido da minha menina se não fosse o racismo? Hoje, não sei dizer o quanto da minha postura altiva (ou seria vigilante?) e da minha língua a(la)fiada ("indolente", na visão branca; insurgente em essência) são resultado das (sobre)vivências ao racismo. De tanto "apanhar" acabamos criando uma couraça defensiva que, de um lado, nos endurece o coração, do outro, nos faz padecer da alma. Ainda assim, "tornar-se negra dói, mas é libertador!",5 porque envolve retomar o direito de nomear as nossas dores,6 numa disputa narrativa que faz ecoar um clamor ancestral por justiça. Que possamos ter o direito de narrar, nomear e ter reconhecidas as nossas dores em primeira pessoa. Que sejamos leoas a contar as nossas próprias histórias de caça, colocando o caçador em seu devido lugar... __________ 1 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 2 Em referência ao poema cantado de Victoria Santa Cruz, "Gritaram-me negra". 3 Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública - 2022. Disponível aqui. 4 GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas. 5 VAZ, Lívia Sant'Anna Vaz; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. 6 Rita Segato aborda a importância do "direito de nomear o sofrimento", conferindo significado social ao sofrimento que é convertido em pauta emancipatória na construção de justiça. SEGATO, Rita. Femi-geno-cidio como crimen en el fuero internacional de los Derechos Humanos: el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho. In: FREGOSO, Rosa Linda; BEJARANO, Cynthia (Orgs.). Feminicídio en América Latina Diversidad Feminista. Cidade do México: CEIICH/UNAM, 2011.
A proteção da maternidade é direito social insculpido na nossa CF/88, que assinala, dentre outras prerrogativas normativas a licença e o salário-maternidade, a proteção especial da gestante no âmbito previdenciário, bem como a assistência social. No entanto, a despeito dos dispositivos em destaque, o que se constata é que o ordenamento legal não assegura, quer à mulher, quer à criança proteção efetiva e integral, bem como prescreve normativo que fomenta a manutenção da discriminação de gênero pela limitação do tempo de responsabilidades paternas. No dia 3 de junho, celebrou-se o dia mundial de proteção ao aleitamento materno, enquanto o mês ora vindouro é conhecido como "agosto dourado", por ser dedicado à conscientização e esclarecimentos sobre a importância do aleitamento materno, fonte principal para a saúde do bebê. Apesar disso, há pouco o que celebrar, quer pelas reminiscências do passado, quer, da atualidade. Do passado, impõe-se lembrar as tantas feridas históricas que remontam a memória das mulheres negras, que escravizadas, foram privadas do exercício da maternidade livre e da amamentação de seus filhos, não raro fruto de violência sexual, pois separadas eram de suas famílias para servirem de amas de leite das famílias brancas. Na atualidade, as mulheres possuem dificuldade de continuar a amamentação exclusiva, em virtude da necessidade de retorno precoce ao mercado de trabalho, o que atinge em especial, aquelas em situação de vulnerabilidade social, o que inclui, majoritariamente, a realidade cotidiana de mulheres negras. Aspectos como a ausência de rede de apoio, a solidão materna, a desigualdade social e econômica e as restrições impostas pelo mercado de trabalho antes, durante e após o exercício da maternidade, em especial, em um contexto que mães solo são uma realidade estatística significativa em nosso país e demonstram que existe uma grande lacuna em termos de implementação de políticas públicas que garantam a proteção da maternidade, bem como a corresponsabilização dos genitores no contexto familiar. O art. 7º, XVIII, da CF/88 prevê licença à gestante com duração de cento e vinte dias, sem prejuízo ao emprego e ao salário assim como garantia de emprego limitada a cinco meses após o parto, enquanto ao genitor, a quem deveria ser prescrita igualdade de condições para o cuidado com a prole, a licença se limita ao mínimo até 20 dias, a depender da natureza do vínculo de trabalho entabulado. Segundo a organização mundial de saúde, 6 milhões de crianças são salvas por ano por conta de campanhas de aleitamento materno, ainda assim, a licença-maternidade de até seis meses não é uma realidade para todas no país, essa restrita a servidoras públicas e empregadas de empresas inscritas no programa empresa cidadã, o que denota, portanto, que não apenas o gênero, bem como a desigualdade social e econômica, caracterizam marcadores restritivos não apenas ao acesso, como também à permanência das mães no mercado de trabalho. O art. 396, CLT, apesar de prever que a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho a dois descansos especiais de meia hora cada um, não previu, por exemplo, espaço adequado para que a mulher possa promover o aleitamento no ambiente de trabalho, que, somado à distância do local de trabalho da residência da trabalhadora torna inviável o deslocamento durante a jornada laboral e por conseguinte, a manutenção dos benefícios do aleitamento exclusivo e aos cuidados com a criança após o período da licença-maternidade. Importante frisar que as proteções em destaque tutelam apenas trabalhadoras com vínculo formal de trabalho e ainda assim, por tempo limitado, restrito ao período inicial da procriação1, ficando desprotegidas, portanto, as mulheres em situação de informalidade, que não gozam de qualquer tutela legislativa que lhes assegure segurança financeira ou assistencial para manutenção do cuidado com a prole, o que por óbvio, impõe o retorno ainda mais cedo ao trabalho. Nesse particular, os números comprovam o tratamento cruel deferido pela sociedade às mães. Para além da já conhecida desigualdade de gênero na composição do mercado de trabalho, em que, a participação masculina é de 19,2% superior à inserção das mulheres, o índice de discrime é ainda mais acentuado quando se analisa a condição das mães com filhos até 3 anos, com franco prejuízo às mulheres negras. Para mulheres sem filhos, segundo dados do IBGE2, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho foi de 72,8% para mulheres brancas e 63%, para mulheres negras, percentual que reduz drasticamente quando se trata das mulheres com filhos na idade até 3 anos, em que o nível de ocupação no mercado de trabalho cai 54,6% para as mulheres negras e 67,2% para mulheres brancas, o que revela que um vasto contingente de mães são alijadas de proteção estatal. Sendo o trabalho formal meio principal de inserção das mulheres pobres na sociedade, o que se nota é um franco comprometimento do acesso à cidadania, em especial, às mulheres negras e pobres, compondo um ciclo de precarização e reprodução da pobreza, que afeta gerações. Em se tratando de mulheres encarceradas, nos termos da lei de Execuções Penais, é assegurado o direito a manter a amamentação exclusiva e estar na presença de seus filhos, porém, conforme se verifica na pesquisa da Fiocruz3, pouquíssimas unidades prisionais estão aparelhadas para o cumprimento do ditame de proteção a maternidade, das gestantes e lactantes. É certo que, a fim de assegurar concretude aos ditames constitucionais, em 2018, o STF decidiu, por meio do habeas corpus coletivo (HC 143.641), que a gestantes e mães de crianças até 12 anos e que estavam aguardando julgamento teriam o direito da prisão domiciliar e, assim, poderiam permanecer em suas residências acompanhadas de seus filhos. Existem, ainda, projetos de lei em andamento tendentes a amenizar as desigualdades no que toca a proteção da maternidade, a exemplo do PL 4.768/19 que institui a política nacional de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno, cujos pilares são a garantia do direito da mãe e da criança ao aleitamento materno nos padrões estabelecidos pelas autoridades sanitárias; a promoção da conscientização da sociedade sobre a relevância do aleitamento materno; o estímulo à implementação de medidas que facilitem o aleitamento materno em ambientes de trabalho, lazer e transporte, públicos e privados, unidades hospitalares, educacionais e prisionais, entre outros. Além deste, somam-se alguns outros, como o PL 1.145/11, que aumenta para 180 dias a licença maternidade das mulheres que trabalham em equipagens das embarcações de marinha mercante, de navegação fluvial e lacustre, de tráfego nos portos e de pesca e o PL 4.837/20 pune com reclusão de um a quatro anos quem proibir ou constranger a mãe no momento da amamentação, em estabelecimento público ou privado. Já o PL 5.373/20 prevê que a trabalhadora mãe ou adotante possa optar por 120 dias de licença-maternidade com salário integral, como é a regra atualmente vigente, ou então por 240 dias de afastamento com a metade da remuneração. O título desse artigo, portanto, não é acidental, apesar de todos nós sermos frutos da procriação feminina, o que se vê é um apagamento quanto à dispensabilidade dos cuidados devidos e necessários ao pleno exercício da maternidade, à corresponsabilidade parental e social, como se a filiação e seus respectivos cuidados fossem encargo exclusivo das mães. É urgente, assim, por imposição constitucional e que sejam asseguras efetivas medidas de conciliação entre gênero e raça, o trabalho e a família, com vistas a tutelar os papéis de mães e profissionais, para tanto indispensável a inserção da figura do pai no contexto familiar, da sociedade, do Estado e da empresa, por meio, dentre outras medidas da disponibilização de serviços e locais destinados aos cuidados infantis e da implementação das licenças parentais. A despeito dos ditames constitucionais que impõem a necessária concretização de medidas aptas à efetiva proteção à maternidade e a infância, o que se vê, pela própria inércia legislativa em aprovar pleitos dessa envergadura, afinal, todos os projeto de lei citados ainda se encontram em tramitação, é que a realidade fática é muito diferente da realidade jurídica, ainda muito tímida em termos de proteção da maternidade e incentivo ao aleitamento materno, portanto, há, assim, um longo caminho de redenção no exercício digno da maternidade. _____ 1 VAZ, Daniela Verzola et al. Duração do Emprego Formal e Desigualdade de Gênero no Brasil: o caso das famílias de baixa renda. Disponível aqui. 2 IBGE - Instituto brasileiro de geografia e estatística. Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no mercado de trabalho no Brasil. 2.ed. Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
Edite: será que a política não tem outra coisa pra fazer não? Ficar correndo atrás de uma coisa que a gente fuma e ri? Parece errado perseguir a alegria. Elisa Lucinda Na oportunidade que tenho de escrever na Coluna Olhares Interseccionais, no Julho das Pretas, busquei inspiração em Elisa Lucinda para abordar um tema visceral para a sociedade brasileira, ou seja, a guerra às drogas. Elisa Lucinda, como se sabe, é poeta, atriz, escritora, jornalista, professora e cantora1. O que impressiona em seus textos e em seu talento comunicacional é a capacidade de falar de coisas complexas de maneira delicada, didática, de modo a favorecer a compreensão. Sua escrita e sua pessoa é um desvelar em todos os sentidos. Certa feita, assisti com um amigo um show de Elisa Lucinda no Teatro Café Pequeno. Entre uma música e uma poesia, Elisa explicava as coisas como professora que é. Dizia de como o Brasil, por vezes, revela-se autodestrutivo e produz inimigos internos combatendo o que lhe é essencial. Associou esse fenômeno político a uma doença autoimune. Impressionado, meu amigo me afirma que, naquela noite, conseguiu compreender perfeitamente o conceito de doença autoimune. Ela é assim. Fala de política e ensina medicina. Uma sina? De alguém que, desde menina, brinca com rima? Essa é Elisa Lucinda, uma das mais proeminentes escritoras do Brasil.  Em seu "Livro do avesso: o pensamento de Edite"2, a própria mãe de Horizontina conta a Edite que a cabelereira Marinês delata que sua filha Horizontina fumava maconha. A mãe, então, teve como certo que se sua filha, que é seu grande amor, usa maconha, ela então deveria provar também, porque deveria ser algo bom. Na trama, então, a mãe de Horizontina experimenta pela primeira vez maconha. Disse não ter sentido nada e, como lhe faltava sabão, precisou ir ao mercado. Volta espantada porque pôs-se a rir das coisas mais comuns que há muito faziam parte de sua rotina, como encontrar a caixa do pequeno supermercado que frequenta. "Filha de Deus, não quero mais saber desse negócio não, gente!!" Exclama e prossegue: "Que vergonha. Paguei rindo, vim andando rindo pela rua. Ninguém entendeu nada". A mãe, sábia, então conclui: "Fiquei pensando, Edite: será que a polícia não tem outra coisa pra fazer não?! Ficar correndo atrás de uma coisa que a gente fuma e ri? Parece errado perseguir a alegria". Não pude ler esse texto singelo sem pensar na tragédia em vários atos intitulada "Guerras às Drogas", escrita pelos interesses econômicos, com cenografia, iluminação e roteiro elaborados pelo racismo. É... um olhar interseccional sobre a política de drogas nos revela que classe e raça são determinantes nesse enredo. Como ensina o juiz e professor Valois, "Em razão de as drogas serem um objeto, mercadoria, qualquer combate que se trave ao seu redor terá objetivos pessoais e, como vítimas, pessoas, pois drogas não andam, não falam nem têm desejos"3. Em sua tese de doutorado, informa o pesquisador do Amazonas que, antes de proibir o ópio, no século XVII, a China proibiu o fumo do tabaco, hábito levado pelos portugueses. Nesse período, a racionalidade empregada pelo sistema punitivo se traduzia na regra de que os fumantes eram decapitados4. Um século depois, a China passou a proibir o ópio. O argumento era de que a importação do produto, em razão do aumento do consumo, desequilibrou a balança comercial. Em 1729, com o novo cenário legal, inicia-se a corrução de funcionários para permitir o comércio ilegal. Os males da proibição são sempre maiores5. Nos Estados Unidos, no século XIX, a proibição do ópio foi impulsionada pela xenofobia. Chineses tinham ido para os EUA para o trabalho nas ferrovias. Quando o serviço acabou, tornaram-se mão de obra excedente, ou mão de obra concorrente. A proibição do ópio era a forma de controle dos indesejáveis. A técnica discriminatória não era disfarçada. Em 1890, o Congresso Federal Americano aprovou a lei que "permitiu a cidadão americanos a elaboração do ópio para fumar". Valois revela que às classes privilegiadas, historicamente, gozam da tolerância tanto para o uso, quanto para o abuso das drogas6. Essa questão discriminatória fica muito evidente na forma violenta, ou não, com a qual se reprime lugares indigitados com propícios ao consumo de drogas. O baile funk é palco de pancadões que vão além da questão sonora. Trata-se de pancadões das forças policias repressoras dos bailes nas comunidades. A mesma violência não se registra na repressão do êxtase, droga típica das festas raves. Claro, festa rave não é coisa de preto periférico. Devo registrar aqui que não tenho o propósito de expandir a violência dispensada aos bailes funks para as festas raves. A ideia é de que, seja para branco, seja para preto, "parece errado perseguir a alegria".   O fato é que morre muito mais gente em razão da guerra às drogas do que propriamente dos danos a saúde decorrentes do uso abusivo das drogas. Policiais, transeuntes, crianças, viciados, traficantes, basicamente todos pretos e pobres, ou "quase pretos de tão pobres", são os alvos dessa guerra7. Como diz Emicida, existe "pele alva e pelo alvo"8. Parece errado perseguir alegria. Porém, pior ainda, é proibir saúde. Note-se que várias famílias padecem com graves problemas de saúde que podem ser tratados com canabidiol. Nos registros forenses, sabe-se da história de uma família do Distrito Federal que sofria com uma criança acometida por graves crises convulsivas e que chegou a ter 60 crises convulsivas por mês, o que lhe retirava as conquistas adquiridas em quatro anos de vida, como andar, sorrir, segurar brinquedos. Em 11 de novembro de 2014, a criança tomou pela primeira vez o canabidiol. O medicamento foi o único que conseguiu controlar as crises convulsivas que acometiam a menina desde os 40 dias de vida. A cannabis sativa é importante no tratamento de epilepsia severas. A família do Distrito Federal fez as primeiras importações do canabidiol ilegalmente. Posteriormente, conseguiram uma decisão judicial que garantiu a importação do medicamento. Felizmente, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando a possibilidade de importação direta do produto, como no caso de tratamento para paralisia cerebral grave (RECURSO ESPECIAL Nº 1.657.075 - PE). De igual modo, a Corte Superior, através de sua Sexta Turma, por unanimidade, concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas que possam cultivar Cannabis sativa (maconha) com o objetivo de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de sofrerem qualquer repressão por parte da polícia e do Judiciário. RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE. (RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 147169 - SP) Parece óbvio que se o suposto bem jurídico tutelado na Lei de Drogas, o que se diz proteger com ela, é a saúde pública, o uso medicinal de drogas não pode configurar uma conduta material e penalmente típica. Por fim, também decidiu o Superior Tribunal de Justiça que os planos de saúde devem custear medicamento à base de canabidiol, com importação autorizada pela Anvisa9. Como destaca Adriana Facina, a literatura é perfeitamente utilizável para as pesquisas no campo das ciências sociais, seja utilizando a obra literária como fonte, seja fazendo da própria criação literária objeto de investigação10. Não sei se os juristas andam lendo Elisa Lucinda. Mas folgo em ver uma jurisprudência menos careta. A literatura ilumina, Elisa Lucinda inspira: Ela é assim. Fala de política e ensina medicina. Sua sina. Alguém que desde menina brinca com rima. Ela faz da rotina a arte de resistir. Precisa, espirituosa, Brilha impiedosa sobre os racistas. Encanta aliados, Inspira os filhos da África. Seduz, conduz, reluz e sorri. __________ 1 LOPES, Nei. Afro-Brasil Reluzente. 100 Personalidades notáveis do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019, p. 173-175. 2 LUCINDA, Elisa. Livro avesso: o pensamento de Edite. Rio de Janeiro: Malê, 2021, p. 83-84. 3 VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017, p. 35. 4 VALOIS, op. cit., p. 36. 5 VALOIS, op. cit., p. 37. 6 VALOIS, op. cit., p. 75-76. 7 Referência a Música Haiti do Caetano Veloso. 8 Referência a Música Ismália de Emicida. 9 Disponível aqui. 10 FACINA, Adriana. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 43-44.
A maternidade compulsória é uma realidade incômoda e ao mesmo tempo hipócrita. A sociedade e o Estado querem compelir as mulheres a serem mães, com o controle social da sua capacidade reprodutiva, estabelecendo medidas punitivas para quem deseja interromper a gravidez. No entanto, não entregam a contrapartida necessária para as obrigações existentes na nossa CF/88 que determinam a proteção integral da maternidade e da infância. Recentemente, notícias na imprensa chocaram o país com o constrangimento infringido a uma criança de 10 anos que procurou o serviço público de saúde para realizar a interrupção de uma gravidez oriunda de violência sexual. A questão fora encaminhada indevidamente ao sistema de Justiça, o que resultou no desastroso encaminhamento da criança para um abrigo, com o objetivo de que mantivesse o máximo possível a gestação até o parto, a despeito de não ter vontade consciente, condições físicas e psicológicas para elaborar este tipo de decisão. A intervenção realizada neste chocante caso concreto denota a existência de influencias morais, religiosas e ideológicas no âmbito do judiciário e do sistema público de saúde, as quais custaram a coerção indevida de uma criança a manter uma gestação indesejada, fruto de violência sexual. Nos termos da convenção de Belém do Pará, toda relação sexual realizada com menores de 14 anos deve ser entendida como violência sexual. O nosso CP disciplina a questão de maneira muito clara, assim como é extreme de dúvidas a autorização para a interrupção da gravidez a qualquer tempo nas hipóteses permissivas do chamado aborto legal. Importante ressaltar que não há qualquer marco temporal para a realização do procedimento nas hipóteses de estupro e inviabilidade da vida, a despeito de hoje termos algumas medidas administrativas do ministério da Saúde1 sugerindo um marco temporal para a execução do procedimento. Na situação noticiada semana passada, no âmbito do TJ/SC, verifica-se, ainda, o descumprimento das recomendações legais e internacionais com a adoção de perguntas e sugestões inadequadas que comprometeram a legítima manifestação de vontade da criança, bem como o acesso a intervenção de saúde necessária. Conforme as recomendações da lei 13.43/17, o depoimento prestado perante a autoridade judiciária deve ser acompanhado por profissionais especializados. A referida lei, além de qualificar como violência psicológica qualquer conduta de manipulação e isolamento da criança ou adolescente, entende como prática de revitimização e de violência institucional este tipo de conduta. A Constituição Federal informa que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A convenção sobre os Direitos da Criança e seus protocolos adicionais e a resolução 20/05 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas que compõem o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência caminham no mesmo sentido. Segundo a OMS2, entre 4,7% e 13,2% de todas as mortes maternas são atribuídas a abortos inseguros, o que equivale a entre 13. 865 e 38. 940 mortes causadas anualmente pela não realização de abortos seguros e determina, nesse contexto, que os valores fundamentais de dignidade, autonomia, igualdade, confidencialidade, comunicação, apoio social, cuidados de apoio e confiança são fundamentais para os cuidados no aborto. Os prestadores de serviços do Sistema Público de Saúde devem considerar as necessidades e prestar cuidados iguais a todos os indivíduos, de modo que a identidade de gênero ou a sua expressão não devem conduzir à discriminação. A Organização Mundial de Saúde ainda recomenda que o aborto esteja disponível a pedido da pessoa grávida, de modo que o conteúdo, a interpretação e a aplicação da lei e das políticas baseadas em fundamentos devem ser revistos para garantir a conformidade com os direitos humanos. Neste contexto, os fundamentos devem ser interpretados e aplicados de forma compatível com os direitos humanos e a interrupção da gravidez deve estar disponível nas situações em que levar uma gravidez até ao fim causaria dor ou sofrimento substancial à pessoa grávida, o que inclui a hipótese em apreço em que a gravidez é o resultado de violência sexual, bem como quando a vida e a saúde da pessoa grávida estão em risco. Configura-se violação de direitos reprodutivos e sexuais, portanto de direitos humanos, a exigência de requisitos processuais ou burocráticos para "provar" a ocorrência das hipóteses permissivas do aborto legal, tais como a ordens judiciais ou relatórios policiais em casos de violação ou agressão sexual. Não é novidade que aborto legal sofre entraves em nosso país, por conta de investidas sistemáticas de grupos conservadores. Tampouco não é a primeira vez que uma menina vítima de estupro é obrigada a manter uma gestação por conta de ingerência do sistema público de saúde chancelada pelo judiciário. No entanto, tais ilegalidades devem continuar sendo combatidas pela sociedade civil, entidades de defesa dos direitos humanos, movimentos sociais e atores do sistema de justiça, de modo que o sistema de saúde deve cumprir os ditames da Lei e não submeter ao crivo do judiciário a decisão pela interrupção da gravidez nas hipóteses permissivas do aborto legal. Segundo dados do 15º anuário da segurança pública3, mais da metade das vítimas de violência sexual que chegam até as delegacias de polícia tinham 13 anos ou menos. Entre as vítimas de 0 a 19 anos, o percentual de crimes com vítimas de até 13 anos subiu de 70% em 2019 para 77% em 2020. Eis uma conta que não fecha, que se reveste em um grande paradigma da nossa sociedade:  o controle dos corpos de mulheres e meninas, com o estabelecimento da maternidade compulsória e ao mesmo tempo o abandono da proteção da infância e juventude e a proteção integral da maternidade. Contradições que causam revolta, perplexidade para quem está no front de defesa dos direitos humanos de mulheres e crianças. _____ 1 Cartilha do aborto legal.  2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
"Aqui, lamentavelmente, falaremos de um projeto do Estado brasileiro que opera para nos matar, um a um, uma a uma. Nos matam àbala, de fome, por descaso, nos torturam, nos aprisionam, nos adoecem física e mentalmente. Arrancam de nós nossos pedaços, nossas alegrias, partes de nossas famílias. Ferem nossos ancestrais, nossa cultura. Destroemnossa terra, nossos quilombos, nosso passado. Invadem nossas casas, instalam o terror, nostiram o sossego. Não reconhecem nossa existência. Negam a nós um futuro". [Petição inicial da ADPF 973] No dia 13 de maio de 2022, foi entregue ao Supremo Tribunal Federal uma importante ação: a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 973. A ADPF, como é chamada, surge de iniciativa da Coalização Negra por Direitos1, tendo sido subscrita por sete partidos políticos. Poderíamos discutir como o direito é (também e sobretudo) uma rede de obstáculos e amarras sutis, a ponto de uma ação dos movimentos negros precisar ser apresentada formalmente por partidos políticos que - sabemos! - são dirigidos por pessoas brancas. Mas não falaremos disso. É a primeira vez que o Judiciário brasileiro está sendo provocado a reconhecer o "Estado de Coisas Inconstitucional fundado no racismo estrutural e institucional"2. O ECI é um legado jurisprudencial da Corte Constitucional Colombiana, firmado na "Sentença de Unificación" 559, em 1997; entre nós, repercutiu quando o STF foi chamado a decidir sobre a falência do sistema carcerário do Brasil, na ADPF 347. Agora o pedido é outro: a declaração judicial de que atos comissivos e omissivos do estado brasileiro têm impacto negativo diferenciado sobre a população negra, razão suficiente para implementação de medidas reparatórias concretas e urgentes. O documento entregue ao Supremo teve a difícil missão de dizer e redizer o óbvio, e o fez de forma brilhante. Estão expostas, ao longo das 63 páginas da petição inicial, as inúmeras formas pelas quais nós, pessoas negras, vivemos sob "o medo de abreviamento de nossas vidas"3. Aliás, é sobre isso que esta Coluna vem falando em quase todos - senão todos - os artigos que aqui escrevemos. Estão desnudadas as violências diuturnas que nosso povo vem sofrendo, com apontamento específico de como o projeto permanente de aniquilação do povo preto tem sido exitoso, minando direitos constitucionais expressos. A ADPF escolheu como eixos o direito à vida, à saúde e à alimentação digna, o que permite explicitar as desigualdades impostas às pessoas negras no Brasil. Todos os marcadores sociais do "nosso" país revelam o continuum desse genocídio. Se a ação é precisa nos seus fundamentos, ainda mais acertados são os pedidos, compatíveis com o descaso estatal com a população negra. O pedido central é de implementação de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte à População Negra. E como planos já houve aos montes, declinou-se mais de uma dezena de diretrizes, das quais se destacam (i) a determinação de que planos de segurança nacional, estaduais e municipais prevejam, necessariamente, ações concretas para a redução da violência policial e letalidade, estabelecendo protocolos para abordagem policial e uso da força; (ii) a adoção de políticas de proteção do exercício dos direitos políticos de pessoas negras, para mitigação da violência e responsabilização por agressões praticadas; (iii) a previsão de conteúdo voltado às relações raciais e enfrentamento ao racismo institucional nos cursos de formação para integrantes das agências de segurança pública; (iv) a garantia de atendimento a vítimas do racismo institucional, prioritariamente mães e vítimas órfãs; (v) a proteção de espaços de exercício da fé de religiões de matriz africana; (vi) a garantia do direito de alimentação, seja através da ampliação do Programa Restaurante Popular, seja através de um Plano que contemple a segurança alimentar da população negra, povos e comunidades tradicionais; (vii) a determinação da tramitação prioritária - em regime de urgência - de projetos de lei que tratem do direito à alimentação, segurança alimentar e nutricional, renda básica e programas de transferência de renda. A disseminação da expressão "racismo estrutural", especialmente nos últimos 5 anos, tem servido indevidamente a uma branquitude que busca se eximir de toda responsabilidade, tratando as opressões raciais como um legado histórico insuperável. Ante a sua enormidade, nada há a fazer, pensam. Essa constatação-letargia não nos serve - e não a admitiremos. Os fundamentos teóricos e empíricos que atestam a política negrodesumanizadora do estado brasileiro está agora submetida ao Supremo Tribunal Federal. Uma decisão fácil, talvez a mais fácil das decisões. Ou seria possível o direito negar a criança negra em insegurança alimentar, a mulher preta sem atendimento de saúde, a mãe preta chorando a execução do seu filho, o homem preto torturado nos cárceres-porões deste país? Estaremos atentos, e cientes de que nosso novo 14 de maio é a batalha pela implementação das medidas impostas por essa (ansiada) decisão - enquanto travamos nossas tantas outras lutas diárias, apesar e para além do estado brasileiro. __________ 1 Conheça mais sobre a Coalização aqui https://coalizaonegrapordireitos.org.br/ 2 Trecho da ADPF 973. 3 Trecho da ADPF 973.
A gente grita "fogo nos racistas" sempre que pode, mas a gente não bota fogo nos racistas.Eles não gritam fogo nos pretos, mas eles botam fogo nos pretos sempre que podem. Hércules MarquesLivro: Jovem preto rei - Nascido para vencer "Um boy branco me pediu um high five, confundi com um Heil Hitler..."1 12 de março de 2022, o plantão da enfermeira socorrista do SAMU, Laura Cristina Cardoso, foi interrompido pelo racismo, ecoado livremente no lar da família tradicional brasileira. A dedicação ao trabalho na área de saúde, capaz de salvar a vida do idoso de 90 anos, vítima de Acidente Vascular Cerebral (AVC), talvez tenha ferido mortalmente a vida da profissional. Em relato pelas redes sociais, ela desabafou: "Entro no quarto onde está a vítima e uma senhora que meio desesperada grita: 'E agora, filho? Ela é negra'". No que ele respondeu: "Tudo bem, mamãe. Ela está usando luvas". A vítima foi devidamente atendida pelas minhas mãos negras enluvadas e deixada aos cuidados do hospital privado que a família preferiu."2 Racismo, este é o crime perpetrado há 522 anos, mas com absolvição sumária dos acusados. Um país construído por mãos negras e indígenas, relegados a objetos pela elite aristocrática, que faz jorrar sangue negro a cada 23 minutos. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas". Os/as profissionais de saúde foram responsáveis por salvarem este país, colapsado pelas práticas genocidas do (des)Governo Federal, somado à pandemia do coronavírus. A maioria dos/as que morreram nos hospitais foram pessoas negras, como negras também eram a maioria das mãos que faziam o (im)possível para salvar as vidas. Lidaram com a sobrecarga de trabalho, distanciamento da família, doenças de ordem psicológica, solidão, atrasos nos salários, corpos empilhados, mortes, valas abertas, sacos pretos, caixão e vela. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas". No dia 12 de abril de 2022, um mês após a enfermeira do SAMU ter sido hostilizada enquanto exercia o seu trabalho, Rafaela Nascimento, enfermeira negra, foi condenada em uma ação de indenização. Desta vez, foi o sistema de justiça que se arvorou a tentar frear o grito de guerra de quem por muito tempo foi silenciado/a. Rafaela foi condenada a pagar a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), bem como excluir das redes sociais as publicações vinculadas à imagem de uma pessoa segurando cartaz com a máxima: "fogo nos racistas". Isto porque, a sua irmã acusou a funcionária da loja autora da ação de tê-la agredido e proferido injúrias de cunho racial, tal qual "negra, cadela, careca". Houve o registro do Boletim de Ocorrência, mas o representante do Ministério Público requereu o arquivamento do inquérito policial em relação à injúria racial. Este ato levou Rafaela a relatar todos os fatos em suas redes sociais, gerando repercussão e protestos em frente à loja. A loja, ora autora, ingressou com ação judicial e o pedido foi julgado improcedente, em 1ª instância. Após recorrer da decisão, obteve êxito, pois de acordo com o desembargador, "a publicação em rede social que atribui à apelante (loja) a responsabilidade por prática racista ou injuriosa, incitou a prática de crime (fogo nos racistas)". Vejam bem, o suposto crime de racismo praticado pela funcionária da loja, foi arquivado, mas o cartaz publicado nas redes sociais, segundo o acórdão, "configurou o dano moral praticado contra a pessoa jurídica". "Estamos de olho Eye of tiger, eye of tiger, eu sigo de olho. Olha eu olhando pros fascista, igual Floyd olha pro McGregor, se num entendeu o que eu tô falando, eu devo 'tá falando grego, ó."3 "Na hora do julgamento, Deus é preto e brasileiro".4 No mesmo país em que os governantes incitam execuções sumárias, "é só mirar na cabecinha e atirar, pra não ter erro", o cristão, ex-militar e presidente da República, diz que "não é coveiro". Com a marca de 584.421 mortes registradas no Brasil, o Messias exclamou: "Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas". Mas é o "fogo nos racistas" que incomoda o sistema. No país em que corpos negros são abatidos utilizando-se do slogan "bandido bom, é bandido morto", as altas taxas de letalidade policial gritam sobre absurdos, conveniências e arquivamentos dos processos, chancelados pelo sistema de justiça, sob a alegação de legítima defesa. Mas uma mulher preta é condenada em 2ª instância por "exercício arbitrário da justiça com as próprias mãos, pois inaceitável em um estado democrático de direito", postar um cartaz com a frase "fogo nos racistas". E olhe que a população negra só grita por reparação... "Firma, firma, firma, fogo nos racistas."5 __________ 1 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 2 Disponível aqui. 3 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 4 Djonga, Olho de Tigre, 2017. 5 Djonga, Olho de Tigre, 2017.
segunda-feira, 25 de abril de 2022

Ocupar todos os espaços?

Quando o assunto é negritude, parece que existe uma sonoridade consistente na frase "vamos ocupar todos os espaços". Ressoa por um longo tempo em nossas cabeças e nos faz aceitar vários tipos de convite. Inclusive nos faz pensar que certas solicitações são irrecusáveis, e que, se necessário for, a vida pessoal deve ser sacrificada para garantir a presença do corpo negro, do corpo trans, dos múltiplos corpos existencialmente mutilados, que, para espanto de muita gente, são núcleos de falas expressivas.  Que são esses espaços? Há jardins encantados neles? Por que, então, impõem uma atração quase fatal que dificulta o pronunciamento do monossílabo "não"? A injunção de "ocupar todos os espaços" até combina com o ficcional grito de guerra "Atacar!!!", e talvez nem seja tão ficcional. Continuamos a vivenciar uma guerra racial, cuja expressão extermínio da juventude negra condensa as cenas opressoras do cotidiano brasileiro. Por isso, é preciso sim ter estratégias para "saber ocupar", para que não nos tornemos algozes de nosso mundo interior. Há de se cultivar algum grau de lucidez - nem sempre possível - que permita seguir adiante, sonhar com o afago que acalma a inquietude e ter espaço mental para imaginar belos afrofuturos, com matas recheadas de árvores da estação transcendental chamada Alegria. Ocupar todos os espaços até indica um sussurrar poético, um mantra para novas conquistas acadêmicas, cargos de diretoria, títulos de doutoramento. Talvez seja um aceno para que seja reescrita uma história crítica do tempo histórico negro. Ocupar todos os espaços é um convite à formação de novos quilombos - urbanos, rurais, ancestrais, de uma magia preta reluzente. A dimensão coletiva do amor-negro é herança próspera de Palmares. Ocupar todos os espaços pode ser, porém, uma sutil armadilha para o ser negro quando visualizado em sua existência individual. Um convite à depressão, ao pânico, ao vexame público - será que o tapa de Will Smith em Chris Rock foi só um tapa de Will Smith em Chris Rock? - e, infelizmente, ao suicídio. É que o racismo também opera aproveitando-se de discursos negros contra a própria negritude. Para que se compreenda um pouco mais disso, duas perspectivas oferecem uma visão concreta do que o parâmetro de vida "ocupar todos os espaços" pode causar no psiquismo negro. A forte ideia de uma autoimposição de um sacrifício negro heroico e uma ansiosa aspiração a um mundo - e, portanto, um futuro - racialmente equânime para pessoas negras. De certo modo, paira no ar a ordem diária ao negro/a, até mesmo para os/as de classe média, que é preciso se privar de toda sorte de prazer e de alegria, ainda que ínfima, para ser alguém num mundo predestinado/a por brancos e para brancos/as. Com isso,  o/a  negro/a tende a viver num tempo existencial perdido, fractal, com sensações fantasmagóricas.  Isso porque o/a negro/a jamais será uma peça de encaixe perfeito em um mosaico branco. Títulos, dinheiro, fama, cargos públicos e até mesmo a própria inteligência parecem gerar uma sensação de equidade racial a esse negro/negra que passa a viver em uma classe econômica branca. Nada mais falso.   No fundo, na compleição íntima de sua subjetividade, sabe que será um estranho, sabe que terá que optar por um sorriso artificial, de exercer uma tolerância que maltrata sua alma a cada palavra mal colocada, a cada piada sentida na pele, a cada pergunta que lhe é direcionada como se fosse sempre um serviçal. E é por isso que esse processo de afirmação das subjetividades negras não pode acontecer no campo da solidão, sem partilhar dores e alegrias com os outros integrantes de um quilombo itinerante que também busca sua afirmação.  De nada adiantará tanto desejo pelo sucesso ou por mudança de patamar social, se ao final a mente não vai suportar o peso de desconhecer a si próprio, de negar a própria identidade, a vida em seus pequenos detalhes, e sentir, mesmo com muita gente de seu lado, mesmo com muitos amigos/as querendo te abraçar, que a desconfiança sobre o humano se tornou o valor referência de sua vida. E desconfiar de tudo e de todos é uma das sequelas inevitáveis de quem sente cotidianamente o gélido tapa que o racismo dá em seus rostos, quando nem sequer teve tempo para o matinal gole de café.   Nas ondas rimadas de Mano Brown, que se diga que há muitos/as negras e negros dramas no Brasil, que "entre o gatilho e a tempestade" têm sempre que provar que são homens e mulheres e "não um covarde".  E se o mito sacrificial heroico se coloca, de maneira geral, sobre as cabeças negras, o que dizer especificamente das mulheres negras, reduzidas, por alheios discursos produzidos sobre si, a uma noção de mulher guerreira que lhes anula, que assassina sua pulsão de vida. Mesmo as intelectuais negras, que eventualmente desfrutam de algum conforto emocional e material, ainda têm que exercer jornadas multifuncionais (mãe, trabalho, lar, relação amorosa, escritório, palestra).  Costumam, ainda, ser violentamente criticadas nas redes sociais pelas suas opções teórico-vivenciais e por convidarem a sociedade a refletir sobre o racismo patriarcal que fundou o Brasil. Sossego não é uma palavra que combina com racismo. Se pessoas brancas podem experenciar um sórdido conforto racial, no sentido de normatizarem a estética, o ato de pensar, a religiosidade e a própria experiência do amor, padronizando-os ao seu modo, ao negro/a a vida tem sido uma terra em sangrenta disputa. Se por esse mesmo conforto racial, essas brancas pessoas se colocam na autoritária posição de criticar - com seus achismos e intuições incoerentes - a densa produção intelectual de pensadoras e pensadores negros/as, julgando-as inapto/as para uma discussão científica, ao negro a possibilidade de uma realização acadêmica e profissional - sem precisar vender sua própria dignidade -  tem gerado muita angústia e sonos intranquilos. Muitos são os exemplos de disparidade racial e, portanto, de tormentos existenciais.  O racismo é uma (des)ordenada escavadeira emocional na subjetividade negra. Nessas letras finais, há quem, com o gosto de maldade nos lábios, possa concluir que a proposta de reflexão deste texto é a defesa do conformismo negro e de uma predestinada mediocridade racial. Esta seria, no mínimo, uma conclusão erradíssima. Quem por esses dias neste mundo chegar não terá a opção de escolher por viver com ou sem racismo, pois esta sanguinária ideologia parece ser transhistórica. E como o racismo não irá deixar de existir por agora, nosso propósito é destacar que uma de suas armadilhas é fazer com que o negro/a acredite que tudo é uma questão de classe e que com méritos pessoais conseguirá vencer todas as barreiras. É a partir daqui, sob a ilusão da meritocracia, que o ciclo da loucura começa a tomar conta da saúde mental de muitas pessoas negras, que acham que, sozinhas, conseguirão dar conta de uma estrutura feita para bloqueá-las. Ocupar todos os espaços? Sim. Propomos a conjugação dessa frase com outra que costuma ser entoada pela intelectual Jurema Werneck: "nossos passos vêm de longe". Devemos ocupar todos os espaços a partir de quilombos1 e diversas estratégias negras coletivas, com os pés fincados na ancestralidade negra, que, para além de uma dimensão espiritual, está repleta de exemplos de vivências comunitárias robustas, e que não foram desatentas com o autocuidado e a dimensão relacional de nossas emoções. Seja para conseguir objetivos importantes para a representatividade negra, ainda que visível inicialmente no plano individual, seja para desfrutar de conquistas até então ditas impossíveis, não podemos desistir de dialogar com os nossos e as nossas, em especial os/as mais velhos/as. Basta de tanta solidão negra! __________ 1 Uso a palavra quilombo em uma dimensão poético-política, como convite a uma efetiva solidariedade negra cujo objetivo maior é alcançar uma real dignidade racial nos diversos espaços sociais.
"Uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa." Grada Kilomba1 Numa sociedade estruturada pelo racismo patriarcal, raça e gênero são dois dos principais marcos imediatos de identificação - mas também de subalternização social - de uma pessoa. A forma como as opressões do racismo e do sexismo se interseccionam para produzir vulnerabilidades específicas contra mulheres negras nos remete à frase de Grada Kilomba acima transcrita. A mulher negra ressalta suas identidades de raça e de gênero para - a partir dessa encruzilhada identitária, marcada pelo duplo fenômeno do racismo e do sexismo (GONZALEZ, 1984, p. 224) - lutar por seus direitos. A mulher branca, num contexto no qual a concepção de gênero é racializada, representa o padrão do que é ser mulher.  Para proteger e promover seus direitos, ela sobreleva apenas sua identidade de gênero - origem da sua subjugação -, sem se racializar, já que sua raça enuncia o privilégio da sua branquitude. O homem branco, por sua vez, autoafirma-se uma pessoa. Ele não precisa se identificar, nem quanto ao gênero, nem quanto à raça, uma vez que representa a norma e a normalidade, o paradigma do sujeito de direito, a encarnação do sujeito universal. Esse exclusivismo da branquitude androcêntrica - alicerçada no racismo patriarcal - ainda opera em grande medida nas ciências jurídicas, focadas numa concepção universalizante e homogeneizante, convenientemente míope às diferenças e às identidades que historicamente subalternizam determinados grupos sociais. No Brasil, talvez o Direito seja uma das áreas do conhecimento mais coloniais e epistemicidas. Esse epistemicídio jurídico (VAZ; RAMOS, 2021, p. 235) configura-se, de um lado, pela manutenção das lógicas da modernidade/colonialidade e, de outro, pela invisibilização das contribuições oriundas dos processos de resistência e (re)existência das populações afrodiaspóricas - e indígenas também - na produção do conhecimento.     A formulação cartesiana "penso, logo existo" constitui o grande alicerce da razão moderna, ao elevar o modelo de pensamento de tradição europeia ao status de conhecimento científico universal, consolidando-o como o único modo legítimo de produção do conhecimento. Se, para existir, o sujeito deve pensar conforme essa lógica cientificista - que inaugura um dualismo entre corpo e mente - aquela/e que não pensa nos moldes estabelecidos por esse paradigma de racionalidade, simplesmente, não é digno de existência. Desse modo, nega-se capacidade de razão e, consequentemente, humanidade aos "outros", em oposição ao "eu" que, sendo um ser pensante, representa o único modo de ser no mundo. É, portanto, digno de existência e dotado de humanidade (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 145). O homem europeu afirma-se, então, como o ápice evolutivo no caminho linear da espécie humana, universalizando suas particularidades e tornando as particularidades dos seres variantes fundamentos para a dominação destes. Sob a roupagem da ética da alteridade, essa relação de dominação persiste na produção e no discurso jurídicos para definir unilateralmente "o lugar do outro no Direito". A expressão se a trecho do voto do relator na ADI nº 5543, na qual o Supremo Tribunal Federal declarou, em julgamento concluído no dia 8 de maio de 2020, a inconstitucionalidade de dispositivos normativos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC nº 34/2014) e do Ministério da Saúde (Portaria nº 158/2016), que consideravam homens homossexuais temporariamente inaptos - pelo período de doze meses, contados a partir da última relação sexual - para doação de sangue. O voto do relator, ministro Edson Fachin, concluiu pela inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, considerando, em síntese, que estes ofendem a dignidade da pessoa humana - por impedirem os indivíduos por eles abrangidos de serem como são -, além de violarem o direito fundamental à igualdade, ao negar aos destinatários da norma igual tratamento quando em comparação com os demais cidadãos. A decisão - cuja justa conclusão não se questiona - sobreleva a alteridade como embasamento ético do fazer decisório, afirmando como seu pressuposto o exercício de "compreensão sobre o lugar do Outro no Direito". Essa ética da alteridade - conclamada pelo STF em tão importante julgamento - nos chama à reflexão. Afinal, quem é o Outro? Qual é o lugar do Outro no Direito? E quem detém o poder de, estabelecendo quem é o outro, determinar seu lugar no Direito? Alteridade - do latim alteritas - designa a natureza ou condição do outro; daquele que, a partir de uma relação de contraste, é tido como distinto, diverso, destoante do padrão de normalidade. Grada Kilomba - referindo-se à dominação colonial - explica como o sujeito (colonizador/branco) projeta na/o Outra/o (colonizada/o/negra/o) características que se recusa a reconhecer em si próprio, o que configura um mecanismo de defesa do ego. Cria-se, desse modo, a/o Outra/o como antagonista do "eu": somente o lado bom do ego é vivenciado pelo sujeito como parte do "eu", sendo o resto projetado sobre a/o Outra/o como algo externo (KILOMBA, 2019, p. 34-37). Desse modo, a relação que a sociedade estabelece com a/o Outra/o será sempre medida pela sua diferença repulsiva em relação ao "eu" do sujeito hegemônico. No caso concreto, julgado pelo STF, o Outro é o homem homossexual. Mas, no Direito, a Outridade se estabelece onde quer que estejam as relações de poder impostas aos grupos vulnerabilizados por processos de opressão: a população LGBTQI+, as mulheres, as pessoas negras, indígenas, pobres; em contraposição à figura central do sujeito universal, protótipo da norma e da normalidade.   Esse sujeito universal é homem, branco, cisheterossexual e cristão. Dito em poucas palavras: o sujeito universal tem sangue azul. Há controvérsias a respeito do surgimento da expressão sangue azul. Se relacionada ao racismo - em virtude das veias azuladas sob a pele clara das pessoas brancas, como sinal de pureza e superioridade racial -; ou ao classismo - em associação às origens de um indivíduo, privilegiado desde o seu nascimento, por pertencer a uma família nobre. O fato é que, independentemente de sua origem, a expressão indica privilégio. O sujeito universal é símbolo de privilégios acumulados, que o colocam na posição de superioridade, conferindo-lhe poder de determinar, até mesmo, a medida da universalidade dos direitos. A(O) Outra(o), por sua vez, permanece como objeto. Não lhe é atribuída a prerrogativa de definir suas realidades, de estabelecer suas identidades, de narrar suas próprias histórias (hooks, 1989, p. 42). Assim, a consagrada universalidade dos direitos não é neutra e não contempla todas as pessoas, mantendo no centro determinados sujeitos de direitos. Ela parte de um lugar, de uma perspectiva única e violenta, que se constrói a partir da negação, do apagamento e da outrificação dos grupos de indivíduos tidos como diferentes. Na realidade, essa suposta prática da alteridade revela relações de poder, nas quais o "eu" - ser central e universal, cuja posição de privilégio é garantida - detém a autoridade para outrificar o diferente - ser periférico e desviante -, delimitando o seu lugar no Direito. Nessa lógica excludente, "não sendo nem branca, nem homem, a mulher negra exerce a função de o 'outro' do outro" (KILOMBA, 2012, p. 12), sendo relegada a um locus de especial subalternidade. Em poucas palavras, eu, mulher negra, não sou sujeito universal. E, na atual e persistente estrutura racista e sexista do sistema de justiça brasileiro, cabe a esse sujeito universal - encarnado pelo homem branco, cisheterossexual e cristão - definir o meu lugar no Direito. Para mulheres negras - que somam 28% da população brasileira, sendo, portanto, o maior grupo sociorracial do Brasil -, esse lugar tem sido de silêncios e silenciamentos; de naturalização de ausências e de contagem de corpos. Existe um silenciamento sobre o feminicídio negro, "compreendido como categoria analítica e como fenômeno social que abrange violências físicas, existenciais e simbólicas, de natureza sistêmica e historicamente estabelecidas, e que atinge mulheres negras porque são mulheres e porque são negras" (VAZ; CHIARA, 2021, p. 103). Com efeito, mulheres negras seguem sendo as maiores vítimas de todos os tipos de violência de gênero - mortalidade materna, violências sexual, obstétrica, doméstica e familiar e feminicídios. O Mapa da Violência 2015 relevou o impacto decisivo do fator racial o âmbito da violência de gênero, demonstrando que, no período de dez anos (2003-2013), houve incremento de 54,2% na taxa de homicídios de mulheres negras, enquanto as mortes de mulheres brancas tiveram redução de 9,8%. No cenário mais atual, conforme dados do Atlas da Violência 2020, o entrelaçamento entre racismo e sexismo permanece em evidência: enquanto a taxa de homicídios de mulheres negras teve crescimento de 12,4% entre 2008 e 2018, a taxa de homicídios de mulheres brancas teve uma redução de 11,7%, no mesmo período. O último Atlas da Violência, publicado em 2021, apontou que, no ano de 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. A pesquisa identificou que, nos últimos onze anos, é possível identificar uma tendência de redução da violência letal contra mulheres que, no entanto, não se reflete numa redução da desigualdade racial. Entre 2009 e 2019, houve um aumento de 2% no número total de mulheres negras vítimas de homicídio e uma redução de 26,9% no número total de mulheres não negras assassinadas, no mesmo período. O que acontece com a tão festejada Lei Maria da Penha - supostamente universal - que não consegue proteger mulheres negras, na mesma proporção que protege, ainda que de maneira aquém da necessidade, mulheres brancas? O que essa "incapacidade" de proteção por parte do sistema de justiça e do sistema de segurança pública tem a ver com a própria composição desses sistemas? O problema estaria com a lei ou com quem aplica ou deixa de aplicar a lei? Por que o sistema de justiça continua produzindo ativamente a inexistência das mulheres negras em seus quadros e práticas institucionais?   Compreender por que as mulheres negras se encontram na base da pirâmide social e no topo dos índices de violência e encarceramento envolve importante reflexão sobre as estruturas racistas e patriarcais que, historicamente, têm garantido a manutenção de privilégios em favor dos mesmos grupos sociais/raciais. A reprodução dessas formas estruturais de opressão pelo sistema de justiça traz obstáculos para que a cláusula da igualdade cumpra seu papel de reduzir o peso das identidades de raça e gênero para que mulheres negras alcancem sua emancipação. A sub-representação das mulheres negras nos espaços de poder e decisão - notadamente na academia jurídica e no sistema de justiça brasileiro - é fator que guarda relação direta com a persistência de uma concepção universalizante do Direito, cega às diferenças e mantenedora do status quo de dominação do "outro". Nesse sentido, a inclusão de mulheres negras é medida imprescindível para a abertura dessas instituições à diversidade e, com isso, a perspectivas epistemológicas necessárias para a construção de uma justiça com equidade de gênero e raça, em contraposição aos padrões epistemológicos brancocêntricos e androcêntricos. Sendo assim, ouso dizer que não são as mulheres negras que precisam desses espaços. Antes, são a academia jurídica e o sistema de justiça que precisam das mulheres negras! Do olhar privilegiado que essas mulheres possuem para a diversidade e, portanto, para a democratização das instituições e, consequentemente, para a construção de uma justiça pluriversal. Isso porque, conforme nos lembra Angela Davis, as mulheres negras para compreender o seu lugar na sociedade, precisa compreender os demais grupos - homens negros, mulheres brancas e homens negros - o que faz com que elas possuem grande potencial transformador da estrutura social.  É verdade que a encruzilhada interseccional em que se encontram as mulheres negras lhes reserva um lugar de dor e de peculiar subalternização social. Mas nossa ancestralidade nos ensina que essa mesma encruzilhada é lugar de encontro com a diversidade, de cruzamento de (outras tantas) identidades. Representa, portanto, reciprocidade, troca e, por isso, potência revolucionária para caminhos de transformação. Mas, afinal, pode o subalterno falar? (SPIVAK, 2014). Sim, Lélia Gonzales já enunciava que "o lixo vai falar, e numa boa" (GONZALEZ, 1984, p. 225). A questão é se essas vozes têm sido escutadas, sobretudo na esfera jurídico-política. A transição do silêncio para a fala, como um gesto revolucionário, impõe um rito de passagem no qual a mulher negra deixe de ser objeto e se transforme em sujeito (hooks, 2019, p. 45). Se é apenas como sujeitos (de direito) que podemos falar, é chegada a hora de erguermos nossas vozes, para estabelecermos nossa própria identidade, definirmos nosso próprio lugar no Direito, narramos nossas próprias histórias. Não como outridades do universal, mas como partes de uma humanidade pluriversal que valoriza os saberes das nossas ancestrais e emerge da conjunção do ontem, do hoje e do porvir, reunindo (re)existência e esperançar. "(...) A voz da minha filha/recorre todas as nossas vozes/recolhe em si/as vozes mudas caladas/engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha/recolhe em si/a fala e o ato. O ontem - o hoje - o agora. Na voz de minha filha/se fará ouvir a ressonância/o eco da vida-liberdade". Vozes-mulheres - Conceição Evaristo. Referências bibliográficas        COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. The Combahee River Collective Statement. Boston, 1977. GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira.   Disponível aqui. HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019. KILOMBA, Grada. Plantation Memorie: Episodes of everyday racism. Munster: Unrast, 2012. LORDE, Audre (poesia). "Need: A Chorale for Black Woman Voices", 1990. Tradução livre "precisa-se: um coral de vozes de mulheres negras". MALDONADO-TORRES, Nelson Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. Disponível aqui. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2014. VAZ, Lívia Sant'Anna; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. Belo Horizonte: Letramento - Casa do Direito, 2021. __________ 1 Disponível aqui.
segunda-feira, 21 de março de 2022

Dignidade humana e tráfico de mulheres

Nem tudo são flores no mês em que se celebra o dia internacional das mulheres. Ou melhor, para não dizer que não falei de flores, apesar dos avanços em termo jurídico-normativos, estas simbolizam também o luto. E do luto é preciso recobrar forças para ir à luta pelos direitos das mulheres, de todas a mulheres e todo os dias do ano. Embora seja difícil precisar o sentido do enunciado dignidade humana, a chamada teoria de cinco-componentes1parece adequada à realidade constitucional brasileira. A base antropológica remete ao homem como pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado. Daí se extrai uma integração dos direitos fundamentais, iniciando-se pela afirmação da integridade física e espiritual do homem como aspectos irrenunciáveis de sua individualidade, seguindo com a garantia da identidade e integridade da pessoa através do desenvolvimento de sua personalidade, e passando à chamada libertação da angústia da existência da pessoa, libertação esta que se dá através de mecanismos sociais de providências que garantam possibilidade de condições mínimas existenciais. O quarto componente é a consagração da autonomia individual a partir da limitação dos poderes públicos relativamente aos conteúdos, formas e procedimentos do Estado de Direito. Por fim, o quinto componente reside na dignidade social, ou na igualdade de tratamento normativo, ou seja, igualdade perante a lei2. Peter Häberle3 afirma que a teoria dos cinco componentes de Podlech possui autonomia diante de pontos de partida teórico-sistemáticos e é convincente, mormente como "integração pragmática", designadamente no plano das suas concretizações justiciáveis. A nosso sentir, a teoria dos cinco componentes tem um cariz positivo, indicando diretrizes para o respeito e a realização da dignidade. Não obstante, há uma formulação que, a nosso ver possui uma matriz negativa, indicando quando ocorre a violação da dignidade. Trata-se da chamada fórmula-objeto de Dürig. Esclarece Häberle que a fórmula-objeto de Dürig constitui a construção teórica que, na atualidade, pode ser tida como a mais convincente para a compreensão do princípio da dignidade humana, do art. 1º, inciso I da Lei Fundamental Alemã. Segundo o autor, esta fórmula possui independência jurídica em face de sua derivação filosófica, encontrando supedâneo na prática dos casos concretos há décadas4. Kloepfer ensina que, de acordo com a fórmula-objeto, a dignidade humana é atingida quando a pessoa humana se torna um mero objeto. Alerta ainda que o Tribunal Constitucional Federal alemão, ao dar concretização a esta fórmula, assinalou que ela demonstrada quando o ser humano é exposto a um tratamento que coloca em dúvida a sua qualidade de sujeito, ou quando haja um menosprezo arbitrário da dignidade da pessoa humana, e que a doutrina chama a atenção para o fato de que também um menosprezo não arbitrário da dignidade da pessoa humana atingiria a esfera de proteção do art. 1º, inciso I, da Lei Fundamental Alemã5.  Esta fórmula, de nítida inspiração kantiana, no sentido de que a pessoa humana deve ser considerada um fim e não um meio, veda, assim, qualquer coisificação ou instrumentalização do ser humano6. Dworkin também reforça a concepção kantiana ressaltando, igualmente, que o ser humano jamais poderá ser tratado como objeto, como mero instrumento para realização dos fins alheios; enfim, as pessoas nunca podem ser tratadas de forma que se negue a importância distintiva de suas próprias vidas7. A dignidade humana, como vedação da instrumentalização humana, proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, isto é, sua utilização apenas como meio para alcançar determinada finalidade. Com efeito, o critério determinante para identificar a violação da dignidade é a intenção de instrumentalizar ou coisificar o outro. Em síntese, a dignidade da pessoa humana é atingida sempre que a pessoa não é considerada como sujeito de direito. Para Sarlet8, esta concepção encontra eco no constitucionalismo brasileiro, designadamente no art. 5º, inciso III, da Constituição da República, ao dispor que ninguém será submetido à tortura e a tratamento desumano ou degradante. Ainda no caminho da concretização da dignidade humana, Häberle apresenta quatro dimensões de proteção jurídico-fundamental da dignidade9. Primeiramente, sua dimensão de defesa contra as intervenções do Estado. Esta dimensão protetiva é dúplice na medida em que é um direito subjetivo público contra o Estado (e contra a sociedade) e, ao mesmo tempo, um encargo constitucional, já que o Estado tem que proteger o indivíduo em sua dignidade em face da sociedade ou de seus grupos. A segunda dimensão associa-se ao due process, que constitui uma das mais importantes garantias da dignidade humana. A terceira dimensão consiste no fato de que a dignidade pressupõe um mínimo existencial, entregando ao Estado encargos assistenciais, como educação, saúde, moradia, entre outros. Por derradeiro, a dignidade humana tem uma dimensão comunicativa, social, e pertence tanto à realidade da esfera pública como da privada, o que induz responsabilidade diante de outros seres humanos. A concretização da dignidade humana deve levar em conta ainda que, embora a dignidade seja tendencialmente universal, ela possui uma referência cultural relativa, situando-se no contexto cultural10. Com efeito, a dignidade humana é multidimensional; possui uma dimensão ontológica, uma dimensão histórico-cultural e sua dupla dimensão (função) negativa e prestacional11.  Não custa destacar, ainda que com o risco de repetirmos o que já ficou implícito em outras passagens, que a dignidade é um valor intrínseco de todo ser humano, independentemente de cor, etnia, sexo, idade, nacionalidade, status social, sendo irrelevante também que o titular seja consciente de sua dignidade ou a compreenda, de forma que mesmo as crianças e os doentes mentais são alcançados pela proteção da dignidade humana12.  Mesmo os criminosos13 que praticaram os atos mais cruéis, indignos e desumanos possuem dignidade humana e podem até ser privados de sua liberdade, mas nunca de sua dignidade. Nesse sentido, é luminosa a passagem de Kant a demonstrar que são inadmissíveis penas que agridam a dignidade dos delinquentes e acabem por atingir a própria humanidade. Ou seja, são inaceitáveis penas que ruborizam de vergonha o espectador por [ele] pertencer a uma espécie que possa ser tratada dessa forma14. Do exposto, lançamos mão do conceito apresentado por Sarlet, para quem a dignidade humana é: A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos15. Não obstante o reconhecimento formal da dignidade humana a todas as pessoas, o fato é que o mundo enfrenta cotidianamente graves violações à dignidade das pessoas. Nesta oportunidade é oportuno dar relevo ao problema do tráfico de mulheres para exploração sexual e trabalhos forçados. Em que pese a obrigação do Estado de colocar na centralidade de suas energias a proteção às pessoas, a cultura patriarcal, o sexismo, e os interesses econômicos que sempre constituem o impulso maior das ações em uma sociedade capitalista, mobilizam energia, dinheiro e pessoas para o combate à pirataria, ao jogo e ao tráfico de drogas, apresentando o mesmo empenho e investimento, em todas as ordens, para coibir essa prática odiosa. Segundo o Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas de 201816,  a maioria das vítimas de tráfico de pessoas detectadas pelo mundo são mulheres, principalmente mulheres adultas. Contudo, vê-se cada vez mais o tráfico de meninas. A maioria das vítimas de tráfico são para fins de exploração sexual e são do sexo feminino, sendo que 35% das vítimas de tráfico são mulheres e meninas destinadas ao trabalho forçado. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho-OIT17, em 2016, registrava-se cerca de 25 milhões de pessoas em situação de trabalho forçado, sendo que 5 milhões destas em situação de exploração sexual. As mulheres são maioria nesse cenário, inclusive para fins de casamentos forçados. Diante desse quadro, no chamado mês das mulheres, é imprescindível questionar se de fato as ações do Estado brasileiro estão a dar efetividade à ideia de dignidade humana. Não custa lembrar que esta invisibilidade decorre também do fato de que essas mulheres e meninas são, em sua maioria, pretas, asiáticas, latinas, periféricas, ou seja, vidas que à luz do espírito eurocêntrico e na lógica da branquitude, são tratadas com a total indiferença. Para que a dignidade humana de fato transcenda a esfera de um conceito retórico, é preciso que novas prioridades estatais e institucionais sejam traçadas, deixando um pouco de lado a proteção de interesses econômicos, voltando os olhares para a efetiva proteção da pessoa humana que é o fundamento e o fim da sociedade e do Estado.   __________ 1 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª edição, Almedina, 2003, p. 249. 2 Idem, p. 248-249. 3 "Em adesão a Niklas Luhmann, Adalbert Podlech desenvolveu cinco condições centrais para a garantia da dignidade humana: a liberdade do medo existencial no Estado Social por meio da possibilidade de trabalho e um seguro social mínimo; a igualdade normativa dos homens, que apenas permite desigualdades fáticas justificáveis; a defesa da identidade e da integridade humana por meio da garantia do livre desenvolvimento espiritual do indivíduo; a limitação do poder estatal por meio de seu enquadramento pelo Estado de Direito; e, finalmente, o respeito da corporalidade do homem como momento de sua individualidade autônoma e responsável" (HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 76). 4 HÄBERLE, HÄBERLE, Piter. A Dignidade Humana como Fundamento da Comunidade Estatal. Tradução: Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo. In Dimensões da Dignidade (Organizador: Ingo Wolfgang Sarlet). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 75. 5 KLOEPFER, Michael. Vida e Dignidade da Pessoa Humana. Traduação: Rita Dostal Zanini. In Dimensões da Dignidade. (Ingo Wolfgang Sarlet: organizador). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 164. 6 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 36. 7 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 51-52. 8 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 59-60. 9 HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 88-92. 10 HÄBERLE, A Dignidade...op. cit., p. 80. 11 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 61. 12 KLOEPFER, Vida...op. cit., p. 152-153. 13 "...também para o criminoso 'que pode ter atentado, da forma mais grave e insuportável, contra tudo aquilo que a ordem de valores da Constituição coloca sob sua proteção, não pode ser negado o direito ao respeito da sua dignidade" (KLOEPFER, Vida...op. cit., p. 153). 14 KANT, Metafísica dos Costumes, Doutrina da Virtude, parágrafo 39. 15 SARLET, Dignidade...op. cit., p. 62. 16 UNODC, Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas 2018 (Publicação das Nações Unidas, Nº de venda E.19.IV.2). 17 Disponível aqui.
Chegamos novamente em mais um 8 de março, data que marca a memória de luta por direitos, e sobretudo, pela vida das mulheres. Ainda vivenciando um contexto pandêmico de incertezas, adentramos neste mês dedicado a debates relacionados  às mulheres com a sensação de que há muito por se realizar, combater e conquistar. Há também uma sensação de certa paralisia no andamento das coisas. Existem ainda diversos conflitos e divergências internas que precisam ser resolvidas, a começar pela necessária visibilidade e equalização em torno da própria categoria coletiva denominada "mulheres". Quem são as mulheres que possuem efetivamente acesso a direitos? Será possível efetuar uma análise universalizante sobre os problemas e dificuldades que precisam ser enfrentados? A esta altura do debate já sabemos que a resposta é não, pois ao se estabelecer a análise sob o ponto de vista interseccional, é possível constatar que não há equidade e visibilidade entre mulheres cis, trans, brancas , negras, indígenas, mulheres com deficiência,  urbanas e rurais, etc. Contudo, neste contexto, é preciso lembrar da capacidade transformadora das mulheres em movimento. Ainda que sejam heterogêneas em seus interesses e dificuldades, as mulheres quando estão em movimento e politicamente organizadas tem a capacidade de transformar realidades. Os direitos (ainda insuficientes), usufruídos hoje decorrem  de um histórico de luta e articulação política  de mulheres que utilizaram-se de estratégias  diversas. Existiram aquelas que sentaram à mesa com os mandatários do poder e negociaram termos dos seus direitos e políticas públicas, (o chamado Lobby do Batom, ou advocacy feminista, como alguns atualmente preferem denominar); outras foram às ruas reivindicar e denunciar as suas opressões  de maneira mais ostensiva e aguerrida; algumas "infiltraram-se" nos órgãos e entidades públicas estatais realizando o que se chamou de "feminismo de governo", com a elaboração de normas e proposições que buscavam minorar as desigualdades e enfrentar temas espinhosos como a violência contra a mulher e a saúde reprodutiva; existiram, ainda, aquelas que travaram debates acadêmicos importantes sobre as perspectivas do gênero e sua superação. O fato é que mulheres unidas em coalização movem o mundo e quero aqui lembrar de um importante legado que temos sobre a luta das mulheres: A contribuição das mulheres para os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1988, através do documento chamado Carta Das Mulheres Ao Constituinte  e o trabalho realizado pelo CNDM- Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Trata-se de um fato histórico relativamente desconhecido, ou pouco mencionado, conforme aponta a Professora Salete Silva1 na sua pesquisa extremamente necessária para o aprofundamento sobre o tema:  "a historiografia constitucional do Brasil, assim como a literatura jurídica e política nacional, embora tenha registrado e analisado importantes aspectos do último  processo constituinte brasileiro, ignorou por completo a contribuição feminina no âmbito das discussões que culminaram com a ampliação da cidadania e a consequente constitucionalização dos direitos das mulheres no país. A ausência do mencionado conhecimento contribui para a chamada cegueira de gênero nos mundos jurídico e político da nação que, por sua vez, concorrem para a manutenção do status quo, onde a visão hegemônica, que se pretende neutra e universal."  Nesse contexto, importa ressaltar a influência das mulheres dos movimentos sociais, parlamentares, acadêmicas, dentre outras   na atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão federal criado para atender as demandas dos movimentos sociais de mulheres que entendiam que no contexto da reconstrução democrática pré-constituínte, era preciso haver a observância  da agenda de igualdade. O CNDM fora organizado com diversas comissões temáticas, com representações dos interesses diversos, a exemplo da comissão de saúde, educação, trabalho, mulheres negras, mulheres do campo etc.  Este órgão foi o responsável por criar  a campanha "Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher". Em 26 de agosto de 1986, mulheres reunidas num encontro nacional estabeleceram alguns princípios e reivindicações gerais. Para efetivação do princípio da igualdade, entendeu-se que era fundamental que a gestação da  Constituição Brasileira contemplasse princípios como: a necessidade de revogação das classificações discriminatórias;  o acatamento, sem reservas, das convenções e tratados internacionais de que o pais fosse signatário no que diz respeito a eliminação de todas as formas de discriminação; reconhecimento da titularidade de direitos aos movimentos sociais organizados, sindicatos, associações e entidades da sociedade civil na defesa dos interesses coletivos;. Estes são alguns dos princípios da  Carta das Mulheres ao Constituinte,  um documento histórico cheio de balizas que estabeleceram muitos direitos individuais e sociais que dispomos hodiernamente. A carta fora dividida entre seguintes eixos: Família, Trabalho, Saúde, violência, educação e cultura, violência, questões nacionais e internacionais. Segundo Silvia Pimentel, esta Carta foi a mais ampla e profunda articulação reivindicatória feminina brasileira. "Nada igual, nem parecido. É marco histórico da práxis política da mulher, grandemente influenciada pela teoria e práxis feminista dos dez anos anteriores."2 Conforme destaca a ex presidente do CNDM, Jacqueline Pitanguy3, ao longo das três últimas décadas do século XX, e, ainda hoje, existe uma clara conexão entre o ativismo feminista e as mudanças em legislações discriminatórias, proposição de novas Leis, implementação de políticas públicas e resistência aos retrocessos. A modificação de conceitos sexistas do CPB, a edição da Lei Maria da Penha, da Lei do Feminicídio, da Lei do planejamento familiar, bem como o reconhecimento das diferentes formas de família são exemplos de legado deste trabalho desenvolvido no contexto da redemocratização. No movimento negro tivemos a colaboração nestes trabalhos de nomes como   Lelia Gonzales e Beatriz Nascimento. O legado do Lobby do Batom deve ser valiosíssimo para nós, na medida em que possamos olhar para trás e verificar o que foi possível ser feito por aquelas mulheres em termos de luta articulada, em um contexto em que não havia redes sociais e toda essa comunicação dinâmica e rápida que a tecnologia nos proporciona.  Como foi possível mulheres de todo o país, das mais diversas origens e interesses, unirem-se, organizarem-se e articularem juntamente  aos mandatários do poder para que a realidade das mulheres pudesse ser transformada através da implementação de diversos direitos? Em que medida o contexto da  Pandemia do Covid-19  arrefeceu os ânimos de articulação das mulheres? Os índices de violência doméstica aumentaram no período da pandemia, contudo, não se verificou a inovação de estratégias para o enfrentamento da violência em rede multidisciplinar durante o período mais gravoso do isolamento social, como pressupõe os mandamentos da Lei Maria da Penha. Instituições como a Defensoria Pública buscaram adaptar-se a esta nova realidade, propondo o atendimento virtual. Neste contexto, é bem de ver que as novas formas de articulação virtual podem ser um novo caminho para o ativismo, visto que a tecnologia vem moldando inexoravelmente o modus operandi social. Parece ser um caminho sem volta a adoção das redes sociais como meio para a luta por efetivação de direitos e estabelecimento de políticas públicas. O exercício pleno da cidadania, participação igualitária e diversa das mulheres nos espaços de poder e decisão deve ser um compromisso a ser alcançado neste ano de 2022. Em meio à esperança de um possível contexto pós pandemia, é possível  ocorrer a retomada do folego para movimentações sociais, bem como o envolvimento com a efervescência política das eleições político-partidárias do pleito de 2022. Há que se indagar a quantas anda o percentual de participação de mulheres na política, bem como ainda se estabelecer o devido filtro sobre quais mulheres estão tendo a oportunidade de galgar cargos políticos ou ocupar cargos de poder e decisão, bem como quais mulheres dispõem de efetiva condição de dialogar diretamente com o poder público, efetuando-se o necessário recorte interseccional. Se hoje temos poucas mulheres nestes espaços, mulheres negras, trans e indígenas são ainda mais raras em termos de expressividade numérica. O ativismo digital hoje se revela um caminho para que possamos transformar realidades e fazer ecoar a nossa voz. Nossa história está repleta das marcas das mulheres em movimento, realizando a mais pura essência do feminismo na prática. As lutas pela preservação ambiental promovidas pelas mulheres indígenas, a lutas pelo enfrentamento ao racismo e sexismo, justiça reprodutiva, bem como  as lutas pelo enfrentamento da violência de gênero travadas pela comunidade feminista devem ser valorizadas, visibilizadas e levadas à frente com as ferramentas possíveis de acordo com o nosso momento histórico atual. __________ 1 SILVA, Salete Maria da. A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. 2012. 320p. Tese (Doutorado) - UFBA, 2012. Disponível aqui. 2 Pimentel, Silvia.  Anais de seminários. Trinta Anos da Carta das Mulheres aos Constituintes: um depoimento entusiasmado e cumplice. Org. Adriana Ramos de Mello. Rio de Janeiro.EMERJ/2018. 3 Pitanguy, Jacqueline. A Carta das Mulheres Brasileiras aos constituintes: Memórias para o futuro. Carta das Mulheres aos Constituintes: 30 anos depois. Editora Makenzie. 2018.
