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Migalhas de Direito Médico e Bioética

Temas do Direito de Saúde e Bioética.

Wendell Lopes Barbosa de Souza, Alexandro de Oliveira, Miguel Kfouri Neto, Fernanda Schaefer e Rafaella Nogaroli
O julgamento do REsp 2.076.865/SP, relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti da 4ª turma do STJ, representa mais um marco na consolidação do entendimento do STJ quanto à obrigatoriedade de cobertura de medicamentos utilizados no tratamento oncológico, mesmo quando ausente o registro sanitário perante a ANVISA. No caso concreto, discutia-se o fornecimento do fármaco Thiotepa, prescrito a uma criança acometida por meduloblastoma agressivo, quadro que inviabilizava a realização de radioterapia e demandava o emprego urgente de alternativas terapêuticas com base científica reconhecida. Embora o medicamento não possuísse registro no Brasil à época dos fatos, havia autorização excepcional de importação expedida pela agência reguladora, situação que modificou por completo o enquadramento jurídico pretendido pela operadora de saúde. A cooperativa sustentava, em síntese, que a ausência de registro sanitário impediria o custeio, invocando o Tema 990 do STJ, segundo o qual as operadoras não estariam obrigadas a fornecer medicamentos não registrados. Entretanto, o Tribunal Superior reafirmou que o precedente não se aplica indistintamente a todas as hipóteses, devendo ser realizada a distinção, ou distinguishing, quando houver autorização excepcional de importação, pois tal autorização pressupõe análise técnica da ANVISA sobre segurança e eficácia do produto, além de afastar qualquer ilicitude sanitária relativa à importação ou uso hospitalar. Não por acaso, o acórdão expressamente relembra que "havendo autorização da ANVISA para importação de medicamento, não podem as operadoras de plano de saúde negar a cobertura apenas em virtude da falta de registro", premissa que evidencia a necessidade de superar leituras meramente formais do Tema 990. O acórdão também sublinha que, em matéria de tratamento oncológico, a discussão a respeito da natureza taxativa ou exemplificativa do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS perde relevância jurídica. A própria regulação setorial impõe, de forma autônoma, a cobertura de medicamentos antineoplásicos, razão pela qual a ausência de previsão expressa no rol não autoriza a negativa. Citando precedentes das Turmas de Direito Privado, o Tribunal relembra que "a natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS é desimportante à análise do dever de cobertura de medicamentos para o tratamento de câncer", reforçando que a prescrição médica devidamente fundamentada é o elemento central da obrigação contratual. A decisão preserva, assim, a lógica de proteção integral ao paciente oncológico, reconhecendo que a vulnerabilidade clínica e a urgência intrínseca da terapêutica contra o câncer impõem leitura finalística do contrato de plano de saúde. Cláusulas que excluam medicamentos importados, off label ou não padronizados não podem prevalecer quando se está diante de patologia coberta e tratamento essencial à sobrevivência do beneficiário. A função social do contrato, aliada ao princípio da boa-fé objetiva, exige interpretação que impeça que limitações burocráticas retirem eficácia prática da proteção contratada. É necessário reconhecer ainda que o raciocínio adotado pelo STJ reflete evolução hermenêutica coerente: ao reafirmar que a autorização excepcional de importação configura elemento suficiente para afastar a aplicação do Tema 990, o Tribunal oferece racionalidade sistêmica à jurisprudência e evita contradições internas. A decisão contribui para a segurança jurídica dos pacientes e para a previsibilidade das relações contratuais, ao indicar que a ausência de registro, isoladamente, não pode servir de obstáculo quando a própria autoridade sanitária admite a importação e quando a terapêutica é a única alternativa clinicamente adequada. O caso evidencia, em última análise, que a interpretação estritamente literal das cláusulas contratuais e das regras administrativas, ou até mesmo de temas do STJ, não pode prevalecer sobre a concretização do direito fundamental à saúde, especialmente em situações de extrema gravidade como o meduloblastoma infantil. Para o STJ, a natureza do contrato de assistência suplementar impõe o dever de cobertura sempre que presentes a indicação médica, a necessidade terapêutica e o respaldo sanitário mínimo, ainda que em regime de autorização excepcional. Trata-se de mais um precedente que aprofunda o compromisso da Corte com a tutela efetiva da vida e da dignidade do paciente oncológico, ao harmonizar os parâmetros sanitários, contratuais e constitucionais que regem o setor. A decisão da 4ª turma do STJ foi unânime. Jorge Mendes, pai da autora da ação, ressalta que "é gratificante ver que o STJ se sensibilizou ao caso da minha filha, deixando um legado técnico e jurisprudencial que poderá salvar muitas vidas".
1. Introdução A responsabilidade civil do médico constitui um dos temas mais sensíveis e relevantes na interface entre Direito e medicina, destacando-se pela sua crescente atualidade no cenário brasileiro. O aumento expressivo das demandas judiciais por alegados danos decorrentes da prestação de serviços de saúde reflete não apenas uma maior conscientização dos pacientes quanto aos seus direitos, mas também põe em relevo desafios estruturais e éticos enfrentados por profissionais, instituições e pelo próprio sistema Judiciário.  Nos últimos anos, o Brasil testemunhou crescimento vertiginoso dessas ações, com mudança recente na catalogação processual promovida pelo CNJ, passando do termo "erro médico" para "danos materiais e/ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde". Este fenômeno é impulsionado tanto pela ampliação do acesso à informação como pela valorização dos direitos do paciente, impactando diretamente a prática médica, a relação médico-paciente e a confiança social no exercício profissional. O presente artigo inicia abordando os tipos mais frequentes de ações contra médicos, com ênfase nas causas centrais de judicialização, como comunicação deficiente, falhas diagnósticas e ausência de protocolos clínicos. Em seguida, apresenta-se análise das especialidades médicas mais sujeitas a demandas judiciais, ressaltando fatores ligados à complexidade técnica, riscos inerentes às condutas e expectativas dos pacientes.  Os itens posteriores aprofundam a discussão sobre valores indenizatórios praticados nos tribunais conforme a gravidade dos danos e a especialidade envolvida, destacando as faixas observadas em casos de pronto atendimento, cirurgia geral, obstetrícia e situações de óbito ou lesões graves. Por fim, examina-se o papel das cortes brasileiras, especialmente o TJ/SP e o STJ, na uniformização de precedentes e consolidação de entendimentos quanto à responsabilização civil médica. Ao final deste breve estudo, torna-se evidente a necessidade de se aprofundar a compreensão dos fatores processuais e das tendências atuais da judicialização da saúde, especialmente à luz das transformações sociais e normativas recentes. Iniciamos, assim, explorando detalhadamente os tipos de ações que mais frequentemente envolvem médicos nos tribunais brasileiros, abordando suas características e implicações práticas para os profissionais da área e para o sistema jurídico nacional. 2. Tipos mais frequentes de ações contra médicos As demandas mais comuns movidas contra médicos são baseadas em alegações de danos morais e materiais, seja por morte do paciente, sequência inadequada do tratamento, resultados cirúrgicos indesejados, ausência de consentimento informado ou falhas e atrasos no diagnóstico1, a título de exemplo apenas. Além disso, as principais falhas apontadas são omissões de conduta, má interpretação de exames e falta de informações ao paciente, circunstâncias que contribuem para o volume de processos e para a mudança recente do termo "erro médico" para "danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde" pelo CNJ. Com efeito, até 2023 utilizava-se a expressão "erro médico" no sistema de catalogação processual, porém, em respeito à imparcialidade e a partir de pleito de entidades médicas, o CNJ alterou a classificação para "danos materiais e/ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde". Isso implicou maior abrangência dos tipos de litígios judicializados e impactou o crescimento dos números registrados2. O crescimento do acesso à informação e o fortalecimento dos direitos dos pacientes, aliados a aplicação do CDC, favoreceram a ampliação de demandas judiciais, principalmente por danos morais decorrentes do atendimento3. A ampliação dos cursos de medicina (muitas vezes sem infraestrutura ideal), as condições desafiadoras de trabalho e o aumento da pressão sobre os profissionais são fatores destacados pela literatura como elementos que, indiretamente, favorecem o crescimento das demandas judiciais em saúde4. Dentre as causas mais frequentes de judicialização aparecem comunicação deficiente, erro medicamentoso, falha diagnóstica e ausência ou descumprimento de protocolos5. A maior incidência de processos judiciais em determinadas especialidades médicas decorre de fatores técnico-jurídicos e especialmente de circunstâncias assistenciais médicas. 3. Complexidade técnica e alto grau de invasividade Especialidades como ginecologia/obstetrícia, cirurgia geral, cirurgia plástica e neurocirurgia distinguem-se pela elevada complexidade técnica e grau de invasividade dos procedimentos. Tais áreas lidam frequentemente com situações de risco elevado, em que complicações pós-operatórias, sequelas e óbitos são mais prováveis, o que elevam a suscetibilidade à responsabilização civil. Em obstetrícia, por envolver a vida da gestante e do nascituro, a repercussão dos eventos adversos é dupla e, frequentemente, envolve litígios judiciais6. Emergências e atendimentos de urgência são outro fator importante de responsabilização. Especialidades como ortopedia, traumatologia e pediatria enfrentam rotineiramente casos de emergência, circunstâncias que exigem decisões céleres e podem aumentar a incidência de falhas diagnósticas ou terapêuticas7. Altas expectativas de resultado também levam a um maior grau de judicialização. Por exemplo, em áreas como cirurgia plástica e oftalmologia, a expectativa dos pacientes em relação ao resultado - estético ou funcional - é acentuada. Mesmo insatisfações subjetivas podem motivar ações, independentemente da prestação técnica adequada pelo profissional8. Fatores como atos repetitivos e alto fluxo de atendimento também pesam na responsabilização. Especialidades como clínica médica e cardiologia lidam com elevada demanda e grande rotatividade de pacientes, contexto em que o risco de equívocos administrativos, falhas no diagnóstico e lapsos na comunicação aumentam proporcionalmente9. Por fim, a questão da dificuldade de comunicação e obtenção do real consentimento do paciente. Em oncologia clínica e psiquiatria, por exemplo, complicações relacionadas ao consentimento esclarecido, à comunicação de risco e à acessibilidade ao prognóstico são apontadas pela doutrina e reiteradamente enfrentadas na judicialização do ato médico10-11. Resumindo, segundo dados nacionais, as áreas médicas com maior incidência de processos judiciais envolvem ortopedia e traumatologia, oftalmologia, cirurgia geral, obstetrícia e ginecologia, cardiologia, psiquiatria, oncologia clínica e urologia. No SUS estadual, ortopedia e traumatologia respondem por até 90,5% das ações; no âmbito municipal, psiquiatria e neurologia também figuram entre as mais litigadas12.  O domínio de processos nessas especialidades reflete uma transferência de riscos inerentes ao tipo de assistência, expectativas dos pacientes e complexidade técnica do ato médico. O aumento da judicialização nessas áreas exige atenção dos profissionais para aprimorar a comunicação, a documentação e a atualização técnica, minimizando possíveis causas de litígio. Segue adiante o quadro com as especialidades médicas mais demandadas e os respectivos fatores de incidência de processos indenizatórios: Especialidade Fatores de maior incidência de processos Ginecologia/Obstetrícia Risco perinatal/materno, procedimentos invasivos Ortopedia/Traumatologia Traumas, emergências, reoperações Cirurgia Plástica Expectativa estética, complicações aparentes Cirurgia Geral Urgência, grau de invasividade, pós-operatório Oftalmologia Expectativa funcional/visual, baixo risco aceito Cardiologia Emergências, alto fluxo, falhas diagnósticas Clínica Médica Volume de atendimentos, diagnósticos múltiplos Neurocirurgia Sequelas graves, complexidade Pediatria Alta vulnerabilidade, quadros agudos Psiquiatria Dificuldade comunicação, tratamento prolongado Oncologia Clínica Prognóstico reservado, falha na comunicação 4. Tribunal de Justiça com maior número de processos por erro médico O TJ/SP lidera em número absoluto de processos judiciais por erro médico no Brasil. Entre 2020 e 2022, o Tribunal foi responsável por analisar mais de 4,5 mil ações nessa área, o que equivale a mais de 25% de toda a judicialização do tema no país. Esta liderança é acompanhada pelo destaque no número de condenações, comprovando um Judiciário rigoroso e criterioso quanto à análise das condutas13. Os valores das indenizações variam enormemente conforme a gravidade do dano, a especialidade envolvida e a extensão das sequelas. Pesquisa do TJ/SP revelou que, entre 2020 e 2022, os pedidos de indenização somaram R$16 milhões, com valor médio de aproximadamente R$ 35 mil apenas em danos morais. Lesões simples por má conduta em pronto atendimento resultam em valores próximos a R$ 10 mil, enquanto danos graves, como coma ou morte, podem resultar em sentenças acima de R$ 150 mil e outros valores relativos a lucros cessantes e despesas médicas prolongadas14-15. A análise revela que a judicialização da saúde e da medicina é crescente - liderada pela alta demanda no TJ/SP - e que as especialidades mais processadas refletem riscos, complexidade técnica e expectativas elevadas dos pacientes. As indenizações variam conforme a gravidade do dano, mas ações por morte ou lesões graves frequentemente resultam em valores significativos.  