"A vida é uma ilusão linda.A vida é saborosa e amarga ao mesmo tempo.A vida para mim é muito rápida." "Meu nome é agora."(Elza Soares) "Quando cheguei lá, a minha mãe'tava' caída, deitada no chão, lá.Não tive nem coragem de tocar na minha mãe."(T.F.S, Filha de Cláudia) "Nós não sabemos momento nenhum quea senhora tinha vindo sido arrastada.Saltamos, desembarcamos da viatura,botamos ela com o maior carinho dentro da viaturae chegamos no Carlos Chagas."(Subtenente G.R.M)  "Ela era multimulher."(A.F.S., companheiro de Cláudia) "A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio..."1 Ouçam os acordes, a voz rouca e os protestos. Mulheres negras em levante, sob a regência da voz do milênio2 proferem: "Deus há de ser fêmea"3. Silêncio! Elza causou a revolução. E então, no dia 20 de janeiro de 2022, soubemos que a mulher do fim do mundo, finalizou a sua passagem aqui na terra. No retorno ao Orun4, ela pôde confirmar: "Deus é mulher"5! Elza Soares, Deusa Soares, Diva Soares, um talento inenarrável que alcançou os palcos do mundo, depois de uma vida marcada pelo sofrimento. A menina da Vila Vintém, zona Oeste do Rio.  Aquela, que nos idos dos anos 50, pela primeira vez, apresentou-se publicamente no programa "Calouros em desfile", na Rádio Tupi, com o intuito de angariar fundos para a subsistência do filho recém-nascido. Enquanto era exibida e as vestes folgadas chamavam a atenção do apresentador, foi surpreendida com a pergunta, em forma de chacota: "De que planeta você veio?" No mesmo instante e com altivez, como se a resposta já estivesse na ponta da língua, a amefricana Elza Soares não se deixou sucumbir e respondeu: "Eu vim do Planeta fome"! Essa sentença marcou a passagem de Elza por aqui. Nesta pátria mãe nada gentil, que extermina corpos negros desde a infância, apesar de ter ganhado o prêmio, Elza perdeu o filho, que morreu em decorrência de desnutrição. Nas palavras dela, "nada mais duro do que perder um filho e eu perdi três".6   A desnutrição infantil é realidade reveladora da desassistência estatal e perpassa pelo que podemos chamar de "deixar morrer". Tão impactante quanto um tiro de fuzil, que atinge prioritariamente corpos negros, essas violências e violações atravessam as existências negras e indígenas7. Conforme expõe Achille Mbembe, "ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder".8 Por isso, não deixamos de temer a própria morte, porque neste Brasil estamos por nossa sorte. E, por falar em mortes decorrentes de ação do Estado, a força motriz de Elza Soares, me fez retornar ao dia 16 de março de 2014. Neste dia, choramos a perde de Cláudia Silva Ferreira. Quase 8 anos separam a morte natural de Elza Soares, aos 91 anos e o homicídio de Cláudia, aos 38 anos de idade, na Comunidade do Morro do Congonha, Rio de Janeiro. Elza perdeu 3 filhos e os 8 filhos de Cláudia perderam a mãe. Desumanizadas através do sofrimento imposto pelo racismo. Uma mãe que perdeu os filhos e  filhos/as que ficaram órfãos de mãe. Mesma dor, mesma cor. Talvez por isso, "A mulher do fim do mundo" cantou com a voz grave incomparável: "minha voz, uso pra dizer o que se cala...". Mas ela nunca se calou, ao contrário, cantou hinos em forma de protesto: "Na avenida, deixei lá, a pele preta e a minha voz, a minha fala, minha opinião"9. Mas não só, antes, em 2002, "Do Cóccix até o pescoço"10, Elza denunciou que "a carne mais barata do mercado é a carne negra, que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico"11. Assim aconteceu com Cláudia que, antes de ser jogada debaixo do plástico, foi arrastada pelo chão de pedra por mais de 350 metros, pendurada no navio negreiro do 9º Batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Dois policiais militares em incursão, não se sabe de qual dos dois fuzis saiu o único disparo que transfixou o seu peito, mas ela morreu, em tempo inferior a 10 minutos, e 38 anos de sonhos foram embora. 38 primaveras interrompidas por um disparo de fuzil perpetrado pelo Estado. No próximo dia 16 de março o homicídio de Cláudia Silva Ferreira completará 8 anos. 8 anos de angústias, 8 anos de um silêncio ensurdecedor das autoridades. 8 anos em que as canetas sujas de sangue, do seu sangue negro, continuam fazendo vítimas... Faremos justiça, porque "a carne mais barata do mercado não tá mais de graça".12   Dedico este texto às potências ancestrais de Elza Soares e Cláudia Silva Ferreira. Não iremos sucumbir. _____ * Trecho do poema-protesto, generosamente escrito por Deise Fatuma e que compõe a Introdução da Dissertação de Mestrado de minha autoria. Disponível aqui. 1 Música: Dentro de cada um. Álbum Deus é mulher, 2018, Faixa 10. 2  Em 1999, Elza Soares foi eleita a Voz do Milênio pela BBC Londres. 3 Música: Deus há de ser. Álbum Deus é mulher, 2018, faixa 11. 4 Em Iorubá, significa mundo espiritual. 5 Música: Deus há de ser. Álbum Deus é mulher, 2018, faixa 11. 6 Programa Roda Viva. Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. São Paulo: n-1, edições, 2018, p. 5. 9 Álbum: A Mulher do fim do mundo. Música: A mulher do fim do mundo. Faixa 02. 10 Álbum Do Coccix até o pescoço. Música A Carne. Faixa: 6. 11 Álbum Do Coccix até o pescoço. Música A Carne. Faixa: 6 Marcelo Yuka e Seu Jorge. 12 Álbum Planeta fome. Música: Não tá mais de graça. Faixa 8.
LIBERTAÇÃOEu não vou sucumbirEu não vou sucumbirAvisa na hora que tremer o chãoAmiga, é agora, segura a minha mão(Baiana System, Elza Soares feat. Virgínia Rodrigues) Janeiro desenha seu fim, que é também começo do ano terceiro a nos comprovar nossa pequenez ante o imprevisível, esse portal que o vírus maldito potencializou. A ausência de controle sobre nossos futuros mostra que "temporalidade" é um marcador impalpável, e que talvez precisemos agarrar com as mãos outras referências que nos permitam projetar um amanhã melhor. Ante o cenário pouco animador (eufemismo presente), o colunista Saulo Mattos, professor, parceiro e irmão, entoa com cuidado e poesia a perturbadora pergunta: "A esperança é uma flor possível de existir nesse jardim desencantado?"1 Não há respostas fáceis para questões tão bem elaboradas. Recebo a indagação como um convite à ebulição do pensamento, transformo em energia e me ponho a passear por esse (nem tão) "jardim" (nem tanto) "desencantado", à procura dessas flores-esperança, capazes de espalhar seu aroma dentro de nós e dar força para seguir. Nada além de um genuíno - não ingênuo! - desejo de libertação desse ser-negro-e-negra-ser-dor. Não é se iludir, não é se alienar. É viver para além do grilhão, apesar dele; é sonhar com os pés na terra das nossas ancestrais e ostentando o potente "bicão na diagonal" (Salve, Salve, Vilma Reis!)2, cumprindo o mantra de que "nós combinamos de não morrer"3. É lembrar que "a vida sempre vence"4. E como vence... Com ações importantes desde 2015, a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, mais conhecida como "Iniciativa Negra"5, cresceu consideravelmente em projeção e realizações nesses últimos anos. O coletivo, fundado por Dudu Ribeiro (Bahia) e Nathália Oliveira (São Paulo), conta com equipe formada por Belle Damasceno, Ana Carolina, Luciene Santana e Maria Clara D'Ávila, dentre outras. O cuidado e dedicação empregados na construção da Iniciativa se revelam na densidade dos seus trabalhos. O tempo de maturação faz com que hoje se possa ver ações e pesquisas decisivas para um debate público sério sobre segurança pública, desnudando, com narrativas, dados e análises, a violência estatal que se materializa no controle racializado de pessoas e comunidades. Uma das suas publicações mais recentes é o relatório "Mesmo que me negue sou parte de você: Racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador"6, um documento que desbanca o senso-comum ao demonstrar como as "dinâmicas de morte"7 se produzem a partir e em razão da raça e território. O título é uma alusão à icônica música "Alegria da Cidade", do professor Jorge Portugal e Lazzo Matumbi, que canta retumbante "Apesar de tanta dor que nos invade, somos nós, Alegria da Cidade"8. Salve, Salve, Iniciativa! O perfume vai subindo às narinas, largas por herança, enquanto a busca segue. Lembro do "Elas Existem"9, uma associação feminista interseccional composta por Caroline Bispo, Sandra Regina, Mariana Andrade, Érica Priscila, Nahyá Nogueira, Mayara Albino e Daiane Bally. Seu trabalho potente tem se espraiado pelo país, alcançando mulheres e adolescentes cis e trans. Em 2022, a Elas está desenvolvendo ações (também) no estado do Acre, tradicionalmente invisibilizado, enquanto seu grupo de leitura "Tecendo Caminhos" realizará atividades no Rio de Janeiro, Cuiabá e Porto Alegre - além do próprio Acre. Vão se tecendo caminhos, horizontes, futuros, num devir historicamente marcado pela desesperança. Um projeto que é resistência e revolução, ante a potência estatal que se dedica diariamente ao nosso silenciamento. Como entoa Luedji Luna, enquanto olhares brancos fitam essas mulheres, Elas Existem e provam que estão ali, vivas, ainda que não queiram10. Salve, Salve, Elas Existem! Com olhos na Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo, a Rede de Observatórios da Segurança11, um "coletivo de coletivos", tem atuado para ir além dos dados oficiais sobre segurança pública, violência e direitos humanos. A "Rede" tem sido fundamental para compreender não apenas, mas principalmente, aquilo que escapa, expondo a realidade sobre letalidade policial, agressões a mulheres no país, violência contra policiais, prisões e Covid. Destaca-se, contudo, um relatório "atípico", que traz algo de que costumamos esquecer, marcadas que somos pela vivência de vilipêndio às nossas subjetividades. "A vida resiste: para além dos dados da violência"12 é um trabalho sensível da Rede de Observatórios que está recheado de narrativas de um mundo que o noticiário não conhece e não deseja, da vida que se reinventa para manter acesa a sabedoria que nos foi legada, que nos permitiram chegar aqui - e ir além. Salve, Salve, Rede! O grupo "Corpos Indóceis e Mentes Livres" é outra bela flor desse jardim. Com mil pétalas, é uma Organização de mulheres negras em defesa da vida de pessoas encarceradas; um coletivo abolicionista que surgiu em 2013 e, como todo projeto que se propõe a construir caminhos para a libertação sob a vigência de um estado genocida, tem sua trajetória marcada por uma série de dificuldades. Apesar disso, sua continuidade e vivacidade são mais uma prova de que sim, podemos esperançar. Em 2021, pudemos acompanhar via Youtube o projeto "Diálogos Abolicionistas"13, encontros potentes voltados à remição da pena de mulheres sentenciadas na Bahia, com participação de Eliana Alves Cruz, Ana Maria Gonçalves, Miriam Alves, Conceição Evaristo, Itamar Vieira Jr. e outras referências da literatura romancista "con(tra)temporânea" do Brasil. Salve, Salve, profa. Denise Carrascosa, coordenadora do projeto! Há outras flores tantas! Com Juliana Sanches, Joel Luiz Costa e Djeff Amadeus à frente, o Instituto de Defesa da População Negra14 tem se firmado como uma estratégia articulada, bem definida e eficiente de enfrentamento às perseguições criminais forjadas no racismo antinegro do sistema de justiça criminal. O trabalho vem se agigantando, agregando mais e mais profissionais dispostas/os a estar no embate contra o genocídio da população negra (vide atuação na "Chacina do Jacarezinho"). O crescimento do IDPN faz brilhar os olhos pela concreta possibilidade de mudança! Salve, Salve, IDPN! Em janeiro de 2021, foi nomeada, pela primeira vez na história do Brasil, uma Comissão de Juristas Negras e Negros, composta por vinte grandes nomes15. A Comissão assumiu um trabalho hercúleo e entregou seu relatório final com nada menos que 610 páginas de análises e contribuições propositivas voltadas a combater o racismo institucional16. Uma ação voltada à revisão dessa nossa legislação tecida para a manutenção das desigualdades instauradas pelo processo escravista colonial e reatualizada pelos herdeiros e herdeiras de um rosário de privilégios. A caminhada se aproxima do fim e encontramos Jaime Amparo Alves, nascido em Ipiaú/BA, afropessimista17 declarado, que escreveu um artigo em que propõe três categorias importantes18. A proposição não surgiu aleatoriamente, mas fruto de longo percurso acadêmico e imersões em diferentes realidades em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Bogotá (Bolívia) e Santiago de Cali (Colômbia). Para ele, há três dimensões políticas, não necessariamente atreladas a um continuum geográfico/espacial. A primeira delas é a biópolis (cidade onde há vida), "esfera da vida civil habitada por pessoas brancas", ou não-negras, que se funda e depende da antinegritude19 para existir. A segunda é a necrópolis (cidade da morte), "espacialidade física e ontológica habitada por pessoas negras despossuídas de sua vida (civil) plena". Refina-se mais ainda a definição quando Amparo destaca que "a cidade negra é uma zona onde não há distinção entre passado e futuro (...) porque é uma cidade sob a ordem colonial permanente". A última categoria é a que nos interessa hoje, porque organiza e qualifica nosso jardim. É a "negrópolis" (cidade negra). Jaime a define como um "projeto quilombista que surge nas ruas, nas favelas"; que não está necessariamente vinculado a uma organização coletiva e estratégica consciente; e que tem uma certeza: a de que "a lealdade a ordem jurídico-política equivale ao nosso suicídio, porque a cidade é uma construção fundamentalmente antinegra". Entre a biópolis e necrópolis, apesar da biópolis e a necrópolis, para romper com a biópolis e a necrópolis, está o nosso jardim. A negrópolis é nosso roseiral, nosso pomar, nosso pedaço de terra em que estamos plantando as sementes que hemos de colher pelas mãos dos que virão. São as estratégias, mais ou menos institucionais, mais ou menos silenciosas, coletivas sempre (ainda que se expressem no ato de uma só pessoa) que nos permitem erigir a humanidade que nos é subtraída, esse poço fundo no qual as diversas formas de morte impostas pela branquitude nos quer eternizar. Inebriado - e sempre atento! - pelos horizontes de esperança, caminho com meu interlocutor, parceiro de jornada, enquanto respiramos a voz potência-revolução da nossa agora ancestral, Elza Soares. Trovoadas ressoam a nos abraçar, dizendo que "Nós não vamos sucumbir, não vamos sucumbir! Avisa na hora que tremer o chão. Agô agô agô é libertação!"20. Salve, Salve, Elza Soares! _____ 1 (Mais um grande) Texto do irmãozinho Saulo Mattos. Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 A gente combinamos de não morrer, em Olhos D'água, livro de contos de Conceição Evaristo. 4 Ordem Natural das Coisas, canção de Emicida. Disponível aqui. 5 Saiba mais sobre a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas. Disponível aqui.  6 Relatório "Mesmo que me negue sou parte de você: Racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador". Disponível aqui. 7 Expressão especialmente destacada na fala da pesquisadora Luciene Santana. Disponível aqui. 8 Canção "Alegria da Cidade", composta pelo Professor Jorge Portugal e imortalizada nas grandes vozes de Lazzo Matumbi e Margareth Menezes. Disponível aqui. 9 Sobre o elas existem, ver mais aqui. 10 Canção "Um corpo no mundo, da artista baiana Luedji Luna". Disponível aqui. 11 Saiba mais sobre a Rede aqui. 12 "A vida resiste: para além dos dados da violência" e outros relatórios da Rede disponíveis aqui.  13 Canal no Youtube do "Corpos Indóceis e Mentes Livres". Disponível aqui.  14 Saiba mais sobre o IDPN nas redes aqui e aqui. 15 Integraram a Comissão de Juristas: Min. Benedito Gonçalves, João Benedito da Silva, Maria Ivatônia Barbosa dos Santos, Silvio Luiz de Almeida, Adilson Moreira, Ana Claudia Farranha Santana, André Costa, André Luiz Nicolitt, Chiara Ramos, Cleifson Dias Pereira, Dora Lúcia de Lima Bertulio, Elisiane Santos, Fábio Francisco Esteves, José Vicente, Karen Luise Vilanova Batista de Souza, Lívia Casseres, Lívia Santana e Sant'anna Vaz, Rita Cristina de Oliveira, Thiago Amparo e Thula Rafaela de Oliveira Pires. 16 Disponível aqui. 17 Recomendamos esta entrevista com reflexões sobre o Afropessimismo. Disponível aqui. 18 Artigo de Jaime Amparo Alves publicado em espanhol, com título: "Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos sócio-espaciais sobre o racismo". As passagens seguintes são extraídas dessa produção acadêmica. Disponível aqui.  19 A propósito da "antinegritude", os textos do prof. João Costa Vargas são essenciais. Sugestão de leitura aqui.  20 Libertação, Composição de Russo Passapusso, cantada por Elza Soares, e BaianaSystem - (Feat. Virgínia Rodrigues). Disponível aqui.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Que a esperança possa exalar seu aroma!

Quanto cansaço desnecessário tem nos acompanhado, muita insônia, e uma constante sudorese que colocou um esparadrapo em nossos lábios. O pânico invadiu nossas vidas. A exaustão mental se tornou um cobertor diário. Tudo isso para ser alguém criado por pincel alheio. Absorvidos por um sistema-mundo despersonalizante, prevalece o indivíduo-massa. Sou instantaneamente substituível, ainda que a sedução exercida pelos jogos de prazeres midiáticos sugira que é possível ser diferente, e feliz, essa ideia absurda - ser feliz - que atormenta a existência. E se as palavras estão indispostas para refletir sobre a felicidade, pergunta-se ao Cosmos se ainda é concebível, nesse momento global, saborear a esperança. Variará a resposta de um canto a outro do mundo. Há, porém, uma métrica sensorial que é a base desse questionamento: a desigualdade. Está presente no norte ao sul global, com matizes diferenciados. Desigualdade racial, de gênero, sexual, social, econômica, e tantas outras que continuam silenciadas, não deixarão de nos desigualar. Isso é fato. A esperança é uma flor possível de existir nesse jardim desencantado?  Do lado de cá, é tão profunda essa coisa de ser excluída/o, de ser violentada/o sexualmente por mãos de senhores/as de novos engenhos, de morrer gratuitamente quando se tem a pele negra, de chorar na solidão no meio de tanta gente em que o amor é uma propriedade privada, de se esquecer no poço da depressão, de ter que buscar forças existenciais para suportar o banzo de viver distante de suas raízes ancestrais. Tudo isso é muito forte e desesperador num país feito por negros e indígenas, mas capitalizado por brancos. Para além das discussões até certo limite frutíferas sobre essencialismos identitários, múltiplas identidades são negociadas a todo momento com um mundo social pintado de branco, que normatiza o existir, dizendo quem pode ou não reivindicar suas diferenças socioculturais. Três episódios que se repetem por aí. Em um condomínio de alto padrão, no jantar natalino programado para a confraternização de colaboradores, em sua maioria negros e pardos, ficou nítida a impossibilidade de que essa cena - o desfrutar de um confortável momento de lazer pela gente humilde - se torne frequente, já que estamos em um país que nega diariamente opressões sistêmicas como o racismo e o sexismo. Ali era apenas um episódio, de aparência filantrópica, movido por uma certa piedade que ronda o mês de dezembro. Houve quem entoou uma voz alta, falando para aquela plateia de negros/as que naquele local não havia distinção social, de cor, religião e todas essas outras mentiras que aprendemos dizer desde cedo.  "Venhamos e convenhamos!", como dizem alguns mais antigos, o termo colaborador/a tenta suavizar as infinitas violações cotidianas por que passam essas pessoas: transportes públicos lotados, ausência de afeto, escassez alimentar e baixíssima autoestima.  Admitida para trabalhar como babá por apenas um mês, ela, negra retinta, 47 anos, avó de um menino de 04 anos, no primeiro dia de trabalho, ao abrir a porta para retornar para seu gueto, mostrou "espontaneamente" a bolsa para sua patroa, também negra, só que menos carregada na tinta. E disse: estou acostumada com isso é melhor mostrar logo a bolsa. Apenas um dia na função de pedreiro, e o rapazote pardo não conseguiu achar o banheiro da área de serviço, que era logo ali no canto direito, perto da porta por onde ele entrou. Na verdade, mesmo com a mochila colocada no chão do banheiro, não acreditou que ali fosse um "banheiro de serviço", disse que o espaço era muito chique para isso e que estava com medo de ter entrado no lugar errado. O chique que ele quis dizer era apenas uma pequena pia feita com restos de um granito bege bahia. Será que é possível mesmo ter esperança com tanta desgraça humana que nos rodeia? Estamos num período do ano em que se abrem as expectativas para novos capítulos de vida, dizendo-se que logo ali adiante o ano será novo. Inclusive este texto está sendo produzido em um ano velho para ser publicado em um novo ano. Não se espante, portanto, se um pouco de poeira existencial, típica de um cansaço de fim de ano, invadir suas narinas ao ler esses fragmentos de ideias.  Também deve-se dizer que não falaremos por aqui sobre a interminável pandemia e das muitas covas que foram abertas para receber vidas abreviadas por um vírus letal. Pelo lado de cá, já se disse, essa coisa de desigualdade é forte, e os infortúnios sociais se imbricam com a chegada de uma potente variante do influenza e com mais um afogamento das comunidades periféricas por chuvas torrenciais. Como disse um certo motorista de uber, está tudo no Apocalipse, basta lê-lo. É muito difícil ter esperança se nossos desejos estão quase mortos. Houve uma atrofia da libido em estado natural. A sensação é de que o campo psíquico está completamente maquinizado. Precisamos sempre de "muito, muitíssimo" para desejar a própria vida. Bastante pornografia, álcool, músculos, marca, dinheiro, botox, silicone, sucesso profissional etc.  O ânimo está sensorialmente robotizado. Saturados e suturados de ilusões sobre o bem viver. Mais do que a fadiga corporal, emocional e espiritual, nos tornamos corações intolerantes com lábios secos e rachados diante da ausência de um afeto espontâneo, não monetizado. Até o antigo hábito de agradecer se tornou uma expressão automática e esvaziada de um tom sensível que marque a fartura da alegria que é ser contemplado/a por uma mão que lhe foi estendida.  Ausentes de si, passamos a dizer "gratidão e perdão" para tudo, como se fôssemos robôs místicos. Por esses dias, apareceu em nossa caixa de reflexões a expressão "pessimista ativo", do intelectual Muniz Sodré.  Ao se autodenominar dessa forma, Sodré diz que, nesse histórico contexto de desigualdades que fundam o Brasil e ainda se mostram presentes, é importante olhar o real de frente. Mais do que uma crítica verborrágica a tudo e todos, devemos nos permitir o uso transitivo da palavra, que esta seja utilizada para transformar o viver social e pautar ações que considerem a existência do outro. É sim um caminho possível, inclusive para se retomar um ambiente coletivo em que a alegria seja uma manifestação espontânea do ser. Ailton Krenak fala que não podemos nos render a essa ideia de fim de mundo, programada para nos colocar cada vez mais distante de si mesmo e adotarmos uma postura de total desleixo com nossa própria existência, a qual deveria ser sentida e pensada de forma integrada à natureza, respeitando o potencial materno que a perspectiva indígena atribui à terra. Uma esperança de cândido otimismo é difícil de ter nesses tempos de massacre existencial, em que logo cedo pela manhã um certo sabor amargo visita a ponta da língua, avisando-nos que a vida moderna se tornou uma permanente luta contra a angústia e apatia existenciais. Queria muito que a esperança tivesse o cheiro da tangerina, essa fruta que impulsionou Ferreira Gullar a fazer um belo poema (O cheiro da Tangerina) e versificá-la como aquela que solta "na sala (no século) seu cheiro, seu grito, sua notícia matinal." Infelizmente, não é assim. A esperança - se é que ainda existe - se tornou uma rara planta a ser encontrada na mata artificial que envolve a contemporaneidade.   Precisaríamos retornar a uma vida mais simples, a um café da manhã mais tranquilo, em que o diálogo não fosse interrompido por múltiplas mensagens de WhatsApp a ponto de esfriar o preto café que está na xícara. É uma tarefa difícil, muito difícil para quem se acostumou a ser complexo com todas a coisas e burocratizar a vida com regras sem sentido. Teríamos que intensificar a dimensão do microcosmos em nossa existência, da vida menor que construímos a partir de laços de amizade. É preciso experenciar a dimensão do "ser amigo/a" (da terra, do mar, das etnias, da sexualidade, do/a outro/a) para exalarmos esperança.   No último conto de seu emocionante livro Olhos d'água, Conceição Evaristo, ao prosear sobre Ayoluwa, a alegria do nosso povo, escolhe as seguintes palavras para finalizá-lo: "E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução." É isso, que seja assim mesmo.  Que nas nossas miúdas e raras conversas espontâneas que acontecem na agitação do cotidiano, a gente encontre disposição para ter esperança e se transformar, conforme a linda expressão usada por Mãe Stella de Oxóssi, em "caçadores/as de alegria". Que os caminhos estejam abertos. E se não estiverem, que possamos usar a sabedoria ancestral para abri-los.  Quem sabe assim, nesse vasto mundo de desigualdades, o cheiro da esperança se torne mais forte e nos dê a oportunidade de senti-lo em todos os poros de nossa pele!
Nas últimas semanas veio à tona a notícia/denúncia de uma modelo e Influencer que fora vitimada por um conhecido médico por práticas de violência obstétrica no nascimento do seu bebê. O caso promoveu nas redes sociais uma certa comoção, revolta e também espanto, já que o agressor seria bastante reconhecido no meio obstétrico como médico de excelência, sendo notório por falar em programas de televisão e também por prestar assistência médica a personalidades famosas. A classe social privilegiada da vítima não a poupou de sofrer umas das tradicionais práticas abusivas de violência de gênero que estão enraizadas e nosso sistema de saúde. Trata-se, no entanto, de uma violência pouco denunciada e até dificilmente reconhecida como tal, por que tradicionalmente nos hospitais os agentes de saúde habituaram-se a empregar tratamentos invasivos, ofensivos e violentos contra a mulher no momento do parto. UMA em cada QUATRO mulheres é vítima de violência obstétrica, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo. Por  violência obstétrica podemos entender pela   "apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização de processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.1" Trata-se de uma modalidade de violência de gênero, eis que seus componentes guardam traços de misoginia, sexismo, controle e opressão do feminino,  além do racismo institucional quando a prática é dirigida contra mulheres negras e periféricas. È importante ressaltar, ainda, que são as mulheres negras que mais sofrem violência obstétrica, pois são as que mais peregrinam na hora do parto, pois estudos relatam que este público acaba ficando  mais tempo na fila de  espera para serem atendidas, têm menos tempo de consulta, estão submetidas a procedimentos dolorosos sem analgesia, em razão da crença racista de que mulheres negras são fortes e sentem menos dor, consequentemente são elas que estão em maior risco de morte materna, segundo a pesquisadora baiana, Dra. Emanuelle Goes.2 Recentemente tivemos notícia da grave violência sofrida uma jovem negra recém saída da situação de rua, a qual   fora submetida à violência psicológica, física e tortura enquanto ainda  estava em pleno trabalho de parto, tendo-lhe sido negado o direito ao aleitamento materno, de livre demanda, que se relaciona a fatores de proteção à saúde física, emocional e neonatal. Além de perder o poder familiar, tão somente pela sua condição de mulher em situação de sua, foi negado o direito de acesso à Declaração de Nascido Vivo  de sua filha recém-nascida, impossibilitando o registro da criança.3 Os Universos do gestar e parir estão ligados à dimensão da sexualidade da mulher  e tudo aquilo que controla a sexualidade faz parte do controle social mais amplo que existe sobre os corpos das mulheres como um fator para a manutenção destas em posição de subordinação. O movimento de humanização do parto vem na contramão desse tipo de prática. Mas o que se entende por parto humanizado? È um modelo de assistência ao parto que preconiza um novo ponto de vista sobre a relação médico-paciente, com a observância do cuidado humanizado, individualizado, levando-se em conta os direitos humanos da mulher, com a adoção de  intervenções apenas em casos de necessidade justificada de  acordo com a atual  medicina baseada em evidências , bem como na observância dos direitos humanos da gestante, priorizando-se, ainda,  a vontade e protagonismo da mulher no parto.4 Historicamente, desde que o mundo é mundo, as mulheres sabem parir, eis que o corpo possui a fisiologia natural para essa manifestação da natureza. O parto é um fenômeno natural da vida reprodutiva e familiar e tradicionalmente ocorria em ambiente familiar e comunitário,  com a assistência mútua de mulheres nesse momento tão especial.  Porém, em determinado período recente da história, desenvolveu-se o pensamento de que haveria inabilidade do corpo da mulher para essa tarefa, fazendo-se necessária a intervenção da medicina, seja por instrumentos interventivos, seja por práticas invasivas e violentas. Estudos relatam que já houve práticas médicas que amarravam as mulheres no momento do parto ou aplicavam sedativos que afetavam, inclusive, a sua memória do ocorrido, havendo assim uma completa alienação traumática da mulher nesse processo.5 O medo das intervenções dolorosas e a instauração de uma cultura de agressividade e passividade da mulher no parto, levou algumas mulheres a optarem por evitar esse sofrimento com a realização de cesáreas eletivas, o que, de certo modo, colocou a hospitalização em  protagonismo, cabendo ao medico escolher data, hora e lugar para que a mulher tivesse um filho. A grande questão é saber até que ponto a escolha pela cirurgia é realmente uma indicação médica baseada em evidências cientificas ou uma conveniência para a equipe médica? Estaria a mulher livre de ser vítima da violência em uma cesárea eletiva? Piadas, palavrões, humilhações, intervenções físicas, mutilações são realizadas cotidianamente nos centros obstétricos do Brasil. Poucas vítimas conseguem perceber o que está ocorrendo, não por que a violência seja sutil, mas sim em razão do estado de vulnerabilidade que acomete a mulher no momento do parto ser tamanha, que a situação acaba guardando contornos traumáticos e muitas preferem silenciar sobre o assunto. Nesse contexto,  os agentes de saúde possuem o poder de controlar e vulnerabilizar esses direitos humanos dessas mulheres com um modus operandi que beira a habitualidade. No Brasil, ainda não dispomos de uma legislação nacional específica sobre este tipo de violação. Alguns diplomas legais de âmbito estaduais tratam do tema, a exemplo das leis 15.759/2015 de São Paulo, a lei 17.097/2017 em Santa Catarina e a lei 23.175/2018, do Estado de Minas Gerais, as quais definem exemplos de condutas consideradas violência obstétrica. Tratam-se de normas não apenas programáticas, mas que ensejam a responsabilidade no âmbito civil e administrativo. A Lei Federal nº 11.108, de 07 de abril de 2005, mais conhecida como a Lei do Acompanhante, determina que os serviços de saúde do SUS, da rede própria ou conveniada, são obrigados a permitir à gestante o direito a acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto. A Lei determina que este acompanhante será indicado pela gestante, podendo ser o pai do bebê, o parceiro atual, a mãe, um(a) amigo(a), ou outra pessoa de sua escolha. Outros diplomas legais trazem princípios e orientações que, de certo modo, podem ser aplicados no enfrentamento desse tipo de violência, como por exemplo a  lei 13.257/2016 , a qual modificou a redação do artigo 8 º do ECA (lei 8069/90): "A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos". A Lei Maria da Penha ( 11.340/2006), por sua vez,  entende como violência sexual, dentre outras condutas, a ocorrência de  ato  que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Nesse contexto, o direito fundamental à autodeterminação possui como decorrência o exercício da liberdade, tanto em aspecto positivo, quanto negativo6, isto é, quando existem alternativas e opções quanto a realização ou não de determinada ato. Desse modo, qualquer limitação a esse exercício de opção não deve ser exercida pelo Estado tampouco por instituições particulares e agentes de saúde, à revelia do interesse das titulares desse direito. Os direitos reprodutivos hodiernamente  decorrem do sistema especial de proteção de Direitos Humanos, em virtude do caráter indivisível.  Nesse sentido, as declarações e plataformas de Cairo (1994) e de Beijing (1995)  representaram um grande avanço na conceituação de direitos sexuais e reprodutivos. É bem de ver que, muito embora não possuam a força normativa de tratados internacionais, tais documentos constituem-se em importante fonte principiológica do ordenamento jurídico internacional dos direitos humanos da mulher. Observe-se que os princípios7 4 e 88 da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, do Cairo, de 1994 tras fundamentos importantíssimos nesse sentido.                       A Declaração de Beijing (1995) informa que  "na maior parte dos países, a violação aos direitos reprodutivos das mulheres limita dramaticamente suas oportunidades na vida pública e privada, suas oportunidades de acesso à educação e o pleno exercício dos demais direitos." (Declaração de Pequim/1995). Nesse contexto, os direitos sexuais e reprodutivos implicam tanto o exercício da liberdade e autodeterminação quanto às decisões relativas corpo da mulher, número de filhos, exercício do papel social da maternidade, como o direito a obter, por parte do Estado, o implemento de políticas públicas relativas à saúde, concernentes, ainda, ao acesso a informações e educação reprodutiva e sexual. A não garantia desses direitos tem implicado a morte de milhões de mulheres por conta da submissão a procedimentos inadequados, além de doenças e impedimentos evitáveis por medidas de educação e saúde preventiva. __________ 1 SOUSA, Valeria. Nota Técnica Violência Obstétrica: considerações sobre a violação de direitos humanos das mulheres  no parto, puerpério e abortamento. Editora Artemis, 2015. 2 Goes, Emanuelle. Violência obstétrica e o viés racial. Disponível em:  https://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/documentos/pensamentos/147153503857b5d7be5878b/ 3 Disponível aqui. 4 Diniz, Carmen Simone Grilo.Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Ciênc. saúde coletiva;10(3):627-637, jul.-set. 2005. 5 Wertz D 1993. Twilight sleep, pp. 403-405. In The Encyclopedia of Chilbearing. Oryx Press. Nova York 6 FERRAJOLI, Luiji. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid. Trotta,2010. 7 Princípio 4: "Promover a eqüidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher, eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir que seja ela quem controle sua própria fecundidade são a pedra angular dos programas de população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação da mulher, em igualdade de condições na vida civil, cultural, econômica, política e social em nível nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação por razões do sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional." 8 Princípio 8: "Toda pessoa tem direito ao gozo do mais alto padrão possível de saúde física e mental. Os estados devem tomar todas as devidas providências para assegurar, na base da igualdade de homens e mulheres, o acesso universal aos serviços de assistência médica, inclusive os relacionados com saúde reprodutiva, que inclui planejamento familiar e saúde sexual. Programas de assistência à saúde reprodutiva devem prestar a mais ampla variedade de serviços sem qualquer forma de coerção. Todo casal e indivíduo têm o direito básico de decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos e ter informação, educação e meios de o fazer."