O TJ/SP é referência em decisões sobre responsabilidade civil médica, tendo fixado precedentes importantes quanto à dosimetria de indenizações e análise dos requisitos da responsabilidade civil, observando-se maior tendência condenatória nas primeiras instâncias, sobretudo em ações envolvendo emergências e obstetrícia; e, nos casos mais graves, condenações por lucros cessantes e ressarcimento de tratamentos prolongados. 5. STJ: A recente e maior condenação médica solidária entre médicos e hospital do Brasil Já no âmbito do STJ, os valores são avaliados caso a caso, podendo chegar a cifras muito superiores quando há morte ou incapacidades permanentes do paciente16: Especialidade Faixa de indenização (R$) Pronto atendimento/emergência 10.000 - 35.000 Cirurgia Geral 30.000 - 100.000+ Obstetrícia 40.000 - 150.000+ Casos graves (coma/morte) 100.000 - 400.000+ Também no STJ, o número de processos por erro médico cresceu 140% em menos de cinco anos, sinalizando o aumento da demanda e a necessidade de uniformidade nacional no tema. Os principais temas dos acórdãos do STJ envolvem valores de indenização, discussão da prova pericial e do nexo causal, além da extensão da responsabilidade de hospitais e profissionais. As decisões primam por valores razoáveis e pela proteção da dignidade do paciente, sempre com análise aprofundada da especificidade de cada caso17. Num recentíssimo julgado do STJ de maio de 2025, uma jovem vítima de paraplegia alegou negligência médica durante a realização de sua cesariana em outubro de 2008. O TJ/BA condenou o hospital e os médicos ao pagamento de R$ 600 mil por danos morais, mais de R$ 400 mil por danos materiais e pensão mensal fixada em um salário-mínimo. Segundo a decisão, apesar da perícia técnica ter sido inconclusiva, o conjunto probatório, incluindo depoimentos de testemunhas e relatórios médicos, foi suficiente para comprovar a responsabilidade dos réus.  Ao analisar o caso, o ministro João Otávio de Noronha destacou a responsabilidade solidária do hospital e dos médicos, constando uma passagem muito importante para exame no voto do relator de 6/5/25, especificamente quanto à somatória das verbas indenizatórias: Quanto ao pensionamento, o Tribunal fixou 1 salário-mínimo devido à incapacidade laborativa comprovada (fl. 195), em sintonia com a jurisprudência (...). Questionar esse valor exigiria revolvimento fático, novamente vedado pela Súmula n. 7 do STJ (...). Todavia, a indenização arbitrada para compensar os prejuízos materiais experimentados pela autora, no montante de R$ 449.760,00 (quatrocentos e quarenta e nove mil, setecentos e sessenta reais), carece de atualização mediante o índice correspondente à taxa Selic, consoante o disposto no art. 406, caput e parágrafo único, Código Civil (...), a partir de sua determinação na sentença (22 de agosto de 2017), resultando, até o mês de fevereiro de 2025, na quantia de R$ 795.285,70 (setecentos e noventa e cinco mil, duzentos e oitenta e cinco reais e setenta centavos). Nesse contexto, o resultado dos valores supramencionados perfaz uma condenação que, nesta data, ascende ao considerável montante de R$ 3.453.821,35 (três milhões, quatrocentos e cinquenta e três mil, oitocentos e vinte e um reais e trinta e cinco centavos), o que se reputa, a priori, demasiado, malgrado a inegável magnitude dos danos sofridos pela autora da ação. Diante de tal contexto fático-jurídico, afigura-se factível a promoção de novo arbitramento da indenização, em excepcional afastamento do óbice da Súmula n. 7 do STJ.  Com base nesse cálculo, após o voto-vista do ministro Antonio Carlos Ferreira que divergiu em parte, houve a minoração apenas do valor arbitrado a título de indenização por danos morais para o equivalente a R$ 500.000,00, na data de 8/4/25, corrigidos pela taxa selic desde a citação, considerando já embutidos os juros e a correção monetária pela taxa selic, resultando na seguinte ementa do AI no REsp 1.982.878: Agravo interno no recurso especial. Direito civil e processual civil. Não ocorrência de omissão, contradição e obscuridade. Responsabilidade civil. Erro médico. Nexo causal. Inversão do ônus da prova. Danos materiais, morais e estéticos. Indenização. Quantum. Alteração. Reexame. Súmulas n. 7 e 83 do STJ. Honorários. Sucumbência recíproca. Não ocorrência. Súmula n. 326 do STJ. Decisão mantida. Agravo parcialmente provido. 1. Não há ofensa aos arts. 489 e 1.022 do CPC quando o tribunal de origem decide, de modo claro, objetivo e fundamentado, as questões essenciais ao deslinde da controvérsia, embora sem acolher a tese do insurgente. 2. A existência de omissão, contradição ou obscuridade em acórdão deve ser examinada com base na suficiência dos fundamentos apresentados para o deslinde da controvérsia, sendo dispensável o enfrentamento de todas as alegações das partes. 3. A inversão do ônus da prova pode ser aplicada em benefício do consumidor, com base em sua vulnerabilidade, especialmente em casos de dificuldade técnica na produção de provas, conforme o art. 6º, VIII, do CDC. 4. A responsabilidade civil por erro médico pode ser exigida com base em prova testemunhal e documental, ainda que o laudo pericial seja inconclusivo, respeitando-se o princípio do livre convencimento motivado. 5. Em recurso especial, é incabível revisar o quantum indenizatório por dano moral e estético que não se mostra irrisório ou exorbitante, em razão do óbice da Súmula n. 7 do STJ. 6. Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado pela parte autora não implica sucumbência recíproca, conforme a Súmula n. 326 do STJ. 7. A constatação de excesso no quantum indenizatório fixado a título de danos morais legitima, excepcionalmente, o afastamento do óbice da Súmula n. 7 do STJ, bem como a promoção de novo arbitramento da indenização para patamar compatível com as particularidades do caso concreto. 8. Às condenações posteriores à entrada em vigor do Código Civil de 2002 deve ser aplicada a taxa Selic, que contempla juros moratórios e correção monetária. 9. A indenização por danos morais foi reduzida a R$ 500.000,00, corrigidos pela taxa Selic desde a citação, em razão de o montante inicialmente arbitrado ser considerado excessivo. 10. Agravo parcialmente provido. (AgInt no REsp n. 1.982.878/BA, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 8/4/2025, DJEN de 14/5/2025). O que se pretende deixar evidenciado é que, muito embora na ementa desse julgado tenha constado o valor de 500 mil reais a título de indenização por danos morais que parece ser o valor total da condenação, na verdade, analisando-se o cerne do voto condutor, como antes transcrito, essa indenização já supera a casa dos 3,5 milhões de reais, tornando-se a maior indenização médica da história do nosso país, em recentíssima decisão, como se disse de maio de 2025. 6. Considerações finais O presente estudo evidenciou a relevância e a atualidade da discussão acerca da responsabilidade civil do médico no ordenamento jurídico brasileiro, particularmente diante do expressivo crescimento da judicialização da saúde e das demandas indenizatórias decorrentes da prestação de serviços médicos.  A análise empreendida permitiu constatar que o fenômeno não se limita a uma mera elevação quantitativa de processos, mas decorre de fatores estruturais e conjunturais, tais como a ampliação do acesso à informação, a consolidação dos direitos fundamentais do paciente, a influência do CDC e a crescente expectativa social quanto à qualidade da assistência médica. A partir da metodologia utilizada - que contemplou revisão bibliográfica especializada, exame documental de decisões judiciais e levantamento estatístico junto aos registros do CNJ e do TJ/SP - foi possível identificar, de forma sistemática, as especialidades médicas mais frequentemente demandadas, os fatores de risco que caracterizam essas áreas e as faixas indenizatórias mais recorrentes definidas pelos tribunais.  Observou-se que especialidades como ginecologia e obstetrícia, ortopedia e traumatologia e cirurgia plástica concentram alto índice de litígios, em virtude de seu elevado grau de complexidade técnica, do potencial de risco inerente e, em certos casos, da presença de expectativas subjetivas exacerbadas por parte dos pacientes. A pesquisa igualmente evidenciou que a fixação dos valores indenizatórios guarda estreita relação com a gravidade do dano e com a natureza da especialidade envolvida, variando desde condenações mais modestas, em hipóteses de menor repercussão lesiva, até vultosos montantes em casos de óbito ou sequelas permanentes. Destaca-se, ainda, o papel decisivo do STJ na uniformização jurisprudencial e na interpretação dos critérios aplicáveis à responsabilidade civil do médico, preservando o equilíbrio entre a reparação integral dos danos ao paciente e a segurança jurídica necessária à prática profissional. Em síntese, constata-se que a crescente judicialização da medicina impõe desafios não apenas à atividade médica, mas também ao próprio sistema de justiça, que deve pautar suas decisões pela técnica, pela razoabilidade e pela observância dos direitos fundamentais. Os resultados deste trabalho reforçam a importância de medidas preventivas, como o aprimoramento da comunicação médico-paciente, o registro documental minucioso e a contínua atualização científica, instrumentos essenciais para a mitigação de conflitos e a redução do risco de responsabilizações indevidas. Por conseguinte, conclui-se que o fortalecimento de uma cultura de segurança assistencial e de boas práticas comunicacionais, aliado a um sistema judiciário atento às peculiaridades da atuação médica, constitui caminho imprescindível para harmonizar a tutela do paciente e a valorização da atividade profissional, contribuindo para o aperfeiçoamento do sistema de saúde e para a construção de um ambiente jurídico mais previsível e equitativo. _______________________ 1 BBC BRASIL. Médicos enfrentam mais processos. Disponível aqui. Acesso em: 25.07.2025. 2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). CNJ elimina categoria "erro médico" do sistema de classificação de processos. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 25 jul. 2025. 3 MOREIRA, André Gustavo Corrêa. Responsabilidade civil por erro médico. 5. ed. São Paulo: Mizuno, 2024, p. 85. 4 Ibidem, p. 110. 5 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade civil médica no contexto brasileiro contemporâneo. Revista de Direito Privado, São Paulo, ano 27, n. 114, pág. 67-92, jan./mar. 2024. 6 MOREIRA, André Gustavo Corrêa. Responsabilidade civil por erro médico. 5. ed. São Paulo: Mizuno, 2024, p. 112. 7 STJ, REsp 1.579.742/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 03/12/2018. 8 DIAS, Maria Cristina. Saúde, justiça e responsabilidade civil: lições atuais da atualização do STJ. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 21, p. 45-77, 2023. 9 RIBEIRO, Fabiano Coelho. Judicialização da saúde: análise à luz dos direitos fundamentais. Revista de Direito Sanitário, v. 24, n. 2, 2023, p. 222-235 10 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 431 11 TJSP, Apelação Cível nº 1036139-48.2018.8.26.0100, Rel. Des. Evaristo dos Santos, julgado em 12/01/2023. 12 ESTRATÉGIA MED. Processos contra médicos: aumento dos números e especialidades mais processadas. Disponível aqui. Acesso em: 25.07.2025. 13 SILVA, RENATA VILHENA. Erro médico cresce no Judiciário. Disponível aqui. Acesso em: 25.07.2025. 14 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Notícia sobre indenização por má conduta. Disponível aqui. Acesso em: 26.07.2025. 15 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO: Notícia sobre indenização por coma. Disponível aqui. Acesso em: 26.07.2025. 16 GARRASTAZU ADVOGADOS. Quando entrar com ação por erro médico e direitos do paciente. Disponível aqui. Acesso em: 25.07.2025. 17 ADVOCACIA MACIEL. Erro médico: aumento do número de processos no STJ. Disponível aqui. Acesso em: 25.07.2025.