Como decorrência da relevante participação dos movimentos negros na Assembleia Constituinte de 1987/1988, a vigente CF/88 consagra o princípio do repúdio ao racismo (art. 4º, inciso VIII) - que deve reger as relações internacionais do Estado brasileiro -, bem como estabelece um mandamento constitucional de criminalização do racismo. Com efeito, nos termos do art. 5º, inciso XLII, CF/88, a prática de racismo configura crime imprescritível e inafiançável, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei. Desse modo, o legislador constituinte se antecipou ao legislador ordinário para definir, ele próprio, a prática de racismo como crime, estabelecendo a necessidade de tutela penal do direito à não discriminação racial. Note-se que a CF/88 confere status de imprescritibilidade e inafiançabilidade apenas ao crime de racismo e "à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático" (art. 5º, inciso XLIV), o que evidencia o grau censurabilidade constitucional atribuída a práticas racistas. Em 1989, a criminalização constitucional do racismo foi regulamentada pela lei 7.716, conhecida como Lei Caó, em homenagem ao deputado Carlos Alberto Oliveira, autor do respectivo projeto legislativo. Com sua atual redação alterada por cinco leis posteriores1 desde a sua entrada em vigor, a lei tipifica condutas criminosas resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Apesar da evolução do ordenamento jurídico brasileiro no que tange à proteção das vítimas de racismo, a mera criminalização não foi capaz de prevenir práticas racistas que sequer têm sido objeto de eficiente persecução criminal. O que se nota é que, mesmo 32 anos após o início da vigência da Lei Caó, houve o recrudescimento do genocídio da juventude negra, do feminicídio negro, da seletividade racial do sistema penal e, consequentemente, do encarceramento em massa de pessoas negras. Esses fenômenos necropolíticos demonstram que - apesar da relevância do reconhecimento da necessidade de tutela penal contra práticas racistas -, a esfera penal não é a mais adequada para a promoção dos direitos da população negra, mesmo porque se restringe a atingir condutas intersubjetivas, pouco contribuindo para a desestabilização das estruturas racistas. Além disso, na prática, a tônica tem sido a impunidade nos casos de racismo, com a não aplicação da legislação penal antirracista por parte do sistema de justiça. Não foi à toa que este foi considerado institucionalmente racista pela comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no célebre caso Simone André Diniz (12.0012), primeiro contencioso internacional contra o Estado brasileiro por violação de direitos humanos na seara da discriminação racial. Em 21 de outubro de 2006, a comissão decidiu o mérito do caso, destacando a inoperância do sistema de justiça brasileiro na punição dos crimes de cunho racial.3 No relatório, a CIDH admite a evolução da ordem jurídica brasileira no que se refere à gradativa criminalização das práticas de preconceito e discriminação racial, pontuando, contudo, a resistência dos tribunais na aplicação da legislação pertinente, ao descaracterizarem as condutas típicas a partir do argumento de que se tratava de "mal entendidos". Para a comissão, apesar do avanço imposto pela CF/88, e pelas leis 7.716/89, e 9.459/97, a impunidade ainda é uma tônica na repressão dos crimes raciais no Brasil. A condescendência da justiça brasileira - que resulta na ínfima condenação de pessoas brancas que cometem racismo4 - poderia, segundo a CIDH, levar à falsa impressão de que, no Brasil, essas práticas não ocorrem. Nessa senda, a comissão identificou as causas para a ineficácia na aplicação da lei 7.716/89, dentre as quais a exigência, por parte do Poder Judiciário, de prova do ódio racial ou intenção discriminatória. De fato, o sistema de justiça, de um modo geral, tem exigido a inequívoca demonstração da intenção racialmente discriminatória como elemento indispensável para a configuração dos crimes de racismo, o que submete a solução do caso concreto à declaração do/a agressor/a que, geralmente, não afirma perante as autoridades públicas a motivação racista de sua conduta. A comissão apontou expressamente o racismo institucional como fator determinante da inaplicabilidade da legislação antirracismo no Brasil, refletindo-se tanto na fase investigativa, quanto na fase judicial. Para a CIDH, essa prática impede o reconhecimento do direito do cidadão negro de não ser discriminado, bem como o gozo e exercício do direito de acesso à justiça para ver reparada a violação. Nesse sentido, a resistência do Poder Judiciário em reconhecer o dolo nas práticas racistas e o consequente alto índice de absolvições têm gerado ineficiência não apenas da tutela penal, mas também da tutela cível, inviabilizando ações de indenização por dano moral. Ademais, também há prejuízos no que tange à responsabilização das instituições públicas e privadas diante das tão comuns absolvições na seara criminal. Nesse ponto, convém pautar brevemente a possibilidade ou não de aplicação de acordo de não persecução penal aos crimes de racismo. A questão que se coloca é sobre a natureza do acordo de não persecução penal e se sua aplicação significaria um afastamento da tutela penal ou uma maior eficiência e celeridade desta. Trata-se de um instituto de justiça penal consensual introduzido pela lei 13.964/19, que inclui o art. 28-A ao CPP. Em primeiro lugar, verifica-se que, a priori, os critérios subjetivos e objetivos elencados pelo legislador para o seu oferecimento tornam o ANPP, em tese, aplicável aos crimes de racismo, não havendo proibição legal explícita, como ocorre nos casos de violência doméstica e familiar. Nesse contexto, formou-se um dissenso entre as/os juristas acerca da aplicabilidade do ANPP aos crimes de racismo, sendo que alguns Ministérios Públicos expediram atos internos orientando seus membros acerca do tema. Os Ministérios Públicos de São Paulo e Paraná, por exemplo, expediram atos recomendando aos seus integrantes o não oferecimento de ANPP nos casos de racismo, sob o argumento, em síntese, de sua incompatibilidade com a tutela penal constitucionalmente estabelecida, por insuficiência protetiva. O Ministério Público do Maranhão, por sua vez, considerando que não há proibição legal, recomendou aos seus membros a análise caso a caso e a aplicação do instituto, desde que observados os requisitos presentes na lei, sob pena de desrespeito à competência legiferante da União no que tange a normas de conteúdo penal. A apontada divergência em relação a tão importante - porém negligenciada - atuação do sistema de justiça no combate ao racismo revela a necessidade de abordagem legislativa sobre o tema, proposta que foi inclusive apresentada pela Comissão de Juristas Negros e Negras da Câmara dos Deputados, instituída para propor medidas voltadas para o aperfeiçoamento da legislação brasileira de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional. De um modo geral, os institutos de justiça consensual, como o ANPP, aparentam ser um movimento de despenalização. Entretanto, têm sofrido críticas das teorias garantistas por possibilitarem uma espécie de antecipação da pena - ainda que diversa da privativa de liberdade -, muitas vezes restringindo certas garantias processuais. Nessa seara, o ANPP, embora considerado por parte da doutrina como um instituto de despenalização, não tem o condão de descriminalizar a conduta. Na prática, o que ocorre é uma resposta penal mais célere e, muitas vezes, mais eficiente e ampla do que aquela que adviria ao fim de um longo processo penal. Embora haja quem defenda que um longo processo penal, por si só, já representa uma punição simbólica para o réu, é preciso recordar que também a vítima enfrenta essa mesma morosidade, na tentativa de ter acesso efetivo à justiça, terminando, na maior parte dos casos, condenada à injusta absolvição do seu agressor, sem qualquer reparação pelos danos sofridos. Recorde-se, nesse ponto, a importante pesquisa realizada pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), entre 1º de janeiro de 2005 e 31 de dezembro de 2006, que constatou que vítimas de crimes de racismo perdem 57,7% dos casos, nos julgamentos em segunda instância.5 Para além da preponderante impunidade, nos poucos casos de condenação pela prática de crimes de racismo, as penas privativas de liberdade são substituídas por penas restritivas de direito, sem nenhuma atenção à reparação à vítima. Foi o que se constatou em pesquisa realizada na Promotoria de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do MP/BA, primeira promotoria de justiça desta natureza do país. A pesquisa, intitulada "Crimes de Racismo na Comarca de Salvador"6, detectou que, das 84 denúncias oferecidas por crimes de racismo (envolvendo os crimes previstos na lei 7.716/89 e a denominada injúria racial, tipificada no art. 140, § 3º, do CP), entre agosto de 2016 e julho de 2021, apenas 5 geraram condenações, todas elas com substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e sem a devida reparação à vítima.  Voltando à questão da aplicação do ANPP, fica evidente, nesse contexto, que não há qualquer prejuízo, quer à tutela penal do direito protegido, quer à vítima, obtendo-se inclusive resultados semelhantes e até mesmo mais eficientes e céleres, especialmente se houver disciplina legal mais atenta sobre o assunto. Explica-se: o ANPP se dirige a crimes sem violência, cometido por réus primários, de bons antecedentes, que não gozaram do benefício anteriormente. Em um crime de racismo, fixando-se, por exemplo, a pena em três anos, ou seja, acima do mínimo abstratamente cominado, inevitavelmente caberia, nos termos legais, a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, que é exatamente o que se alcança com a aplicação das medidas previstas no ANPP que, no entanto, podem ir além e preconizam explicitamente a reparação à vítima. Dito de outro modo, não há limitação da tutela penal por parte do Estado, já que, ao final, se denunciado e condenado, o investigado estaria sujeito às mesmas medidas que podem ser aplicadas, a priori, por meio de ANPP. Além disso, na hipótese da substituição prevista no art. 44 do CP - o que, como já dito, é de práxis nos casos de racismo -, o descumprimento da prestação de serviço, ou de qualquer outra pena alternativa implicará, invariavelmente, no cumprimento da pena privativa de liberdade em regime aberto. Já no caso de assinatura e homologação de um acordo de não persecução penal, o descumprimento importará na continuação do processo penal, com o oferecimento de denúncia. Em síntese, pode-se dizer que, no Brasil, o déficit de resposta penal à prática de racismo não decorre da "pouca pena" e sim de aspectos - em especial, do próprio racismo institucional - que florescem no curso do processo e que, ao fim e ao cabo, inviabilizam a condenação. Com o ANPP, uma vez preenchidos os requisitos legais, o MP fica, a priori, condicionado à oferta de acordo. Na atmosfera inicial da persecução, o investigado, não raro, quer se livrar dos riscos do processo, tendendo, desse modo, a aceitar o acordo. O ganho para a luta antirracista é que se evita a produção processual de prova, do exame sobre o dolo e todas as etapas seguintes que são espaços e momentos férteis para que se manifestem todas as formas de racismo que acabam por resultar em absolvição e, portanto, impunidade. Em outras palavras, o ANPP encurta o tempo de persecução criminal que, no processo penal, notadamente nos casos de racismo, milita a favor da absolvição, de modo que um processo abreviado pode favorecer a resposta penal. Assim, em contraposição ao entendimento de que a aplicação do ANPP é inconstitucional por resultar em proteção insuficiente, vê-se que, na prática, a opção pelo ANPP é opção por eficiência e celeridade na resposta penal aos crimes de racismo. A sua recusa representa a defesa de um simbolismo punitivista estéril. Dessa maneira, embora simbolicamente seja apresentado como um "benefício" ao investigado,  aos que entendem por uma necessidade de punição criminal para práticas racistas, o ANPP atende à dita eficiência punitiva, resultando na aplicação da pena de modo muito mais célere e eficiente do que aquela que adviria possivelmente na (rara) hipótese de condenação, tudo isso sem vislumbrar a prisão como solução, política encarceradora que, sabemos, atinge seletivamente corpos negros. Por isso, deve-se refletir sobre a aplicação do ANPP como instrumento de concessão de celeridade e eficiência na tutela penal da não discriminação racial, que, como visto, tem sido alvo de impunidade em meio ao sistema penal brasileiro. Importar afirmar, ainda, que a simples e ilusória solução pela via da majoração da pena não garante a eficiência da dita tutela penal, uma vez que as mesmas vicissitudes que atualmente resultam em impunidade continuarão presentes. Desse modo, levando em consideração que o oferecimento de ANPP não é direito subjetivo do investigado, cabendo, inicialmente, ao MP a apreciação no tocante à necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime -, entende-se que a aplicabilidade do acordo aos crimes de racismo deve ser analisada caso a caso, com observância dos critérios legais pertinentes. Nada obstante, para evitar a banalização do acordo de não persecução penal - como tem ocorrido com o instituto da transação penal que não raro resulta em pagamento de cestas básicas -, sobretudo nos casos de racismo, é preciso que as medidas propostas pelo Ministério Público levem em consideração o grau de censura constitucional atribuída ao racismo, prevendo condições, ao menos em tese,  efetivamente adequadas e suficientes para a reprovação e prevenção desse tipo de delito. É nesse sentido que se propõe abaixo os seguintes dispositivos7 a serem considerados quando do oferecimento de acordo de não persecução penal nos casos de racismo: "§ 2º-A - Para aplicação do acordo de não persecução penal aos crimes de racismo, o Ministério Público, além das condições subjetivas previstas no caput deste art. , para aferir a necessidade e suficiência do acordo, levará em consideração, dentre outros elementos: I - a repercussão pública do crime; II - o meio utilizado para sua prática; III - os efeitos morais e materiais do crime para a vítima. §2º-B - Nos crimes de racismo, a proposta de acordo de não persecução penal, além das condições dos incisos de I a V, do caput, deverá conter cláusula pertinente: I - à reparação mínima à vítima pelos danos morais e materiais decorrentes do crime, cujo valor deverá ser abatido em eventual condenação cível; II - à fixação, em sendo o caso, de valor mínimo de indenização por dano moral coletivo, destinando-se o valor correspondente para fundos ou ações específicos destinados ao enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial, sem prejuízo de eventual ação civil pública, cujo valor da condenação deverá ser abatido do montante pago em decorrência do acordo; III - à prestação de serviço à comunidade, que consistirá em atribuições de tarefas gratuitas a serem realizadas em organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial; IV - à participação do investigado em cursos ou grupos reflexivos de letramento racial, a serem realizados por organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial." __________   1 As leis 8.081, de 1990; 8.882, de 1994; 9.459, de 1997; 12.288, de 2010; e lei 12.735, de 2012. 2 CIDH - OEA, Relatório 66/06, Caso 12.001, mérito, Simone André Diniz, Brasil, 21 de outubro de 2006. Disponível em «http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm». Acesso em 2 de dezembro de 2021. 3 De acordo com trecho da decisão de mérito emitida no Relatório 66, de 2006 - Caso 12.001, de 21 de outubro de 2006, "de 300 Boletins de Ocorrência analisados, de 1951 a 1997, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, apenas 150 foram considerados como crime pelos delegados de polícia chegando ao estágio de inquérito policial. Desses, somente 40 foram encaminhados pelo Ministério Público para uma ação penal contra o discriminador, dos quais apenas nove - cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul - chegaram a julgamento". Disponível em «http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm». Acesso em 2 de dezembro de 2021. 4 "Mesmo no caso de São Paulo, onde existia uma delegacia para crimes raciais, os crimes não eram de todo investigados ou as denúncias não eram processadas. Na prática, a falta de uma investigação diligente, imparcial e efetiva, a discricionariedade do promotor para fazer a denúncia e a tipificação do crime, que exige que o autor, após a prática do ato discriminatório, declare expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial são fatores que contribuem para a denegação de justiça para a investigação dos crimes raciais e a impunidade. Para ilustrar com alguns dados o padrão de desigualdade no acesso à justiça para as vítimas de crimes de cunho racial, de 300 Boletins de Ocorrência analisados, de 1951 a 1997, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, apenas 150 foram considerados como crime pelos delegados de polícia chegando ao estágio de inquérito policial. Desses, somente 40 foram encaminhados pelo Ministério Público para uma ação penal contra o discriminador, dos quais apenas nove - cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul - chegaram a julgamento." 5 MENEZES, Maiá. Vítimas de racismo perdem 57,7% das ações. O Globo, 20 nov. 2008. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/408706/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 5 out. 2021. 6 Pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa Eixo Racismo, instituído pelo Centro de Aperfeiçoamento de Estudos Funcionais (CEAF), do Ministério Público do Estado da Bahia. 7 Aqui, a contribuição segue no formato de proposta de inclusão de dispositivo legal no art. 28-A do CPP. No entanto, o mesmo conteúdo pode servir de parâmetro para a expedição de recomendações e/ou atos normativos do próprio Ministério Público.
Viralizou nas redes sociais um vídeo que mostrava a abordagem policial a um jovem negro, ao argumento de que ele teria entrado e saído muito rápido da loja e não teria comprado nada. Seria isso alguma situação anormal que constitua causa provável, fundada suspeita ou suspeita razoável, ou seja, elementos pertencentes a um histórico debate sobre a stop and frisk, a partir regência da 4ª emenda da Constituição americana? É bem verdade que outros ingredientes surgiram na narrativa policial, em segundo plano, no vídeo, algo do tipo "você é especialista em segurança pública?",  "Que tal fazer um manual para a polícia?" ou ainda, "Você tem fé pública?". Mas tudo ilustra bem a necessidade de um urgente debate em torno da abordagem policial, ou seja, as regras que devem ser impostas para regular o encontro de agentes policiais com o público. A legislação brasileira é carente de normas que regem a matéria, praticamente limitada a alguns artigos que cuidam da busca e apreensão como meio de obtenção de prova, cuja fraseologia escoa para justificar as abordagens no âmbito do policiamento ostensivo. Na jurisprudência encontramos um acórdão do Supremo Tribunal Federal (HC 81.305/GO)1 que se porta como paradigma. No Superior Tribunal de Justiça verificamos menos que uma dezena de julgados, sem aprofundar o tema. Devemos confessar que nem mesmo o debate na jurisprudência na Suprema Corte americana, que se arrasta desde meados do século XIX, foram capazes de dar os contornos e objetividades ao tema e a devida proteção aos direitos civis. Por outro lado, se rios de tinta não foram o bastante para se chegar a bom termo entre os americanos, o que será de nós, cuja jurisprudência, a legislação e a própria doutrina derramam poucas gotas de tinta sobre um tema que extrai oceanos de lágrimas, destacadamente da juventude negra, principal alvo dessa prática violenta e arbitrária que são as abordagens policiais. Nosso código de processo penal, que acaba de completar 80 anos, dedica ao tema alguns poucos artigos: . Art. 240.  A busca será domiciliar ou pessoal. a) prender criminosos; b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; g) apreender pessoas vítimas de crimes; h) colher qualquer elemento de convicção. § 2o  Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.  Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar. Art. 249.  A busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência.  O substitutivo do Projeto de Código de Processo Penal em trâmite na Câmara dos Deputados regula a matéria, timidamente, da seguinte forma:  Art. 263. A busca será pessoal ou domiciliar. Art. 264. A busca pessoal será determinada quando houver indícios suficientes de que alguém oculta objetos que possam servir de prova da infração penal. Art. 265. A busca pessoal independerá de mandado no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma sem autorização legal ou regulamentar, de objetos que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar. Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput deste artigo, o executor informará os motivos e os fins da diligência à pessoa revistada, devendo registrá-los em livro próprio, onde constarão também os dados do documento de identidade ou outro que permita identificar a pessoa submetida à busca. Art. 266. A busca pessoal será realizada com respeito à dignidade da pessoa revistada e será feita, preferencialmente, por pessoa do mesmo sexo, desde que não resulte em retardamento ou prejuízo da diligência. Art. 267. Proceder-se-á à busca domiciliar quando houver indícios suficientes de que a pessoa que deve ser presa, a vítima de crime ou os objetos que possam servir de prova da infração penal encontram-se em local não livremente acessível ao público.  Precisamos avançar nos debates jurídicos sobre o tema. Primeiramente é preciso dizer que a atual regência no CPP sobre busca pessoal, o que não se difere no substitutivo em trâmite, diz respeito a um "meio de obtenção de prova", que, portanto, deve ocorrer no curso de uma investigação ou instrução criminal, via de regra, dependendo de mandado judicial, excepcionalmente dispensado. No entanto, as recorrentes práticas de abordagens ocorrem como instrumento de policiamento ostensivo, realizadas, deste modo, sem mandado e fora do contexto de uma investigação, sem regência na legislação atual e futura, relativamente ao processo penal. Assim, pode-se dizer que as abordagens policiais são realizadas no Brasil, sem um marco normativo, em pleno século XXI. E por que esse vazio? Porque abordagem policial é coisa para preto, então pode ser feito de qualquer jeito. Um grande exemplo disso é o contexto da súmula vinculante número 11. Durante muito tempo, pessoas pretas, pobres e periféricas foram arbitrariamente (e ainda são pela falta de efetividade da súmula) algemadas no Brasil, apesar de se saber desde 1871 que isso era inadmissível, pois o Decreto Imperial 4824/1871, afirmava que "O preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo conductor". No entanto, a referida súmula chega quando um banqueiro e um desembargador federal são arbitrariamente algemados. Em outras palavras, só há sensibilidade para conter o arbítrio estatal quando este avança para pessoas com privilégios sociais (a branquitude). Esse imbricamento do tema com a questão racial não é algo que está apenas na cabeça do Júlio Dantas, influencer fundador da página Carioquice Negra, no Instagram,  no momento da abordagem, como registra o vídeo nas redes sociais. O problema da filtragem racial na prática da stop and frisk não passou ao largo das Cortes Americanas, como se vê no final da década de 60, quando se julgou o caso Terry v. Ohio, 392 U.S. 14-15 (1968). Na ocasião, a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) habilitou-se como amicus curiae e argumentou, perante a Suprema Corte, que a admissão da prática de detenções e buscas sem causa provável teria um inarredável reflexo para a população negra do país, que já era vítima de abordagens abusivas. A Corte concordou com a premissa fática apresentada pelo NAACP, no sentido de que as polícias frequentemente discriminam as minorias raciais, em especial os negros2.   No Brasil, pesquisas empíricas mostram que as abordagens a pessoas à pé, na rua e no transporte público, tem por alvo preferencial a juventude negra (pretos e pardos)3.  Qualquer desejo relativo a uma sociedade igualitária, justa e plural, passa necessariamente por trazer para o cambo da legalidade as abordagens policiais, limitando o arbítrio estatal. O poder de polícia não é um cheque em branco imune a qualquer controle. Voltando ao debate americano, a doutrina4 aponta que no caso Terry v. Ohio, 392 U.S. 14-15 (1968), há três pontos centrais que iluminam a compreensão do problema. Primeiramente é a inédita constatação de que retenção (stop) do indivíduo na rua, mediante coação física ou ordem (explícita ou implícita) de parada, configura uma "detenção" (seizure). O segundo ponto é a definição de que uma exploração superficial das vestes exteriores do indivíduo (frisk) configura uma "busca" (search). Por fim, independentemente do rótulo ou denominação que se dê a tais atos, a eles se aplicam a Quarta Emenda, ou seja, o direito fundamental da pessoa não ser submetida a busca e apreensões desarrazoadas. Ainda sobre a jurisprudência americana (Sibron v. New York, 392 U.S. 65 - 1968), a polícia não está autorizada a reter e revistar toda pessoa que vê na rua. Para que a polícia coloque a mão em um cidadão em busca de algo, deve ter fundamentos razoáveis e constitucionalmente adequados para fazê-lo. Na hipótese de busca autoprotetiva por armas, o policial deve ser capaz de indicar fatos particulares a partir dos quais ele inferiu -  razoavelmente - que o indivíduo estava armado e era perigoso. A Corte de Apelação de  Nova York  (People v. DeBour 40 N.Y.) diferencia os  encontros entre policiais e cidadãos no espaço público classificando-os como voluntários e coercitivos. Os encontros voluntários são desprovidos de qualquer propósito investigativo contra o indivíduo abordado (um não-suspeito). Já nos encontros coercitivos, trata-se de uma retenção investigativa (stop) com base em uma suspeita razoável e individualizada de que ele praticou, está praticando ou está prestes a praticar um delito, podendo ser mais invasivo, nas hipóteses de prisão em flagrante. O caso Carioquice Negra, não retrata um encontro voluntário, chamado pela Corte de Nova York de nível 1. Não é possível classificar a atitude dos policiais que abordaram o jovem, no caso em exame, como uma aproximação para mero pedido de informações (request for information), pois:  um encontro de nível 1, então, independentemente do quão calmo e respeitoso é o tom das indagações feitas, o policial não pode causar no indivíduo a inferência razoável de que ele é suspeito da prática de um crime. Além disso, o encontro de nível 1 é caracterizado pelo fato de que, em todos os momentos, a pessoa sente-se livre para ir embora, razão pela qual o policial, para que este não se torne uma retenção, não pode criar uma situação (seja por palavras, seja por ações) em que a pessoa não se sente livre para ir embora. Nesse nível, então, perguntas acusatórias (accusatory questions) não são realizadas e não pode o policial solicitar para realizar uma busca (search) consentida, o que o descaracterizaria. Mesmo que o indivíduo consinta com a revista, os objetos apreendidos serão ilícitos por derivação (fruits of poisonous tree)5  O que ocorreu no centro do Rio de Janeiro foi que os policiais abordaram um indivíduo e restringiram sua liberdade de ir embora, o que se enquadra no conceito de "detenção" expressa no caso Terry v. Ohio, 392 U.S. 14-15 (1968), pois para a Corte uma detenção  ocorre sempre que um agente policial, por meio de força física ou demonstração de autoridade, restringe, de alguma maneira, a liberdade de um cidadão6. Nos EUA o uso arbitrário e discriminatório da stop and frisk figura entre as reclamações mais persistentes dos cidadãos no que toca a atividade policial, designadamente as pessoas que residem em áreas periféricas. Com efeito, desde de 1968, após o julgamento do caso Terry, o perfilhamento racial tem sido comumente associado à stop and frisk,  motivada pela raça e por vezes justificada por  uma vaga suspeita de que a pessoa esteja tendo um comportamento delitivo7. Na verdade, há duas situações que levam um policial a realizar uma abordagem: a) situação de suspeita particularizada de um crime específico; b) a partir de uma suspeita genérica de que a pessoa é, no vernáculo policial, "errada", "suja", ou "tralha". Na verdade existe uma desfuncionalização cruel. As retenções, que deveriam servir para investigação um delito, são utilizadas para assediar pessoas, garantindo que não saiam das áreas as quais os policiais acreditam que elas "pertencem".8  Lamentavelmente, o que pauta o policiamento ostensivo são os estereótipos, os anseios higienistas, a marginalização, a ideia de classes perigosas.   Uma mudança legislativa é importante como um dos instrumentos de contenção desse cenário. Um Código de Processo Penal que pretenda dar conta de graves problemas da justiça criminal não pode deixar de trazer regras claras de exclusão de provas, como ocorre no debate americano, bem como não pode deixar de atualizar as situações de flagrantes. O flagrante decorre da percepção sensorial (visão, audição, olfato, gustação e tato) de um delito e não de intuições e preconceitos. Por sua vez, as abordagens não podem ter uma justificativa retórica, como no caso  Carioquice Negra: ele "estava com um volume na cintura". As justificativas devem ser faticamente demonstráveis e, por óbvio, quando não são comprovadas pela dinâmica dos fatos, o que resta como motivo da abordagem, ainda que subjacente, é o racismo. A polícia, para ser racista, não precisa usar um capuz da Ku klux klan. O racismo se infere de um somatório de circunstâncias: a) uma pessoa negra é parada; b) não há justificação fática para a abordagem; c) outras pessoas brancas não foram paradas e nas mesmas circunstâncias pessoas brancas não seriam paradas. O que explica essa diferença é o racismo. As filmagens das abordagens não podem ser responsabilidade dos cidadãos, mas devem ser uma imposição legal, sob pena de serem ilícitas prisões e provas decorrentes de abordagens que não observem esse meio de registro.  Nesse sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (HC 598051) já vem caminhando.   Com efeito, o projeto substitutivo que visa se transformar em um novo Código de Processo Penal, deve ser verdadeiramente novo, o que implica uma gestação que não seja prematura e tenha um pré-natal repleto de cuidados e diálogos interdicipliares, para que não tenhamos um código que já nasça com velhos traços inquisitoriais e autoritários.  ___________  1 HABEAS CORPUS. TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA LAVRADO CONTRA O PACIENTE. RECUSA A SER SUBMETIDO A BUSCA PESSOAL. JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL RECONHECIDA POR TURMA RECURSAL DE JUIZADO ESPECIAL. [...]. A "fundada suspeita", prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um "blusão" suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo. 2 WANDERLEY, Gisela Aguiar. LIBERDADE E SUSPEIÇÃO NO ESTADO DE DIREITO: O PODER POLICIAL DE ABORDAR E REVISTAR E O CONTROLE JUDICIAL DE VALIDADE DA BUSCA PESSOAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2017. 3 RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: Abordagem policial e discriminação racial na cidade do Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania. Ano 03, nº8, Dez 2004. 4 WANDERLEY, Gisela Aguiar. LIBERDADE E SUSPEIÇÃO NO ESTADO DE DIREITO: O PODER POLICIAL DE ABORDAR E REVISTAR E O CONTROLE JUDICIAL DE VALIDADE DA BUSCA PESSOAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2017. 5 Idem. 6 Idem. 7 Idem. 8 Idem.
"Percebi que no Frigorifico jogam creolina no lixo, para o favelado não catar a carne para comer. Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. Comecei sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome". Carolina Maria de JesusQuarto de despejo - diário de uma favelada As panelas destampadas, os pratos vazios e as despensas nuas de esperança expõem e denunciam a fome. Não há comida crua, tampouco cozida, não há comida. "Tem gente com fome"1 e só resta o buraco... do estômago e/ou da cela. Não há fartura, tampouco provisões alimentícias, ao contrário, falta a dignidade e sobra a desumanidade. Como se não bastassem as caminhadas solitárias e famintas, revirar o lixo, "na imundície do pátio, catando comida entre os detritos"2, tal qual "O bicho", descrito pelo poeta Manuel Bandeira, é a imagem cada vez mais presente na vida dos/as brasileiros/as. Mais de 70 anos se passaram desde a escrita-denúncia desse poema que escancarou a crise da fome que assolava o país e, ainda assim, soubemos recentemente que dois homens, por estarem na imundície do lixo de uma rede de supermercados, foram denunciados pelo Ministério Público, que, com peculiar arrogância narrativa, sustentou a hipótese de que eles praticaram o crime de furto. O patrimônio violado foi alimentos vencidos que estavam no local onde seriam triturados e descartados. O caso aconteceu no dia 5 de agosto de 2019, em Uruguaiana, Rio Grande do Sul. Segundo o boletim de ocorrência, os policiais foram noticiados de que dois homens haviam entrado em área restrita de um supermercado, revirado o setor de descartes e fugido do local com mercadorias. A guarnição fez diligências e prendeu a dupla de indesejáveis nas imediações do estabelecimento, bem como apreendeu os produtos: cerca de 50 fatias de queijo, 14 unidades de calabresa, 9 unidades de presunto e 5 unidades de bacon.3 Em novembro de 2020, a Defensoria Pública do Estado (DPE), em sede de resposta à acusação, defendeu a tese do princípio da insignificância. De acordo com a defensora pública responsável, "é de se ter em vista o princípio da mínima intervenção, de onde emana que o Direito Penal deve tutelar apenas as condutas gravosas ao meio social, sem se preocupar com os denominados delitos de bagatela."4 A lucidez da alegação foi acolhida pelo juiz que, em julho de 2021, absolveu os réus. Segundo ele, "no presente caso não há justa causa para a presente ação penal em face do princípio da insignificância. Os réus teriam furtado bens (gêneros alimentícios com os prazos de validade vencidos) avaliados em R$ 50,00, os quais foram devidamente restituídos ao proprietário"5. A aplicação do princípio da insignificância, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), pressupõe a ofensividade mínima da conduta do agente; reduzido grau de reprovabilidade; inexpressividade da lesão jurídica causada; e ausência de periculosidade social.6 No caso em tela, o reconhecimento do caráter bagatelar da ação, ao permitir a interpretação jurídica de atipicidade material da conduta, resultou na absolvição sumária. Contudo, o Ministério Público recorreu da decisão, sob o argumento de que "não se pode usar o princípio da insignificância e do crime bagatelar como estímulo e combustível à impunidade." Então, cabe perguntar: qual seria o "combustível à impunidade", nobre parquet? Aquele referente à fome que grassa ou o que isenta o órgão "promotor" da (in)justiça de defender os interesses sociais e individuais indisponíveis, acusando à la vonté?7 O fato de o processo ir ao Tribunal de Justiça para o julgamento do recurso de Apelação não garante a manutenção da absolvição, proferida em 1º grau. Isto porque, há poucos dias assistimos atônitos/as à manutenção em 2º grau da prisão de uma mulher, mãe de 5 filhos, acusada de furtar dois pacotes de miojo, duas garrafas de refrigerante e um pacote de suco em pó, totalizando R$ 21,69. O teatro de horrores contou com a participação do Ministério Público que requereu a conversão da prisão em flagrante em preventiva, solicitação acatada pelo Judiciário, sob a justificativa de que "embora seja genitora de quatro crianças [o quinto filho é adolescente], não há evidências de que ela é responsável por seus cuidados" [...] "a recolocação em liberdade neste momento (de maneira precoce) geraria presumível retorno às vias delitivas, meio de sustento". Ou seja, as convicções subjetivas da magistrada deram o tom da decisão.  E como forma de justificar e embasar o discurso criminalizante, o endosso foi perpetrado em sede de 2º grau, quando os argumentos morais do desembargador o fizeram afirmar que "embora triste a situação, impossível se negar a periculosidade avaliada em face da real e intensa culpabilidade da agente."8 Indiciamentos, denúncias, decretações e manutenções de prisões que sobrecarregam o Judiciário Brasileiro. Do ponto de vista de uma humanidade racialmente comprometida com a justiça, qual o custo de cada processo? Protege-se a (in)significância do patrimônio (comida vencida) em detrimento da vida e da dignidade. Há democracia em um país cujo prato diário é a fome? Existem muitas versões históricas, nem sempre convergentes, sobre a conformação orgânica do Ministério Público. De certa forma, para o que aqui nos interessa abordar, prevaleceu o desenho normativo de uma instituição vocacionada à defesa do regime democrático, de interesses sociais e individuais indisponíveis. Etimologicamente, o termo Ministério Público pode ser decomposto da seguinte forma. Deriva do latim ministerium, que significa ofício, trabalho, sacerdócio. "Público" vem do latim publicus e é "relativo ao povo", "aberto à comunidade".9 Segundo o promotor de justiça Saulo Mattos, a versão contemporânea do Ministério Público que foi lançada para o mundo guarda relação histórica com a principiologia liberal que incentivou a Revolução Francesa de 1789, marcada pelos abstratos ideais burgueses de igualdade, liberdade e fraternidade. Nas suas palavras:10 À semelhança da Revolução Francesa, nascia um novo Ministério Público de 1988, coordenado politicamente por uma elite burguesa desejosa de maior estabilização político-institucional e que, com a suavidade do discurso de garantia de direitos fundamentais para todos na nova ordem democrática, conseguiu realizar seu, e só seu, projeto de constitucionalização orgânica do Ministério Público. Com isso, nos pulsantes anos de 1987-1988, a perspectiva que se divulgava, a título de propaganda institucional, é que o órgão ministerial deixaria de ser apenas o titular da ação penal e adquiria o importante papel de garantidor de direitos, de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, a quem incumbe, conforme dito acima, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Mas, verifica-se que, em lugar disto, o Ministério Público tem trabalhado a partir dos justiçamentos11 às existências pobres, pretas, de homens e mulheres. Prisões em flagrantes de furtos de alimentos mostram a face mais abjeta do sistema de justiça criminal, contando com o aval do Ministério Público, que faz questão de ignorar o conceito dogmático de justa causa para a propositura da ação penal e, assim, seguir com denúncias irresponsáveis Nesse contexto de práticas processuais penais racialmente injustas, não há reforma de Código de Processo Penal que, no campo normativo, constranja o Ministério Público a assumir, na prática, a sua identidade constitucional. É o curioso caso de uma instituição que faz o que quer quando deveria obedecer à normatividade constitucional. Além de o Ministério Público se preocupar, na área criminal, com o valor patrimonial de comidas vencidas, percebe-se também que o normal agora é vender aquilo que antes era doado: feijão e arroz quebrados, ossos de boi12, carcaça e pés de galinha13, vísceras de peixe.14 Enquanto isso, o mapa da fome no Brasil faz a sua rota e constrange pessoas a procurarem comida em caminhão de lixo.15 Para quem se debruça sobre esse texto, que valor tem o lixo para você? Talvez responda de imediato: "lixo não tem valor". No entanto, para o grupo social que vive abaixo da linha da pobreza, em situação de rua e os 1,4 milhão de catadores de resíduos sólidos que sobrevivem do lixo,16 "o lixo é o sustento". Atualmente, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, 19 milhões de brasileiros/as enfrentam a fome,17  expostos/as ao desmantelamento das políticas sociais e da administração genocida do atual Governo. Nestes casos e em tantos outros, escancara-se a face mais execrável de um sistema de justiça capaz de varrer, para o lixo do cárcere, homens e mulheres que já viviam empurrados à sarjeta e desprovidos/as de assistência estatal. Não há que se falar em consumação de crimes contra o patrimônio quando, diante dos nossos olhos temos a inaplicabilidade dos direitos sociais elementares dispostos na Constituição Federal, que há muito tempo viraram detritos. E por falar em lixo, quantos corpos mais serão aprisionados e desumanizados pela soberba do sistema de justiça? E ainda hoje, as páginas da miséria vivida no "Diário de uma favelada" se avolumam. Carolina Maria de Jesus, eu também acredito que "... Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... Isto é mentira! Mas, as misérias são reais... o que eu revolto é contra a ganância dos homens que espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja".18 Carolina Maria de Jesus, presente. __________ 1 Poema "Tem gente com fome", de Solano Trindade. 2 Poema "O Bicho", de Manuel Bandeira. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 "Recurso provido para restabelecer a sentença de primeiro grau, que reconheceu a aplicação do princípio da insignificância e absolveu o paciente do delito de furto." (RHC 140.017/SC, Rel. Min. EDSON FACHIN). 7 Art. 127 da Constituição Federal: O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 MATTOS, Saulo Murilo de Oliveira. Ministério Público e domínio racial: poucas ilhas negras em um arquipélago não-negro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2 p.275, 2020. 11 Neste caso, as professoras Ana Luiza Flauzina e Thula Pires questionam o fato dos órgãos do sistema de justiça precisarem ser responsabilizados politicamente pelo papel que exercem na gestão do genocídio negro e na reprodução do racismo. A justiça atua de acordo com os preceitos constitucionais ao revés deles? Supremo Tribunal Federal e a naturalização da barbárie. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N.02, 2020, p. 1211-1237. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui. 14 Disponível aqui. 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo - diário de uma favelada.