1. Introdução Os crimes contra a dignidade sexual praticados por profissionais da saúde têm, nos últimos anos, obtido bastante espaço midiático, havendo diversas notícias envolvendo vítimas em estado de vulnerabilidade no âmbito médico-hospitalar. Tais delitos, previstos no Título VI da Parte Especial do CP, cuja análise já foi iniciada nas partes I e II da edição especial desta coluna, ensejaram, em 2022, a propositura do PL 1998, de autoria do senador Jorge Kajuru, que se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados. O projeto visa a alterar o art. 226 do CP para prever aumento de pena, de metade, no momento da dosimetria, "com o fim de aumentar a intimidação e prevenção social, propomos aumento de pena para o caso de o crime contra a dignidade sexual ser praticado por médico ou profissional da saúde em situação de atendimento médico ou hospitalar, o que configura clara ofensa ao dever de cuidado e respeito". Na atualidade, há previsão, no inciso II do aludido artigo, para o aumento de pena de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela, incluindo-se, no referido projeto, se o agente é médico ou profissional da saúde em situação de atendimento médico ou hospitalar. A fragilidade e a vulnerabilidade dos pacientes não podem ser ignoradas, tampouco a necessidade de investigação criminal nos casos em que há indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva. Todavia, o Direito Penal é a ultima ratio, de modo que a liberdade do médico, bem jurídico1 fundamental, pode ser privada caso haja sua condenação.  Nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima tem importante relevância, sendo, muitas vezes, a única prova que, embora isolada, é suficiente para essa privação de liberdade e para a condenação do profissional da saúde. Isso se dá devido ao fato de tais delitos acontecerem na clandestinidade ou às ocultas, sem testemunhas oculares. Por conseguinte, é de suma importância analisar a palavra da vítima à luz do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa, que são garantias fundamentais do médico e demais profissionais da saúde que eventualmente venham a ser investigados e/ou processados. No mesmo sentido, deve ser analisado todo o conjunto probatório para fins de que sejam impedidas condenações injustas. 2. Breves considerações acerca dos sistemas inquisitorial e acusatório e garantias processuais do médico O sistema inquisitorial, diferentemente do sistema acusatório atual, objetivava extrair a confissão do acusado, valendo-se, inúmeras vezes, de técnicas de torturas, conforme se extrai do livro intitulado Malleus Maleficarum, publicado em 1486 por Heinrich Kraemer e por Jakob Sprenger. O livro, traduzido para o português como "Martelo das Bruxas" ou "Martelo das Feiticeiras", conhecido como manual inquisitorial, retrata esse momento histórico. Além disso, no sistema inquisitorial, as figuras do acusador e do julgador confundiam-se, não havendo que se falar em imparcialidade do julgador. Assim, independentemente de ser o acusado inocente ou culpado, a sua confissão - após horas, quiçá dias de tortura - era suficiente para a sua condenação definitiva. Basicamente, a confissão era considerada a "rainha das provas", no sentido de que outros elementos probatórios não eram considerados para análise da imputação. Por outro lado, no sistema acusatório, o juiz é uma figura imparcial, não se confundindo com o acusador, que, nos casos dos crimes contra a dignidade sexual, é o Ministério Público. Há, neste sistema, paridade de armas entre a defesa e a acusação, o que encontra fundamento no princípio do devido processo legal, garantia fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, prevista no art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988. A clara separação entre as funções de acusar, defender e julgar perfazem esse sistema. Ademais, a presunção de inocência, a partir do in dubio pro reo, deve governar todo o processo penal, com o direito ao contraditório e à ampla defesa, sob pena de incorrermos em insanáveis injustiças. Desse modo, não há a "rainha das provas", como era a confissão do acusado no sistema inquisitorial, mas, sim, o devido processo legal, no qual a existência de conjunto probatório robusto deve fundamentar a decisão do julgador, pois vigora o sistema da persuasão racional do magistrado, conforme art. 93, IX, da CF/88 c/c art. 155 do CPP. Contudo, quando a condenação do médico ou demais profissionais da saúde ocorre, única e exclusivamente com base na palavra da vítima, será que o sistema não é falho ao buscar, novamente, a "bala de prata"? Será que privar o médico de sua liberdade com fulcro em uma única prova não colocaria em xeque fundamentos básicos do sistema acusatório e de um processo penal democrático? 3. As falsas memórias e a palavra isolada da vítima A título de contribuição para os questionamentos anteriormente expostos, é importante apresentar a reflexão no tocante às falsas memórias. A memória é totalmente maleável, podendo ser modificada ou distorcida. Nessa senda, Lourrana Larissa Gonçalves de Andrade e Cíntia Marques Alves2 reforçam: As falsas memórias podem ser definidas como o fato de as pessoas lembrarem-se de eventos e situações que não aconteceram, que nunca foram antes presenciadas, ou então de lembrarem-se de algum evento de maneira pouco distorcida do que realmente ocorreu. [...] Elas podem ser elaboradas pela junção de lembranças verdadeiras e de sugestões advindas de outras pessoas, sendo que durante este processo fica suscetível esquecer a fonte da informação ou ainda pode se originar quando os indivíduos são interrogados de maneira direta e sugestiva. A pessoa sinceramente acredita que viveu aquele fato e tem a sensação de que consegue recordar de detalhes concretos e vívidos sobre o evento sem nunca o ter vivido antes. (grifado) A vulnerabilidade intrínseca aos pacientes que procuram um médico, sobretudo daqueles que estão sedados, pode ensejar memórias confusas no que concerne à realidade. O paciente não sabe, com exatidão, se o fato ocorreu ou se é sonho. Na parte II, foi abordada a evolução do papel da vítima no processo penal, sendo de suma importância, citando-se que "atualmente, embora ainda haja vieses informais na investigação policial e no judiciário (como a análise da vestimenta ou da postura da mulher), houve um avanço significativo, sobretudo porque é necessário analisar a conduta do agente e não atribuir a culpa do delito à vítima". Importante mencionar, ainda, a lei 14.737, de 27 de novembro de 2023, a qual ampliou o direito da mulher de ter acompanhante nos atendimentos realizados em serviços de saúde públicos e privados, a partir da alteração da lei 8.080, de 19 de setembro de 1990 (lei orgânica da saúde). Tal avanço legislativo trará mais segurança à mulher em consultas, exames e procedimentos no ambiente médico-hospitalar. Conforme já referido, bem como em sintonia à parte II, nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima tem especial relevância. Entretanto, nos crimes contra a dignidade sexual praticados por médicos e demais profissionais da saúde, há a peculiaridade do estado de vulnerabilidade extrema dessas vítimas. Dessa maneira, as falsas memórias devem ser consideradas em relação à palavra da vítima, especialmente no contexto de delitos cometidos no âmbito da relação médico-paciente. Ressalte-se que, em nenhum momento o objetivo da presente reflexão é diminuir a palavra da vítima, tampouco revitimizá-la. Pelo contrário, o que se busca é que a vítima seja ouvida de maneira interdisciplinar, a partir de equipes que tenham a sensibilidade de analisar e distinguir a realidade da fantasia, sobretudo quando se tratar de vítimas menores de idade e/ou que estavam sedadas quando do abuso, respeitando os avanços antes destacados. Da mesma forma como se entende que os termos de consentimento voltados às crianças e aos adolescentes devem considerar as suas particularidades ao serem confeccionados, a vítima menor de idade deve ser ouvida com cuidado, em ambiente adequado e seguro. Por óbvio, tal tarefa torna-se ainda mais desafiadora nas comarcas pequenas e sem estrutura suficiente, mas o papel dos operadores do Direito é mostrar a necessidade de implementação dessas escutas especializadas. 4. Julgado envolvendo o delito de violação sexual mediante fraude: Absolvição Ao analisar os delitos contra a dignidade sexual a partir da jurisprudência, fica evidente o protagonismo da palavra da vítima, inclusive nos casos envolvendo médicos e demais profissionais da saúde. Contudo, com o objetivo de apresentar um viés provocativo, será exposto um caso no qual o médico foi absolvido com fulcro no princípio do in dubio pro reo, referido anteriormente, ficando a palavra da vítima isolada do restante do conjunto probatório. Há diversos delitos contra a dignidade sexual, conforme mencionado, disciplinados no Título VI da Parte Especial do CP. Dentre eles, há o crime de violação sexual mediante fraude, previsto no art. 215 do CP, cuja conduta típica é: "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:  Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos." O caso eleito3 versa acerca do crime de violação sexual mediante fraude. Em linhas gerais, julgou-se que a prova produzida não esclareceu, com certeza, o que ocorreu na data do fato. A denúncia narrou que a paciente, em consulta com o denunciado, médico gastroenterologista, foi tocada de maneira imprópria e sexualizada. Em primeiro grau, o médico foi condenado à pena de 04 anos e 06 meses de reclusão, a ser cumprida em regime inicial semiaberto. Nota-se que, caso o projeto de lei citado anteriormente estivesse em vigência, a pena do médico poderia ser aumentada da metade, impedindo, muito provavelmente, o regime inicial semiaberto, conforme art. 44 et. seq. do CP, demonstrando a importância de se debater tanto o projeto, quanto a palavra da vítima de maneira isolada. No caso em testilha, foi crucial o fato de que, embora as esferas administrativa, cível e criminal sejam independentes, a sindicância instaurada pelo CREMERS - Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul a esse respeito resultou arquivada. Outrossim, houve, segundo o voto do desembargador relator, "parecer técnico do Serviço Biomédico do Ministério Público abonando correção do diagnóstico de fibromialgia, sintomas de depressão, anormalidades psicológicas e, inclusive, dores estomacais, todos eles consonantes com o quadro clínico apresentado pela suposta vítima à época dos fatos". Há, ainda, depoimento da recepcionista, no sentido de ter a suposta vítima saído bem da sala de consulta, a qual esteve com a porta aberta por todo período, corroborando o exposto pelo médico denunciado, que negou ter deixado o seio da paciente à mostra. Assim, o médico foi absolvido, uma vez que, ao ter suspeitas de fibromialgia, apalpou os chamados "tender points" da vítima, sendo necessário encostar no seio apenas para afastá-lo. O parecer técnico foi de suma importância para afirmar que o médico seguiu as lex artis e a boa prática médica, aprofundadas na parte I, de modo que as suas condutas estavam ancoradas na necessidade de exames para investigar o quadro de saúde da paciente, não havendo que se falar em satisfação de lascívia, tampouco abuso de paciente após o médico valer-se de fraude. 5. Considerações finais e inquietações A palavra da vítima tem importante relevância dos crimes contra a dignidade sexual, sendo imprescindível para a análise do caso concreto. Porém, no tocante aos delitos dessa natureza envolvendo médicos e demais profissionais da saúde, há particularidades que devem ser consideradas, tais como a vulnerabilidade dos pacientes ao procurarem ajuda médica, além de situações nas quais não há testemunhas, como é o caso de algumas consultas médicas. A busca pelo devido processo legal deve nortear todo o processo penal, avaliando-se, cuidadosamente, o conjunto probatório existente. A vítima, para tanto, deve ser ouvida por equipe multidisciplinar apta a atestar a veracidade dos fatos, que devem, idealmente, ser corroborados por demais provas. Não existe rainha das provas no sistema acusatório, de modo que, da mesma forma que a confissão não pode ser considerada como tal, tampouco deve a palavra da vítima ser eleita ao posto de prova mais relevante, sob pena de um processo penal divorciado das garantias fundamentais dos averiguados. A relação médico-paciente deve ser norteada pela transparência e informação, de modo que o(a) paciente possa se sentir seguro(a), informando-se, quando razoável, os métodos que serão utilizados, bem como quando for necessário tocá-lo(a), por exemplo e, sempre que possível, estar acompanhado(a) de enfermeiros e/ou técnicos de enfermagem que possam trazer segurança e afastar qualquer ambiguidade. Por conseguinte, o respeito aos direitos fundamentais dos médicos e demais profissionais da saúde não podem ser ignorados, sob pena de retrocesso ao sistema inquisitorial. A verdade deve ser buscada, a partir de provas robustas e não isoladas e únicas, uma vez que a liberdade pode ser equivocadamente privada. _______ 1 De acordo com Figueiredo Dias, bem jurídico seria "a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso". DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I.  2. ed. Coimbra: Revista dos Tribunais, 2007. p. 114. 2 ANDRADE, Lourrana Larissa Gonçalves de.; ALVES, Cíntia Marques. A Implantação de falsas memórias no processo de alienação parental e suas possíveis consequências para as crianças. Revista Perquirere, 2014. pp. 182-197. Disponível aqui. Acesso em: 20 de ago. 2025. 3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS). Apelação-Crime, Nº 70053878591, Sexta Câmara Criminal, Relator: Des. Aymoré Roque Pottes de Mello, Julgado em: 19 dez. 2013. Publicado em: 21 jan. 2014.
1. Introdução: Fundamentos legais, criminalização e dosimetria da pena nos crimes sexuais Esse artigo dá sequência a uma tríade de artigos que foi iniciada com o texto "Responsabilidade penal do médico e crimes contra a dignidade sexual: Intercâmbio entre Direito Penal, crimes sexuais e Direito Médico (Parte I)" e que busca acompanhar, agora de forma textual, as discussões travadas no encontro do IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto sobre a temática. Os crimes contra a dignidade sexual têm como núcleo a proteção da liberdade e da autodeterminação sexual do indivíduo, conforme previsto no Título VI do CP brasileiro (arts. 213 a 234-C). Segundo doutrina dominante, o legislador buscou, ao tipificar tais condutas, defender a dignidade da pessoa humana como valor fundamental, assim como preconizado na CF/88. Aqui se tutela à autodeterminação das pessoas, ou seja, a capacidade de uma pessoa poder escolher sua disponibilidade sexual1. O CP brasileiro descreve vários crimes contra a dignidade sexual, tais como estupro (art. 213), estupro de vulnerável (art. 217-A), assédio sexual (art. 216-A), importunação sexual (art. 215-A) e violação sexual mediante fraude (art. 215). A caracterização desses crimes envolve uma análise de violência, ameaça, fraude ou abuso de autoridade, sempre preservando o respeito à autodeterminação sexual da vítima. A legislação brasileira prevê penas elevadas para tais delitos, considerando-os de elevado potencial ofensivo, sendo que o estupro, por exemplo, é considerado crime hediondo, conforme art. 5º, XLII da CF/88 c/c lei 8.072/90. Além disso, tais processos tramitam em segredo de justiça, sobretudo para proteção da intimidade e privacidade da vítima. No mesmo sentido, uma característica é o fato de a ação penal ser pública incondicionada, de modo que poderá haver a investigação e denúncia sobre os fatos independentemente de manifestação de vontade da pessoa ofendida. Ademais, tais delitos, em razão da pena elevada que possuem, em regra, não admitem institutos despenalizadores, tais como transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não persecução penal, que estão previstos, respectivamente, nos arts. 76 e 89 da lei 9.099/95 e no art. 28-A do CPP. No mesmo sentido, um fator peculiar que envolve tais delitos é justamente a palavra da vítima ter um peso probatório relevante, especialmente quando coerente, firme e compatível com outros elementos elencados nos autos para a formação do convencimento do juiz. Do mesmo modo, nos crimes sexuais, se o juiz entender que houve violência grave, abuso de autoridade ou vulnerabilidade extrema, isso influencia na fixação da pena-base e pode agravar o quantum condenatório, seguindo-se o critério trifásico para dosimetria da pena elencado no art. 68 do CP, que determina que a pena deve ser fixada em três etapas distintas, sempre observando os limites mínimo e máximo previstos no tipo penal2.  2. A evolução do papel da vítima no processo penal O CP brasileiro, elaborado em 1940, previa que o comportamento da vítima deveria ser analisado primordialmente e poderia interferir no julgamento do acusado da prática de um delito sexual. A ideia advinda da legislação refletia um estigma com a figura da mulher, sendo que as consideradas "desonestas" contribuíam para o delito e, assim, seriam merecedoras do crime cometido3. Como exemplo, Nelson Hungria4 chegou a afirmar que o estupro praticado pelo marido seria uma excludente de ilicitude, por exercício regular do direito do cônjuge, no sentido de que as mulheres com comportamento sexual "liberal", como prostitutas ou adúlteras, não seriam dignas de proteção caso alegassem ter sido vítimas de delito contra a dignidade sexual, vejamos: O dissenso da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte. É necessária uma vontade decidida e militantemente contrária, uma oposição que só a violência física ou moral consiga vencer. Sem duas vontades embatendo-se em conflito, não há estupro. Nem é de confundir a efetiva resistência com a instintiva ou convencional relutância do pudor5. Atualmente, embora ainda haja vieses informais na investigação policial e no Judiciário (como a análise da vestimenta ou da postura da mulher), houve um avanço significativo, sobretudo porque é necessário analisar a conduta do agente que viola a dignidade sexual alheia e viola a norma, e não atribuir a responsabilidade pela prática do delito à vítima.  Mas não vamos longe. Em um artigo interessante denominado "De médico e de monstro: disputas em torno das categorias de violência sexual no caso Abdelmassih", as autoras fazem uma análise na narrativa da imprensa efetivada à época dos fatos das denúncias formuladas em relação ao médico Roger Abdelmassih, o qual foi acusado de ter cometido mais de trinta e sete estupros dentro de sua clínica de inseminação artificial6. As narrativas são cruéis e mostraram um sistema penal que não acolhia a vítima. Conforme relatado no artigo mencionado, uma das vítimas, acometida por sequelas ocasionadas por uma infecção generalizada que seria resultado de estupro anal, seguido de estupro vaginal, teria procurado uma delegacia após ter sido violentada na clínica do referido médico. O delegado questionou se ela poderia acusar o "médico das estrelas", e não levou a investigação adiante, descredibilizando sua palavra. O CRM - Conselho Regional de Medicina, responsável pela apuração da conduta do médico no plano ético-disciplinar, também não investigou as acusações, sendo que funcionários chegavam a afirmar que a paciente não teria provas contra o profissional de renome. Apenas após a imprensa tomar ciência dos fatos e divulgar as inúmeras vítimas que foram violadas sexualmente pelo médico, as investigações tiveram início e hoje o averiguado cumpre pena pelos crimes cometidos, sem contar que teve o registro profissional no CRM cassado. 3. A palavra da vítima nos crimes de natureza sexual É importante relevar que delitos de natureza sexual muitas vezes não podem ser comprovados com base em depoimentos de testemunhas presenciais, de modo que a materialidade pode depender de elementos subjetivos e indícios indiretos. Por isso, a jurisprudência consolidada do STJ e do STF reconhecem que a palavra da vítima, quando coerente, firme e harmônica com o conjunto probatório, possui especial relevância e pode, inclusive, ser suficiente para embasar condenação. O STJ já decidiu reiteradamente que, "em crimes de natureza sexual, à palavra da vítima deve ser atribuído especial valor probatório, quando coerente e verossímil, pois, em sua maior parte, são cometidos de forma clandestina, sem testemunhas e sem deixar vestígios"7.  Isso não significa que a garantia fundamental referente à presunção de inocência seja relativizada, mas sim que o sistema reconhece a peculiaridade envolvendo o modus operandi destes delitos e, ainda, a dificuldade probatória que eles englobam. Deve-se garantir a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal ao acusado, preservando o equilíbrio processual e evitando condenações injustas, mas, também, deve ser dada proteção aos direitos da vítima cuja dignidade foi violada, mormente porque tais crimes ocorrem de forma clandestina, sendo que o relato da vítima é, muitas vezes, o único meio de prova. Neste sentido, é importante ressaltar que os indícios, isoladamente, não são suficientes para comprovar a autoria e a materialidade do crime, sendo necessário que haja um conjunto de elementos que levem à formação da convicção do juiz, sobretudo devido ao sistema acusatório vigente no âmbito processual penal e, ainda, em razão de não existir rainha das provas no sistema da persuasão racional, elencado no art. 155 do CPP.  Vale ressaltar, ainda, que foi promulgada a lei 14.245/21, após o notório julgamento do caso em que a influencer Mariana Ferrer alegou ter sido abusada sexualmente em uma festa. O diploma legal trouxe requisitos e cuidados que devem ser tomados com a vítima no momento da audiência de instrução e julgamento, para fins de não ocorrer a revitimização ou a culpabilização do sujeito passivo do crime. Isso porque, neste caso em específico, a influenciadora alegou ter sido vítima de estupro em uma festa e, durante o julgamento, que ocorreu de forma virtual e foi gravado, passou por constrangimento grave, pois teve seu estilo de vida questionado pelo advogado de defesa do acusado, sem que o juiz ou o promotor adotassem medidas para coibir os ataques e insultos voltados à vítima. Tal lei, portanto, foi criada com finalidade de coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas, bem como trouxe uma causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo, elencado no art. 344 do códex criminal. O intuito do legislador foi evitar que a vítima passasse por constrangimentos quando estivesse tentando buscar o mínimo de justiça devido aos atos sofridos. 4. Desqualificação de vítimas em processos criminais envolvendo violência contra a mulher Em meados de maio de 2024 o STF analisou ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.1078, proposta pela Procuradoria-Geral da República, em que foi questionada a constitucionalidade da postura de desqualificar mulheres vítimas durante a investigação e o julgamento de processos envolvendo crimes contra a dignidade sexual. Após o relatório emanado pela ministra Carmem Lúcia, o STF deliberou, por unanimidade, pela inconstitucionalidade da prática de inquirir a vítima acerca de sua vida sexual ou de seu modo de vida durante a fase investigativa ou o julgamento de crimes de violência contra a mulher. Restou decidido pela Corte Constitucional que, se tal conduta ocorrer, haverá a nulidade do processo. Argumenta-se, aqui, contrariedade aos princípios constitucionais da dignidade humana, liberdade sexual, igualdade de gênero, devido processo legal e dos objetivos previstos no art. 3º da CF/88. Entendeu o STF que questionamentos dessa natureza reproduzem estigmas discriminatórios, perpetuam a violência de gênero e configuram forma de revitimização, especialmente nos casos de crimes sexuais, cuja apuração é sensível. De acordo com o que restou decidido na ADPF, o magistrado que se omitir em impedir tais práticas poderá ser responsabilizado nas esferas administrativa e penal, sendo-lhe igualmente vedado considerar aspectos da vida sexual da vítima na fixação da pena imposta ao agressor. O STF também estendeu a incidência desse entendimento a todas as espécies de delitos caracterizadores de violência contra a mulher, não se restringindo, portanto, às infrações de natureza sexual. Tal decisão vem em complemento à lei 14.245/21, para que a vítima não sofra ainda mais com o processo, e não se tolere as tentativas de culpá-la pelo crime, e não o agressor. Além disso verificamos, em tal julgado, um avanço em situações em que o machismo estrutural ainda se apresenta, de forma a impedir um acesso ao Judiciário de forma digna e ampla também à vítima do crime. 5. Crimes contra a dignidade sexual praticados por médicos No caso de crimes contra a dignidade sexual praticados por médicos, merece especial reprovabilidade social a conduta, sobretudo devido ao fato de ter ocorrido abuso da posição de confiança, do prestígio profissional e da vulnerabilidade do paciente no contexto do atendimento com profissional da saúde.  Esses casos podem ocorrer, por exemplo, durante consultas ginecológicas, urológicas ou exames físicos de rotina, procedimentos invasivos, com uso de sedação ou anestesia, situações em que o médico se vale do conhecimento técnico para criar um ambiente de intimidação ou fraude.  O CEM - Código de Ética Médica é claro ao proibir qualquer prática sexual com pacientes, prevendo infrações éticas gravíssimas, que podem resultar na cassação do registro profissional pelo CRM - Conselho Regional de Medicina9. Além da responsabilização penal e administrativa, o médico também poderá responder civilmente por danos morais e materiais, com indenizações que podem ser expressivas. 6. Considerações finais Os crimes contra a dignidade sexual atentam contra os valores fundamentais da pessoa humana, exigindo um sistema judicial que promova a justiça e a proteção às vítimas. A valorização da palavra da ofendida, aliada às investigações técnicas e céleres, representa avanços essenciais nesse campo. Contudo, é imperativo manter o equilíbrio para garantir a presunção de inocência e evitar abusos no processo.  O aumento das denúncias de crimes contra a dignidade sexual praticados por médicos e profissionais de saúde deve ser analisado com cautela, porque, mesmo que se considere a vulnerabilidade natural da paciente e às vezes a impossibilidade de prova testemunhal, não podemos esquecer da presunção da inocência e do devido processo legal, direitos fundamentais consagrados na CF/88 como cláusulas pétreas. Assim, tem-se que as garantias fundamentais da vítima e do acusado devem ser preservados em um processo penal democrático. ____________________________ 1 SOUZA, Luciano. Violação Sexual Mediante Fraude. In: SOUZA, Luciano. Direito Penal - Vol. 3. Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 9 de agosto de 2025. 2 Na primeira fase da dosimetria, o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá a pena-base, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime em questão. Na segunda fase, são aplicadas as agravantes e atenuantes, se existentes. São exemplos de agravantes a reincidência ou a prática do crime com abuso de autoridade ou confiança. É exemplo de atenuante a confissão. Na terceira e última fase, são aplicadas as majorantes e as minorantes. 3 NUCCI, Guilherme Souza. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 4 LAGO, Laurenio. Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal: dados biográficos 1828-2001. 3. ed. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2001. p. 355-357. 5 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal.  Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 118. 6 ALMEIDA, Heloisa Buarque de; MARACHINI, Laís Ambiel. De médico e de monstro: disputas em torno das categorias de violência sexual no caso Abdelmassih. Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidade e Violência, 2017. Disponível aqui. 7 STJ - Agravo Regimental em Recurso Especial. Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª Turma, julgado em 06/02/2020. 8 STF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.107 Distrito Federal. Rel. Min. CARMEN LÚCIA. Julgado em 23/05/2024. 9 Estabelece o seguinte o Código de Ética Médica: Art. 23. É vedado ao médico tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto. Art. 30. Usar da profissão para corromper costumes, cometer ou favorecer crime. Art. 38. Desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados profissionais. Art. 40. Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza.
1. Introdução Atualmente, é possível constatar o aumento do número de denúncias relacionadas a crimes de natureza sexual perpetrados, supostamente, no contexto hospitalar, em unidade de saúde, em clínicas, etc. A enorme repercussão dessas acusações, que nem sempre são legítimas, pode ser compreendida quando se percebe que esse tipo de delito reside justamente no ponto de contato entre Direito Penal, crimes sexuais e Direito Médico, três áreas do conhecimento que, há muito, vêm despertando a atenção, interesse e curiosidade de operadores do direito, da academia e, claro, da comunidade em geral. Além disso, exatamente por estar situado nessa interseção, acaba por herdar obrigatoriamente importantes características de cada um destes domínios, o que faz do crime sexual praticado por este(a) profissional da saúde um delito sui generis. Há que se conhecer, portanto, sua essência, isto é, seus atributos, suas particularidades e seus elementos constitutivos. Não por outra razão, no dia 13/8/25, essa temática foi debatida em reunião do IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto. O encontro, intitulado "Responsabilidade penal médica e delitos contra a dignidade sexual", permitiu a elaboração de artigos que buscaram seguir o que foi apresentado e discutido. Este primeiro texto, que inaugura, assim, uma tríade de artigos, apresentará as conexões necessárias que existem - e que por isso precisam ser bem conhecidas - entre Direito Penal, crimes sexuais e Direito Médico. O segundo e o terceiro, que serão publicados na sequência, enfrentarão, respectivamente, este tema sob a perspectiva da acusação e, então, sob a perspectiva dos direitos fundamentais do(a) profissional da saúde. Para fins ilustrativos, podemos mencionar os seguintes crimes que, de alguma maneira, circunvizinham perigosamente o dia a dia do médico(a): o estupro (art. 213, CP) e o estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), a importunação sexual (art. 215-A, CP) e a violação sexual mediante fraude (art. 215, CP) e, ainda, os (não mais) recentes crimes de registro não autorizado de nudez (art. 216-B, CP) e divulgação de cena de nudez (art. 218-C, CP)1. Todos estes crimes, aliás, foram criados para a proteção da liberdade sexual do indivíduo, mais especificamente para a proteção da liberdade que as pessoas têm de escolher, sem qualquer embaraço, seus parceiros(as). 2. O dolo e a necessidade de se considerar também os elementos caracterizadores da boa prática médica Todos esses crimes são punidos apenas a título de dolo, ou seja, exige-se consciência e vontade de praticar o tipo penal, conforme art. 18, I, do Código Penal. Isso quer dizer que a falta de cuidado e de zelo não pode definir o destino do médico(a). Também não pode ser decisivo o cumprimento (ou não) de normas técnicas já sedimentadas pela Medicina. Precisará importar, aí sim, e antes de tudo, a vontade do médico(a). Em outras palavras, nestes casos, será necessário investigar, discutir e compreender se o profissional agiu com vontade de praticar tudo aquilo2 que estabelece este ou aquele crime contra a dignidade sexual. É preciso logo destacar, então, que, se o direito médico sempre se preocupou com o "erro médico", este vinculado à boa prática médica, a responsabilização criminal pela prática de um destes crimes retirará o foco da culpa e o deslocará para a vontade de (fazer algo). Além disso, esse dolo, de difícil percepção e demonstração, ganhará contornos ainda mais problemáticos quando tratamos do dolo de um médico no seu ambiente de trabalho, especialmente porque, não raras vezes, conduta médica e conduta típica podem se confundir. Por exemplo, o toque em um(a) paciente pode ser um exame de rotina e, ao mesmo tempo, a prática de um ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a lascívia do médico(a). Também, a apalpação dos seios de uma paciente pode ser uma medida preventiva e necessária e, ainda, a prática de um ato libidinoso mediante fraude, haja vista que, em tese, o médico poderia induzir a paciente em erro. Nesse enredo, será justamente o dolo que aproximará o profissional da saúde de um crime ou, quem sabe, de uma conduta médica autorizada por lei, isto é, de uma conduta absolutamente lícita. É dizer, pois, a partir dessas primeiras linhas, que a complexidade deste elemento subjetivo (do dolo) tem o condão de ilustrar a complexidade da investigação de crimes sexuais quando praticados por médicos(as) durante e em seus ambientes de trabalho. Por outro lado, mesmo que a diligência do médico(a) possa ser pouco relevante para a definição de sua vontade, parece ainda recomendável e necessário recorrermos aos elementos que habitualmente são considerados para a caracterização da boa conduta médica para a apuração do dolo e, desta maneira, para apuração da responsabilidade criminal. São eles: análise da competência e autorização do profissional, intenção curativa, indicação da intervenção e lex artis. Cabe argumentar que as intervenções no paciente têm eficácia justificante "quando o profissional as regras, os procedimentos e as diretrizes acatados pela ciência médica, já que, de outro modo, não poderíamos falar propriamente no cumprimento de um dever, sobretudo quanto ao seu modo de execução"3. É afirmar, na verdade, que um médico(a) está autorizado(a) a intervir principalmente porque a lex artis4, por si só, guarda consigo uma finalidade curativa intrínseca. Assim, a observância da boa técnica médica, ainda que não possa servir para desenhar a vontade do médico, acaba, certamente, dando sinais indicadores da sua intenção - sobretudo quando esse sinal é dialogado com outros tantos elementos de informação. Sob outro ângulo, a inobservância destas normas técnicas e de protocolos pode impor - de forma legítima, aliás - um ônus de explicação, isto é, um ônus de o médico esclarecer que, a despeito do uso de procedimentos incomuns, não deixou de querer e buscar bem-estar do(a) paciente. Ora, na medida que um tratamento ou uma intervenção não constitui um procedimento medicamente consolidado, este ou esta não pode(ria) ser objetivamente indicado(a), não podendo, assim, constituir prontamente um tratamento ou intervenção médica curativa5 e, como consequência natural, não pode(ria) servir para sinalizar de imediato a vontade curativa, é dizer, a busca pelo bem-estar do(a) paciente. A conexão estreita entre Direito Penal, crimes contra a dignidade sexual e Direito Médico, todavia, ainda não para por aqui. 3. Entre o Direito Penal e o Direito Médico: Consentimento, dever de esclarecimento e TCLE - termo de consentimento livre e esclarecido A utilização destes procedimentos não convencionais pelo médico(a) também não pode indicar, de pronto, que este profissional agiu movido por uma vontade delitiva. Há que se ter (muita) cautela. Daqui observamos, então, mais uma aproximação entre esses ramos do direito. As intervenções médicas que ocorrem em campos ainda não cobertos suficientemente pelos conhecimentos e experiências da Medicina "constituem, é verdade, ofensas aos pacientes, mas, também, constituem ofensas que podem ainda ser justificadas pelo consentimento"6. E este consentimento, bem se sabe, não é só um dos alicerces do Direito Médico como é, igualmente, uma das causas supralegais que excluem a ilicitude da conduta ou até mesmo a tipicidade do ato médico. Nesse horizonte de troca entre essas distintas áreas, em termos de responsabilidade penal, só poderá ser válido, portanto, o consentimento atual, livre, sério e, sobretudo, dado por paciente capaz e esclarecido, ou seja, um consentimento que terá sua validade dependente diretamente do cumprimento do dever de esclarecimento pelo próprio médico - dever esse, por seu turno, bastante sedimentado pelo Direito Médico. Por óbvio, este esclarecimento precisa ser anterior à prática da conduta médica, mas, mesmo que assim aconteça, não resolverá, em absoluto, a dificultosa e necessária prova do já citado dolo. Eventual processo ainda carecerá de registros que possam ser considerados e avaliados pelo magistrado(a). Por isso, o processo comunicacional entre médico e paciente e, ainda, o termo de consentimento livre e esclarecido adentra ao universo criminal para resguardar médico(a) e paciente e, ainda, garantir um julgamento justo. Afinal, a previsão textual de tudo que foi acordado, prometido e realizado certamente qualificará a decisão final. O magistrado, desta maneira, terá condições de confrontar as provas produzidas e as alegações das partes e, ainda, de compreender, com mais objetividade e segurança, a vontade daquele que trabalha para cuidar de vidas, mas que, certa vez, acabou figurando como réu de uma ação penal. 4. Reflexões para debates futuros Medidas preventivas nunca foram tão relevantes para a definição da existência ou ausência do dolo. Também poucas vezes se mostraram relevantes para, em solo processual, produzirmos uma decisão judicial adequada. Neste panorama, contudo, ainda que essas precauções sejam válidas e necessárias, não podemos perder de vista que estes crimes contra a dignidade sexual continuam sendo dolosos e que o CPP determina - e o faz expressamente - que o ônus da prova ainda é do Ministério Público. É dizer, com isso, que a incerteza - objetiva - nestes casos precisará prevalecer, sempre, em favor do profissional da saúde. Além do mais, a conexão visceral entre os elementos do Direito Penal e do Direito Médico precisa ficar cada vez mais clara. Trata-se, pois, de uma condição para se compreender adequadamente a responsabilidade criminal de um profissional da saúde. Em suma, se não apreendermos bem os pilares do direito penal e do direito médico, provavelmente as decisões - notadamente as sentenças - se mostrarão precárias em termos de fundamentos, o que se demonstrará divorciado do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Também não podemos deixar de lado as singularidades dos crimes contra a dignidade sexual, que da mesma forma precisam se vincular às bases destes direitos. Assim, a título de provocação, a clandestinidade, muito discutida nos processos que julgam a prática destes crimes, pode precisar passar por uma ressignificação ou, melhor, pode precisar ser adaptada a esse cenário distinto. Isso porque a nossa jurisprudência, quando atribui valor especial à palavra da vítima, está considerando, não raras vezes, a mulher inserida em uma sociedade desigual, que coloca homem e mulher em desiguais (e injustas) posições. Entretanto, quando tratamos de crimes sexuais praticados, em tese, por médicos(as), estamos tratando, agora, da relação médico-paciente, que pode, porventura, justificar outras respostas e saídas jurídicas. Finalmente, precisamos defender que o estudo dessa conexão umbilical entre direito penal, crimes contra a dignidade sexual e direito médico precisa crescer tanto quanto crescem as denúncias - que nem sempre revelam eventos verídicos - contra médicos. Não apenas para proteger esses profissionais, mas, principalmente, para manter sólida todo nosso sistema de saúde - que, como sabemos, já sofre com diversos outros problemas. ________ 1 A título de exemplo, os delitos de registro de cena de nudez e divulgação de cena de nudez podem ser materializados, eventualmente, se e quando consideramos as diversas postagens de pacientes nas redes sociais que fazem médicos e outros profissionais na saúde. 2 O dolo é o conhecimento de todos os elementos que integram o fato típico e a vontade de praticá-lo - ou, pelo menos, de assumir o risco de sua produção (DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 466). Neste sentido, no caso, por exemplo, do crime de divulgação de cena de nudez, o médico deverá ter conhecimento do dissenso do(a) paciente, pois esse elemento também deve estar abrangido pela vontade do profissional da saúde. Aliás, equivocando-se o médico, se este imagina que houve o consentimento do(a) paciente, pode incorrer em algum tipo de erro (BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1749. 3 RODRIGUES, Álvaro da Cunha Gomes. Responsabilidade Médica em Direito Penal - Estudo dos Pressupostos Sistemáticos. Editora Almedina: Coimbra, 2007, p. 316. 4 As lex artis constituem, em suma, um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. Trata-se, enfim, das regras do know-how sobre o tratamento médico que devem estar ao alcance de qualquer clínico no âmbito de sua atividade profissional (RODRIGUES, Álvaro da Cunha Gomes. Responsabilidade Médica em Direito Penal - Estudo dos Pressupostos Sistemáticos. Editora Almedina: Coimbra, 2007, p.54) 5 FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. Aspectos jurídicos-penais dos transplantes. Dissertação de Mestrado. Universidade Católica Portuguesa. Editora Porto, 1995, p. 68. 6 DIAS, Jorge Figueiredo; MONTEIRO, Jorge Sinde. Responsabilidade Médica em Portugal. Boletim do Ministério da Justiça, n. 332, Lisboa, 1984 p.68.
Em setembro deste ano, o STF julgou a ADI 7265, concluindo pela constitucionalidade da lei 14.454/22 que impõe exceções para o fornecimento de tratamento pelo plano de saúde quando não constar do rol da ANS, a partir da demonstração pelo beneficiário do cumprimento de pelo menos um de três requisitos alternativos. Apesar de decidir pela constitucionalidade da lei, a Corte impôs outras cinco condições, agora cumulativas, a serem comprovadas pelo consumidor, para que a operadora de saúde seja obrigada a fornecer o tratamento. A partir do julgamento, toda a jurisprudência já consolidada rechaçando as negativas abusivas dos planos de saúde deverá ser interpretada à luz do novo entendimento do STF, que possui repercussão geral. Em recente apreciação do REsp 2.178.716/SP, a 4ª turma do STJ teve a oportunidade de discutir o fornecimento do medicamento Zolgensma, em caráter off label, com custo médio de R$ 6 milhões de reais, que apesar de constar do rol da ANS para bebês com até 6 meses de vida, possui indicação na bula brasileira para crianças com no máximo 2 anos de idade. No caso discutido pela Corte, a criança, portadora da doença rara AME - Atrofia Muscular Espinhal, já conta com 5 anos, idade superior à indicada pela bula brasileira para utilização do medicamento Zolgensma, o que atraiu a incidência da tese do tratamento off label. Para o relator, ministro João Otávio de Noronha, o REsp não merecia provimento, ao argumento de que no Brasil não haveria evidências científicas suficientes acerca da eficácia do medicamento para crianças com idade superior a dois anos. Na oportunidade, o ministro relator desconsiderou o fato de o medicamento contar com estudos internacionais que garantem a eficácia do medicamento para crianças com mais de dois anos de idade, desde que com peso máximo de 21 kg. Desconsiderou também o fato de que se trata de doença rara, muitas das vezes diagnosticada tardiamente, quando a criança já possui mais de seis meses de idade, limite máximo previsto no Rol da ANS para o uso da medicação. Observa-se que neste caso, está-se diante do nítido conceito de off label, em que a autoridade médica prescreve um medicamento de forma diferente do que originariamente foi autorizado pela ANVISA, ou seja, para criança com idade superior ao que consta na bula nacional. O voto do ministro relator destoou da jurisprudência que vem sendo adotada pelo STJ há oito anos (2ª Seção, Resp 1.729.566/SP), no sentido de que as operadoras de saúde devem ser compelidas a custear tratamentos aprovados pela ANVISA, constantes no rol da ANS, mas que sejam considerados off label. Constou no voto do ministro relator: [...] A questão em discussão é saber se a operadora de plano de saúde deve custear o tratamento com a medicação Zolgensma indicada pelo médico assistente. Para dirimir a questão é importante fazer algumas considerações sobre a legislação específica e a jurisprudência do STJ. O rol de procedimentos e de eventos em saúde nos termos do art. 10, § 4º da lei 9.656/1998, combinado com o art. 4º, inciso III, da lei 9.961 é de competência da ANS e constitui referência básica para o disposto na lei que dispõe sobre os planos de seguro privado em assistência de saúde. Em outras palavras, o rol da ANS estabelece os procedimentos mínimos e obrigatórios a serem fornecidos pela operadora do plano de saúde, de modo a garantir a prevenção, o diagnóstico e o tratamento de todas as enfermidades que compõe a classificação e estatística internacional de doenças e problemas relacionados com a saúde - CID da Organização Mundial de Saúde. (...) O referido rol constitui relevante garantia do direito do consumidor à saúde a preços acessíveis. (...) Ao decidir o Tribunal de origem deixou claro que além da prescrição do medicamento ter sido fora do estabelecido na bula - off label - não seria possível afirmar sua eficácia, tendo em vista que falta evidência científica e a inexistência de elementos que garantisse a aplicação da droga sem prejuízo para a saúde do paciente. Ainda que se considere a possibilidade de fornecimento do medicamento pelo uso fora da bula - off label - ou da adoção da tese de que o rol da ANS é de caráter exemplificativo, desde que sejam preenchidos os critérios previstos no art. 10, §3º da lei 9656/98, incluído pela lei 14.454/22, ainda assim, o recurso não prosperaria". Ressaltou, ainda, que não há precedente de utilização deste medicamento por criança maior que 2 anos e com bons resultados. O e. ministro, contudo, deixou de observar o caso emblemático do menino Cauã Sugawara (e outros), citado pelos patronos dos autos, que utilizou o medicamento aos 7 anos de idade após decisão do STF, em 2021, na STP 790/SP. Hoje, Cauã conta com 11 anos e atualmente não sofre com a perda dos neurônios motores do diagnóstico primário, conforme televisionado pelo Bom Dia Vanguarda da Rede Globo, em agosto do corrente ano1. Antes da colheita dos votos, o ministro Antônio Carlos Ferreira suscitou questão de ordem, justamente pelo recente julgamento da ADI 7265. Para o ministro, os autos deveriam retornar à primeira instância para avaliação probatória em relação aos novos requisitos impostos pelo STF. Após pedido de vista do ministro Raul Araújo, os autos retornaram a julgamento no último dia 16, iniciado com voto divergente do vistor, que além de afastar a questão de ordem levantada, reconheceu que o caso trata de tratamento off label, ou seja, de medicamento constante do rol da ANS, o que afasta a incidência da ADI 7265 (direcionada a tratamentos não incorporados pela agência). Segundo o voto, Primeiramente analisando a questão de ordem, entendo que o caso não trata exatamente do Tema decidido pelo pretório excelso na ação direta de inconstitucionalidade 7265/DF. Recentemente, no dia 18 de setembro o plenário da Suprema Corte julgou por maioria parcialmente procedente o pedido formulado na aludida ação direta de inconstitucionalidade para conferir interpretação conforme a constituição ao § 3º do art. 10º da lei 9656/98, incluído pela lei 14.454/22, de modo a adequar os critérios que geram a obrigação de cobertura pelos planos de saúde de tratamento ou procedimento não listados no rol da ANS. O respectivo inteiro teor do acórdão da ADI 7265 não foi publicado ainda, mas é possível colher as seguintes informações da certidão de julgamento há divulgado: (..) com base nessas anotações, infere-se que a referida decisão do E. STF na aludida ADI 7265/DF tratou acerca de cobertura de tratamentos ou procedimentos não elencados no rol da ANS. No caso dos autos, no entanto, é incontroverso que o medicamento caríssimo Zolgensma está inserido no Rol da ANS, além de possuir registro na ANVISA. Então a discussão travada no presente REsp não está relacionada a cobertura de tratamentos e procedimentos não previstos no rol da agência reguladora na forma do § 3º do art. 10 da lei 9.656/98 que foi interpretado pelo E. STF no processo de controle concentrado de constitucionalidade, mas a possibilidade de cobertura obrigatória do medicamento e sua utilização off label - isso é que está aqui nesse caso -, tendo em vista que a criança não se enquadra exatamente no critério de idade fixado pela agência reguladora. (...) Peço então, coma devida vênia do ministro Antônio Carlos Ferreira quanto a questão de ordem, para entender que a na hipótese dos autos não recomenda-se a devolução dos autos à origem para fazer o juízo de conformação com o decidido de forma vinculante, de eficácia erga omnes pelo STF. O ministro Raul Araújo ainda consignou o entendimento já consolidado pela 2ª sessão de Direito Privado do STJ no que tange à negativa abusiva de tratamento off label, mencionando julgado paradigmático de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão no REsp 1.729.566, no qual se concluiu que a prescrição do tratamento off label não tem previsão legal, mas deve ser autorizada em casos específicos e casuísticos de indicação médica pontual - exato caso dos autos. Nessa mesma linha entendeu a ministra Maria Isabel Gallotti, reconhecendo que a situação dos autos trata-se de medicamento registrado na ANVISA, inserido no rol da ANS, mas sem previsão em bula para a idade do paciente e nas diretrizes de utilização da ANS, o que implica o afastamento da ADI 7265. Nesta conjuntura, vencido o ministro Antônio Carlos Ferreira quanto à questão de ordem, e vencido o relator, ministro João Otávio de Noronha, quanto ao mérito, a 4ª turma, por 4 votos contra 1, elidiu a tese formulada pelo STF no recente julgamento da ADI 7265, garantindo a um menor com doença rara o acesso ao medicamento milionário Zolgensma, em demanda movidaem face da Unimed Rio. Ressalta-se que a decisão proferida pela 4ª turma do STJ acatou o que defendido pelos patronos da referida ação, no sentido de que o retorno dos autos para origem para verificar o preenchimento dos requisitos estipulados na ADI 7265 não se mostrava relevante para o presente caso, uma vez que o medicamento se encontra no rol da ANS e, mais, ainda que se verificasse o preenchimento dos requisitos da ADI (como se constatou o preenchimento dos requisitos da lei 14.454/22 durante o trâmite processual), o mesmo não deixaria de ter caráter off label, ponto central e controvertido da demanda, que foi utilizado pelo Tribunal de Justiça paulista para negar o fornecimento do medicamento em sede de apelação. Para Gabriel Massote a decisão "representa uma vitória para os usuários de plano de saúde, especialmente àqueles com doenças raras, que viam nos novos critérios instituídos pelo STF na ADI 7265 obstáculo quase intransponível para o efetivo acesso à saúde.". Para Mariana Brasileiro "é importante ver que o STJ, ao afastar a aplicação dos critérios adotados pela ADI 7265, privilegiou o registro sanitário na ANVISA e a existência de inclusão no rol da ANS para outras idades, respeitando 8 anos da jurisprudência do STJ sobre a abusividade de negativa de cobertura unicamente por ser o medicamentos de uso off label."   O julgamento está disponível nos links oficiais do STJ com veiculação pelo YouTube. (Clique aqui ou aqui) _______ 1 Disponível aqui.