Extra! Extra! Vem aí um Novo Código de Processo Penal! A notícia é repetida amiúde, de tempos e tempos, mobilizando o mundo jurídico-penal de forma (in)tensa. A possibilidade de mudança de um Código é sempre um portal que se abre para reflexões, revoluções e - disso há quem se esqueça - toda sorte de conservadorismos. Aliás, vale lembrar que mudança nem sempre é sinônimo de aperfeiçoamento e, se o processo penal é sobretudo um ritual usado para encarcerar pessoas, subjetividades e comunidades negras, "aperfeiçoar" pode ter sentido oposto ao que desejamos. A Coluna Olhares Interseccionais tem se dedicado1, nas suas mais recentes edições, ao Projeto de Lei nº 8.045/2010, em tramitação perante a Câmara dos Deputados, buscando contribuir com os debates que, não se sabe quando, culminarão com um novo diploma processual penal. Como sabemos, o regramento processual penal brasileiro é uma velha colcha tecida com fios ítalo-fascistas por mãos autoritário-racistas em 1941; para os discursos violentos, que defendem a manutenção de uma abstrata "ordem pública" e o "fim da impunidade", é uma coberta quentinha e aconchegante. É bem verdade que esse cobertor vez ou outra disfarça suas cores mais vivas, e o problema reside bem aí: os muitos fios que a compõem seguem acomodando velhas práticas, adotadas com fervor também por novas mentes. Essa "mentalidadezinha" de sujeitos que não se enxergam, as tais pessoas universais, paradigma da existência que se alimenta da constante subjugação do outro, o diferente, esses aos quais se quer relegar à condição de "não-se" através das diversas formas de extermínio. Retalhos muitos foram cosidos, numa tentativa vã de fazer dessa colcha outra coisa, como se fora possível, com a aposição aleatória de pedaços de pano, retirar a teia inquisitorial que sustenta essa malha. Em 2003, a lei 10.792 passou a assegurar a presença da defesa técnica no interrogatório judicial, algo que gritava da Constituição Federal desde 1988, contudo se preferiu não ouvir. Durante quinze anos, foi como se o princípio da ampla defesa, inscrito de forma explícita na Lei Maior, não englobasse o direito de ter consigo um/a defensor/a, justo nesse momento tão importante do rito criminal. Em 2008, três Leis se dispuseram a modificar o CPP (11.690, 11.698 e 11.719), e lá se foram alterações ao rito comum, ao rito do júri e à disciplina das provas. Destaque para a ordem da inquirição na audiência de instrução e julgamento, que passou a ser primeiro das partes e, apenas de forma complementar, do juízo; para a instituição da possibilidade de encerramento prematuro do feito, com a resposta à acusação; e para o reposicionamento do interrogatório ao final da cadeia de eventos do processo, o que de fato deu vida ao contraditório e à defesa pessoal. Em 2011, foi a vez de "revolucionar" o panorama das medidas cautelares de natureza pessoal e a grande inovação foi um rol de alternativas à prisão provisória, a exemplo da monitoração eletrônica. Em 2015, circunstancialmente fora do Código, porém com todo impacto na dinâmica do processo penal, o CNJ editou a resolução 213. Surgiam as audiências de custódia, inspiradas em antigos diplomas de direitos humanos da década de 60, cuja interpretação estava ali, também adormecida, ofuscada. Com elas, um giro na metodologia de se apreciar a verificação da legalidade das prisões em flagrante e provisórias e a abertura de um espaço de visualização e escuta de eventuais violências contra a pessoa apresentada às autoridades (MP, Juízo e Defesa). Por fim, o "Pacote Anticrime", lei 13.964/2019, cujos reflexos no CPP foram inúmeros, e se iniciam com um dispositivo declaratório da estrutura acusatória do processo penal brasileiro, inscrevendo uma certeza antiga de grande parte da doutrina, aquela que tem especial cuidado com a leitura do art. 129, I, da CF/88. Essa miríade de modificações não tem sido suficiente para dar conta da "espinha dorsal" inquisitória do Código de Processo Penal. Sua vocação é nitidamente para uma persecução penal preocupada mais com o resultado do que com a forma, do que decorre a compreensão dos direitos e garantias da pessoa acusada como um obstáculo à conclusão do proceder. É nesse contexto que entendemos fundamental perguntar: qual reforma processual penal queremos? Muitos são os desenhos possíveis do que deve ser uma boa arquitetura de um sistema de regras pensado para desempenhar a função de contenção do poder de punir. Não pretendemos, não hoje, esboçá-los; queremos apor nossa mirada à outra ponta tão ou mais relevante: o sistema de invalidades de um futuro código processual penal. O código vigente nunca escondeu a que veio. Sua Exposição de Motivos, num português arcaico, deixa extremamente nítido que o respeito às normas processuais deve ser entendido como "excessivo rigorismo formal"; lendo-se às avessas, a violação da forma prescrita para os atos processuais penais não há de gerar necessariamente nulidade. É bom conferir para crer: AS NULIDADES. XVII - Como já foi dito de início, o projeto é infenso ao excessivo rigorismo formal, que dá ensejo, atualmente, à infindável série das nulidades processuais. [...] O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa. Não nos parece coincidência que o capítulo das Nulidades do CPP nunca tenha sido reformado. A quem interessa estabelecer um sistema de invalidade que inspire efetivo respeito ao regramento estabelecido? O princípio-mantra do "prejuízo" tem versão em francês: "pas de nulité sans grief". Se há muitos inspira elegância, a nós nos parece uma inaceitável permissivo a toda sorte de violações. Apenas para ilustrar, e aproveitando o mote do texto magistral do prof. Saulo Mattos na última edição desta coluna2, o reconhecimento de pessoas foi considerado, desde 1941 (!), um procedimento de ditames desrespeitáveis, lendo-se o conteúdo do art. 226 do CPP como "mera formalidade". Aspeamos porque a expressão não é dada por qualquer pessoa, mas pela Corte a quem cabe o controle de legalidade dos atos do procedimento criminal. A noção de que "não há nulidade sem prejuízo", codependente do "a parte deve comprovar o prejuízo", é a deixa bastante para fazer letra morta quase todo o desenho processual, minando prerrogativas da defesa e direitos da parte débil do processo penal, aquela a quem se imputa o fato delituoso. Se é verdade que jurisprudência ganhou novos contornos com a paradigmática decisão sobre o reconhecimento de pessoas no HC 598886 do STJ3, nada garante que não possamos retornar ao tenebroso cenário, afinal a legislação convida mesmo a que sejam toleradas as nulidades quando conveniente for. Essa profunda angústia do legislador e da jurisprudência com o "desperdício" da marcha processual realizada tem fonte sabida. É o processo civil, ambiente em que, ensina o professor Fredie Didier Jr., "O órgão julgador deve sentir um profundo mal-estar quando tiver de invalidar algum ato processual"4. Nada mais natural: lá, estando-se, ao menos em regra, diante de interesses patrimoniais e disponíveis, é urgente se aproveitar tanto quanto possível todo esforço para se chegar a uma solução ao litígio. No processo penal, a realidade é outra, bem outra. O caminho que se trilha nestas bandas tem como finalidade, também em regra, selar o destino de vida de uma pessoa, possivelmente submetendo-a à mais grave das restrições, a prisão. Essa a razão central pela qual se deve respeito intransigente à ritualística processual penal, nunca incumbindo à defesa o papel (tantas vezes insuperável) de reunir prova do prejuízo sofrido, sobretudo porque nesse mister reside a abertura ao arbítrio judicial pela via da convalidação de atos gravemente defeituosos. O pretenso Novo Código de Processo Penal aloca as nulidades não na metade final do código, mas no seu Capítulo IV (Das Nulidades) do Título VII (Dos atos Processuais). Como diz o poeta, "Talvez seja bom, partir do final"5, afinal inscrever no início do Código as regras atinentes às nulidades adverte à/ao intérprete as consequências da inobservância do procedimento que se traça em seguida. Apesar disso, o projeto do novo CPP, no quanto até aqui proposto - sim, temos esperança de mudanças - nada inaugura de importante. A mudança é meramente topográfica, pois o regramento sugerido para o sistema das invalidades é rigorosamente o mesmo, em linhas gerais. O art. 186, que abre o capítulo, não nos ilude: Art. 186. O descumprimento de disposição constitucional ou legal que tenha por objeto matéria pertinente ao processo ou à investigação criminal determinará a invalidade dos respectivos atos, nos limites e na extensão previstas neste Código.  A redação capciosa foi vista em outras passagens do projeto de CPP: uma enunciação categórica e animadora seguida de uma vírgula que a reduz, limita ou mesmo gera sua negação [6]. No caso, está bem registrado quais contextos dão causa à invalidade de um ato, todavia o texto se apressa a dizer que essa sanção (a invalidação) está restrita aos limites e só se dará na extensão do Código. O que vem a seguir é a perpetuação dos erros de hoje.  Uma tradição tão civilista que a citação do grande professor processualista baiano parece ter inspirado o art. 187, I, do qual se lê: "I - é dever do juiz buscar o máximo de aproveitamento dos atos processuais" (será mesmo? A que custo?). A pá de cal vem com o inciso III, segundo o qual "o prejuízo não se presume, devendo a parte indicar, precisa e especificadamente, o impacto que o defeito do ato processual gerou no exercício do contraditório ou da ampla defesa". A incansável luta dos/as processualistas penais (aqueles/as dedicados/as a um processo penal progressista, digamos bem) para que o descumprimento das formas estabelecidas em lei seja presumido como razão para a invalidação dos atos não ecoa neste possível Novo Código de Processo Penal. Há muito em jogo num país que não superou suas estruturas racistas e patriarcais, numa democracia marcada por instituições que convivem tranquilamente com o genocídio da população negra e uma nação que ainda tolera discursos negacionistas que embalam a morte de centenas de milhares de pessoas. Pensar um Código de Processo Penal nesse contexto é algo extremamente complexo, mas, se o momento for este, que pensemos naquele rosário de regras que deem conta do melhor diploma para assegurar as iras do poder de punir. Não esqueçamos, todavia, que de nada bastarão as melhores intenções e até mesmo as melhores disposições normativas se o próprio Código for complacente com o seu descumprimento, pavimentando uma larga avenida pela qual transitarão decisões que legitimam um não-processo, esse espaço do florescer arbitrário em que tudo é permitido, apesar da lei. __________ 1 O primeiro artigo da série pode ser visto aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 22. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 509. 5 Emicida, em "É tudo pra ontem", part. de Gilberto Gil. Assista aqui. 6 A versão primeira do art. 4º do projeto era exatamente esta: "Art. 4º O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código".
"Era um sonho dantesco... o tombadilhoQue das luzernas avermelha o brilho.Em sangue a se banhar.Tinir de ferros... estalar de açoite...Legiões de homens negros como a noite,Horrendos a dançar...Negras mulheres, suspendendo às tetasMagras crianças, cujas bocas pretasRega o sangue das mães:Outras moças, mas nuas e espantadas,No turbilhão de espectros arrastadas,Em ânsia e mágoa vãs!" (O navio negreiro, poeta Castro Alves).  "O chicote sempre se pretendeu eruditoOrdenou e ordena em idiomas váriosO seu "tenho dito!"Nesse toma vida mínguavira mar de mágoaincha a nossa língua(...)" (Interpela-som, poeta Cuti) O vento que chega é dolorosamente salgado, histórico, e deseja ser tempestade, ainda que a saudade da brisa seja um amor antigo. Vem do fundo, do fundo do mar, esse sonho de ser ventania, correr pela diáspora dos corações e gritar: cadê a liberdade? Estátuas de sal escondem sangue, grilhões e se glorificam como instituições do bem-estar social. É desse sal retirado de negros/as lançados ao mar da História, afogados de banzo, mutilados/as em suas genitálias, sodomizados em porões, que se fez o capital, que se construíram as grandes capitais. E se o sal que esse vento traz é especiaria indispensável, que se diga que, para o lado de cá - onde sobreviver pode ser um delírio negro -, fez subir a pressão arterial, entupir as coronárias da emoção e decepar cabeças com aneurismas. Os que conseguiram atravessar o Atlântico souberam, de alguma forma, contar aos seus que é possível resistir, e que são muitas as formas de lutar contra Tânatos, que finge vestir roupa branca e costuma encomendar suicídios para que seu estômago tenha paz. A transmissão desse saber - o resistir - se inscreveu no corpo, no visual, na oralidade primeira do choro, na magia de uma ancestralidade que confia nos segredos divinatórios do Ifá. Dois negros, que sejam negros, quando se olham já sabem que ali, nesse encontro, há um resgate histórico. O coração diz: "Quilombo!". Duas negras, que sejam negras, quando se encontram, já sabem que entre a doçura das cachoeiras, o salitre do mar e a tempestade que chega, há muita dor que precede o amor. O coração diz: "Quilombo! Dororidade1!" Em comunidade, entre o seus, o corpo negro é um corpo que fala a todo instante, que se coloca à disposição dos "sons do pensamento2.  Na outra margem social, no entanto, onde ser gente é ser branco, a negra-vida, por insistir em existir, provoca desconfortos sociais, já que mesmo em silêncio, em breves e discretos passos, continua a ser o corpo que prova, para o sistema-mundo, o delito histórico que certifica o nascimento do Brasil: a escravidão. A relação de nossa sociedade com o negro é paradoxal, instaura uma espécie de "descartabilidade essencial", típica de um arquétipo antinegro3 que moldura a formação social brasileira. Sem essa materialidade orgânica negra, o sistema de justiça, em especial o criminal, não teria em quem despejar seus erros sistemáticos e se manter firme na sua insípida tecnicidade jurídica. O corpo negro é descartável, portanto, no sentido de que faça-se o que quiser com esse corpo. Essencial, porém, porque alguém tem que ser lixo, tem que ser excremento. Um parêntese: ainda assim, é preciso confiar em Lelia Gonzalez quando, na ardência de um feminismo negro transformador, disse que esse lixo humano "vai falar, e falará numa boa", porque a negritude está cansada de ser infantilizada.4 Sabendo que nossos ventos ecoam gritos dos navios negreiros, - tanto as ordens dos chicoteadores quanto os lamentos dos/as negros/as escravizados/as -, queremos lembrar que o processo penal brasileiro é um atualizável empreendimento colonial, de reconfigurações não só da Casagrande e da Senzala, mas das lavouras, da domesticação e comercialização de gente preta, do tráfico negreiro. Nosso processo penal é um navio negreiro. Transporta, no cotidiano, um amontado de corpos negros para o cárcere sob o comando de uns poucos que detêm o chicote. E o reconhecimento de pessoas tem sido uma das principais ferramentas probatórias para que esse encarceramento em massa continue produtivo. A propósito, o historiador Hebert S Klein narra que, na história da escravização de africanos, o tráfico negreiro pode ser considerado um dos capítulos mais horrendos e repugnantes da vida escrava.5 Há muitos e recentes casos de reconhecimentos fotográficos falhos que provocaram prisões e condenações injustas. Bárbara Querino. Tiago Vianna Gomes. Luiz Carlos da Costa Justino. Daniel Felix. Ângelo Gustavo Pereira Nobre. Jeferson Pereira da Silva. Todos negros. Cada nome desse é uma vida erroneamente interceptada pelo processo penal, com base na nefasta prática policial do álbum de suspeitos, de fotografias retiradas de Facebook, transmitidas via WhatsApp e por foto 3X4. Foram prisões e condenações decretadas com base em um reconhecimento fotográfico sem qualquer fiabilidade probatória, não só pelo descumprimento do minimalista art. 226 do CPP, sobretudo porque "a foto em si" é de duvidosa autenticidade e de questionável licitude quanto ao meio que foi obtida pelos agentes estatais. Na atmosfera inquisitorial e de autoritarismo racial que envolve a fabricação do inquérito policial, o álbum de suspeitos se destaca como o principal instrumento de captura de corpos negros inocentes. Muitos dos que compõem esse álbum são pessoas negras que não tiverem qualquer contato com aquilo que se convencionou chamar de "mundo do crime" e com a própria justiça criminal. Estão no álbum de suspeitos por uma única razão. É a pele preta, aquela que mobiliza estereótipos raciais engessados no racismo institucional da polícia investigativa, mas também do Ministério Público e do Poder Judiciário que nada fazem para descredenciar essa prática segregacionista que é o álbum de suspeitos. Para além de um jogo múltiplo de estereótipos raciais, - o negro como naturalmente propenso ao crime e o branco como ser ocasionalmente desviante, dotado de uma bondade natural -, o álbum de suspeitos reverbera, por longo tempo, nas vidas de pessoas negras que figuram nessa coletânea de fotos administrada pela polícia. É que, mesmo quando inocentado/a, a foto ainda continua no álbum. E, com certa frequência, novos e errados reconhecimentos são feitos com base nessa foto. Ou seja, a pessoa fica refém, por tempo indeterminado, de uma alucinante espiral de erros do sistema de justiça. Fotografe-se, então, o seguinte pensamento. Uma vez dentro do álbum de suspeitos, para sempre se estará dentro do álbum de suspeitos.  Tem sido assim. Este é um dos aterrorizantes cenários de nossa prática processual penal em relação ao reconhecimento de pessoas. Considerado o racismo estrutural que funda a sociedade brasileira, a hipótese que nos visita é que a autoridade policial que se vale do álbum de suspeitos, que é um procedimento totalmente à margem da lei, pratica crime de abuso de autoridade (art. 25 da lei 13.869/2019), como também o crime de racismo (art. 20 da lei 7716/1989), já que, por conta do álbum de suspeitos, pessoas negras passarão, conforme explicado acima, a ser segregadas da sociedade com sucessivas abordagens policiais, prisões e condenações injustas, tendo-se por fundamento  uma prova de reconhecimento ilicitamente produzida.   Com alguma esperança sobre uma reforma processual penal que tente abraçar tanto os aportes epistemológicos da atual dogmática probatória, da Psicologia do Testemunho6, quanto a seriedade dos estudos étnico-raciais desenvolvidos há anos no Brasil, a primeira premissa da qual se deve partir é a impossibilidade do uso de álbum de suspeitos no reconhecimento de pessoas. Quando se diz isso, entenda-se também que não há condições de se pensar em um álbum de suspeitos "remodelado", que apareça na legislação com um nome mais sofisticado e permita uma interpretação elástica, a fim de que se prossiga na prática com um banco de fotografias antigas, exibidas aleatoriamente à vítima ou testemunha. Essa ideia de remodelar algo que é, na origem, bastante negativo e segregador pode ser mais um truque legislativo racialmente inquisitorial para aprisionar corpos negros.7 A perversidade probatória do reconhecimento de pessoas não fica só por conta do uso do álbum de suspeitos. Há uma exitosa propaganda inquisitória em torno do reconhecimento de pessoas na forma como ainda é praticado no Brasil. Nessa publicidade inquisitorial, maquiada pelo discurso de necessidade de Defesa Social, diz-se que, a partir do reconhecimento, é possível alcançar o absoluto da verdade: ora, se a vítima, que estava no local do crime, viu quem foi seu algoz, qual prova poderá refutar a verdade dessa narrativa?  Em síntese, a carta na manga que fortalece o indistinto uso do reconhecimento de pessoas no processo penal é a ideia de certeza visual, de evidência total, de dispensabilidade de produção de outras provas.   O reconhecimento de pessoas é, usando-se das reflexões do professor Rui Cunha Martins, um "simulacro de autorreferencialidade", com "pretensão de uma justificação centrada em si mesmo" e, por isso, é uma prova que alucina a compreensão racional do contexto probatório. Com isso, compreende-se o que referido catedrático quer dizer ao afirmar que "a prova é sequestrável",  o que pode ser verificado a partir do "ambiente de captação e instalação da prova, que é onde verdadeiramente se joga a sua maior ou menor capacidade de filtragem8."  Nessas condições, é como se o reconhecimento de pessoas produzisse um regime próprio e distorcido do dizer e produzir a verdade no processo penal, que magnetiza e corrompe outras perspectivas discutidas no processo, a exemplo da alegação de álibi pela defesa, vista com muita desconfiança pelos demais sujeitos processuais. Ontem, a confissão como rainha das provas, se bem que continua a ser bastante usada. Hoje, o reconhecimento de pessoas. A atual prática de reconhecimento de pessoas, fechada às concepções da epistemologia probatória e da Psicologia do Testemunho, não considera  as  diversas variáveis de estimação e do sistema de justiça que influenciam no reconhecimento a ser feito pela vítima ou testemunha. Para se ter um exemplo corriqueiro, a própria arma de fogo (weapon effect) usada no roubo é um evento que interfere na acuidade do processo de memorização da vítima em relação às circunstâncias do crime. A iluminação do local também. A diferenciação racial entre vítima e suposto autor do delito é outra variável que interfere na memória. Pessoas de um mesmo grupo racial tendem a ter dificuldades em reconhecer os rostos de pessoas integrantes de outro grupo racial (cross racial effect). Há várias explicações do campo da Psicologia para esse fenômeno. Mas no Brasil ocorre uma verdadeira interdição discursiva quanto ao tema do efeito de outra raça (cross racial effect), porque o metadiscurso que nos envolve é a mentira da democracia racial9.  Além dessas ilustrações, é preciso dizer, com a cientificidade de Elizabeth F. Loftus10, que a maleabilidade é uma característica inerente à memória humana, ou, como preferiu poetizar Wally Salomão, "a memória é uma ilha de edição".   Como se vê, não há nada que, cientificamente, autorize a supervalorização de um aleatório reconhecimento de pessoas feito por uma vítima ou testemunha que, na maioria dos casos, emitiu sua narrativa de confirmação da autoria delitiva a partir de fotos antigas do suspeito e sob o influxo de diversas variáveis que não são consideradas no ato de reconhecimento, até porque a atual redação do art. 226 do CPP nada diz sobre essas variáveis.11  Nesse cenário, essa ardilosa prática de reconhecimento de pessoas instaura uma ambiência processual penal subterrânea, que nulifica qualquer perspectiva de proteção de direitos e garantias fundamentais no espaço processual probatório. Mostra-se como uma prova duplamente encarceradora, aprisiona os outros meios de prova como se fosse, na escala da valoração judicial, hierarquicamente superior, concepção esta que não encontra suporte legislativo no Código de Processo Penal. É uma tarifação probatória do cotidiano forense, ao bel-prazer do Poder Judiciário, embora máscaras discursivas tentem mostrar alguma intelecção inferencial no ato decisório. Por fim, o reconhecimento de pessoas tem viabilizado o encarceramento em massa de pessoas negras.  Antes mesmo das algemas, réus e rés negras sentem em seus pulsos os grilhões desse utilitarista meio de prova. Alguém, movido por uma fé nonsense em um certo conceitualismo do processo penal, dirá que tudo isso é extremismo de uma interpretação sociorracial equivocada, porque, como regra, o reconhecimento de pessoas é corroborado por outras provas. Qual corroboração? Essas outras provas, quando olhamos para o caso concreto, são testemunhos de policiais que oferecem repetições automáticas do que foi dito no inquérito policial e sequer presenciaram o fato criminoso. Ou, o que pode ser pior, a prova corroboradora é uma confissão do acusado de duvidosa licitude procedimental. Além disso, as investigações não costumam proporcionar a oitiva de outras pessoas que, não vinculadas ao círculo de contatos da polícia, presenciaram o fato punível e poderiam permitir com seus depoimentos a construção de hipóteses investigativas alternativas, o que é epistemologicamente saudável para que se garanta - da raiz investigativa do caso penal à sentença definitiva - um democrático procedimento probatório. Portanto, na nossa desviante prática processual penal, não existe corroboração probatória do reconhecimento de pessoas. É puro embuste processual para condenar pessoas negras. Se ainda não foi dito, chegou a hora de expressar que a justiça criminal é racista, gratuitamente violenta contra os que possuem  "a cor da noite",  são "filhos/as de todo açoite.12" Muitas denúncias, prisões preventivas e sentenças condenatórias são estabelecidas, unicamente, com base  em um reconhecimento de pessoas desprovido de qualquer fiabilidade probatória. E, ainda que fosse dotado da melhor acuidade probatória possível, não seria admissível uma decisão judicial somente com suporte nesse tipo de prova, justamente por conta do natural maleabilidade e falibilidade da memória humana. Queremos pensar, com inspiração na concepção racionalista de Jordi Ferrer Beltrán13, que prova é contexto probatório racionalmente justificável, sem autorizações para saltos inferenciais, principalmente em realidades processuais penais notabilizadas por um autoritarismo racista. Diante de tudo isso, sem dúvidas, precisamos desenvolver uma epistemologia probatória garantista que esteja enraizada na sociorracialidade da questão criminal brasileira. Adiante algumas reflexões sobre casos judiciais que se destacaram no cenário nacional. A decisão de revogação de prisão preventiva proferida pelo juiz André Nicolitt no caso do violoncelista Luiz Carlos da Costa Justino, ao unir aspectos dogmáticos (cadeia de custódia), da Psicologia do Testemunho (interferências de diversas variáveis na produção da memória) e sociológicos, foi fundamental para a abertura de uma nova perspectiva decisória em relação ao reconhecimento de pessoas. Aqui está um significativo trecho dessa decisão: "em resumo, um suspeito sem investigação prévia, que já é apresentado em um álbum no ato do registro da ocorrência, é um suspeito que precede o próprio fato. É uma espécie de suspeito natural." Luiz Justino acabou sendo absolvido. Contudo, a decisão absolutória, proferida por outro magistrado, não tem condições de reparar os destroços psicológicos e existenciais que um errado reconhecimento de pessoas provocou em Luiz Justino e sua família (esposa e filha de 03 anos de idade) Falhos reconhecimentos de pessoas não só segregam pessoas negras do convívio social, como abalam mais ainda famílias negras que vivem em comunidades periféricas e que, esquecidas pelo Estado, suplicam entre si que ao menos não sejam violentadas pela polícia. Ao sair da prisão, Luiz Justino cortou o cabelo, já não usa mais dreads.  O cárcere mexeu com sua identidade racial. Esse racista procedimento de reconhecimento a que foi submetido desestruturou, em alguma medida, o seu poder de autodefinição, a capacidade de se reconhecer como um talentoso, erudito e promissor músico negro para além das muralhas de uma sociedade brancocêntrica.14 A decisão do Min. Rogério Schietti Cruz no HC 598.886 - SC também lufou ares garantistas e epistemológicos para o procedimento de reconhecimento de pessoas. De fato, se tornou, pela representatividade jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, em um novo paradigma interpretativo quanto ao reconhecimento de pessoas, principalmente quando diz que "à vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo". A nota de destaque dessa decisão também fica pela curiosidade de que o réu envolvido nesse precedente é de pele branca. Apesar de a decisão mencionar, genericamente, a ideia de racismo estrutural no Brasil, o que de certo modo representa algum avanço, fique-se nítido que não existe racismo estrutural contra pessoas brancas. Uma das premissas básicas para uma séria discussão sobre a questão racial é que não há como admitir, diante do nosso passado-presente colonial, que a branquitude é alvo de racismo reverso. Há, portanto, alguma esperança em relação ao reconhecimento de pessoas no Brasil? A ideia de um novo Código de Processo Penal é bastante sedutora, principalmente para quem está conectado com a promessa de um Brasil democrático. Já são 80 anos de CPP, cuja marca é o anacronismo. Está repleto de dispositivos originários da década de 1941 e cortado por inseguras reformas pontuais que não conseguiram implementar um devido processo penal. É sempre um andar para frente seguido de dois passos para trás. A cada tópica inovação legislativa garantista, segue-se uma suspensão de eficácia normativa pelo Supremo Tribunal Federal ou novas propostas legislativas que, com a utilização de cláusulas gerais abertas, abrem espaços para posturas inquisitórias no processo penal. No que se refere ao reconhecimento de pessoas, quando se olha para o PL 156/2009, o substitutivo PL 8045/2010 e tantas outras propostas legislativas que lhes seguiram, percebe-se como a tentativa de adequação legislativa do procedimento de reconhecimento aos achados científicos consolidados nas pesquisas sobre a memória humana têm causado desconfortos políticos, especialmente nos figurantes legislativos conhecidos como "Bancada da Bala". É como se o Direito Processual Penal tivesse que permanecer, eternamente, de costas para os sérios estudos da Neurociência, Psicologia e, principalmente, de uma Sociologia relacionada à Teoria Crítica da Raça. Questões como efeito de outra raça, alinhamento justo e número de fillers, vedação de sugestionamento policial (feed back), maleabilidade da memória, efeito familiaridade, efeito compromisso e outros vieses, erros honestos, necessidade de gravação audiovisual do procedimento, racismo institucional e estrutural, bem como a condição de (ir)repetibilidade do reconhecimento de pessoas, não são meros caprichos ideológicos de disciplinas alheias ao Direito.  Ao contrário, apontam para uma responsável possibilidade de que o procedimento de reconhecimento de pessoas se torne um expediente probatório fiável, impedindo a ocorrência de evitáveis erros do sistema de justiça criminal, que recaem, em quase exclusividade, sobre pessoas negras. Movimentos sociais, pesquisadoras, juristas, professores, juízes,  defensores brasileiros e, em menor medida, o Ministério Público estão conectados com um novo modelo de reconhecimento de pessoas que traduza a necessidade de respeitar direitos e garantias fundamentais de suspeitos, investigados e acusados. A Comissão de Juristas para Combate ao Racismo Estrutural no Sistema Penal tem realizado, no âmbito da Câmara dos Deputados, importantes debates sobre uma nova configuração legislativa do reconhecimento de pessoas, que considere, o que é essencial, a existência de um racismo que se dá na produção e aplicação da lei processual penal. O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), além da atuação de litigância estratégica em casos de erros judiciários com base em falhos reconhecimentos pessoais, elaborou importante caderno de enunciados sobre esse meio de prova, considerando as principais discussões do campo científico sobre a memória. O Innocence Project Brasil também tem se destacado na atuação de revisões criminais que envolveram erros de reconhecimento de pessoas. Recentemente, o Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) promoveu curso gratuito sobre o reconhecimento de pessoas com a participação de diversos especialistas, convidando a sociedade a compreender um pouco das complexas distorções desse meio de prova O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu, em 31 de agosto de 2021, interessante grupo de trabalho, composto por pesquisadores, professores, juízes, promotores e autoridades policiais vinculados aos campos da Psicologia, Epistemologia, da Questão Racial e outros espaços do saber, algo que, pela diversidade de integrantes, parece promissor quanto ao desenvolvimento de eficientes protocolos que consigam evitar erros judiciários decorrentes de reconhecimentos falhos. Caminho longo, travessias cansativas, sangue que pinta lábios negroides. Nem sempre é possível dizer que "quem é do mar não enjoa". É tempo de vento forte, redemoinhos, muitos dizeres senhoriais continuam a ressoar nas nossas cabeças. É negro-coisa, é negro, é não-pessoa, a matéria-prima barata que suporta a colonialismo da Justiça Criminal, eficiente na produção de erros judiciários. Aquele famoso poeta de Portugal, Fernando Pessoa, certa vez escreveu: "ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram; Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar!". De fato, a memória é dada ao esquecimento, às vezes proveniente de um seletivo ato de esquecer. Lembremos à pátria-mãe colonizadora que muito do mar salgado que nos banha é composto de lágrimas de negros/as tirados à força de África, transportados em navios insalubres, palco de todo tipo de exploração contra o corpo negro. Muito desse sal são lágrimas de negras estupradas nesses navios, do suor de corpos negros jogados ao mar. Sobrevivemos ao Navio Negreiro, à Casa-Grande e à Lavoura. Estamos em processo de ocupação de lugares sociais que sempre nos foram negados. Aqui está nosso aviso incendiário. Digam aos marujos do Sistema Penal, de inquietos chicotes, que nossos assobios são tempestades afrodiaspóricas que espalham revoluções! __________ 1 Conceito desenvolvido por Vilma Piedade. Cf. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017. 2 Expressão retirada da poética do filósofo e músico Tiganá Santana, referente a uma série de vídeos disponibilizados pela plataforma you tube que contam a história sensorial de seus álbuns musicais.   3 Para uma visão ampla sobre a ideia de antinegritude, cf. VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v. 18, n. 45, 2020. 4GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2020. 5 Cf. KLEIN, Hebert. S.O tráfico de escravos no Atlântico. São Paulo: Funpec Editora, 2004, p. 130. 6 Cf.  CECCONELLO, William Weber; STEIN, Lilian Milnitsky. Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances en Psicología Latinoamericana, v. 38, n. 1, p. 172-188, 202; FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no processo penal: uma proposta interdisciplinar de valoração. Florianópolis: Emais, 2020; STEIN, Lilian Milnitsky et al. Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça (Série Pensando Direito, N. 59, 2015). 7 Para uma ampla e interessante discussão que relacione o uso de adequadas tecnologias para o reconhecimento fotográfico, achados empíricos da Psicologia Experimental e a preservação do princípio da presunção de inocência: MATIDA, Janaina; CECCONELLO, William Webber. Reconhecimento fotográfico e presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 1, p. 409-442, 2021. 8 Cf. MARTINS, Rui Cunha. Estado de direito, evidência e processo: incompatibilidades electivas. Duc In Altum-Cadernos de Direito, v. 3, n. 3, 2011. 9 O antropólogo Kabengele Munanga adverte que o discurso de um Brasil mestiço foi usado justamente para silenciar, na arena sociológica e política, relevantes debates de identidades étnico-raciais que constituem nossa sociedade e como forma de não reconhecer as essas identidades direitos fundamentais para sua sobrevivência intergeracional. Cf. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Autêntica Editora, 2019. 10 Cf. LOFTUS, Elizabeth F. Eyewitness testimony. Harvard University Press, 1996; LOFTUS, Geoffrey R.; LOFTUS, Elizabeth F. Human memory: The processing of information. Psychology Press, 2019. 11 Nesse sentido: VIEIRA, Antônio. Riscos epistêmicos no reconhecimento de pessoas: contribuições a partir da neurociência e da psicologia do testemunho. In: Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Ano 2. Nº3. Salvador: IBADPP, p. 14-16. 12 Referência à música Identidade, de Jorge Aragão. 13 FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007.  14 Em entrevista à revista Piauí, Luiz Carlos da Costa Justino narra como foram seus dias no cárcere e depois que saiu da prisão. Disponível aqui. Acesso em 07 out. 2021.
Em 2009 surgiu no Senado Federal o PL 156 com o escopo de produzir um novo Código de Processo Penal. O anteprojeto de um novo CPP foi elaborado por uma comissão de juristas, presidida pelo Min. do Tribunal de Justiça Hamilton Carvalhido e composta por Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Correa, Eugenio Pacelli de Oliveira, Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Júnior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral. Aprovado pelo plenário, foi remetido à Câmara dos Deputados em 23/11/2011, ou seja, desde então, já se passaram mais de 10 anos da proposta inicial. Na Câmara passa a tramitar sob o número PL 8.085/2010. Foram inúmeras emendas, muitos PL apensados, reuniões, audiências, uma energia gigantesca empenhada ao redor da elaboração de um novo CPP. Não obstante, em 13/06/2018, o deputado João Campos apresenta um substitutivo ao PL 8045/2010. Uma comissão especial, em 2019, passa a trabalhar o texto. No entanto, em junho de 2021, em razão do escoamento do prazo regulamentar em maio, sem que tenha sido encerrada a votação do parecer final do relator, a referida comissão é extinta pelo presidente da Câmara, o deputado Artur Lira. No mesmo mês, é instalado, pela presidência da Câmara dos Deputados, o Grupo de Trabalho (GT) para apresentar parecer sobre o novo Código de Processo Penal (PL 8045/10). O GT encontra-se em funcionamento e coordenado pela deputada Margareth Coelho (PP-PI). O deputado João Campos continua como relator da matéria. O texto original foi elaborado por uma comissão de juristas do Senado. Na Câmara, foram apensadas aproximadamente 377 propostas sobre o tema. A partir do relatório do deputado João Campos, apresentado em abril, surgem disputas de instituições e autoridades contrárias e favoráveis às mudanças por conta das alterações propostas. Aqui já se pode lançar uma primeira pergunta. Onde a população negra, principal alvo do sistema de justiça criminal, se insere nessa discussão? Como é sabido, o atual Código de Processo Penal é de 1941, completa este ano, em 3 de outubro, exatos 80 anos. O que isso nos tem a dizer? Que, uma vez aprovado, seguramente o novo CPP regerá o sistema de justiça criminal ao menos nos próximos 50 anos. Com efeito, precisamos de um CPP que caminhe para o futuro e não deite raízes para o passado que é marcado pela escravidão e e diversas formas de autoritarismo. Como é sabido, não obstante as ideias iluministas e liberais do século XVIII, o sistema penal no Brasil nesse período imperial foi definido pela escravidão, que impôs, mesmo nessa ambiência liberal, a pena de morte em nosso ordenamento. Com a abolição da escravidão em 1888, a legislação penal reagiu de imediato com um Código Penal de 1890, no início da República, que representou um grande alargamento no encarceramento de corpos negros. Já em 1941, a inspiração do CPP, ora em vigor, foi o fascismo italiano, que teve sua expressão jurídica através do Código Rocco.  Diante desses impulsos (80 anos do Código de Processo Penal, Grupo de Trabalho voltado ao Projeto de um novo CPP), a coluna Olhares Interseccionais dedicará alguns artigos para um debate sobre a pretensa reforma em curso, pois, afinal, os instrumentos sedimentados na legislação processual são vetores importantes na condução de um gigantesco número de pessoas presas ao cárcere, na invisibilidade de inúmeras vulnerabilidades que gravitam em torno do sistema de justiça criminal, de modo que um olhar sensível às questões de raça, classe e gênero contribui muito para o aprofundamento do debate. O substitutivo deve ser criticamente analisado a partir de uma perspectiva de pleno comprometimento com uma estrutura processual acusatória. Um mecanismo cruel, racista e encarcerador, como tem se mostrado o reconhecimento de pessoas, destacadamente na modalidade fotográfica, não pode ser regido pela nova ordem processual sem uma profusa e radical revisão crítica. Nesse cenário, temas como Justiça restaurativa, Recognição Visuográfica e tantas outras novidades que pretendem ser introduzidas pelo novo CPP devem ser objeto de um amplo e plural debate. Um dos pontos de partida de nosso olhar sobre o texto do substitutivo reside em um ensaio de Giorgio Agamben designado por "O que é o contemporâneo?"1. Sustenta o filósofo italiano que é "verdadeiramente contemporâneo" aquele que não coincide perfeitamente com seu tempo, que não cede às pretensões de seu tempo e que este anacronismo permite melhor compreender o seu tempo. Prossegue o filósofo dizendo que contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Afirma, ainda, que todos os tempos são obscuros para quem experimenta a contemporaneidade. É a partir da opacidade de nosso tempo,  diante das pretensões autoritárias, racistas e punitivistas, que nos vemos desafiados a analisar as inovações propostas, não partindo do que está supostamente visível, mas sim buscando as entrelinhas de um autoritarismo que se vende como progressista. Em sua obra "homo sacer", indispensável à compreensão do poder na contemporaneidade, Agamben afirma que o "campo de concentração", ou seja, que as práticas totalitárias ainda atuam nas democracias contemporâneas e é necessário reconhecer tais práticas em suas formas travestidas e metamorfoseadas2. Alargando a crítica para uma perspectiva decolonial, é possível investigar a hipótese de que a senzala do período colonial brasileiro possa ser considerada um ancestral do campo biopolítico.3 Seguindo na mesma linha, mas com essa perspectiva de epistemologias do sul e afrocentradas, é necessário reconhecer nos camburões os navios negreiros e nas prisões as novas senzalas, no monitoramento a bola ao pé e a máscara de flandres. A escravidão brasileira parece esquecida diante dos novos horrores do século e diante da ordem do discurso que pretende ocultá-la como um problema já conhecido e superado.  Afigura-se absurdo supor que o campo biopolítico surge apenas no século XX e de igual modo absurdo pensar que a escravidão não mereça mais qualquer análise, bem como supor que seus traumas tenham sido todos superados na nossa sociedade e que a experiência da escravidão pertença tão somente ao passado remoto4. Para trocar ainda mais em miúdos, na linguagem simples de um pescador de Arraial do Cabo: "doutor, o problema não está na frase e sim no etc." Um olhar detido no substitutivo nos eixos essenciais para um processo penal democrático,  como os temas da prova e prisão, é possível ver os rastros do atraso que se propõem reger nossa liberdade pelas próximas décadas. Portanto, o presente ensaio é um convite ao leitor para acompanhar aqui, na coluna olhares interseccionais, alguns apontamentos críticos sobre o texto e que Oxalá permita que os Grupos Temáticos e os parlamentares sejam sensíveis às reflexões dos diversos setores que devem ser ouvidos nesse processo de produção legislativa. __________ 1 Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. p. 55-73. 2 Agamben, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 129 e 182. 3 Nascimento, D. A. (2016). A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos De Ética E Filosofia Política, 1(28), 19-35.  4 Idem.
terça-feira, 14 de setembro de 2021

Desmistificando a meritocracia

"Tem que acreditar, desde cedo a mãe da gente fala assim: Filho por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor. Aí passado alguns anos eu pensei: como fazer duas vezes melhor, se você está pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito pelos traumas, pelas psicoses, por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como? Ou melhora ou ser o melhor ou é o pior de uma vez. E sempre foi assim. Se você vai escolher o que tiver mais perto de você, o que tiver dentro de sua realidade. Você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida, rapaz!" Racionais Mc's - A vida é desafio  As revoluções liberais do século XVIII consolidaram as bases para a consagração jurídico-constitucional do princípio da igualdade na sua dimensão formal, determinante de um tratamento legal igualitário, sem distinções, privilégios ou benefícios de qualquer natureza. Com efeito, em seu estágio embrionário, a normatização do princípio da igualdade concentrou-se na proibição de privilégios decorrentes da ascendência ou da classe social das pessoas, elevando o dogma da meritocracia, que estabelece o mérito individual como critério para a distribuição dos bens jurídicos. Dessa maneira, o conteúdo jurídico da igualdade formal institui uma sociedade meritocrática, fundada no princípio do achievement ou realização - baseado na capacidade individual -, e não mais no princípio da ascription ou atribuição - assentado em regalias hereditárias. O propósito era a extinção das diferenças estamentais na aplicação da lei e, portanto, a superação da divisão da ordem jurídica em razão da posição social das pessoas, buscando-se, então, o alcance geral da lei e de seus efeitos. Mas será que a mitificação da meritocracia não estaria provocando o seu desvirtuamento de modo a torná-la instrumento da manutenção dos privilégios que ela deveria repelir? Por que, numa sociedade meritocrática, mesmo depois de mais de 133 anos de abolição formal do sistema escravocrata, pessoas negras - salvo raras exceções - não ocupam espaços de poder e decisão no Brasil? Ou, ainda, por que o sistema de justiça permanece eminentemente branco e masculino, especialmente nos mais altos níveis das carreiras jurídicas? Segundo o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros de 2018,1 divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, mulheres representam 38% da magistratura brasileira, embora sejam a maioria da população brasileira. Quando se analisa a presença feminina no segundo grau, mulheres são apenas 23%. No que se refere ao perfil étnico-racial, apenas 18,1% (16,5% pardos e 1,6% pretos) das pessoas que integram a magistratura são negras, sendo que 56% da população brasileira é negra. Sob outra perspectiva, um quinto das/os magistradas/os brasileiras/os têm familiares na carreira e 51% têm familiares em outras carreiras do direito. Será que essa hegemonia branca e masculina na magistratura brasileira - e em todos os espaços de poder e decisão no Brasil - é mesmo fruto da meritocracia? Afinal, quem define o que é mérito nas sociedades ditas meritocráticas?2 Na verdade, o monopólio do privilégio branco - decorrente da supremacia branca - tem como resultado o domínio da própria meritocracia, transmitida seletivamente de geração a geração. Dito de outro modo, a elite branca brasileira detém não apenas o privilégio para acessar bens, recursos e status necessários para assegurar o acesso ao dito mérito, mas também o poder de definir o próprio mérito. A meritocracia brasileira é brancocêntrica e androcêntrica. É preciso, nesse ponto, recordar que, no Brasil, pessoas negras estiveram formalmente proibidas de frequentar a educação formal por décadas. Primeiramente, por meio do Ato Oficial Complementar à Constituição Imperial de 1824, que proibia negros e leprosos de frequentarem as escolas. Três décadas depois, foi publicado o decreto 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, responsável por aprovar o regulamento para a reforma do ensino primário e secundário do Município da Corte. Em seu artigo 69, o decreto estabelecia a proibição do acesso de escravos - assim como de meninos não vacinados ou que padecessem de moléstias graves - às escolas. Sob esse prisma - que, por óbvio, não esgota a complexidade das vulnerabilidades e violências historicamente impostas à população negra brasileira -, já se percebe que a tal corrida pela meritocracia, no Brasil, já começa, de partida, muito desigual.  Nesse sentido, a defesa da meritocracia pura - que, em grande medida pode ser traduzida como um apego à hegemonia - resulta na manutenção do status quo em prol dos mesmos grupos detentores do poder. A distribuição puramente meritocrática dos bens jurídicos não satisfaz os imperativos de justiça social, notadamente se a aquisição, a manutenção e a valorização de aptidões não são acessíveis a todas as pessoas de forma equitativa. Os méritos, portanto, não podem ser vistos como atributos estritamente individuais e estáticos, já que também são produzidos, transmitidos e atribuídos social3 e racialmente. Atribuir exclusivamente ao indivíduo a responsabilidade pelo status social que ocupa significa desconsiderar convenientemente o contexto, afastando a necessidade de intervenção estatal em matéria de redistribuição. Concluir, sem qualquer análise crítica do contexto, que a situação de des/vantagem de determinados grupos raciais - ocupando persistentemente posições consideradas inferiores/superiores na sociedade - se deve puramente ao desempenho dos indivíduos corresponde a atribuir a estes capacidades e desempenho conforme a raça. Sim, porque se cada sujeito é integralmente responsável ou culpado por suas conquistas e posições na sociedade, e indicadores demonstram, de modo recorrente, que pessoas negras obtêm resultados inferiores na hierarquia social, ou se acredita que isso é produto do mero acaso, ou se atribui essa realidade a uma espécie de deficiência de mérito própria do grupo racial. Daí porque não é possível se falar em responsabilidade individual sem avaliar o contexto - histórico, social, político, cultural e jurídico -, capaz de condicionar em boa medida os resultados e posições das pessoas em determinada sociedade4. Assim, também o princípio meritocrático deve ser empregado de maneira contextualizada. Caso contrário, desconsideram-se as desigualdades geradas pelos contextos vulnerabilizantes, o que corresponderia a aferir o mérito conforme os privilégios. Seriam merecedoras, com poucas variações, apenas aquelas pessoas cuja autonomia não enfrenta obstáculos significativos, num ciclo vicioso de restrição da igual liberdade de todas/os, em prol da máxima liberdade de poucas/os. Nesse contexto, as ações afirmativas raciais - comumente criticadas, sob o argumento de que violam o princípio do mérito - são medidas de fundamental importância para combater o monopólio do mero privilégio e a absolutização da meritocracia, a partir da sua contemporização com outros princípios e valores. As ações afirmativas na seara racial visam à reparação histórica; objetivam não somente a redistribuição de riquezas, mas também de direitos, de meios e de posições, imprescindível para promover a desracialização hierárquica da sociedade. Por meio delas opera-se não a eliminação do mérito nos mecanismos de seleção, mas a sua correção, a sua flexibilização contextualizada, de modo a proporcionar a igualdade de oportunidades nos espaços em que há acumulação racializada de oportunidades atribuíveis ao mérito5. Voltando à discussão sobre o perfil do sistema de justiça brasileiro e de seus concursos públicos, é importante refletir sobre o efetivo compromisso dessas instituições com a democratização e abertura de seus quadros - e, consequentemente de seus serviços - para a diversidade. Apesar da implementação do sistema de cotas nestes concursos, ainda testemunhamos a nomeação de turmas de magistradas/os, promotoras/es de justiça, defensoras/es públicas/os etc., inteiramente formadas por pessoas brancas. Esse resultado pode ser atribuído, em grande parte, aos critérios ditos puramente meritocráticos definidos para o acesso às respectivas carreiras. Notas de corte, cláusulas de barreira, conteúdo das provas, formação (quase sempre completamente branca e masculina) das comissões de concurso, entre outros fatores são, ainda que indiretamente, filtros que acabam por excluir pessoas negras do certame. Sabe-se que o tipo de competência exigida na primeira etapa destes concursos diz respeito, principalmente, à memorização de leis, com seus pontos, vírgulas e crases. Quem são as pessoas, no Brasil, que podem acessar o necessário ócio para adquirir essa competência? A exigência - incluída pela Emenda Constitucional nº 45/2004 - de três anos de atividade jurídica (art. 93, inciso I, art. 129, § 3º, CF) também opera de forma seletiva, quando levamos em consideração que a desigualdade racial e o racismo institucional criam severos obstáculos para que pessoas negras possam acessar esses postos de trabalho para demonstrar a experiência exigida. Ademais, é sabido que muitas pessoas acabam comprovando essa experiência apenas com assinatura de petições iniciais em escritórios de advocacia, sem que exerçam efetivamente as respectivas atividades jurídicas. Pessoas negras raramente acessam esse privilégio. Além disso, os títulos que costumam ser valorados nos concursos do sistema de justiça (pós-graduação, mestrado e doutorado) também não são, na sociedade brasileira, acessados em condições de igualdade por pessoas negras. O que faz com que uma pessoa que comprove suposta experiência em atividade jurídica e demonstre um mérito individualista quantificado tenha mais valor dentro de uma instituição do sistema de justiça do que uma pessoa negra, oriunda de comunidades, com trajetória de vulnerabilidades raciais, familiares e sociais, e com vivência nos movimentos sociais? É preciso assumir uma postura de compromisso político com a diversidade, avançando nas políticas públicas de igualdade racial para exigir não apenas a mera reserva de vagas, mas também o preenchimento das vagas reservadas. Isso requer a remoção de determinados obstáculos unilateralmente delineados pelos grupos dominantes e que minam a ideia de solidariedade social. Nesses moldes, cada um/a considera suas conquistas como resultado exclusivo de seus próprios méritos6, eximindo-se completamente da responsabilidade pelo destino da/o outra/o e da sociedade. Reconhecer os privilégios decorrentes da preservação da hierarquização racial da sociedade7 - e as consequentes restrições aos membros de grupos raciais vulnerabilizados - é o primeiro passo para a assunção de responsabilidade pela construção coletiva de um futuro racialmente mais justo para todas/os.8 Afinal, qual a sociedade que queremos, para além dos meros discursos antirracistas? Referências DWORKIN, Ronald. A discriminação inversa. In Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 435-494. ______. Ação afirmativa: é justa? In A virtude soberana - A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 581-607. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009. SANDEL, Michael J. A ação afirmativa em questão. In SANDEL, Michael J. Justiça - o que é fazer a coisa certa? Tradução Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 21ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. STERBA, James P. Defending Affirmative Action, Defending Preferences. In COHEN, Carl; STERBA, James P. Affirmative Action and Racial Preference - A debate. New York: Oxford University Press, 2003, pp. 191-278. THARAUD, Delphine; PLANCKE, Véronique van. Imposer des "discrimination positives" dans l'emploi: vers un conflit de dignités? In GABORIAU, Simone; PAULIAT, Hélène (dir.). Justice, éthique et dignité. Actes du coloque organisé à Limonges les 19 et 20 novembre 2004. Limonge: Presses Universitaires de Limonges, 2006. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 9 de setembro de 2021. 2 Ronald Dworkin, A discriminação inversa, p. 446, afirma que "não há combinação de capacidades, méritos e traços que constituam o 'mérito' no sentido abstrato".  3 Cfr. Delphine Tharaud e Véronique van der Plancke, Imposer des "discrimination positives" dans l'emploi: vers un conflit de dignités?, p. 204. 4 Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Racismo e Antirracismo no Brasil, p. 174, afirma que "a sobrerrepresentação de pessoas com uma mesma característica 'naturalizada', em qualquer distribuição de recursos, deve ser investigada, não porque seja anormal, mas porque 'sexo', 'cor', 'raça', 'etnia' são construções sociais usadas, precisamente, para monopolizar recursos coletivos". 5 A expressão é de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Racismo e antirracismo no Brasil, p. 203. 6 Ver Michael J. Sandel, A ação afirmativa em questão, p. 221. 7 Cfr. James P. Sterba, Defending Affirmative Action, Defending Preferences, p. 266. 8 Ronald Dworkin, Ação afirmativa: é justa?, p. 606, afirma que "a ação afirmativa é um empreendimento voltado para o futuro, e não retroativo (...). As grandes universidades esperam educar mais negros e outros alunos minoritários, não para compensá-los por injustiças passadas, mas para proporcionar um futuro que seja melhor para todos, ajudando-os a acabar com a maldição que o passado deixou sobre todos nós".
A violência de gênero, na medida em que está intimamente ligada a relação da mulher com o masculino, e seu papel (desigual) dentro do sistema social, constitui-se uma violação dos direitos humanos. Nesse contexto, a violência de gênero pode ser revelada sob diversas formas, desde que se envolva como paradigma o papel social culturalmente e historicamente relegado a mulher, a exemplo da violência doméstica, violência obstétrica, violência sexual, tráfico de mulheres e assédio sexual. Com efeito, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, o que pode ocorrer no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregada. Família, nos termos da Lei Maria da Penha, pode ser compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. A violência doméstica pode ser caracterizada, ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação e tais relações pessoais independem de orientação sexual. A lei 11.340. de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, possui em seu corpo o acolhimento dos tratados internacionais de direitos humanos das mulheres com a conceituação da violência das mulheres como violência de gênero e completa, neste mês de agosto, 15 anos de existência. É bem de ver que a referida lei representa uma das maiores conquistas do movimento de mulheres, contudo, sofreu inúmeras críticas por supostamente provocar a expansão da perspectiva punitivista, valendo-se do Direito Penal, instrumento de perspectiva patriarcal que, por vezes, menospreza e revitimiza mulheres em situação de violência. Sem dúvida é um tema que ainda divide a comunidade jurídica e os movimentos feministas. Mas será que é possível renunciar à reprimenda penal sem incorrer em violações de direitos fundamentais para realizar o enfrentamento da violência, tida como um fenômeno que vitimiza mulheres globalmente? Vale lembrar, nesse sentido, que o fundamento da dignidade da pessoa  humana deve ser um paradigma imprescindível para se operar no âmbito do Sistema Penal no enfrentamento a  violência doméstica. Conforme bem pontua a doutrina especializada, não se está simplesmente diante de uma tensão entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade do réu. Com efeito, a partir da Lei Maria da Penha, edificou-se mecanismos que levaram para o Sistema de Justiça a necessária proteção à mulher vítima de violência doméstica, tornando assim as demandas dessa natureza muito mais complexas, vez que se tem de um lado o direito de punir do Estado, de outro os direitos fundamentais do réu investigado, e, ainda, os direitos fundamentais da vítima.1 O fato é que a Lei Maria da Penha é um diploma legal originado pelo triunfo da luta de movimentos feministas que levaram até o âmbito internacional o pleito de condenação do Estado Brasileiro pela grave violação de direitos humanos ocorridas no caso concreto que envolveu a pessoa Maria da Penha. Ao longo desse tempo, diversas alterações legislativas foram realizadas com o objetivo de aperfeiçoar o seu escopo, bem como adaptar o texto às atuais demandas sociais e políticas. Dentre as alterações legislativas mais recentes no corpo textual desta Lei, podemos citar as seguintes: a lei 13.827/19 estabeleceu  a adoção de medidas protetivas de urgência e o afastamento do agressor do lar pela autoridade policial, delegada ou delegado de polícia,  bem como a possibilidade do registro da medida protetiva de urgência ser realizada no banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ); a lei 13.836/19 tornou obrigatório informar quando a mulher vítima de agressão doméstica ou familiar é pessoa com deficiência; as leis 13.882/19 e 13.880/19 incluíram a garantia de matrícula dos dependentes da mulher vítima de violência doméstica e familiar em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio, bem como determinou a apreensão de arma de fogo sob posse de agressor em casos de violência doméstica; a lei 13.894/19, por sua vez,  previu a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável e também estabeleceu a prioridade de tramitação para os feitos judiciais em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar. Convém destacar que a lei 13.984/20 estabeleceu a obrigatoriedade do agressor em frequentar centros de educação e reabilitação, bem como realizar acompanhamento psicossocial. Trata-se de uma relevante medida que busca meios alheios ao Direito Penal para a abordagem do agressor, com o fito de estabelecer uma recomposição dos danos. Por fim, em 2021, foram editadas  quatro alterações importantes:  a lei 14.132/21, que incluiu artigo no Código Penal (CP) para tipificar os crimes de perseguição (stalking);  a lei 14.149/21, que institui o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, com o intuito de prevenir feminicídios; a lei 14.164/21 que alterou  a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir conteúdo sobre a prevenção à violência contra a mulher nos currículos da educação básica, além de instituir a Semana Escolar de Combate à violência contra a Mulher, a ser celebrada todos os anos no mês de março. A mais recente alteração legislativa foi proporcionada pela lei 14.188/2021, sancionada em julho deste ano, a qual, além de definir o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher e instituir medida protetiva em face da  violência psicológica no texto da Lei Maria da Penha, trouxe importantes inovações legais  no âmbito do nosso Código Penal Brasileiro. É cediço que a Lei Maria da Penha não possui delitos instituídos, a maioria das condutas reprimidas penalmente estão previstas na legislação comum do CPB. Neste contexto, no corpo do Código Penal, a primeira alteração que merece destaque é a inclusão do § 13º no art. 129 que  alterou a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino,  de modo que a pena passa agora  a ser de  reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos). Para a interpretação correta deste dispositivo, considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve a violência doméstica e familiar, bem como menosprezo ou discriminação à condição de mulher, tal como ocorre na definição da ocorrência do feminicídio. Trata-se, portanto, de uma ferramenta analítica para estabelecer uma análise gendrada da conduta delitiva. A outra alteração, muito esperada pela comunidade feminista, bem como pelas mulheres vitimadas por tal prática, é a tipificação da violência psicológica. Sabemos que dentre as formas de violência doméstica abrangidas, além da violência psicológica, estão a violência física propriamente dita, a violência sexual, violência patrimonial e a violência moral. A violência psicológica, nos termos exatos da Lei Maria da Penha, é aquela  entendida como qualquer conduta que  cause dano emocional e diminuição da autoestima da vítima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Este conceito já existia na LMP desde o seu advento, tendo havido uma alteração legislativa deste conceito em 2018 para inclusão da violação da intimidade como mais uma faceta deste tipo de violência.Agora, possuímos um dispositivo penal que tipifica a conduta  de violência psicológica contra a mulher. Este delito está inserido no capítulo de crimes contra a liberdade individual e encontra-se no rol de delitos de menor potencial ofensivo por conta da sua pena máxima cominada. Convém, relembrar, contudo, que a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha, ainda que estejam no texto do Código Penal, nos termos da súmula 536 do STJ. Vejamos o que informa o texto: "Violência psicológica contra a mulher Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave." Podemos verificar, deste modo, que o artigo 147-B dispõe sobre variadas práticas que possuem o condão de perturbar o pleno desenvolvimento da mulher e violam a sua dignidade de pessoa humana. Em um contexto anterior a esta inovação legislativa, os delitos de Ameaça, Injuria, Calunia e Difamação já eram anteriormente entendidos como modalidades de violência psicológica. Hoje, com a tipificação, temos um dispositivo próprio com outras variadas condutas que podem se amoldar a esta modalidade de violência de gênero.  A violência psicológica é uma  prática que,  apesar de ser extremamente danosa, nem sempre é facilmente identificável, afinal, comportamentos questionadores em relação às mulheres estão enraizados estruturalmente na sociedade brasileira, ainda predominantemente misógina e machista Por vezes, a mulher vítima desta prática prefere silenciar para evitar maiores conflitos, incorrendo em dúvida sobre a sua sanidade mental, tendo sua autoconfiança minada de maneira sutil e gradual. Trata-se de um tipo de violência de gênero difícil de caracterizar e materializar em forma de denúncia, eis que o liame de prova muitas vezes encontra-se circunscrito à esfera de subjetividade da vítima. Além do exemplo clássico encontrado no cotidiano da convivência afetiva nos relacionamentos ditos amorosos, para exemplificar a prática também é possível pensar numa situação de abuso psicológico, em que comumente as atitudes da vítima são postas à prova.De modo que há um menosprezo e invisibilidade do sofrimento psíquico de mulheres que são vítimas da violência psicológica. Por vezes, a mulher vítima deste tipo de abuso informa ser constrangida no que toca a sua liberdade sexual, sendo compelida pelo parceiro a ter relações sexuais através de cobranças incisivas;  outras relatam críticas e humilhações em relação a sua forma física, inclusive sendo submetidas a constrangimentos para que realizem procedimentos estéticos ou façam atividades físicas a contragosto. Outra modalidade muito denunciada pelas mulheres é a proibição de ver ou conversar com os amigos e familiares, o que inclui, ainda,  o controle de senhas de celulares, e-mails, redes sociais, bem como invasão de privacidade com o monitoramento de conversas privadas. Existe também a proibição de usar vestimentas. Estes são exemplos de práticas corriqueiras em relacionamentos abusivos, de modo que em muitos contextos dificilmente a mulher consegue identificar a situação em que se encontra, ou possui abertura para pedir socorro.Os abusadores costumam chamar as parceiras de loucas ou minam a sua autoestima afirmando que as vítimas são pessoas de trato difícil, manipulando, inclusive a opinião de familiares. Contam com a cumplicidade de uma sociedade machista e patriarcal, que minimiza a importância de valorizar a saúde mental e qualidade de vida da mulher. A busca da rede que envolve o Sistema de Justiça para obter acolhimento e prestação jurisdicional ou administrativa para esse tipo de conflito nem sempre é exitosa. A tendência é desacreditar e não dar continuidade às investigações sobre questões que permeiam o universo psíquico e íntimo da vítima. Conforme pontua a criminologia feminista2, é bem de ver que a preocupação com as vítimas origina respostas criminológicas ou políticas criminais que apregoam, por um lado, a negação do uso do sistema penal, e por outro sua utilização de forma conectada às necessidades da Comunidade ou, ainda, seu uso para por fim à violência de gênero. Contudo, historicamente, a luta feminista incorporada ao universo jurídico trouxe como pauta a união e diálogo entre as esferas pública e privada.  A experiência prática vivenciada no cotidiano de enfrentamento às violências de gênero evidenciou a necessidade de tornar político o que antes pertencia à esfera pessoal e subjetiva das mulheres ou que estariam sujeitas ao controle social da família, a exemplo dos conflitos domésticos. Esse tipo de controle, ainda residual na nossa estrutura social, sedimenta a dificuldade de levar a questão para o âmbito da rede de enfrentamento à violência pois trata-se de um delito considerado invisível, justamente pela sua natureza ontológica que consiste em desacreditar a narrativa apresentada pela pessoa violentada psicologicamente. A tipificação da prática constitui-se em um avanço, na medida em que materializa e exemplifica condutas abusivas que antes estavam relegadas a um limbo de invisibilidade. __________ 1 Nicolitt, André; ABDALA, Mayara Nicolitt; SILVA, Lais Damasceno. Violência Doméstica: Estudos e comentários à Lei Maria da Penha- Belo Horizonte. Editora D' Plácido. 2 Campos, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017.
O que vale mais, um jovem negro ou uma grama de pó? Por enquanto ninguém responde e morre uma pá É que hoje playboy fala gíria e porta uma Glo' Mas na vivência esses c* jamais vai se igualar, ei  [...] Homens maus destroem perspectivasPerplexo só fica quem crê em conto de fadasNo país onde a facada que não aleija, elegeAtira em mim que eu mudo tudo e conversa encerradaPassar 'os quilo' não te deixa mais leve, pesa a almaMano, eu conheço esse caminho igual minha própria palmaFalar em palma, na sua mão vai ser só dinheiro sujoÉ que quem lucra é o capitão, vai com calma, marujo. Bené - Djonga Nos últimos dias, o Brasil assistiu a prisão da "Gatinha da Cracolândia". Se você, leitor/a, entende minimamente sobre questão racial, vai saber tratar-se de uma mulher branca. Pois bem, Lorraine Bauer Romeiro, 19 anos, classe média alta, influenciadora digital com mais de 36 mil seguidores no aplicativo Instagram, foi presa em flagrante no dia 22 de julho, durante a operação Carontes, da Polícia Civil, sob a acusação de associação para o tráfico de drogas. Ela já havia sido presa no dia 30 de junho, junto com o seu companheiro, André Luiz, ocasião em que teve a prisão preventiva convertida em domiciliar, em razão de ter uma filha de pouco mais de 9 meses1. No momento da prisão, Lorraine descumpria a decisão, uma vez que foi encontrada em endereço diverso do informado na ação penal que lhe concedeu a prisão domiciliar.2 Lorraine atuava na região conhecida como 'Cracolândia', centro de São Paulo, mas foi presa em Barueri. De acordo com as investigações, ela lucrava cerca de R$ 6.000,00 (seis mil reais) por dia e é apontada como uma das chefes do tráfico da região, por ter assumido o comando após a prisão do companheiro.3 Na operação, segundo a nota da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os policiais encontraram uma mochila com 85 porções de maconha, 295 de cocaína e 8 de crack. Ainda foram localizados 97 frascos de lança-perfume e 16 comprimidos de ecstasy. Além de R$ 750,00 em dinheiro, uma balança de precisão, uma faca, um machado, um celular e a bolsa onde estavam os materiais relacionados ao tráfico.4 Em entrevista, o delegado responsável pelo caso informou que a investigação durou 4 meses e contou com o apoio de agentes infiltrados na região da Cracolândia, que faziam filmagens e fotografavam as pessoas que ali estavam. Mas, "chamou a atenção uma figura diferente daquele meio, uma figura de uma moça que tentava se disfarçar com roupas escuras, mas deixava transparecer uma imagem muito diferente".5 A jornalista que o entrevistou complementou, "a gente vê fotos da gatinha da Cracolândia, parece uma digital influencer, uma menina de família, como a gente costuma dizer, mas na Cracolândia ela usava moletom, ela usava roupas que não era característico do que ela vendia nas redes sociais."6 "Menina de família" e "figura diferente daquele meio", são expressões condizentes com os conceitos subjetivos circunscritos no art. 28, § 2º da lei 11.343/2006 (Lei de Drogas) e que deixam ao arbítrio do/a policial, ao referendo do/a juiz/a e ao veredito do racismo a dissociação entre o/a usuário/a e o/a traficante.7 Inclusive, a mídia faz questão de relegar Lorraine ao lugar de quem só se envolveu com a "vida errada" por conta da morte prematura do pai. Enquanto as pessoas brancas têm em si características que contam com a complacência da sociedade, para as pessoas negras não existe abrandamento ou compaixão, não importa o que façam, serão sempre suspeitas. Não é à toa que, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), no primeiro semestre de 2020, existiam 36.999 (trinta e seis mil novecentos e noventa e nove) mulheres privadas de liberdade. Desse total, as que continham informações no sistema sobre cor/raça, foram, 19.917 negras, somadas as pretas e pardas (dezenove mil novecentos e dezessete), em contraposição a 9.304 (nove mil trezentos e quatro) mulheres brancas, 239 (duzentos e trinta e nove) amarelas e 74 (setenta e quatro) indígenas.8 Ressalte-se que 65% dessas mulheres são vítimas do que podemos chamar de encarceramento em massa impulsionado pela guerra às drogas. Esses números anunciam que o radar do sistema de justiça detecta facilmente os corpos das mulheres negras. Enquanto a mulher branca, investigada durante 4 meses, só foi enxergada pelos policiais por ter a imagem destoante do ambiente da Cracolândia, as mulheres negras, seguem empilhadas atrás das grades, tendo o acesso dificultado, inclusive, à conversão da prisão preventiva em domiciliar, ainda que possuam os requisitos previstos em lei9.    Isto por que, consoante explica Érika Costa, "ao fim e ao cabo, juízas(es) e promotoras(es) sustentam discursos racializados, sexistas e classistas, baseados em pressupostos discricionários e totalmente subjetivos, a partir da leitura de uma realidade baseada em percepções pessoais".10 Da região Sudeste à região Nordeste, outro caso chama a atenção, não pela repercussão anterior, mas pela relevância dos estereótipos imputados aos acusados. A chamada tratou sobre a "Operação contra o tráfico que prendeu 8 universitários e empresários". Os mandados foram cumpridos em alguns bairros de classe média alta de Salvador e dois carros de luxo foram apreendidos. Segundo o delegado, essa investigação durou quase 1 ano e meio, contudo, os jornais da cidade mantiveram o silêncio sobre a imputação da denominação de 'traficantes', aos 'universitários'.11 Não houve julgamento antecipado, tampouco a divulgação dos nomes e das imagens, o que ocorreu foi a seletividade e a conservação da imagem de candura dos rapazes.  Na contramão desses fatos e em se tratando de corpo negro em espaços de periferias, os discursos sensacionalistas gritam sobre ibope e audiência. Antes de qualquer investigação mais elaborada, a alcunha de traficante é determinada pela tez. Homens negros e mulheres negras e pobres têm os seus rostos e nomes estampados à exaustão pelos programas televisivos e manchetes de jornais. Diferentes estratégias discursivas apresentadas pela mídia que demonstram explicitamente os posicionamentos escolhidos: proteção à cor branca e à classe média em detrimento da exposição de pessoas negras e pobres. O fato é que o sistema penal constrói a figura do/a transgressor/a e a partir disso as responsabilidades são distribuídas. Se incumbe aos poderes Executivo e Legislativo a criminalização das condutas para conter a massa dos/as indesejáveis, o Ministério Público, o Judiciário, a Polícia e os aparelhos midiáticos envidam esforços na aplicação desses estigmas. A lei penal não é igual para todos/as; o direito penal não defende todos os bens; e a danosidade do delito não é a principal variável para a intensidade da reação criminalizante. Essas são expressões que auxiliam na compreensão de que o sistema penal atua em um processo de gestão seletiva da criminalização. É preciso levar em conta a estrutura racista do sistema penal que continua a replicar as vulnerabilidades sociais. A chamada guerra às drogas, como vimos, não é um problema unicamente de classe, é também estruturalmente de gênero e raça. Falar de classe, apenas, é permanecer negando humanidade às mulheres negras, aos homens negros, às pessoas LGBTQIA+. Eu penso que diante das várias vertentes que atestam o racismo e sexismo presentes na estrutura do Estado, incomoda a desfaçatez com que as bases coloniais de dominação dos corpos negros são atualizadas. O que corrobora o fato de que o comércio milionário de armas e drogas não está acessível, vive cercado por seguranças, olhos mágicos, carros e cargos blindados. O cidadão de bem, no alto do prédio, ou em helicópteros oficiais, segue deitado e acobertado eternamente em berço esplêndido. Portanto, "há esta anedota: uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa".12 *Camila Garcez é advogada, candomblecista, mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA. Instagram: @camilagarcezadv. __________ 1 Disponível aqui. 2 Em 2018, no julgamento do Habeas Corpus Coletivo de nº 143641 SP, o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar determinando a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, sem prejuízo das medidas alternativas previstas no artigo 319 do CPP.  3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 O art. 28, § 2º da lei estabelece que "Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente". Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Art. 318-A.  A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que: I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente. (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018). Art. 318-B.  A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código.   10 SILVA, Érika Costa da. Acesso à justiça e cárcere: um estudo sobre a (des)assistência jurídica gratuita prestada pela Defensoria Pública do Estado da Bahia no Conjunto Penal Feminino de Salvador / por Érika Costa da Silva. - 2020, p. 144. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui.
"Não verás país como essena sua convulsão pacíficana sua vontade fabrilem nossa morte gentílica!  Um pesadelo colonial, ainda hojepesando sobre nossas cabeçasperfurando de balase guloseimas de felnosso existir negroUm respirar de alíviotravestido num suspiro diáriode estar, por enquanto, vivo" (Canto I, em Papel de Seda, de Abelardo Rodrigues) Está tudo dado; não há novidades a contar. As palavras resistem ao papel, porque sabem que se repetem. É sempre mais do mesmo, mesmo sangue preto que jorra nas notícias e não causa espanto. Só escrevo porque a pele não me dá outra opção; porque calar é estar morto. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) é uma organização não-governamental integrada por profissionais das mais diversas áreas (policiais, sociólogos, gestores públicos) e pela sociedade civil. Sua atividade é baseada em evidências, coletadas em todos os estados do país, apesar da dificuldade (por vezes deliberada) de alguns deles contribuírem com a informação necessária para os levantamentos feitos1. Uma das principais publicações do FBSP é o Anuário da Segurança Pública, cujo primeiro número foi lançado no ano de 2007. Este ano, foi publicada e publicizada a 14ª edição2, contando com nada menos que 19 textos, além de infográficos e tabelas que gritam sobre a violência no país. Os números são estarrecedores, mas não têm estarrecido. Eles são lidos - ou nem lidos são -, e depois são "retomadas as atividades do dia: lavar os copos, contar os corpos e sorrir"3. Enquanto algumas verdades doloridas são reexpostas nos (desnu)dados do Anuário, alguns mitos são derrubados - mais uma vez. "A polícia que mais mata é a que mais morre". Essa afirmação é um lugar-comum que sói se repetir sem cuidado no noticiário4 - além de ser uma corrente em discursos populares. É preciso refinar esse argumento, por diversas razões. De modo geral, evidenciar, no mesmo contexto, que a polícia mata e (também) morre contribui para o reforço de uma lógica de guerra social, em que a violência atingiu um ponto incontrolável. Essa construção discursiva frequentemente vem acompanhada de propostas de recrudescimento do aparato repressivo como forma de solucionar o problema da "bandidagem". As intervenções policiais mataram 6.416 civis em 2020. Seis mil, quatrocentos e dezesseis civis são seis mil, quatrocentas e dezesseis histórias, famílias, narrativas, futuros, comunidades. Gente como Natanael, vítima da Chacina do Cabula/Salvador/Bahia, ocorrida em 2015 e até hoje sem desfecho. Morto pela polícia, Natanel vive no depoimento-memória da sua mãe, Marina: "A crueldade é o que mais me dói. Minhas noites de sono estão perdidas. Durante o dia, eu não estou lembrando dele porque eu não tenho espaço. Eu faço mostruário. Eu faço a primeira peça para ir por corte, então não tenho tempo de lembrar de nada. Nem da casa eu lembro. Então, quando dá meio dia, eu lembro do que ele comia... É tanto que não estou nem fazendo nada que ele comia para a gente comer. Nada. Faço tudo ao contrário, para não lembrar. Aí eu penso nele: será que ele já comeu?"5. No mesmo período, ano de 2020, 194 policiais foram assassinados. O número é infinitamente menor, mas toda morte violenta é indesejada. Aliás, em tempos covídicos, que tardam em findar, é importante evocar outro dado que o Anuário revela: 472 policiais morreram em razão do vírus, um número mais que duas vezes maior que a letalidade contra policiais. A realidade pandêmica em que estamos imersos é capaz de comprovar que o descaso e a vulnerabilização da vida policial podem se apresentar de diversas maneiras. Mais: a exposição à ação de criminosos não é a principal delas - sobretudo se considerarmos que 72% dos agentes de segurança são mortos no horário de folga.  Entre mortes civis e militares, há uma "coincidência" que o dado frio tenta ocultar: quem mais morre é gente preta. Quando a Polícia está em "campo", a sua bala acerta uma vida negra em 8 de cada 10 ações. As vítimas da letalidade policial são 78,9% negras, 76,2% jovens (entre 12 e 29 anos) e 98,4% do sexo masculino. Dos agentes policiais vitimados, 6 de 10 são negros, quase 60% têm entre 30 e 49 anos e 98,4% também são do sexo masculino. É preciso despertar para a perversidade extrema do racismo quando está explícito que policiais negros estão aniquilando outras pessoas negras, enquanto seus colegas negros estão também morrendo e sua condição de alvo é certa. Lembro do grande Machado, em Pai contra a Mãe6, a contar como a subalternização das vidas negras tende ao fratricídio, resultado da falta de consciência e da impotência para construir um presente transformador. O Prof. Silvio Almeida é didático e categórico ao traduzir nossa realidade: "Pessoas negras, portanto, podem reproduzir em seus comportamentos individuais o racismo de que são as maiores vítimas. [...] Somente a reflexão crítica sobre a sociedade e sobre a própria condição pode fazer um indivíduo, mesmo sendo negro, enxergar a si próprio e ao mundo que o circunda para além do imaginário racista. Se boa parte da sociedade vê o negro como suspeito, se o negro aparece na TV como suspeito, se poucos elementos fazem crer que negros sejam outra coisa a não ser suspeitos, é de se esperar que pessoas negras também achem negros suspeitos, especialmente quando fazem parte de instituições estatais encarregadas da repressão, como é o caso de policiais negros"7. Fora do binômio polícia/civis, o quadro é (deveria ser) igualmente nauseante.  As MVI's (mortes violentas intencionais), por dois anos decrescentes, voltaram a crescer, fazendo 50.003 vítimas no ano passado. Estados do Nordeste e do Norte lideram os necro-índices: no Ceará, morreram, de forma violenta, 45,2 pessoas por 100 mil habitantes; na Bahia, 44,9; em Sergipe, 42,6; e, no Amapá, 41,7. É tão repetitivo quanto necessário dizer que essas mortes não são aleatórias, o que desfaz outra afirmação irresponsável, a de que "morrem mais pessoas negras porque são maioria no país". Na população geral, cerca de 54% das pessoas são negras. Dentre as mortes violentas, 76,2% são pretas ou partas. É a abominável cifra de 38.152 pessoas negras, quase todas do sexo masculino, a maior parte jovens, com vidas ceifadas - por armas de fogo em 78% das vezes. Esse é o retrato esperado de um Brasil que dobrou o número de armas de fogo registradas em 3 anos, alcançando a marca de 1.279.491 (um milhão, duzentos e setenta e nove mil, quatrocentos e noventa e um) registros ativos. Desgraçadamente, a realidade das mulheres e meninas é ainda pior. Mesmo com a força do silenciamento, foram contabilizados 52.539 estupros contra pessoas do sexo feminino só em 2020. O perfil vem se repetindo ao longo dos anos: a maioria das vítimas são vulneráveis, incapazes de consentir com a prática sexual, têm até 13 anos, e seus algozes são pessoas conhecidas. Há muito já se foi (deveria ter ido) o mito do estuprador desconhecido que ataca nos becos e vielas, um estereótipo que contribui para ocultar a violência nos lares e ambientes familiares. Aliás, há quase duas décadas, já afirmava a Profa. Vera Regina Pereira de Andrade: "Paulatinamente foi descobrindo-se que o estupro ocorre com muito mais freqüência do que se imaginava, que cada homem pode ser o autor, que cada mulher pode ser a vítima e que a vítima e o autor muito freqüentemente se conhecem."8. Por fim, e mais importante, o extermínio físico das mulheres pela sua condição de gênero tem crescido. Foram 1.350 feminicídios registrados no ano passado. A cada 10 mulheres mortas por serem mulheres, 6 são negras, sendo que 8 delas foram vitimadas por companheiros ou ex-companheiros, provando como o patriarcalismo racista segue vivo e encrustado nesta sociedade que não tolera a liberdade da mulher. É a violência que "se entrelaça no tecido diário de nossas vidas", afirma Audre Lorde9. Se é verdade - pouco visibilizada - que estamos em luta e em estado de resistência e sobrevivência diárias, pode soar incompreensível que tanta informação disponível, exposta em gráficos e infográficos, não cause uma revolução total e imediata das bases que estruturam este doído viver. A resposta talvez esteja na percepção de que a noção historicamente construída de democracia dependa exatamente da subjugação das pessoas negras. Frank B. Wilderson III complementa essa ideia, afirmando: "O afropessimismo nos ajuda a entender por que a violência que satura as vidas negras não é ameaçada de extinção apenas por ser exposta. Para que esse fosse o caso, o espectador, o interlocutor, a audiência teria que chegar a imagens como essas com um inconsciente capaz de perceber que elas mostram alguém 'ferido'. Em outras palavras, a mente teria que 'ver' uma pessoa com uma herança de direitos e reivindicações, cujos direitos e reivindicações estão sendo violados. Não é dessa forma que escravizados, negros, funcionam no inconsciente coletivo"10. Não nos acostumaremos com as atividades diárias do dia, não nos acostumaremos a "contar os corpos". Apesar da ameaça constante de toda sorte de vilipêndios à nossa existência e memória, estamos vivos e vivas, escrevendo e, quando necessário, gritando! __________ 1 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível aqui. 2 14º Anuário da Segurança Pública, Disponível aqui. 3 Lion Man, de Criolo, no Álbum Nó na Orelha. Disponível aqui. 4 Apenas a título de exemplo: No Rio, a polícia que mais mata é também a que mais morre. Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Pai contra Mãe, de Machado de Assis, em Machado de Assis, Contos e Crônicas. Ed. Malê, 2019. 7 Silvio Almeida, O que é Racismo Estrutural? Ed. letramento, 2018, p. 53 8 Vera Regina Pereira de Andrade. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher, p. 25. Revista Sequência, n. 50, p. 71-102, jul. 2005. 9 Audre Lorde. Irmã Outsider. Ed. autêntica, 2020, p. 148 10 Frank B. Wilderson III. Afropessimismo. Ed. Todavia, 2021, p. 256.