Em um mercado de beleza cada vez mais digital, o CDC atua como um escudo, assegurando especial proteção a quem busca serviços estéticos. Com previsão na CF/88, essa proteção se baseia no reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, que, em uma relação de consumo, se encontra em posição de desigualdade em relação ao fornecedor. Essa salvaguarda é materializada pelo art. 6º do CDC, que assegura a proteção da vida, saúde e segurança (inc. I), além do direito à informação adequada e clara sobre os serviços e seus riscos (inc. III). Essa assimetria se manifesta de várias formas, sendo a vulnerabilidade informacional uma das mais relevantes, especialmente em uma sociedade conectada. Se antes a vulnerabilidade informacional se limitava à dificuldade de acesso a dados sobre um produto ou serviço, hoje ela ganha contornos mais complexos com a proliferação da desinformação. O STJ, ao julgar o REsp 1.358.231/SP, reconheceu a vulnerabilidade informacional do consumidor, enfatizando que a troca de informações de maneira globalizada e em tempo real confere amplo poder àqueles que detêm informações privilegiadas, e que nas relações de consumo a informação sobre o produto ou serviço é indispensável ao processo decisório de compra. No setor de serviços de estética, o consumidor se torna particularmente vulnerável, imerso em um ambiente onde as promessas de transformação estão por toda parte, mas a ausência de informações claras pode comprometer diretamente sua saúde e segurança. O déficit informacional desponta como um dos principais fatores de desequilíbrio. A falta de acesso às informações adequadas sobre o produto ou serviço, coloca o consumidor em uma posição de suscetibilidade, incapaz de constatar a veracidade dos dados1. E essa preocupação não se limita ao Brasil. A ONU - Organização das Nações Unidas, em sua resolução 39/248 de 1985, destaca a importância do acesso à informação adequada como um dos princípios para a proteção do consumidor. A norma defende que as práticas de promoção e vendas devem ser conduzidas pelo princípio de tratamento justo, de modo que o consumidor receba informações precisas para fazer escolhas independentes2. No Brasil, o direito fundamental à informação é assegurado expressamente pela CF/88, no art. 5º, inciso XIV. De forma mais delineada, o CDC, em seu art. 6º, inciso III, o consolida como um dos direitos básicos do consumidor, assegurando a "informação adequada e clara sobre os diferente produtos e serviços" incluindo suas características e riscos. Além disso, o inciso IV do mesmo dispositivo atua como uma salvaguarda, protegendo o consumidor contra a "publicidade enganosa e abusiva". Dessas disposições decorre um dever de informar que atinge todos os participantes da cadeia de produção, sendo seu cumprimento essencial para a construção de confiança e a garantia da boa-fé na relação de consumo 3-4. No entanto, a crescente propagação da desinformação pode minar essa confiança e agravar a vulnerabilidade do consumidor. Nas últimas décadas, a estética assumiu importante papel no processo de seleção que rege as relações humanas. A ausência de beleza pode significar a exclusão social, relegando o indivíduo a uma posição marginalizada, visto que o atual império da beleza não comporta o que é considerado "fora do padrão"5. Segundo a ISAPS - Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, os procedimentos estéticos aumentaram mais de 40% nos últimos quatro anos6. No Brasil, a procura por procedimentos estéticos cresceu 390% em 20237. Nesse cenário, a desinformação se avoluma. De acordo com a Anvisa, em 2023 os serviços de estética e embelezamento apareceram como os mais denunciados, representando 60% das queixas8, colocando a saúde do consumidor em risco, já que os procedimentos oferecidos podem não ter base científica e não seguirem as normas mínimas de segurança. Como exemplo, pode-se citar anúncios de procedimentos ou uso de substâncias que destacam apenas os benefícios, sem apontar os riscos inerentes, influenciando diretamente a decisão do consumidor e aumentando a possibilidade de ocorrência de danos. Por isso, é necessário promover e respeitar a autonomia do consumidor. O profissional da área de estética tem o dever de prestar todos os dados essenciais do procedimento ou tratamento proposto. As informações não podem ser viciadas, rasas ou incompletas, mas sim qualificadas e completas para que o consumidor exerça sua escolha de forma plena e consciente, consentindo ou recusando o serviço, sem comprometer a sua autonomia e a livre manifestação de sua vontade9. O que era para ser um investimento na beleza e bem-estar pode levar à frustração e baixa autoestima, assim como problemas de saúde, inclusive mental, já que a aparência física tem se traduzido em uma afirmação dentro da sociedade10. É preciso promover a conscientização dos consumidores acerca dos riscos da desinformação no mercado de estética. Além disso, a fiscalização dos serviços e dos profissionais, a promoção de campanhas educativas e a adoção de práticas transparentes pelos fornecedores são fundamentais para a plena proteção do consumidor. Em um mercado em constante expansão como o da estética, o esforço conjunto de todos os envolvidos - Estado, fornecedores e os próprios consumidores - é a chave para assegurar que a vulnerabilidade não se torne uma hipervulnerabilidade, e que os direitos à saúde e à segurança do consumidor sejam respeitados. ____________________________ 1 MIRAGEM, Bruno. Princípio da Vulnerabilidade: Perspectiva Atual e Funções no Direito do Consumidor Contemporâneo. In. MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; MAGALHÃES, Lucia Ancona Lopez de Orgs.. Direito do Consumidor 30 anos de CDC: Da Consolidação como Direito Fundamental aos Atuais Desafios Da sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2020, cap. 8, E-book. 2 ONU. Resolução n.º 39/248, de 09 de abril de 1985. Diretrizes para a proteção ao consumidor. Disponível aqui. 3 BARBOSA, Fernanda Nunes. O dano informativo do consumidor na era digital: uma abordagem a partir do reconhecimento do direito do consumidor como direito humano. In. BORGES, Gustavo; MAIA, Maurilio Casas Orgs.. Novos Danos na pós-modernidade. 1. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2020, cap. 1, pp. 25-53. 4 VERBICARO, Dennis; VIEIRA, Janaína do Nascimento; FREIRE, Gabriela Ohana Rocha. Consumo digital, notícias falsas e o controle da desinformação do consumidor à luz da modulação algorítmica. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 143, 2022, pp. 285-314. Disponível aqui. 5 BORGES, Gustavo. Erro Médico nas Cirurgias Plásticas. São Paulo: Atlas, 2014. 6 ISAPS. Procedimentos estéticos próximos a 35 milhões em 2023. 12 jun. 2024. Disponível aqui. 7 IG. Cresce o número de procedimentos estéticos no Brasil. 21 nov. 2023. Disponível aqui. 8 ANVISA. Nota técnica orienta sobre fiscalização sanitária em serviços de estética e embelezamento. 03 jul. 2023. Disponível aqui. 9 AKAOUI, Fernando Vidal Reverendo; TASSO, Bruno Fernando Barbosa Teixeira. Autonomia dos pacientes na escolha dos procedimentos estéticos. UNISANTA Law and Social Science, [S. l.], v. 12, n. 2, 2023, pp. 238-250, p. 239. ISSN 2317-1308. Disponível aqui. 10 TRÓPIA, Carolina Guimarães; MOREIRA, Sabrine Pereira da Silva. A Influência dos Procedimentos Estéticos na Saúde Mental. Estética em Movimento, [S. l.], v. 2, n. 2, 2023, pp. 65-89, p. 66. Disponível aqui.