segunda-feira, 5 de julho de 2021

Atitude suspeita

"Não sou ninguém, nem tenho pra quem apelarSó tenho o meu bem, que também não é ninguémQuando a polícia cai em cima de mimAté parece que sou feraQuando a polícia cai em cima de mimAté parece que sou fera" Camelô- Edson Gomes  A trama do racismo é infinita. A moderna fábrica de tecelagem inova em estampas raciais multicores, que tentam esconder as intensas manchas de sangue negro que enriquecem, desvairadamente, a brancura do poder econômico. Quando a jovem preta que carregava um grandioso futuro no seu útero foi cravejada por uma bala, as semanas seguintes pareciam dizer - tantas eram as fotos distribuídas nas redes sociais - que ela seguia viva, como se ainda pudesse exercer a arte de modelar sorrisos e espantar olhos com sua beleza de majestade negra. Seu sorriso ali, expressivo nas fotos do mundo virtual, enquanto seus corpos (o maior e o menor unidos pela fecundação da vida) sentiam a decomposição inicial do agir silencioso do rito biológico da morte. Nos dias seguintes, a Farm, uma marca eminentemente branca, quis fazer caridade mercadológica1, valendo-se da morte daquela jovem-menina.  Ninguém nunca suspeitou da Farm, nem suspeitará, dir-se-á que a negritude é de uma desconfiança severa da boa vontade dos que querem ajudá-la. Ninguém quer suspeitar da filantropia capitalista, que, religiosamente, sepulta corpos negros. Walter Benjamin já havia dito que "o capitalismo deve ser visto como uma religião", em que todo dia há uma "celebração de um culto sans rêve et sans merci [sem sonho e sem piedade]", no qual se deve adorar o consumo exacerbado, a "ostentação de uma pompa sacral."2 Enquanto mais uma morte negra pulsa nas notícias, a metrópole segue seu ritmo indolente, acenando de longe para mortes sociais de pessoas negras, principalmente daquelas que são rotineiramente abordadas só por perambularem no espaço urbano, apenas por tentarem chegar no outro lado de uma cidade geograficamente racista. A cidade não lhes pertence. Por isso, é importante a existência de subúrbios, comunidades, movimentos, terreiros, que são os negros cobertores que se esforçam por acolher essas vidas apedrejadas pelo racismo. Ainda assim, o Terror de Estado é impiedoso, invade esses quilombos da contemporaneidade e, ao suposto de uma "suspeita qualquer", desrespeita a ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, para esparramar sangue nas escadarias e casas de Jacarezinho. Os ecos dos tiros soam até agora nas famílias atravessadas por balas (des) identificadas. O Estado não respeita o próprio Estado.  Definitivamente, a cidade não deseja a presença negra. Pessoas negras devem ser paralisadas no seu existir.  E, de fato, a cada injustificada operação policial, a cada abordagem policial realizada a partir de uma ficcional atitude suspeita, o racismo, na sua forma humilhação, impossibilita o nosso viver, naquilo mais genuíno que a vida pode oferecer: a suavidade do amor.    A polifonia da dor negra jorra por todos os lados. Incessante! O genocídio da população negra - que opera da "morte matada" à morte social - é promessa antiga, ódio sistêmico, pronto para agir, especular, fingir, retramar e sempre muito bem armado. Das encomendas de limpezas raciais de bairros nobres à falsificação da realidade com a história da "bala perdida", o coveiro não dá conta de tanta carne preta. E a branquidade passa serena e altiva por tudo isso, porque, para ela, o amanhã é uma esperança ensolarada. Mas, para as negritudes, não. A linha do tempo do racismo é impecável e gélida, despreza essas convenções de ontem, hoje e amanhã.  É que ser negro é ser, constantemente, periférico. É saber que a morte lhe domina o circuito dos passos, sempre  iminente, e arrasa qualquer sentido de liberdade. No campo do terror antinegro, pouca importa sua autorrepresentação sobre a sua negritude. Na atmosfera do Terror de Estado, quando se tenta abrir o próprio carro, você, preto, que acha que é um vitorioso, poderá ser abordado e, até dizer que é um alguém ..., alguns tapas já balançaram seu rosto. Depois não haverá espelho que reconstrua essa imagem de orgulho de si, que, a muito custo psicológico, teve que recolher dos traumas de infância, de complexos de inferioridade que lhes foram impostos por aquela gente que gosta de um privilégio histórico. A negritude teve seu mínimo narcisismo roubado. Nada de dizer que sofreu microagressões na sua rotina de trabalho, na relação conjugal, com os amigos que curtem um cinecult, nada disso, toda agressão racial é uma grande agressão. Essa ideia de microagressão racial não alcança a multidimensionalidade do racismo, que, a todo instante, tenta subjugar a ancestralidade negra. Corpos negros tombam. Seguem tombando como cobaias de um suposto bem-estar comum. Lembremos disso sempre. Por essas lentes de reflexão, é impossível pensar, no Brasil, a abordagem policial que rotineiramente ocorre sob a alegação de "fundada suspeita", sem colocar o racismo como base de análise. Quem são os "abordáveis"? O que seria essa "fundada suspeita"? São perguntas iniciais que já apontam para a carga racial de um certo ativismo policial. Dois exemplos, um mais antigo e outro mais recente, nos aproximam mais ainda da problemática racial dessas suspeitas abordagens policiais. O ex-jogador de futebol Zé Roberto, recentemente, relatou que, no início de sua carreira, na década de 90, quando comprou um carro do modelo Eclipse GS, teve que vendê-lo em três meses, porque era constantemente abordado pela polícia quando - saindo da Penha para São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo - ia visitar sua namorada3. Conforme seu relato, houve dias em que a polícia o seguia e deixava para abordá-lo quando estava perto da casa de sua namorada. Qual seria o motivo dessa abordagem insistente e não-discricionária feita pela polícia, se não a cor da pele que dirigia um carro luxuoso? Em maio de 2021, um ciclista youtuber que se divertia fazendo manobras com sua bicicleta, em um parque na Cidade Ocidental (Goiás), foi, brutalmente, abordado por policiais militares que resolveram parar a viatura, forçá-lo a colocar as mãos na cabeça, gritando que o procedimento era padrão e que aquela abordagem era uma ordem legal. O jovem Filipe Ferreira, negro que era, com uma arma de fogo que lhe foi apontada, acabou sendo algemado e até hoje não foi informado sobre os porquês de ter sido abordado, numa tarde ensolarada, num parque praticamente deserto, por agentes policiais que deveriam estar ali, na realidade, para lhe garantir uma melhor sensação de segurança. Se a cor da pele, que registra a marca do racismo brasileiro4,  não foi determinante para o exercício dessa "discricionária arbitrariedade" policial, qual teria sido o motivo então desse ódio estatal gratuito dirigido a Filipe Ferreira? Nesse ponto, alcança-se a pensamento de André Nicolitt, quando afirma que, no Brasil, o negro é visto como um suspeito natural.5 A tal fundada suspeita é expressão que aparece no Código de Processo Penal nos artigos 185,§2º inciso I(interrogatório por videoconferência),  art. 244 (busca pessoal) e, de certa forma, no art. 304, §1º (prisão em flagrante). Nessas três situações processuais, a ideia de fundada suspeita está conectada com a possibilidade concreta de uma prática criminosa. Há, portanto, um substrato empírico mínimo que indique que determinado crime ocorreu. Sabe-se que essa mínima exigência de substancialidade fática não retira por completo o caráter poroso, extremamente aberto e, por isso, manipulável dessa expressão, que acaba, mediante recursos de linguagem retórica, autorizando invasivas ações estatais em relação aos direitos fundamentais dos/as alcançados/as pelo processo penal.  E, curioso que seja, essa incompletude significante da expressão "fundada suspeita" no processo penal nos permite enxergar o quanto são arbitrárias as abordagens policiais feitas, "aleatoriamente", em pessoas que apenas transitam pela cidade,  a pé, de ônibus ou até mesmo de carro, já que, nesses casos, o público-alvo é, em regra, negro, e não há qualquer substrato fático que aponte para a necessidade de uma abordagem policial. Portanto, nessas abordagens, em sua maior parte conduzidas pela polícia militar, não há nada juridicamente objetivo que as justifique. Isso significa que se a polícia for questionada sobre as razões que motivaram sua atuação opressora, não saberá dizer quais são essas razões, reduzindo-se a usar uma justificativa monótona de que se trata de um procedimento-padrão de abordagem, que é uma zona urbana de violência e que ali esteve para evitar delitos. Isso mostra como a fundada suspeita usada para abordagens policiais, vazias de qualquer juridicidade, são ficções mortíferas criadas para capturar corpos negros. E se é preciso cumprir metas de abordagens, prisões, rondas, nada menos problemático do que carregar o lixo urbano, feito de detritos-negros, para os lixões itinerantes das cidades, camburões e outros espaços de aço destinados a sufocar pretas/os. A conta social e econômica sai muito barata para a branquidade estatal que organiza as ordens de captura de negras/os. E se uma polícia possivelmente preta aborda e prende outros tantos/as pretos/as, o teatro racial está bem posto, porque se dirá, salivando a boca, que não há racismo quando pretos enjaulam outros pretos. Mas quem dá esse aval para essa desmedido agir policial é uma mão branca, que usa da mágica da invisibilização da própria  identidade racial branca e se defende com o manto encardido do princípio da igualdade jurídica, como se a distribuição da repressão estatal fosse algo proporcional. Conforme relatório de pesquisa formulada pelo Centro de Estudos e Segurança e Cidadania (RJ)6 no ano de 2003 - destaque-se ainda que outra pesquisa do  mesmo perfil se repetirá neste ano de 2021 - , verificou-se que, na cidade do Rio de Janeiro, "as revistas corporais ocorriam em 77% das pessoas paradas a pé na rua e em apenas 20% dos parados em carros particulares. Brancos só tinham sido revistados em 33% das abordagens, e pretos, em 55%". Na referida pesquisa, foram realizadas entrevistas com policiais militares, das quais podem ser extraídos os seguintes achados empíricos: as entrevistas com praças e oficiais da PM revelaram que não só é negativa a  resposta para todas as perguntas acima, como sequer existe um discurso minimamente articulado sobre critérios de construção da suspeita, que explique com nitidez o que leva um policial a abordar e revistar alguém num ônibus ou na rua. Falas quase sempre evasivas, defensivas, sugerem a prevalência de critérios individualizados, "subjetivos", "intuitivos", não regulados institucionalmente - vale dizer, a ausência de parâmetros, até mesmo conceituais, que norteiem as decisões num espaço tão aberto ao exercício da discricionariedade policial. Mais do que uma orientação deliberadamente discriminatória, o que se percebe, assim, é a delegação dessas decisões à cultura informal dos agentes, a renúncia a impor-lhes balizas institucionais e, em consequência, um bloqueio de qualquer discussão interna ou externa sobre estereótipos raciais e sociais intervenientes no exercício cotidiano da suspeição.7 Nesses passos de reflexão, é indispensável pensar com Felipe Freitas a extensão do mandato policial, dessa legitimidade estatal que é dada à polícia para organizar a "ordem pública". Mas esse pensamento, como adverte o referido professor,  deve ter um olhar dirigido pela perspectiva de que "a própria ação da polícia tem como característica central um 'saber da rua'", o qual guia o cotidiano da tomada de decisão da polícia. Além disso, como lembra Felipe Freitas, "os temas raciais permaneceram secundarizados na abordagem hegemônica sobre polícias no Brasil."8 Por outro lado, esse eterno suspeitar que recai sobre as pessoas negras não é algo que vem só da polícia. É da classe média, alta, rica, da elites políticas, estatais e neo-aristocráticas, que não conseguem aceitar a mínima presença negra em ambientes de poder, de conforto econômico, que andam sempre a perguntar: que é que ele faz da vida? quem é essa pretinha metida? e aquele preto ali, fala duas línguas é? e aquela preta ali, jantando nesse restaurante?. Essa eterna suspeita é a que faz com que pessoas negras sejam sempre confundidas com vendedores de uma loja de roupas, ainda que todos funcionários estejam com roupa padronizadas, que um negro de terno, em um shopping center, seja visto sempre como um segurança, que a beleza negra passe sempre pelo adjetivo de exótico, como se bicho fosse. Explique-se, ainda, que a questão não é a singeleza dessas funções - vendedor, segurança -, e sim a atitude de rotular, automaticamente, pessoas negras a funções em que não há o predomínio da atividade do pensar.     Não querem negros/as andando livres pelas cidades, suspeitam sempre da nossa capacidade intelectual, emocional e espiritual. Querem nos definir com as sobras da tinta branca que garantem a alvura de suas casas. Tem sido assim. A branquidade do poder social e econômico tem o perene privilégio de suspeitar de pessoas negras e achar que um simples pedido de desculpas é capaz de deletar uma ofensa racial.  Esquece-se, porém, que  suspeitar de um/a negro/a é suspeitar de um coletivo de existências negras formadas no verbo da resistência histórica. É, por isso, que, a cada conquista afrocentrada, a ancestralidade borrifa para o universo que a reinvenção do mundo partirá de uma solidariedade negra. Quem venceu chibatadas não se intimidará diante de suspeitas mesquinhas! __________ 1 Disponível aqui. 2 Benjamim, Walter; Lowy, Michael. O Capitalismo Como Religião - Col. Marxismo e Literatura (Locais do Kindle 381-382). Boitempo editorial. Edição do Kindle. 3 Disponível aqui. 4 Sobre o tema, consulte-se NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo social, v. 19, p. 287-308, 2007. 5 Disponbível aqui. 6 Cf. Ramos, Silvia; Francisco, Diego; Silva; Pedro Paulo da; Silva, Itamar. Elemento suspeito: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CESeC, 2021. 7 Cf. Ramos, Silvia; Musumeci, Leonarda. "Elemento suspeito". Abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania, n. 8, novembro de 2004. 8 FREITAS, Felipe da Silva. Polícia e Racismo: uma discussão sobre mandato policial. 2020. Tese de doutorado (UNB).
Com a fé de quem olha do banco a cena Do gol que nós mais precisava na trave A felicidade do branco é plena A pé, trilha em brasa e barranco, que pena Se até pra sonhar tem entrave A felicidade do branco é plena A felicidade do preto é quase Ismália, Emicida Não é incomum no Brasil nos depararmos com abordagens, indagações ou apontamento de pessoas negras como suspeitas de cometimento de furtos. Revistas em estabelecimentos, acompanhamento por seguranças e travamento de portas giratórias são episódios corriqueiros na vida de pessoas negras. Um recente episódio envolvendo um furto de bicicleta no Leblon, Rio de Janeiro ganhou audiência nas redes sociais e na mídia, mais uma vez promovendo debate em torno de questões raciais. A cena nos remeteu imediatamente a um clássico do cinema, refiro-me a película italiana "Ladrões de Bicicleta" de Vittorio De Sica. Lançado em 1948, é uma obra emblemática do movimento neorrealista insurgente nos anos 40, quando a Itália vivia as consequências da Segunda Guerra Mundial e do governo fascista de Benito Mussolini. A toda evidência, os personagens, a dinâmica, os papéis e as subjetividades construídas são diversos daqueles que substanciam o longa-metragem. No entanto, alguns aspectos estéticos são convergentes. Antonio Ricci, um pai de família de Roma, consegue um emprego como colador de cartazes. Para tanto, necessitava de uma bicicleta imprescindível a suas tarefas. Com efeito, penhorou seus objetos e a própria casa, visando adquirir uma. Porém, sua bicicleta é roubada e, então, Antonio, com seu filho Bruno, parte em uma jornada pelas ruas da cidade em busca do objeto que lhe foi subtraído, tudo com o fim de manter seu emprego. A trama, aparentemente singela, na verdade é um documentário social e uma tragédia moral, que traduz delicadamente a Itália do pós-guerra. O filme é construído não com atores, mas pessoas reais, filmado nas ruas. Vittorio De Sica mapeia magnificamente os entornos de um cenário de injustiças. O descaso da polícia, as pessoas em situação de miséria que surgem no caminho de Antonio, tudo a conspirar para que o protagonista ceda à tentação de furtar uma bicicleta. Uma característica relevante na estética neorrealista é o tratamento reducionista na filmagem. Assim, "quanto menores os fatos, mais cotidianos, quanto mais humildes os protagonistas, quanto menos eventos, quanto mais simples for o aparato usado para filmá-los e quanto mais rápido eles forem reproduzidos", o mais perto se está da "realidade"1.   Em um dado momento do filme, Antonio se vê amaldiçoado desde dia em que nasceu e afirma: "me sinto como um homem acorrentado". Aqui, seguramente convergem a dor e o sentimento de todo homem e mulher que nascem pretos. A bicicleta do filme não era elétrica. Os moradores do Leblon não são operários em busca da manutenção de seus empregos e sobrevivência, ao que parece. Ao contrário, ao que indica, duas bicicletas foram objeto de furto. Um empresário, que teve a sua furtada, sequer saiu à procura. No dia seguinte, entrou na mesma loja e comprou outra. Muito diferente do drama de Antonio. Mas o espaço e os dramas se aproximam. No meio da rua, um jovem preto é interpelado por alguém que busca sua bicicleta elétrica. A cena real (e surreal) que envolveu "os inocentes" do Leblon, na sua brevidade, no seu cariz cotidiano e na sua singeleza, traduz um drama social, um contexto político, cultural, ideológico e (des) humano. É a pintura de um país que ainda não aprendeu a olhar as cicatrizes da maioria de seu povo. O episódio, igual a tantos que abrem o debate social, acaba por dividir opiniões e ganhar as páginas policiais. Diante desse contexto, algumas questões devem ser postas. Negro: O suspeito natural Anos atrás, ainda sem muita cobertura em redes sociais, a mídia tradicional falava de um caso de um jovem negro que, atrasado, corria pela rua com seu violino e foi parado pela polícia que lhe indagou de quem havia roubado o instrumento. O músico só foi liberado porque a polícia "pediu" que ele provasse a propriedade do objeto musical tocando uma música no violino. É bem verdade que o "não lugar" destinado aos negros na sociedade colonial e pós-colonial reservou a negros e negras a sina de que o domínio de nobres saberes, que constituem privilégio dos homens brancos, é algo extraordinário. Isso, pois jogar xadrez, tocar violino e dançar ballet, são coisas, aparentemente, de pessoas brancas, incomuns a maioria dos pretos e pretas do Brasil, de modo que ver um preto correndo com um violino, aos olhos de uma estrutura racista, só pode ser roubo. Na atualidade, muito se repercutiu sobre o caso do violoncelista que, abordado pela polícia com seu instrumento, foi levado à delegacia e, em razão de decreto de prisão fundada em reconhecimento fotográfico, foi preso e processado. Nunca se soube muito bem e, tampouco se saberá (ou se sabe as escancaras), como a foto de um jovem negro, primário, sem qualquer "passagem" pela polícia vai parar em um álbum fotográfico de suspeitos. Em maio do corrente ano, um ciclista negro em Goiás, Cidade Ocidental (arredores do DF) foi violentamente abordado por policiais militares quando fazia manobras em um parque público. Por fim, outro jovem negro, no Leblon, portando sua bicicleta elétrica, esperando sua namorada em frente ao shopping, é abordado por um casal branco, que o questiona sobre o furto de uma bicicleta. Nesse último caso, o instrutor de surf estava parado e o casal branco teria chegado afirmando "essa bicicleta é minha". O jovem negro tentou provar a propriedade com fotos antigas do veículo no seu celular, mas o convencimento só ocorreu quando o rapaz branco, deliberadamente testou o cadeado da bicicleta e percebeu que sua chave não abria. Comum aos músicos e aos ciclistas após esses episódios: o MEDO. Alguns relatam que se sentem presos em casa. A vida nunca mais foi a mesma. Não é psicologicamente fácil notar que se é "um suspeito" natural e com isso está sujeito a abordagens de agentes do Estado ou mesmo de particulares. Os danos psicológicos do racismo são denunciados há longa data, basta lembrar os escritos do psiquiatra e filósofo negro Franz Fanon e como se viu acima, os episódios dessa natureza são pretéritos, presentes e futuros. Fato. Negros e negras são suspeitos naturais. Fruto de um racismo que estrutura a sociedade, consome as instituições e transborda nos olhos de boa parte dos cidadãos de bem do mundo. Brancos: a vítima em potencial Quando se fala em privilégio da branquitude, está a se tratar de um conjunto de vantagens que as pessoas que nascem brancas acabam por receber. Dificilmente sofrem abordagens policiais. Possuem maior possibilidade de empregabilidade, maior aceitação social, menos danos psicológicos, melhor autoestima, etc, etc, etc. A estrutura social lhe é naturalmente acolhedora e empática. Notem. No episódio do Leblon, alardeia-se que o casal, após atitude motivada por racismo, perdeu o emprego. Não foram poucas as vozes que acharam um exagero, uma punição descabida, desproporcional. Há um sentimento natural de solidariedade, afinal, pode ter sido apenas um erro e todos tem direito de errar. O casal foi chamado a delegacia para prestar esclarecimentos, o que, aos olhos de muitos, a polícia deve ter mais o que fazer, pois agora tudo é vitimismo, tudo é racismo. Não obstante, quantas pessoas negras são presas preventivamente sem sequer serem ouvidas só porque suas fotos pararam em um álbum de suspeitos? Quantas dessas perdem seus empregos e quantas nunca mais recuperam sua empregabilidade porque possuem uma "passagem"? Esse fato que é cotidiano e massificado no quadro da justiça criminal brasileira é protegido pela total insensibilidade. Não se vê, fora os chamados "pessoal dos direitos humanos", ninguém preocupado com essas consequências danosas. Em nossa experiência como juiz criminal, nos deparamos com inúmeros casos de prisões provisórias de negros, que destroem suas vidas, seguidas de absolvições e que sempre nos constrange e, raras vezes, notamos o mesmo constrangimento em outros operadores jurídicos que naturalizam essas cenas. Mas quando uma "injustiça" acontece com pessoas brancas, há sempre uma comoção. O que há de errado nisso? Absolutamente nada. Toda injustiça deve gerar indignação. Mas a indignação seletiva é um sintoma grave do racismo que impera na sociedade brasileira. Em um mundo com humanidade sólida, construída para todos os seres humanos, a injustiça contra qualquer pessoa preta, branca, indígena, deveria ser um sofrimento generalizado. Não é o que ocorre. No caso "dos inocentes do Leblon", o jovem negro, suspeito de furto da bicicleta, logo perdeu a condição de vítima. E o casal, que perdeu o emprego, que foi chamado a delegacia, tornou-se vítima de um exagero, de um radicalismo, de uma "sociedade polarizada", de uma 'ideologia esquerdista". Afinal, brancos são vítimas naturais.  Sobre essa polarização racial é importante alertar. O termo raça não foi criada por pretos. Pessoas brancas, a partir do século XVI, com a necessidade de dominar pessoas e territórios, cunharam a raça, diferenciando seres humanos, inferiorizando todos que não eram brancos eurocêntricos, escravizando negros e negras. É preciso saber, então, quem foi que dividiu o mundo entre pretos e brancos. O processo de criminalização primária e secundária Ocorre que essa tensão política, em uma sociedade imersa na era digital, na qual não temos sequer mais uma massa, mas um enxame digital, as relações se dão nas pontas de um dedo e vivemos em um panóptico digital[2]. Inevitável um clima de expansão punitiva e de desejos e fantasias punitivas. Ocorre que o processo de criminalização primária e secundária é marcado pela seletividade e agora com as exigências do espetáculo. Os episódios relatados nos revelam algumas questões. 1) A dificuldade de se enquadrar criminalmente questões que historicamente sempre foram um "indiferente"; 2) A crença dos vulneráveis no sistema de justiça criminal como se um instrumento de opressão de indesejáveis um dia pudesse se constituir em instrumento de proteção de sujeitos vulneráveis; 3) O sistema sempre pode se voltar contra você. Um fato é importante. A divulgação midiática de atitudes racistas, constituam elas crimes ou não, além de sanções sociais, podem ocasionar, ainda que extraordinariamente, ainda que em uma tentativa de demonstrar que o sistema penal funciona (olhem, brancos e ricos também podem ser pegos pelo sistema penal!), persecuções criminais. As abordagens racistas podem, a depender da dinâmica, ensejar processos e/ou punições por calúnia, crime de racismo, injúria racial, exercício arbitrário das próprias razões, abuso de autoridade, etc, etc, etc. O sistema penal tem um poder tão expansivo que uma hora, perde-se o controle, e ele pode pegar você, homem branco, rico, heterossexual e racista. Embora isso seja raro.  Já você, homem preto, ao entrar como vítima em uma delegacia, sendo o suspeito natural: Cuidado! Você pode sair como investigado, envolvido ou indiciando. Há uma grande diferença. Quando ocorre o indiciamento de um branco, como no caso, é tão excepcional como preto tocar violino, há empatia, as leis funcionam. Notem o verdadeiro ladrão de bicicleta do Leblon. Era branco. Foi pego com a roupa que estava nas imagens da câmera de segurança e com a bicicleta produto de crime. Ostentava muitas anotações em sua folha de antecedentes. E, acertadamente, foi solto porque o crime não foi com violência ou grave ameaças. Muitos criticaram a decisão. Repita-se. Acertada, pois em uma sociedade democrática, a prisão deve ser exceção (para todos). O erro reside nos inúmeros casos de pessoas pretas que são presas em situações menos desfavoráveis que essa e são mantidas presas por decisões judiciais que reproduzem o racismo estrutural. Mas não é só isso. Se você, negro, é o suspeito natural, a estrutura estatal que opera animada pelo que se chama racismo estrutural, de um modo ou de outro irá te atingir. Voltemos às bicicletas. O jovem negro da bicicleta elétrica do Leblon, tal qual ocorre na metamorfose de Kafka, "entra" na delegacia como vítima e se transforma, muito rapidamente, em um suspeito de receptação. Afinal, negro, como você está com essa bicicleta elétrica? Você não comprou nova, em uma loja.  Qual a origem desse bem? Onde está a nota fiscal? Algumas coisas devem ser pensadas para entender como aquilo que subjaz as práticas explica tanta diferença. Se ainda nos recordamos de algo do direito civil, a propriedade das coisas móveis é transmitida pela tradição (entrega) e mesmo quando transmitida por quem não é dono, se oferecida ao público em leilão ou estabelecimento comercial, produz efeito para o adquirente de boa fé. Vale transcrever: Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição. Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono. Como referimos acima, na sociedade digital, na qual as relações se dão na ponta de um dedo, o Registro de Ocorrência foi feito pela internet, assim como a aquisição da bicicleta. Os estabelecimentos comerciais não concentram mais suas vendas em lojas físicas, mas sim no ambiente virtual. Grupos de desapego, sites de venda de produtos usados, tudo isso impulsiona, em grande parte, a circulação de mercadoria, até mesmo comida. Ademais, esse quadro, inclusive, se ampliou sobejamente no contexto da pandemia. Desse modo, a informalidade na aquisição de bens, a adequação social das práticas, no mínimo faz presumir a boa fé das pessoas (menos das negras). Mas a essa presunção de boa fé ainda se acresce um dado objetivo de boa fé quando se tem a segurança de levar uma discussão sobre um bem adquirido pela internet para as vias policiais. Quem, ciente de que adquiriu um produto furtado, iria levar essa questão ao debate policial? Difícil pensar em um criminoso que vá à delegacia registrar ocorrência de um crime tangente ao seu. Mas quando se é, negro - o suspeito natural - a boa fé, além de não ser presumida, mesmo diante de sua evidência, parece ser destruída pelo racismo estrutural. Suspeita-se do preto, investiga-se o preto. Ele deve ter uma multa de trânsito, deve ter o nome no Serasa, deve esconder alguma "bronca". Ele não pode estar com a razão, quem é produzido para estar nas páginas policiais como suspeito não pode posar de vítima na opinião pública, como diz Emicida: "Cuidado, não voa tão perto do sol Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei" O abutre quer te ver de algema pra dizer: "Ó, num falei?!"  Ó, num falei... pode não ter furtado, mas é receptador! Eis a cena, eis a sina. Em mais de 20 anos de magistratura, raras vezes examinamos processos de roubo e furto, nos quais constam as notas fiscais dos produtos subtraídos em ações criminosas. O debate sobre nota fiscal, no qual se colocou o jovem negro do episódio do Leblon, nos despertou para analisar esse aspecto em três casos emblemáticos que ganharam notoriedade na mídia e nas redes sociais.   Danilo Felix. Funcionário da Universidade Federal Fluminense. Jovem negro. Preso por 58 dias, através de reconhecimento fotográfico. Ao final, absolvido. A vítima branca alegou lhe ter sido subtraída uma motocicleta e um celular. Não consta dos autos do inquérito (processo 0020686-07.2020.8.19.0002) nota fiscal da moto, documento de circulação do veículo, tampouco nota fiscal do celular. Angelo Gustavo Pereira Nobre (Gugu, produtor cultural), reconhecido por fotografia nas redes sociais, preso e condenado por roubo de veículo e um celular. Nos autos do inquérito não consta nota fiscal ou documento de propriedade dos bens (processo 0045151-59.2015.8.19.0001). Luiz Carlos da Costa Justino, violoncelista, reconhecido por fotografia por uma vítima branca. Foi preso, processado, ao final absolvido da acusação de roubo de um celular. Não há nos autos do inquérito nota fiscal do aparelho celular relatado pela vítima (processo 0055889- 35.2017.8.19.0002). No âmbito de uma investigação envolvendo uma atitude racista, não havendo controvérsia sobre ser ou não a bicicleta elétrica do casal branco, já que o próprio casal identificou, após testar o cadeado, não se tratar do objeto do furto, cabe indagar como tão cuidadosamente se levantou a "cadeia de aquisição" da bicicleta portada pelo jovem negro? Repita-se: não é comum que vítimas tenham que apresentar notas fiscais ou prova de propriedade. Ao que parece, na prática, acertadamente, presume-se a boa fé das pessoas (frise-se: brancas). Parem de nos prender, parem de nos matar. Não queremos a prisão de brancos. Nem mesmo de brancos racistas. Queremos um mundo livre do peso da raça como diria Mbembe3. Como sair da grande noite?   Deivison Faustino4 lembra bem a assertiva de Fanon de que "é branco que cria o negro, mas é o negro que cria a negritude", ou seja, a negritude surge como reação ao racismo branco. De fato, é preciso criar um mundo realmente humano, de reconhecimentos recíprocos5, repita-se, livre do peso da raça. Mas como sair dessa grande noite? ...a preocupação com a reconciliação, por si só, não pode substituir a exigência radical de justiça. Para que aqueles que antes estejam de joelhos e curvados sob o peso da opressão possam se levantar e andar, é preciso que a justiça seja feita. Portanto, não se escapará da exigência da justiça. Ela requer a libertação do ódio de si e do ódio ao Outro, primeira condição para que possamos voltar à vida. Ela requer igualmente que nos libertemos do vício da lembrança do nosso próprio sofrimento, que caracteriza toda consciência da vítima. Pois se libertar desse vício é a condição para reaprender a falar uma linguagem humana e, eventualmente criar um mundo novo6.   Mas como perder o vício de lembrar de nosso sofrimento se toda hora são reabertas as cicatrizes? Os açoites são relembrados, os estupros das nossas ancestrais são relembrados, o sequestro e cárcere privado, os enforcamentos e os linchamentos, o ferro ao pescoço e a máscara de flandres, tudo isso é relembrado, nos corpos de pretas grávidas assassinadas, de transeuntes pretos abatidos no jacarezinho, no entulho de corpos negros nas prisões por juízes brancos como no passado, por reconhecimentos fotográficos que nos levam a prisão, por balas cravejando nossas crianças, por abordagem em portas giratórias ou em bicicletas elétricas... e nós que suportamos 350 anos dessas crueldades, e 130 anos de ilusão abolicionista com o genocídio negro7 em curso, nos episódios do Leblon temos que ouvir comentários sobre o casal que virou vítima porque perdeu o emprego? Não tiremos os olhos da vítima: o jovem negro, suspeito natural concebido momentaneamente como "ladrão de bicicleta". Quem é branco não sabe o que é ser preto. Ser parado insistente e cotidianamente pela polícia. Ser travado em portas giratórias. Pretos perdem o emprego todos os dias. Pior, sequer são empregados. São ridicularizados pelos espetáculos recreativos e vigiados em lojas e supermercados, quando não mortos.  Diante do oceano, o racismo nos leva a ver apenas uma gota de água. Sair da grande noite... "Isso pressupõe que o sofrimento que foi imposto aos mais fracos seja posto a nu: que seja dita a verdade sobre aquilo que foi suportado: que renunciemos à dissimulação, à repressão e à negação".8 A cena do furto da bicicleta no Leblon é a tradução realista de uma noite da qual devemos sair. __________ 1 In: SANCHEZ, Renata Latuf de Oliveira. a cenografia e o espaço-tempo no neorrealismo como indicador da sociedade italiana no pós-guerra: Uma breve análise a partir de Roma, Cidade Aberta e Ladrões de Bicicleta. Revista Eletronica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade . v. 7, n. 10, jan /ago (2015). Dossiê História Urbana: a configuração de um campo conceitua. 2 HAN, Byung-Chul. No enxame. Perspectivas do digital. Petrópolis. Ed. Vozes, 2018.  3 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2017. 4 FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018. 5 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. 6 MBEMBE, Achille. Sair da grande noite. Petrópolis, Ed. Vozes, p. 54-55. 7 Sobre o tema: NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Perspectivas, 2016. 8 MBEMBE, Sair da op. cit. , p. 55.
"Eu entoarei com tanto vigor o grande grito negroque as estruturas do mundo serão abaladas" Aimé Césaire   "Quem vai pagar a conta?Quem vai contar os corpos?Quem vai catar os cacos dos corações?Quem vai apagar as recordações?Quem vai secar cada gotaDe suor e sangueCada gota de suor e sangue". Luedji Luna - Cabô Mais de cem anos depois do massacre de cerca de 100 mil pessoas das etnias herero e nama pelas forças coloniais alemãs, a Alemanha reconhece que, nos termos atualmente adotados, cometeu genocídio1 na Namíbia e promete reparação financeira da ordem de 1,1 bilhão de euros, ao longo de 30 anos. Entre 1904 e 1908, durante o período colonial alemão no Sudoeste Africano (atual Namíbia) - no contexto de tensões decorrentes de desapropriações de terras dos nativos e ingerência da administração colonial na política local - eclodiu a Guerra da Namíbia. Os nativos foram duramente reprimidos pelo Império Alemão, cujas ações, além do extermínio dos combatentes e de prisioneiros de guerra, envolveram táticas como perseguição de civis - em sua maioria idosos, mulheres e crianças -, estupro de jovens e mulheres, assassinatos em massa, enforcamentos, envenenamento de poços de água, condução a regiões desérticas para ocasionar a morte por sede e fome, trabalhos forçados até a morte por exaustão, além de castigos físicos cotidianos e submissão a experimentos pseudocientíficos2. Ao fim do conflito - que resultou no que muitas/os historiadoras/es consideram como o primeiro genocídio do século XXI - estima-se que a mortalidade entre os membros da etnia herero tenha alcançado 20% do total de sua população e, entre os nama, 50%. Como se não bastasse, suas terras, correspondentes a cerca de 70% do território da então África do Sudoeste, foram confiscadas pelas tropas imperiais e vendidas aos colonos alemães. Hoje, mais de um século depois do episódio, os poucos herero e nama que permanecem na Namíbia - já que as ordens de execução determinadas pelas forças alemãs resultaram na diáspora forçada de muitos nativos - continuam social e economicamente marginalizados e suas terras continuam sob a posse dos descendentes dos colonos alemães. Após décadas de demandas inexitosas de representantes desses povos, o governo alemão, reforçando a inexistência de direito legal à compensação, reconheceu a prática do genocídio e assumiu a obrigação política e moral de reparação. Apesar da aceitação por parte do governo da Namíbia, descendentes das vítimas não concordaram com a indenização oferecida pela Alemanha, sob o argumento de que não participaram das negociações e continuam sem direito à terra, que permanece nas mãos da minoria alemã branca em detrimento da maioria negra namibiana, que vive em condições de extrema pobreza em assentamentos informais. Embora tenham celebrado o pedido de perdão e a admissão da culpa pelas atrocidades cometidas, os líderes das etnias envolvidas consideraram a proposta de reparação pelo Genocídio Esquecido como uma afronta à sua existência. Dias depois da divulgação da proposta de reparação alemã pelo genocídio na Namíbia, o presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, homenageou os sobreviventes do massacre racial de Tulsa, no Estado de Oklahoma, episódio ocorrido em 1921, no qual cerca de 300 pessoas negras foram assassinadas por uma multidão de brancos motivados pelo ódio racial3. Na ocasião, o bairro de Greenwood - conhecido como a Black Wall Street dos EUA - abrigava uma comunidade negra próspera, proprietária de diversos estabelecimentos comerciais. No massacre, centenas de afro-americanos foram mortos, e tiveram suas casas e comércios destruídos, sem que a polícia tenha tentado impedir, havendo até mesmo relatos de que as forças policiais armaram manifestantes brancos.   Após um século do maior ataque racista do país, alguns sobreviventes, com idades entre 101 e 107 anos, ainda buscam reparação no Congresso dos EUA, pleiteando o pagamento de indenizações às vítimas e seus descendentes, que seguem socialmente marginalizados. O presidente Joe Biden, por enquanto, limitou-se a homenagear os sobreviventes no centenário do massacre, sem mencionar a possibilidade de pedido formal de desculpas ou qualquer reparação de ordem financeira. Quer no genocídio da Namíbia, quer no massacre racial de Tulsa, o racismo antinegro é questão central, herança maldita do colonialismo europeu, ainda incrustrada nas sociedades do século XXI. Esses recentes (ainda que tardios) reconhecimentos trazem à tona uma questão tão controversa quanto relevante: a responsabilidade dos Estados pelas atrocidades cometidas nos processos de colonização e escravização e pelos seus efeitos perpetuados e reproduzidos na atualidade. Colonialismo e escravismo são faces da mesma moeda. Sistemas que buscaram fundamentos para a dominação de corpos não brancos, primeiramente em argumentos de caráter religioso para, então, recorrerem a justificativas de ordem científica. O colonialismo da modernidade fundou um padrão de poder alicerçado na divisão racial dos povos em europeus (brancos, superiores, racionais, civilizados) e não europeus (não brancos, inferiores, sub-humanos, selvagens). Desse modo, ampliação do sistema colonial europeu, intensificada a partir do século XVI, teve como elemento central a supremacia branca sobre as demais raças, que, incapazes de se autogovernarem, precisavam ser dominadas e, então, civilizadas. Esses processos de subalternização do diferente recorrem a fundamentos racionais para justificar a indiferença moral diante do sofrimento e da aniquilação do outro, o que pressupunha a sua coisificação ou animalização. Mas a verdade é que a crueldade e o sadismo das ações coloniais selvagerizam o próprio colonizador. Dito de outro modo, "a colonização funciona para descivilizar o colonizador; para brutalizá-lo no sentindo apropriado da palavra, degradá-lo para instintos soterrados, cobiça, violência, ódio racial, relativismo moral (...)"4. Assim, a conquista colonial tende a modificar aquele que a empreende que, "ao acostumar-se a ver o outro como animal, ao treinar-se para tratá-lo como um animal, tende objetivamente, para tirar o peso da consciência, a se transformar, ele próprio em animal."5 Na lógica do sistema colonialista escravocrata, germe do sistema racial capitalista atual, colonialismo e escravidão eram instrumentos imprescindíveis à evolução civilizatória dos povos não europeus, assumida como fardo do homem branco6 e em nome do qual assassinar, torturar, estuprar, expropriar eram meios que justificavam os fins. Como bem nos recorda Achille Mbembe, "qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica"7. Na lógica moderna, a liberdade, tão aclamada pelos iluministas como valor universal, convivia com sua exata antítese: a escravidão. As vantagens econômicas tornavam a escravização de não europeus - em especial, de negros sequestrados da África e traficados para as Américas - justificável política, jurídica e moralmente. Extinto o tráfico negreiro para as Américas, a Europa encontra na África a fonte de manutenção de suas riquezas e expansão de seu território, sob os mesmos velhos/novos argumentos do racismo científico e da missão civilizatória. Levando em conta essa racionalização do colonialismo e da escravidão, em seu Discours sur le colonialisme, Aimé Césaire afirma que a Europa - "responsável pela maior pilha de cadáveres da história"8 e cuja hipocrisia coletiva pretende uma inconciliável associação entre colonização e civilização - "é moralmente, espiritualmente indefensável"9. Voltando os olhos para a atualidade, o certo é que, em todas as sociedades marcadas por esse passado (ainda presente) colonial, as pessoas negras ainda amargam os efeitos deletérios da coisificação de seus corpos, do extermínio de suas culturas, do apagamento de suas origens, da perseguição de suas religiões, da supressão de suas oportunidades, da usurpação e desvalorização de suas potencialidades. Nesse contexto, o reconhecimento pelos Estados de ações genocidas e massacres praticados ao longo da história são um passo importante, de relevante simbologia. Mas meros pedidos de desculpas não mudam o curso da história. Para além disso, é preciso assumir posturas concretas voltadas para a transformação da realidade de subalternização dos povos afetados. Sob essa ótica, é preciso questionar se o pagamento de indenização por parte dos Estados, outrora genocidas e escravocratas, é medida adequada e eficiente para alcançar efetiva reparação e inclusão social, depois de séculos de massacre, genocídio, opressão, escravização e uso de corpos negros em experimentos científicos. Embora não tenha sido elaborada considerando especificamente demandas históricas de reparação, temos como importante parâmetro para essas reflexões a resolução 60/14710 - aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2005 - que é resultado de estudos conduzidos pela Subcomissão para Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias da ONU. Segundo o documento, a reparação às vítimas de violações massivas de direitos humanos pode ser concretizada por meio de restituição, compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição. A restituição busca o retorno das vítimas à situação original em que se encontravam antes das violações de direitos a que foram submetidas e envolve medidas como restauração de liberdade, gozo de direitos humanos, identidade, vida familiar e cidadania, retorno ao local de residência, restauração de emprego e devolução de propriedade. A compensação, por sua vez, implica o pagamento de indenização - apropriada e proporcional à gravidade da violação e às circunstâncias de cada caso - pelos danos economicamente mensuráveis causados às vítimas, incluindo: a) danos de ordem física ou mental; b) perda de oportunidades, incluindo emprego, educação e benefícios sociais; c) danos materiais e perda de rendimentos, inclusive de rendimentos potenciais; d) dano moral; e) custos necessários para assistência jurídica ou especializada, medicamentos e serviços médicos, bem como serviços psicológicos e sociais. Já a reabilitação deve incluir cuidados médicos e psicológicos e, ainda, serviços jurídicos e sociais. As medidas de satisfação - que conforme o caso concreto, devem associar algumas ou todas as ações pertinentes - incluem: a) medidas eficazes para cessação das contínuas violações; b) apuração dos fatos e divulgação plena e pública da verdade; c) recuperação e identificação dos restos mortais; e) declaração oficial ou decisão judicial que restaure a dignidade das vítimas e das pessoas a ela ligadas; f) desculpas públicas, incluindo o reconhecimento dos fatos e a aceitação de responsabilidade. Por fim, as chamadas garantias de não repetição, que também são dotadas de caráter preventivo, envolvem: a) garantia do controle civil efetivo das forças militares e de segurança; b) garantia de que os procedimentos civis e militares respeitem as normas internacionais padrão de devido processo, justiça e imparcialidade; c) fortalecimento da independência do Judiciário; d) proteção de pessoas nas profissões jurídicas, médicas e de saúde, bem como mídia e outras profissões relacionadas, além de defensores de direitos humanos; e) promoção, de forma contínua e prioritária, de educação em direitos humanos para todos os setores da sociedade e treinamento para membros do sistema de justiça, bem como forças militares e de segurança etc.  Para além dos casos da Namíbia e de Tulsa, mencionados no início deste artigo, esse conjunto de medidas de reparação oferece também um horizonte para a adoção de políticas públicas reparatórias na realidade brasileira, levando em consideração o seu passado escravista e o seu presente estruturalmente racista. Último país do Ocidente a declarar abolida a escravidão, o Brasil adotou, no pós-abolição, uma política de embranquecimento fundada no racismo científico eugenista, que preconizava até mesmo o desaparecimento de negros e mestiços11. A essa política, associou-se a subvenção da vinda de imigrantes europeus, que, ao contrário dos recém libertos, tiveram acesso facilitado a postos de trabalho e à terra. Some-se a isso, ainda, a inegável criminalização do povo negro pela ordem jurídica, cujo sistema penal foi construído para o controle dos corpos negros indesejáveis. Atualmente, pesquisas revelam que, no Brasil, pessoas negras são as maiores vítimas de homicídios, de violência policial letal e de encarceramento em massa. A partir de uma análise interseccional, constata-se que mulheres negras são alvo com mais intensidade de praticamente todos os tipos de violência contra a mulher. No campo do acesso ao trabalho, à educação, à moradia e a espaços de poder e decisão, o fator raça segue sendo obstáculo para o gozo de direitos fundamentais por pessoas negras. Nessa perspectiva, sem adentrar no debate sobre um genocídio negro em curso (e em continuidade histórica) no Brasil e, ainda, sem explorar a polêmica da instituição de indenizações reparatórias, é preciso dizer que nossas políticas públicas de promoção da igualdade racial estão longe de equacionar a conta da dívida histórica. Sob essa ótica, cota acaba sendo esmola, ainda mais quando aplicada apenas ao acesso a universidades e a concursos públicos. Com efeito, tomando como inspiração o rol de medidas de reparação elencadas na mencionada resolução da ONU, e apenas a título exemplificativo, é possível vislumbrar uma gama de políticas antirracistas e de promoção da igualdade racial que podem ser implementadas no Brasil para reparação da dívida histórica da escravidão - considerada pelos movimentos negros como o maior crime contra a humanidade já cometido. A título de restituição, embora não seja possível o retorno das pessoas negras à situação original anterior à escravidão, pode-se implementar medidas voltadas para a garantia do gozo de direitos humanos, a restauração da liberdade - por meio de políticas de desencarceramento - e a devolução da propriedade - a partir de uma concreta e efetiva reforma agrária, além da titulação de territórios quilombolas -, como forma de reparação pela histórica perda da propriedade de comunidades negras a partir da Lei de Terras, de 1850. No âmbito das medidas de satisfação, uma série de ações seriam cabíveis, desde desculpas públicas, reconhecimento dos fatos (pretéritos e atuais) e aceitação de responsabilidade; passando pela garantia de apuração dos fatos (pretéritos e atuais) e divulgação plena e pública da verdade (o que vem sendo feito em parte pelas Comissões da Verdade sobre a Escravidão); até a adoção de medidas eficazes para cessação das contínuas violações, aqui especialmente aquelas voltadas para a prevenção, o controle e a punição dos atos de extermínio da juventude negra. Também as garantias de não repetição e medidas de reabilitação são, todas elas, de fundamental importância para a efetiva reparação dos danos causados pelo racismo e pela desigualdade racial, ressaltando-se aqui a necessidade de reconhecimento também dos danos psicológicos provocados pelo racismo e, consequentemente, de oferecimento dos serviços médicos, psicológicos e sociais pertinentes.  Em síntese, há uma série de medidas que podem ser implementadas em busca de efetiva reparação e igualdade racial. No entanto, tem prevalecido o argumento de não aplicação das normas internacionais pertinentes ao tema, haja vista que ainda não eram vigentes à época das práticas genocidas e escravistas em tela. Assim, os Estados, quando muito, têm assumido apenas uma espécie de responsabilidade moral e política, mas não jurídica. Desse modo, o negacionismo cínico ainda impera entre os Estados que enriqueceram às custas do sangue e suor negros e insistem em negociar vidas negras que, para eles, não importam e nunca importaram. Aqui ou acolá, corpos negros continuam pagando a conta desse contrato racial unilateralmente assinado12, enquanto as elites brancas seguem mamando nas fartas tetas do capitalismo racista, cujo leite derramado com gosto de fel - do vil metal e do sangue negro - adoça apenas a boca da branquitude. Ninguém irá nos devolver nossa história roubada; não há dinheiro que pague cada vida negra (ainda e todos os dias) ceifada! O nosso "consolo é que as colonizações passam, que as nações dormem apenas por um tempo e que os povos permanecem"13. Nós somos um povo enraizado na Terra-Mãe! Por isso, mesmo diante de tanta injustiça, de tamanho vilipêndio às/aos filhas/os do ventre do mundo, é preciso esperançar. É preciso acreditar que "está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade. O tempo em que seremos irmãos"14. E quando assim nos animarmos, enquanto povo, o nosso brado retumbante ecoará com tanto vigor que os pilares (racistas) do mundo serão abalados e a conta será, de um modo ou de outro, quitada! __________ 1 A Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio da Organização das Nações Unidas afirma que se entende por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. 2 Anna Luiza Odebrecth Dias, Remediando o passado: um estudo sobre a demanda dos povos Herero e Nama por reparações pelos atos da Alemanha no Sudoeste Africano ao longo do conflito colonial de 1904 a 1908, p. 7.  3 Sobre o massacre de Tulsa. Acesso em 3 de junho de 2021. 4 Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo, p. 17. 5 Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo, p. 23. 6 Para recordar o poema The White man's burden (O fardo do homem branco), publicado em 1899, pelo poeta britânico Rudyard Kipling e que ficou conhecido como uma ode ao imperialismo. O poema aborda o fardo do homem branco como a árdua civilizatória dos selvagens e tristes povos negros, "metade demônio, metade criança". No poema, cabia ao generoso homem branco a tarefa de enfrentar as "guerras selvagens pela paz, de encher a boca dos famintos, de cessar as doenças". 7 Achille Mbembe, Necropolítica, p. 27. 8 Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo, p. 26. 9 Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo, p. 9. 10 Disponível aqui. Acesso em 3 de junho de 2021. 11 Conforme já expusemos em outra oportunidade: "o projeto eugênico de aperfeiçoamento racial da população[11] contou com a adesão dos cientistas brasileiros, fortemente influenciados pelas teorias raciais da Europa e dos Estados Unidos. No I Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres, entre os dias 26 e 29 de julho de 1911, João Baptista de Lacerda, médico e então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, representou o País", apresentando uma tese segundo a qual "a miscigenação possibilitaria o branqueamento da população com o desaparecimento dos negros e mestiços, o que representava uma solução para a sociedade brasileira." Ver Lívia Sant'Anna Vaz, Palmares para além do novembro negro. Disponível aqui. Acesso em 3 de junho de 2021. 12 Para Charles Mills, The racial contract, a concepção de que um contrato social foi firmado por seres humanos livres e iguais objetivando o reconhecimento e a proteção de seus direitos de liberdade pelo Estado desconsidera a aniquilação, escravização e subjugação das raças não hegemônicas. Trata-se, portanto, não de um acordo de vontades entre os seres humanos, mas entre os homens brancos, e, nesse sentido, não de um contrato social, mas de um contrato racial. Vivemos, então, sob a égide de um sistema político não nomeado que estrutura uma sociedade racialmente hierarquizada; uma espécie de Estado Racial legitimado por um sistema jurídico racial. 13 Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo, p. 26. 14 Trecho dos panfletos afixados em locais estratégicos da Cidade da Bahia (Salvador) como preparação para o levante negro que ficou conhecido como Revolta dos Búzios, de 1789, e que traziam os seguintes dizeres: "Animai-vos, ó povo bahiense. Está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade. O tempo em que todos seremos irmãos. O tempo em que todos seremos iguais".
O contexto da pandemia declarada pela OMS em março de 2020, trouxe para a cotidiano mundial emoções, tensões e conflitos muito similares que se vive em um contexto de guerra. Em verdade, todos estamos travando uma verdadeira guerra para a erradicação do vírus SARS-COV-2 e suas mazelas decorrentes. Em tempos como estes, as balizas dos Direitos Humanos devem ser relembradas, de modo que valores universais como a dignidade da pessoa humana, direito a saúde, direito a vida e liberdade devem nortear as decisões públicas, bem como a adoção de políticas públicas, as quais devem ser sempre inclusivas e ter como foco a preservação da vida e proteção das camadas sociais vulnerabilizadas. Urge, nesses tempos, a priorização de verbas públicas para o fortalecimento no nosso Sistema Público De Saúde - SUS, com o fortalecimento de hospitais, fornecimento de medicamentos, ampliação de leitos, campanhas de fomento a prevenção de contágio do vírus e, claro, a vacina! A tão sonhada vacina! Mas como distribuir a vacina de maneira eficiente e igualitária a uma população tão multifacetada como é a brasileira, sem incorrer em violações de direitos? Uma bússola de caráter mundial, trazida pela OMS, é o modelo de valores do SAGE1 - Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização (em inglês, Strategic Advisor Group of Experts on Immunization, ou SAGE), o qual fornece orientações globais para alocação de vacinas contra a Covid-19 entre os países, com orientações para o estabelecimento de diretrizes para a  priorização de grupos para vacinação dentro dos países em caso de oferta limitada, como é a realidade que enfrentam  a maioria dos países do mundo, inclusive o Brasil. O SAGE (Strategic Advisory Group of Experts-OMS)  informa que as vacinas contra a Covid-19 devem ser um bem público global, de modo que  o objetivo geral é de que as vacinas contra a Covid-19 possam contribuir significativamente para a proteção equitativa e promoção do bem-estar humano entre todas as pessoas do mundo. Este modelo, o qual possui uma estrutura principiológica voltada para os direitos humanos e proteção dos vulneráveis, tem por finalidade ser fonte de consulta para os elaboradores de políticas públicas e assessores especializados nos âmbitos global, regional e nacional nas decisões sobre alocação e priorização de vacinas contra a Covid-19. O documento também propõe ser útil para grupos comunitários e de defesa de direitos, público em geral, profissionais de saúde e outras organizações da sociedade civil, que contribuam com decisões de como a oferta limitada de vacinas contra a Covid-19 deve ser empregada para maximização do respectivo impacto. O Nosso Plano Nacional de Operacionalização da vacinação contra a Covid-19, possui como um dos fundamentos esse modelo de valores.2 Entre os princípios elencados neste documento estão: o bem-estar humano, respeito igualitário, equidade global, equidade nacional e reciprocidade. Por bem estar humano, entende-se que "(...)os países devem, na administração do estoque de vacinas, proteger e promover o bem-estar humano, incluindo saúde, segurança social e econômica, direitos humanos e liberdades civis, além do desenvolvimento infantil". Já o princípio do respeito igualitário informa que se deve tratar os interesses de todos os indivíduos e grupos com a mesma consideração, à medida que decisões de alocação e priorização sejam tomadas e implementadas com o oferecimento de uma oportunidade real de vacinação a todos os indivíduos e grupos que se qualificam segundo os critérios de prioridade. Por equidade global, entende-se que se deve garantir a equidade global em relação ao acesso às vacinas entre os países, sobretudo os países de menor renda econômica e de baixo desenvolvimento. Importante, ainda, asseverar a existência do princípio da equidade nacional que deve assegurar que a priorização das vacinas nos países leve em conta as vulnerabilidades, riscos e necessidades dos grupos que, devido a fatores sociais, geográficos ou biomédicos de base, possam enfrentar prejuízos maiores da pandemia de Covid-19. Ainda nos termos deste documento, por reciprocidade, entende-se que o gestor da política pública quando do estabelecimento dos grupos prioritários, deve a honrar obrigações de reciprocidade com indivíduos e grupos dentro dos países para os quais riscos e prejuízos adicionais tenham sido criados pela resposta à Covid, em benefício da sociedade, como Profissionais de Saúde, Policiais, Professores, Caminhoneiros, etc. Legitimidade, por sua vez, implica que as decisões tomadas por estes gestores para a priorização de vacinas devem usar métodos transparentes, baseados em valores compartilhados por evidências científicas disponíveis, e na representação e contribuição adequadas das partes afetadas, o que significa que deve haver o diálogo com a Sociedade Civil sobre este tema, o que poderia ser feito através de instrumentos democráticos, a exemplo de uma audiência, ou consulta pública. Não temos notícias deste tipo de medida, de maneira previa a elaboração do PNO, aqui no Brasil. A intenção deste princípio da legitimidade é adotar estratégias  que melhorem a percepção e a compreensão do público sobre o desenvolvimento de vacinas e os processos de priorização. Exemplos dessas estratégias incluem: comunicações cultural e linguisticamente acessíveis, disponibilizadas gratuitamente sobre a vacinação contra a Covid-19;  recrutamento de líderes comunitários para melhorar a conscientização e a compreensão dessas comunicações; e oitiva das  partes interessadas e afetadas na tomada de decisões. Por grupos prioritários, ainda segundo o modelo de valores do SAGE, entende-se por aqueles grupos sociodemográficos com risco significativamente maior de doença grave ou morte, devendo, no entendo, ser efetuado o recorte relacionado a étnia, raça,  gênero, religião e minorias sexuais desfavorecidas ou perseguidas; as pessoas com deficiências; pessoas que vivem em extrema pobreza, os sem-teto e aqueles que vivem em assentamentos informais ou favelas urbanas; trabalhadores migrantes de baixa renda; refugiados, pessoas deslocadas internamente, requerentes de asilo, populações em ambientes de conflito ou afetadas por emergências humanitárias, migrantes vulneráveis em situações irregulares; populações nômades; e grupos populacionais de difícil acesso, como aqueles em áreas rurais e remotas. O referido documento informa, ainda, que outros grupos, no entanto, estão enfrentando prejuízos desproporcionalmente maiores de saúde e em outras áreas durante a pandemia, devido a fatores sociais que talvez sejam injustos. Às vezes, mas nem sempre, o risco elevado nesses grupos é mediado por uma alta incidência de comorbidades, que guardam relação causal com as condições sociais em que vivem, o que acaba agravando ainda mais essa carga desproporcional. Embora haja evidências de que o risco de doença grave e morte é maior em homens do que em mulheres, particularmente em faixas etárias mais avançadas, essa diferença de risco diminui quando as comorbidades e outros fatores são levados em consideração. Em muitos contextos, as mulheres têm a responsabilidade direta de cuidar dos idosos e de enfermos na família,  além de serem maioria entre os trabalhadores de saúde que estão em linha de frente. Mulheres ainda são desfavorecidas em termos de acesso a cuidados de saúde pública, e participação na tomada de decisão devido a características estruturais. Porém, o princípio de respeito à igualdade do Modelo de Valores enfatiza a importância de garantir que o programa de imunização tenha o mesmo foco em alcançar homens e mulheres, de maneira igualitária. Neste contexto, ao contrário do que muitos pensam, em uma primeira análise apressada, não é apenas o risco saúde relacionado a comorbidades que serve de critério para estabelecer quem deve ser grupo prioritário. Fatores sociais e geográficos também devem ser levados em consideração. No Brasil, povos tradicionais indígenas, comunidades quilombolas e populações ribeirinhas são considerados grupos prioritários em razão das peculiaridades sócio/geográficas  que envolvem esse público que é  tradicionalmente alçado a condições de vulnerabilidade social  e violação de direitos humanos, levando-se em conta, ainda, a natureza do convívio social entre os habitantes de tais comunidades, o que seriam um fator que favoreceria a propagação do vírus. Alguns estudos publicados3 no Brasil, dão conta de que determinadas categorias profissionais de trabalhadores  pertencentes as camadas sociais mais vulnerabilizadas, possuem uma propensão maior ao contagio do vírus, como zeladores,  empregadas domésticas, frentistas, vigilantes, porteiros, etc. Evidentemte, o recorte de raça e classe na mortalidade pelo Covid-19 é uma reflexão necessária. Porém, algumas profissioes mais expostas  não constam no PNO como grupo prioritário, como é o caso dos caixas de supermercado. Outra contradição do PNI  foi a ausência de proteção da maternidade,  e portanto, do futuro, eis que mães que amamentam, embora sejam grupo prioritário em outras políticas públicas, ficaram de fora da prioridade.  Nos país que lidera os índices de mortalidade materna por conta do Covid-19, as grávidas e puérperas, embora tenham sido tardiamente alocadas como grupo prioritário, apenas foram contempladas por um breve tempo, uma vez que houve suspensão da vacinação para esse público4, remanescendo apenas a política de imunização para aquelas que tiverem comorbidades. Tais  comorbidades ainda obedecem a um rol muito limitado, considerando as patologias que podem colaborar para o agravamento da doença em mulheres grávidas. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi criado em 18 de setembro de 1973, é responsável pela política nacional de imunizações sendo um dos maiores programas de vacinação do mundo, sendo reconhecido nacional e internacionalmente. O PNI atende a toda a população brasileira, atualmente estimada em 211,8 milhões de pessoas. O objetivo do nosso Plano Nacional de Vacinação deve ser redução da morbimortalidade causada pela Covid-19, bem como a proteção da força de trabalho para manutenção do funcionamento dos serviços de saúde e dos serviços essenciais. Nesse contexto, o objetivo de reduzir a morbidade e mortalidade pela Covid-19, estabeleceu-se que a definição de grupos prioritários deveria ocorrer baseada em evidências científicas imunológicas e epidemiológicas, respeitando pré-requisitos bioéticos para a vacinação, tendo em vista que inicialmente as doses da vacina contra Covid-19 seriam disponibilizadas em quantitativo limitado. Porém, o texto do PNI não menciona as questões socioeconômicas  como um fator a ser levado em consideração para o estabelecimento dos grupos prioritários. Evidentemente, os gestores públicos tem em mãos escolhas difíceis, ao definir os grupos prioritários, o que, por vezes, implica na exclusão de determinados grupos importantes para a política pública de acesso a saúde. A Saúde, consoante os termos de nossa Constituição Federal, é regida de maneira tripartite, com a atribuição solidária aos três entes federais de prover e administrar a saúde dos brasileiros. SUS tem como princípio o acesso integral, universal e igualitário ao sistema de saúde. Portanto, a gestão do SUS é partilhada igualmente entre os três entes federados, não havendo o que se falar em hierarquia entre estes. O PNI estabelece uma diretriz nacional, porem as comissões bipartites estaduais (CIB), compostas Pelas Secretarias estadual e municipais de saúde, podem e devem  adequar a estratégia de vacinação, a depender das peculiaridades e necessidades locais. O que é extremamente salutar, considerando a diversidade que envolve o nosso país de características continentais. Os Tribunais, inclusive,  já  foram acionados para dar soluções aos conflitos de aplicação das políticas públicas de imunização. No âmbito da ADPF 754 decidiu-se que a relativização do Plano Nacional de Imunização (PNI) somente seria possível mediante demonstração de critérios técnico-científicos, justificativa pautada em peculiaridades locais e estimativa dos cidadãos contemplados com o ajuste.  Outra  ADPF  foi ajuizada pelo PSOL em parceria com o Instituto ANIS para que as Gravidas e Puérperas sejam contempladas novamente na estratégia de imunização. Em relação a inversão das ordens de prioridade nas fases do PNO, o  STF5 recentemente se pronunciou, inclusive, sobre a margem de autonomia que os Estados possuem para adaptar a estratégia local, desde que fundamentados em evidências científicas, o que, evidentemente é o posicionamento mais equânime, pois exigir a rígida a observação do PNI em todas as localidades, sem qualquer possibilidade de adaptação corre-se o risco de retirar dos Estados e Municípios a oportunidade de corrigir distorções, omissões e injustiças. O Poder Legislativo, igualmente, anda mobilizado para proceder a alterações no PNI. Uma Audiência Pública foi realizada no dia 21 de maio deste ano pelo Senado Federal para tratar da questão da inclusão de grávidas, puérperas e lactantes no PNI. Concluímos, portanto, que o Programa Nacional de Operacionalização da Imunização contra a Covid-19 incorre em algumas omissões no que diz respeito a recortes intersecionais que deveriam ser feitos para a categorização dos grupos prioritários, em um país de extrema desigualdade social e multiplicidade de categorias que estão envolvidas em risco tanto de saúde, quanto social, por conta da exposição ao vírus. A correção destas distorções precisam ser observadas em estratégias de acesso a saúde, uma vez que devemos cumprir o mandamento constitucional de acesso universal a este direito. Neste ponto, as esferas Estaduais e Municipais precisam gozar da autonomia necessária para estabelecer um equilíbrio entre as políticas públicas de acesso a saúde no âmbito federal, estadual e municipal. __________ 1 Disponível aqui. 2 Pni. 3 Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) sistematizados pela Lagom Data. 4 NOTA TÉCNICA Nº 651/2021-CGPNI/DEIDT/SVS/MS.   5 Reclamação STF (RCL) 47398.
"Meu filho, volte pra casa Cabô Ô Neide, cadê menino? [...] Quem vai pagar a conta? Quem vai contar os corpos? Quem vai catar os cacos dos corações? Quem vai apagar as recordações? Quem vai secar cada gota De suor e sangue Cada gota de suor e sangue Cabô" Luedji Luna1 Rememoro a cena final do filme Ó Paí Ó2, em que duas crianças, Cosme e Damião, filhos de dona Joana, mulher negra, cristã, dona do cortiço onde vive a maioria dos personagens da trama, desaparecem de casa em pleno festejo de carnaval. A mãe, que já não se contenta em somente clamar a Deus, implora à Mãe Raimunda, sua vizinha candomblecista, que faça um jogo de búzios para ela. Incrédula, a vizinha atende ao pedido e, tomada pelo desespero do que estava sendo visto nos búzios, assusta dona Joana, que diz não querer ir em frente na missão da descoberta do paradeiro das crianças pelos búzios. Sr. Gerônimo, o comerciante da redondeza que contrata os serviços de segurança particular de um policial militar, sabe o que aconteceu aos meninos. Eles foram mortos pelo seu funcionário que alegou ter "limpado a área". Logo, Iolanda, a travesti, invade a casa da Ialorixá para dar a fatídica notícia sobre a morte a dona Joana... "Seus filhos". Nesse momento, dona Joana segura o vestido branco longo e corre, aos prantos. Ao fundo, ouve-se o lamento entoado por Ninha3: "Jesus, desde menino, é palestino, é palestino, ralé é.4" A cena é forte, emocionante e corriqueira. As mães pretas estão em posições marcadas por violências e violações. Elas sofrem a dor da perda dos filhos, seja enterrando-os ou procurando-os. Percorrendo a música cantada durante a cena final do filme, elevo os meus pensamentos à ralé. Segundo o dicionário, ralé é a "denominação ao conjunto de pessoas que pertencem àquela que é vista como a classe social mais baixa. Animal que é habitualmente presa de uma ave de rapina".5 Não é necessário muito esforço para visualizarmos, no contexto da sociedade brasileira, quais corpos estão situados na ralé e quais autoridades são as aves de rapina. 27 de dezembro de 2020, tarde de inverno no Rio de Janeiro. Os tempos estão incertos, a pandemia da Covid-19 trouxe uma nova variante e os corpos seguem empilhados pelos hospitais e cemitérios. Nas comunidades periféricas, mesmo antes da confirmação do primeiro caso, a população já estava exposta às variantes do vírus da fome, do desemprego, dos desaparecimentos forçados e da morte. Naquela tarde fria de domingo, as câmeras de segurança filmaram 3 crianças negras, andando sem camisa, conversando inocentemente pelas ruas da Comunidade do Belford Roxo. Essas foram as últimas imagens de Fernando Henrique Soares, 11 anos, Lucas Matheus Manhães Silva, 8 anos e Alexandre da Silva, 10 anos. Desde então, eles estão desaparecidos e o que persiste até o momento é o silêncio ensurdecedor das autoridades competentes. "Meninos de Belford Roxo", essa é a expressão que os apresenta em todas as reportagens sobre o caso. A dimensão do sistema de justiça e os instrumentos midiáticos, corroboram a tese sobre os corpos que merecem atenção e os que devem ter perpetrada a invisibilidade. Neste caso, e em tantos outros em que as vítimas são negras, sejam crianças ou adultos, impera forte criminalização e estigmatização. A forma pela qual Alexandre, Lucas e Fernando foram apresentados pela mídia, a partir das notícias que conformaram o caso na opinião pública, redundou no confisco da humanidade e cidadania dessas crianças. Isto porque, o destaque é para "os meninos de Belford Roxo", os nomes aparecem de forma tímida, escrito em letras menores. Bebendo da fonte de Ana Flauzina, destaco que "o racismo tem a desumanização como uma de suas marcas mais brutais. Por isso, sofrimento em carne negra não registra."6 De acordo com a mãe de Fernando Henrique, assim que perceberam o desaparecimento das crianças, compareceram à Delegacia com o intuito de registrar a ocorrência:  "Eu vim na polícia. Eu e as outras mães. [...] Eles falaram para gente ir para casa, de repente eles estavam na casa de coleguinha. Foi isso que eles falaram, que a gente podia ir para casa e ficar tranquila, que as crianças iam aparecer".7 Informação que vai de encontro ao que reza a lei 11.259/2005, que acrescentou o § 2º ao art. 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Além de determinar investigação imediata em caso de desaparecimento de crianças e adolescentes, após notificação aos órgãos competentes, obriga a comunicação do fato aos portos, aeroportos, Polícia Rodoviária e companhias de transporte interestaduais e internacionais, fornecendo-lhes todos os dados necessários à identificação do desaparecido8. Mais de 130 dias em que as mães e familiares não têm notícias, não sabem se eles comem, dormem, sentem frio ou ainda respiram. Cabe pedir música no Fantástico? Se a resposta for positiva, pedirei a Elza Soares para dizer qual a carne mais barata do mercado. Muito provavelmente, Fernando, Lucas e Alexandre serão lembrados. E, por falar em Fantástico, eles mereceram apenas 0:43 segundos de atenção, em reportagem exibida no dia 3 de janeiro de 2021, 7 dias após o desaparecimento.9 Essa foi a chamada: "Parentes de meninos desaparecidos em Belford Roxo (RJ) fazem protesto neste domingo". Aqui, mais uma vez percebemos que a desumanização chega aos parentes, eles não têm identidade. O caso segue investigado pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, que, mesmo na posse das câmeras de segurança que filmaram as crianças, "não encontraram no vídeo o momento que os meninos são filmados." Mais de 2 meses depois, o Ministério Público solicitou o mesmo material e encontrou as imagens de Fernando, Lucas e Alexandre.10 Ainda assim, não ouve progresso nas investigações. Dor, angústia, incerteza e expectativa, sentimentos evocados por familiares de pessoas desaparecidas e que trazem à tona dados extremamente perturbadores denunciando o silêncio das autoridades sobre o assunto. De acordo com o Anuário de Segurança Pública, somente em 2019, 79.275 pessoas desapareceram no Brasil, aproximadamente 217 pessoas por dia.11 Os números são avassaladores. As famílias ficam aprisionadas à imagem da indeterminação - se estão vivos, querem o abraço do reencontro, se morreram, querem ofertar a dignidade do sepultamento, viverem o luto real. De acordo com dados estatísticos do Programa SOS Crianças Desaparecidas, da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), órgão vinculado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, 72,66 % das crianças desaparecidas no Estado do Rio de Janeiro são pretos e pardos.12 Informação que contém muitos significados, o racismo também performa os desaparecimentos e a ausência de políticas efetivas por parte do aparato estatal. É por isso que Vilma Piedade diz que o termo sororidade não contempla as dores das mulheres negras, em lugar disto nós enfrentamos processos de dororidade. Para a autora, "assim como o barulho contém o silêncio, Dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo Racismo. E essa Dor é Preta".13 Portanto, como forma de afirmar nossa identidade sempre assaltada, me valho de Lélia González para responder à pergunta que dá título a esse texto. Eu ouso dizer o nome deles, porque "negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido. ao gosto deles". __________ 1 LUNA, Luedji. Cabô. Álbum: Um corpo no mundo. Gravadora Yb Music. Faixa 8. 2 Filme brasileiro, lançado no ano de 2007, baseado na peça de teatro de mesmo nome, dirigida por Márcio Meirelles e estrelado pelos atores e atrizes do Bando de Teatro Olodum. 3 Ninha é cantor e compositor, conhecido como O Gogó de Ouro da música baiana. 4 Canção "Jesus é palestino", composição de Carlinhos Brown, Gerônimo Santana e Alaim Tavares, interpretada por Ninha, ex. cantor da banda Timbalada. 5 Disponível aqui. Acesso em 03 mai. 2021. 6 FLAUZINA, Ana. A medida da dor: politizando o sofrimento negro. In: Encrespando - Anais do I Seminário Internacional: Refletindo a Década Internacional dos Afrodescendentes (ONU, 2015-2024) / FLAUZINA, Ana; PIRES, Tula (org.). - Brasília: Brado Negro, 2016, p. 65 7 Disponível aqui, acesso em 03 mai. de 2021. 8 Lei 11.259/2005. Disponível aqui. Acesso em 03 mai. de 2021. 9 Disponível aqui, acesso em 03 de mai. de 2021. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Estatística do SOS crianças desaparecidas. Disponível aqui, acesso em 05 mai. De 2021   13   PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2018, p. 16.