1. Introdução A recuperação judicial foi concebida como instrumento de preservação da atividade produtiva e de realização da função social da empresa. Durante anos, porém, um ator central da saúde suplementar brasileira permaneceu à margem desse regime: as cooperativas médicas. O CC, ao classificá-las como sociedades simples, ergueu uma barreira formal que parecia intransponível. O contraste é evidente: de um lado, a simplicidade da forma jurídica; de outro, a complexidade de uma realidade econômica que movimenta bilhões de reais e sustenta a saúde de milhões de brasileiros. Esse descompasso manteve acesa a discussão até que o legislador, o STF e o STJ finalmente pacificaram o tema. 2. A barreira histórica e a alteração legislativa Nos termos do art. 982 do CC1, a cooperativa é sempre considerada sociedade simples, independentemente de seu objeto2. Por essa razão, as cooperativas ficaram, por muito tempo, fora do âmbito da lei 11.101/05, restrito a empresários e sociedades empresárias3. Esse vácuo foi preenchido pela lei 14.112/20, que alterou a lei de recuperação judicial e falências e acrescentou ao art. 6º o § 13, permitindo expressamente que cooperativas médicas operadoras de planos de saúde possam requerer recuperação judicial4. O legislador reconheceu que a formalidade da classificação não pode ignorar a complexidade do fenômeno econômico: cooperativas médicas gerem bilhões em receitas, contratam milhares de profissionais e asseguram serviços essenciais a milhões de pacientes. 3. STF: a constitucionalidade da inclusão A alteração foi questionada na ADI 7.442, sob o argumento de que o Senado teria inovado substancialmente o projeto aprovado pela Câmara, em violação ao princípio do bicameralismo. Por 6 votos a 5, em outubro de 2024, o STF, no voto condutor do ministro Alexandre de Moraes, afirmou a constitucionalidade da inclusão5. Embora tenha havido divergência6, prevaleceu a leitura de que a emenda foi de redação, não modificativa, e que a vontade do legislador estava expressa. O julgamento reforçou a legitimidade da medida e conferiu segurança jurídica ao setor, pacificando a controvérsia. 4. STJ: A aplicação prática e o caso Unimed Taubaté Em junho de 2025, a 4ª turma do STJ, nos REsp 2.183.710/SP e REsp 2.183.714/SP, ambos relatados pelo ministro Marco Buzzi e envolvendo a situação da Unimed Taubaté, consolidou a aplicação prática da mudança7. Os acórdãos reconheceram a legitimidade das cooperativas médicas para requerer recuperação judicial e destacaram que a finalidade do instituto é a preservação da atividade econômica viável, sobretudo quando ela se conecta ao direito fundamental à saúde. Os votos foram além da análise formal e trouxeram números expressivos que demonstram a importância sistêmica das cooperativas médicas no Brasil. Ressaltou-se que essas entidades são responsáveis por significativa fatia do mercado de saúde suplementar: cerca de 39% dos beneficiários. Conforme dados da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, em 2025 o setor de planos médico-hospitalares reúne aproximadamente 52,8 milhões de brasileiros8. Esse recorte evidencia que a crise de uma cooperativa médica não repercute apenas na relação contratual entre credores e devedores, mas atinge diretamente milhões de pacientes, médicos cooperados e prestadores de serviços de saúde. Esses números evidenciam que a crise de uma cooperativa não se limita ao universo contratual de credores e devedores: atinge diretamente pacientes em tratamento, médicos cooperados e a rede de prestadores de serviços de saúde. Por isso, o STJ frisou que permitir o acesso dessas entidades à recuperação judicial é medida que ultrapassa a lógica econômica, alcançando a proteção da dignidade da pessoa humana e a continuidade do cuidado médico9. 5. O que significa estar sob o regime da recuperação judicial Mais do que uma etiqueta jurídica, a recuperação judicial inaugura para o empresário (ou, no caso, para a cooperativa médica) um regime especial de tutela. Trata-se de um espaço de negociação coletiva que busca conciliar credores e devedores em torno da continuidade da atividade econômica. Não se trata apenas de uma formalidade processual. Quando uma entidade é admitida à recuperação judicial, passa a se beneficiar de um conjunto robusto de instrumentos jurídicos: suspensão das execuções individuais por 180 dias, centralização das negociações, possibilidade de alongamento de prazos, concessão de deságios, conversão de créditos em participação societária e até alienação de ativos com blindagem jurídica. No caso das cooperativas médicas, isso representa a chance de reequilibrar contratos com hospitais, fornecedores e instituições financeiras sem comprometer o atendimento contínuo a beneficiários. Em vez do colapso repentino que a falência imporia, a recuperação judicial cria um plano de soerguimento coletivo, preservando pacientes, médicos cooperados, empregos e credores. 6. O debate das associações civis O reconhecimento das cooperativas, contudo, não encerra a discussão. O STJ foi provocado a decidir, no REsp 2.159.844/SP, envolvendo a Pró-Saúde - Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar, se associações civis privadas também poderiam se valer do regime. O caso tramita na 4ª turma, sob relatoria do ministro João Otávio de Noronha, e encontra-se concluso para julgamento ao ministro Marco Buzzi desde junho de 2025, após pedido de vista. Até o momento, apenas o relator votou, em sentido restritivo. Noronha entendeu que associações não se enquadram no conceito de empresa adotado pela legislação, pois não têm finalidade lucrativa nem distribuem resultados. A extensão da recuperação judicial a essas entidades, segundo ele, poderia gerar insegurança jurídica e comprometer o ambiente de negócios. A relevância desse precedente é institucional. Como a 3ª turma do STJ já possui entendimento contrário à admissão de associações civis em recuperação judicial, eventual confirmação pela 4ª Turma consolidaria a matéria no âmbito do Tribunal. Nessa hipótese, não haveria divergência a justificar análise pela 2ª Seção, e os limites subjetivos da recuperação judicial estariam definidos: empresários, sociedades empresárias e, por expressa previsão legal, cooperativas médicas. Esse contraste é revelador. Enquanto as cooperativas médicas foram excepcionadas expressamente pelo legislador, e depois validadas pelo STF e aplicadas pelo STJ, as associações civis permanecem em terreno de incerteza. A diferença mostra que a recuperação judicial é um instrumento de aplicação controlada, pensado para preservar atividades econômicas relevantes, mas sem perder de vista a estabilidade normativa. 7. Considerações finais O Direito Empresarial não pode se afastar da realidade social. A recuperação judicial, antes restrita a empresários formais, hoje também se abre às cooperativas médicas, reconhecendo que sua sobrevivência é inseparável da continuidade de serviços de saúde suplementar. O contraste que inspira este artigo é emblemático: a cooperativa é formalmente simples, mas economicamente complexa. Sua preservação transcende o balanço patrimonial, alcançando a bioética da proteção ao paciente. Ao legitimar o acesso das cooperativas à recuperação judicial, o legislador e os tribunais reafirmam que o direito deve ser ponte entre forma e substância, entre a simplicidade da letra e a complexidade da vida. Resta acompanhar o desfecho do julgamento sobre as associações civis. Se confirmada a linha restritiva já sinalizada, estará consolidado o recorte: a recuperação judicial alcança empresários, sociedades empresárias e, por expressa previsão legal, as cooperativas médicas. O debate em torno das associações, portanto, não é apenas um detalhe processual, mas o ponto final que delimitará o alcance do instituto no cenário brasileiro. _______ 1 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Art. 982, parágrafo único. 2 Toda cooperativa é classificada como sociedade simples, independentemente da atividade que exerça. Isso decorre de sua natureza jurídica e de seus objetivos, que não se confundem com a busca do lucro característico das empresas mercantis, mas com a prestação de serviços aos seus membros, sob o princípio do mutualismo e da participação democrática dos cooperados. O Código Civil brasileiro consagra essa distinção (art. 982, parágrafo único), e as cooperativas são regidas pela Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, que dispõe sobre a Política Nacional de Cooperativismo. 3 A Lei 11.101/2005, em seu art. 1º, estabelece: "Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor". 4 Art. 6º. [...] § 13.  Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica. 5 STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.442/DF. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Julg. 24/10/2024, Tribunal Pleno. 6 Na ADI 7.442, julgada em 24.10.2024, o Supremo Tribunal Federal declarou, por maioria, a constitucionalidade da inclusão das cooperativas médicas no regime de recuperação judicial. Ficaram vencidos os Ministros Flávio Dino, André Mendonça, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, sob o fundamento de que a emenda aprovada no Senado não seria meramente redacional, mas inovadora, introduzindo nova exceção ao regime da Lei 11.101/2005, em violação ao bicameralismo. 7 STJ, REsp nº 2.183.710/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, j. 03/06/2025; e REsp nº 2.183.714/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª turma, j. 3/6/2025. 8 Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS. Números do Setor: dados de beneficiários referentes a julho de 2025. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2025. 9 Parte da doutrina tem defendido que, após a ADI 7.442 (STF) e o REsp 2.183.714/SP (STJ), a possibilidade de acesso à recuperação judicial não deveria ficar restrita às cooperativas médicas, podendo ser estendida a outras modalidades de cooperativas. O argumento central é que a emenda apenas explicitou um alcance que já estaria implícito na Lei nº 11.101/2005, que exclui expressamente apenas as cooperativas de crédito.
1. Introdução A recusa a transfusões sanguíneas por fiéis Testemunhas de Jeová tornou-se um dos dilemas paradigmáticos do biodireito contemporâneo. Nesse terreno conflitam valores fundantes do Estado Democrático de Direito: de um lado, a autonomia individual e a liberdade religiosa; de outro, a proteção da vida e o dever médico de beneficência. Em setembro de 2024, o STF, ao julgar o Tema 952 (RE 979.742/AM), reconheceu que adultos plenamente capazes podem recusar transfusões de sangue por motivos religiosos, desde que a manifestação seja inequívoca, livre, informada e esclarecida. O Tribunal foi além ao impor ao Estado o dever de garantir alternativas terapêuticas no âmbito do SUS - Sistema Único de Saúde, inclusive fora do domicílio do paciente. Pouco depois, no Tema 1.069 (RE 1.212.272), reafirmou e expandiu esse entendimento, consolidando a autonomia individual frente a tratamentos médicos em geral. Este artigo propõe uma leitura desses precedentes a partir de duas categorias centrais: o direito à existência (Soares, 2009; 2021), que protege a vida como projeto vital, e o dano noológico (Frankl, 2011; 2019; Cabral, 2025), que revela a violência de obrigar alguém a viver de forma incoerente com sua fé e identidade. Demonstra-se que a recusa transfusional não é busca pela morte, mas pelo direito de viver em coerência com o próprio sentido de vida, e que esses precedentes funcionam como paradigma de respeito às manifestações existenciais de vontade, como as DAVs - Diretivas Antecipadas de Vontade. 2. Fundamentos jurídicos, bioéticos e normativos da recusa A Constituição de 19881 oferece fundamentos sólidos para a recusa: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF); a liberdade religiosa (art. 5º, VI, CF); a autonomia privada (art. 5º, II, CF). No plano médico, o Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/182) impõe o consentimento informado como condição para qualquer intervenção, admitindo exceções apenas em risco iminente de morte sem manifestação válida do paciente. O parecer CFM 12/143 já havia reconhecido a superação da resolução 1.021/1980, sinalizando a centralidade da autonomia. Ao firmar os Temas 952 e 1.0694, o STF5 consolidou o entendimento de que a recusa é direito fundamental, condicionado à manifestação inequívoca, livre e informada, inclusive por meio de diretivas antecipadas de vontade. Mais do que tolerar a recusa, o Tribunal impôs ao Estado um dever positivo: assegurar alternativas terapêuticas no SUS, inclusive fora do domicílio do paciente. A autonomia, assim, não é apenas negativa (direito de não ser compelido a determinado tratamento), mas materialmente garantida (direito de dispor de condições reais para exercer a escolha). Bioeticamente, a recusa deve ser compreendida como expressão da autodeterminação existencial. Negá-la é reduzir a vida à mera função biológica, ignorando sua dimensão de sentido. 3. Direito à existência, espiritualidade e dano noológico. O direito à existência, como formulado por Flaviana Rampazzo Soares (2009), amplia a tutela da personalidade: viver não se resume à manutenção biológica, mas à possibilidade de concretizar um projeto vital. O dano existencial, nessa linha, não se confunde com dor psíquica episódica, mas com lesão estrutural à biografia prática do sujeito. Como mostra Soares (2021), o consentimento informado é mais que formalidade: é o instrumento jurídico de autorregramento da corporeidade, pelo qual a pessoa insere seus valores - éticos, culturais ou religiosos - na condução de sua vida. Para Alexandra Clara Ferreira Faria (2025), a compreensão do corpo é constantemente reconfigurada: seus significados se deslocam e se multiplicam nos diversos símbolos culturais, religiosos, econômicos, políticos e sociais, revelando-o como espaço privilegiado de autodeterminação. Nessa perspectiva: O corpo não compreende somente os limites físicos de contorno de uma unidade, mas, sim, um ambiente múltiplo. Essa percepção demonstra que o corpo pode ocupar vários espaços, quer em dimensão virtuais, quer em dimensões reais. (Faria, 2025, p. 5). Vale destacar que o corpo não se restringe ao plano individual, sendo igualmente concebido como corpo coletivo (Farias, 2025). É nesse horizonte que se compreende a dimensão religiosa, cujo o discurso atribui ao corpo um caráter sagrado e o legitima como detentor do direito de exercer essa sacralidade como expressão de maior dignidade. Ao dilatar a dimensão para os mistérios da Cristandade e do divino, o corpo ganhou novos predicados, vontades e concepções. A contemporaneidade denota que o corpo ganhou lugares diferentes e conceitos, mas todos devem ser protegidos e cuidados (Rodotà, 2010). Assim, do corpo como locus simbólico e coletivo, passou-se ao corpo como espaço da narrativa existencial: é nesse ponto que o dano noológico se apresenta como violação à capacidade do homem confrontar seu "Ser" com o "Logos". Como sistematiza Faria (2025, p.6). Portanto, essa nova dimensão do corpo necessita do autogoverno, conferindo o poder de decisão à pessoa humana detentora desse corpo. A unidade funcional deve ser reconstruída para garantir seu exercício em toda sua amplitude. Nesse horizonte, a transfusão compulsória constitui violação ao direito à existência, diante disso, surge a ocorrência do dano existencial. Na perspectiva de Marcelo Marques Cabral (2025), o dano existencial consiste em lesão ao aspecto estrutural da existência humana, frustrando diretamente o projeto de vida humana (previamente constituídos ou em constituição), "ou também imponha limites físicos, psíquicos ou psicofísicos à sua vida de relação, isto é, às suas relações do dia a dia". No mesmo sentido Soares (2009, p.144-145), explica que, "o dano existencial é a lesão ao complexo de relações que auxiliam no desenvolvimento normal da personalidade jurídica do sujeito, abrangendo a ordem pessoal ou a ordem social". No presente recorte, a submissão ao procedimento que viola diretamente o projeto de vida e a vontade de sentido6, os predicados identitários e o sagrado do indivíduo não pode ser compreendida senão como um ato de violência simbólica e epistêmica, que transcende a dimensão meramente biomédica para alcançar a própria essência da dignidade humana. Tal imposição representa não apenas a negação do direito à autodeterminação, mas também a desconsideração da historicidade existencial, das convicções religiosas e da tessitura axiológica que conforma a subjetividade do paciente. Nesse sentido, o procedimento compulsório não se configura como cuidado em saúde, mas como um gesto de dominação - um exercício de poder biopolítico e necropolítico - que objetifica a pessoa e a reduz a mero corpo biológico, destituído de voz e de agência. Trata-se, portanto, de um ato de violência ontológica, pois rompe com a integridade narrativa do sujeito e o priva da possibilidade de morrer (ou viver) em consonância com seus próprios valores. Sob a perspectiva jurídica, impõe-se reconhecer que tal prática equivale à violação dos direitos fundamentais à liberdade religiosa, à integridade psíquica e à dignidade da pessoa humana, sendo incompatível com a Constituição Federal e com os tratados internacionais de direitos humanos. Bioeticamente, é um gesto que rompe com os princípios da autonomia, da beneficência e da não maleficência, convertendo o cuidado em tutela autoritária e a proteção em coerção. Assim, a imposição de tratamento contra a consciência individual não apenas usurpa a titularidade do corpo como locus da autodeterminação, mas também configura uma forma de sacrifício do sujeito em nome de um valor médico-estatal que ignora a pluralidade de projetos de vida (Sessarego, 2002). O procedimento, quando divorciado do consentimento livre e esclarecido, perde legitimidade e se transforma em ato de violência institucionalizada, que deve ser criticamente denunciado tanto pelo Direito quanto pela Bioética. Ao obrigar alguém a viver em dissonância com seus valores, gera-se um dano noológico (dano à vontade de sentido) (cfe. Cabral (2025)7, inspirado na logoterapia de Viktor Frankl (2011) que sustentava que a vida humana é movida pela "vontade de sentido" e que sua frustração gera vazio existencial). Em suas análises sobre o sofrimento extremo, Frankl (2019) mostrou que o homem pode suportar quase tudo, desde que consiga manter seus predicados. Cabral (2025, p. 175-176) sistematiza a teoria do dano noológico em diversas dimensões, dentre inúmeros pontos, destaco: 1- O dano noológico é um dano de natureza existencial propriamente dita e não simplesmente de maneira indireta ou reflexa, como poderia pressupor, por atingir de forma mais grave a pessoal humana em seu âmago ou em sua essência e, por consequência, a sua própria existência atingindo o "ser-assim" e a possibilidade de "ser-um-outro" [...] 3- Cuida-se de um dano que atinge a capacidade de o homem confrontar seu Ser com o Logos (aquilo que aqui se resolveu chamar de condição noodinâmica), ou seja, confrontar seu Ser com um Sentido de Vida a ser realizado pela pessoa, isto é, o ofendido resta incapaz de realizar os valores de atitudes perante a situação extremada sob a qual está a viver. O dano noológico8 é, portanto, a sobrevida desautenticada. No presente recorte, viver biologicamente, mas devidamente devastado e afastado do "sentido de vida do homem e o fazem mergulhar no profundo abismo da desesperança e do desamor" (Cabral, 2025). Ou seja, existe uma fratura da narrativa existencial que sustenta a identidade do sujeito, atingindo a "dimensão do espírito transcende os confins da existência humana" Destaca o autor, portanto, que o dano noológico decorre da "quebra da condição noodinâmica do ser vivente, que, a partir de então, passa a sofrer de "vácuo ou "vazio" existencial" ao "homem incondicional". Sendo assim, o dano noológico deve ser compreendido como lesão dirigida à esfera espiritual e existencial do ser humano - a chamada dimensão noética, na qual se sedimentam suas convicções, valores, identidade moral e sentido último da vida. Diferentemente do dano físico ou psíquico, que incide sobre dimensões mais objetivamente aferíveis, o dano noológico afeta o núcleo intangível da subjetividade, representando uma ruptura com a coerência interna do projeto de vida do indivíduo. Esse prejuízo pode assumir caráter transitório ou permanente, dependendo da intensidade da violação e de sua ressonância na biografia da pessoa. No caso paradigmático da obrigatoriedade de submissão à transfusão de sangue contra a consciência do paciente, observa-se a mais aguda forma de dano noológico: o Estado e a Medicina institucionalizada desconsideram a inviolabilidade de convicções religiosas e espirituais, impondo àquele sujeito uma experiência vivida como profanação do sagrado que o constitui. Sob a ótica bioética, essa imposição implica a negação da autonomia moral e a desconsideração da autonomia relacional, uma vez que não apenas viola a consciência individual, mas também rompe com os vínculos comunitários e espirituais nos quais a pessoa encontra apoio e sentido. Do ponto de vista jurídico, configura violação a direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, tais como a liberdade religiosa, a dignidade da pessoa humana e a integridade psíquica. Portanto, o dano noológico não se limita a um mero sofrimento subjetivo, mas deve ser reconhecido como uma modalidade própria de dano existencial, cuja gravidade reside na desconstrução da identidade moral do sujeito e na afronta ao seu direito de viver e morrer segundo as próprias crenças. Trata-se, em suma, de um dano irreparável à dignidade relacional, pois retira da pessoa a possibilidade de manter coerência entre seu existir, seu crer e seu decidir. Esse raciocínio é reforçado pela tese de Bruno Oliveira (2025), que analisa a espiritualidade como dimensão qualificadora da existência. Para ele, espiritualidade é prática de produção de sentido, capaz de ressignificar a vida em meio à vulnerabilidade e à finitude. Não se trata apenas de religião, mas de encontrar coerência entre valores e modo de viver. A transfusão compulsória não viola apenas dogmas, mas destrói a espiritualidade existencial do sujeito, impondo-lhe sobreviver em contradição consigo mesmo. Oliveira sinaliza a ideia de espiritualidade autônoma, pela qual cada pessoa identifica seus próprios "sagrados cotidianos" - valores, afetos, compromissos - que estruturam sua narrativa de vida. Isso amplia o alcance do precedente do STF: a proteção da recusa não é apenas defesa da liberdade religiosa, mas afirmação do direito de todo sujeito viver segundo os referenciais de sentido que escolheu. Enquanto Frankl enfatiza a vontade de sentido como dimensão universal, Oliveira explicita que essa busca se manifesta na espiritualidade cotidiana, que pode ser religiosa ou não, mas sempre qualificadora da existência. Essa articulação mostra que a recusa transfusional é mais do que liberdade religiosa: é defesa do direito à existência espiritualizada e coerente, núcleo da dignidade humana. Dessa forma, o dano à esfera noética rompe a autotranscendência, afetando a capacidade de superação e de ressignificação do sentido, provocando um dano na própria "essência" das Testemunhas de Jeová, afetando o seu convívio consigo próprio e com a própria sociedade. 4. Diretivas Antecipadas de Vontade: projeção do projeto de vida e da vontade de sentido As DAVs - Diretivas Antecipadas de Vontade são a extensão temporal desse mesmo raciocínio. Como observa Soares (2021), o consentimento não é ato episódico, mas instituição de governança da vida corporal. Por meio das DAVs, o indivíduo projeta no futuro sua coerência biográfica, definindo limites de tratamento em caso de incapacidade (Dadalto, 2020). Ignorar uma DAV equivale a reinstaurar o dano noológico, obrigando a pessoa a viver em dissonância com sua própria narrativa existencial (Ser), emergindo em um vazio existencial (Cabral, 2025). As DAVs devem ser vistas como negócios biojurídicos existenciais (Pavão, Góis, Espolador, 2019), que cristalizam escolhas sobre a própria corporeidade e não podem ser desconsiderados sob pena "constituir um atentado à liberdade individual", conforme destaca Dalmir Lopes Junior (2018). Nessa linha, pode-se dizer que as DAVs são também declarações espirituais9, nos quais o indivíduo projeta sua espiritualidade autônoma no tempo, assegurando que a coerência existencial de hoje seja respeitada mesmo em situações futuras de incapacidade, materializando os seus predicados de sentido. 5. Bioética crítica, biodireito e implicações internacionais A integração entre Bioética e Biodireito é evidente: a primeira formula princípios (autonomia, beneficência, justiça, cuidado, proteção dos vulneráveis); o segundo lhes dá forma normativa (precedentes vinculantes, resoluções do CFM, regulamentação das DAVs). O STF, ao decidir os Temas 952 e 1.069, traduziu a Bioética em Biodireito, consolidando o direito à existência com sentido. Esse quadro alinha-se à Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2005), que consagra o consentimento livre e esclarecido como condição de legitimidade para qualquer intervenção, impondo respeito às crenças e valores do paciente. O Brasil também deve se aproximar da Convenção de Oviedo (1997) e da Convenção sobre o Direito das Crianças (1989), que enfatiza consentimento e participação progressiva de menores em decisões de saúde10. Ainda que não ratificada, sua influência ilumina o caminho para uma Bioética de direitos humanos. A prática já começa a refletir esse avanço. Em setembro de 2025, a Justiça determinou o custeio de um transplante sem transfusão de sangue para uma paciente Testemunha de Jeová. A decisão não apenas respeitou a recusa transfusional, mas impôs às instituições de saúde a obrigação de viabilizar alternativas, evitando a violação de sua espiritualidade existencial11. Esses exemplos mostram que a autonomia só é real se houver políticas públicas estruturadas, como protocolos de PBM - Patient Blood Management no SUS, que permitam terapias sem hemoderivados de forma equitativa. Respeitar a recusa, nesse contexto, não é apenas reconhecer uma decisão individual, mas construir condições materiais para a espiritualidade vivida, garantindo que o projeto vital do paciente não se torne letra morta diante da escassez de alternativas. 6. Conclusão Os Temas 952 e 1.069 consolidam o respeito às manifestações existenciais de vontade em saúde. Ao proteger a recusa transfusional e impor ao Estado o dever de alternativas, o STF resguardou não apenas a liberdade religiosa, mas o direito à existência com sentido. À luz de Soares (2009; 2021), Frankl (2011; 2019), Cabral (2025) e Oliveira (2025), percebe-se que o dano mais grave não é a morte, mas a vida violada - a sobrevida desautenticada que fere a espiritualidade e o projeto vital e a vontade de sentido. Esses precedentes abrem caminho para fortalecer as DAVs e consolidar o Biodireito como espaço de proteção da coerência existencial. Para tanto, é imprescindível que o Brasil avance na implementação do PBM e na aprovação de uma lei de direitos do paciente, para que a autonomia reconhecida na jurisprudência se torne efetiva na prática clínica. O debate sobre transfusões mostra que o verdadeiro sentido da autonomia não é escolher entre viver ou morrer, mas garantir que a vida, quando vivida, seja vivida em coerência com os predicados existenciais de cada pessoa. A recusa transfusional, ao ser reconhecida, transforma-se em paradigma normativo para todo o Biodireito: não se trata apenas de proteger crenças específicas, mas de assegurar que qualquer projeto de vida possa ser respeitado na sua autenticidade. _______ Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. CABRAL, Marcelo Marques. Teoria geral dos danos extrapatrimoniais existenciais e a sua reparação civil no direito brasileiro: o dano noológico e o dano da morte. São Paulo: Editora Foco, 2025. CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 5. Ed. Indaiatuba, SP. Editora Foco, 2020. FARIA, Alexandra Clara Ferreira. Doação neutra como exercício do direito ao corpo. In: SOUZA, Iara Antunes de; BERLINI, Luciana Fernandes (coord.). Biodireito e novos direitos: estudos em homenagem à professora Maria de Fátima Freire de Sá. Indaiatuba: Foco, 2025. p. 6. FIORI, Ernani Maria. Metafisica e História. 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"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana;". Disponível aqui. Acesso feito 7.set.25. 2 Conselho Federal de Medicina. Acesso feito aqui. Acesso feito em 9.set.25. 3 Conselho Federal de Medicina. Parecer CFM nº 12/2014. Disponível aqui. Acesso feito em 9.set.2025. 4 RE 979.742, a União recorre de decisão que a condenou, junto com o Estado do Amazonas e o município de Manaus, a arcar com toda a cobertura médico-assistencial de uma cirurgia de artroplastia total em outro estado para a paciente, uma vez que o procedimento sem uso de transfusão de sangue não é ofertado no Amazonas. Em relação ao RE 1.212.272, o caso é de uma paciente encaminhada para a Santa Casa de Maceió para uma cirurgia de substituição de válvula aórtica. O procedimento foi rejeitado após ela se negar a assinar um termo de consentimento caso precisasse receber transfusões de sangue. 5 A decisão se deu nos REs 979.742 e 1.212.272, de relatoria dos ministros Barroso e Gilmar Mendes. 6 Marcelo Marques Cabral (2025, p. 141) explica que o "projeto de vida é, nessa esteira, um rumo ou destino que a pessoa humana consagra à sua vida, ou seja, o sentido parcelar da vida derivada de uma prévia valoração". 7 Na referida obra, Marcelo Marques Cabral ainda faz a distinção entre o dano ao projeto de vida e à vida de relação além do dano noológico (p. 250). O último, segundo o autor, provoca efeitos mais devastadores a vida humana do que aos demais (p. 251). 8 Distingue o autor entre outros dois possíveis danos: (i) o dano à vida de relação "é aquele que interfere nas relações da pessoa, sejam tais relações as de família, de trabalho, profissionais, amorosas e religiosas e etc".  Já o (ii) dano ao projeto de vida "é aquele que rompe os sonhos de uma pessoa, fazendo com que ela mude de rumo ou deixe de procurar qualquer rumo à altura do que estava dedicada a fazer" (p. 251). 9 O termo espiritualidade como demandas de sentido. Adotamos a conclusão de Bruno Oliveira em sua tese doutoral "Espiritualidade para Frankl são sentidos."( p.145). 10 ONU. "art. 12. Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança." 11 Tribunal de Justiça do Estado do São Paulo (TJSP). Processo nº 0016172-92.2025.8.26.0114, em tramite na 2º Vara de Fazenda Pública. Processo Principal nº 1020334-16.2025.8.26.0114. (...) Isto posto, DEFIRO PARCIALMENTE a concessão da tutela de urgência pretendida para tão somente determinar ao ESTADO DE SÃO PAULO e ao MUNICÍPIO DECAMPINAS para que, no prazo de cinco dias, adotem as providencias necessárias a fim de encaminhar a autora à hospital conveniado ao SUS habilitado a realizar o transplante de medula óssea por meio da técnica PBM - Patient Blood Management, ainda que em local fora de seu domicílio. (...)"
Na era digital, ocultar o uso da IA em decisões médicas pode invalidar o consentimento? O consentimento esclarecido (ou consentimento informado, consentimento consciente, entre outras denominações), entendido como o "reconhecimento da autonomia do paciente em se submeter ou não a técnicas médicas de pesquisa, prevenção, diagnóstico e tratamento, respeitados suas crenças e valores morais", trata-se de "decisão livre, voluntária, refletida, autônoma, não-induzida, tomada após um processo informativo e deliberativo sobre o procedimento ou procedimentos biomédicos a serem adotados nos termos informados" (Schaefer, 2012) e ganha contornos inéditos na era digital.  O tema pode ser analisado por ao menos dois novos prismas complementares. De um lado, o uso das tecnologias como meio de colher ou aprimorar o processo de consentimento do paciente, aproximando médico e enfermo. De outro, o uso das tecnologias como objeto do consentimento, especialmente quando sistemas de inteligência artificial começam a rotineiramente influenciar diagnósticos e condutas clínicas. E é nesse segundo prisma que se concentra o maior desafio: em que medida o consentimento do paciente é válido quando ele desconhece que a tomada de decisão médica foi moldada, em maior ou menor medida, por sistemas algorítmicos? O primeiro prisma, que trata do digital como meio de obtenção do consentimento, apresenta desafios, mas também oportunidades relevantes. Assinaturas eletrônicas, registros auditáveis e até soluções como blockchain podem oferecer agilidade e segurança. Contudo, consentir é compreender, e essa compreensão depende de linguagem acessível, de canais de diálogo e da verificação da real capacidade de consentir e, principalmente, de uso de signos e símbolos que possam ser compreendidos pelo usuário. Assim, se o processo se reduzir por exemplo a um clique, corre-se o risco de se perder a substância do processo de consentimento. Nesse ponto, ferramentas de legal design ou design da informação podem contribuir para transformar termos técnicos e burocráticos em informações claras, visuais e interativas, promovendo maior compreensão do seu conteúdo (Bortolini, Garcia, Faleiros Júnior, 2023).  Deve-se lembrar que em um país marcado pela desigualdade digital e pelo baixo letramento, inclusive em saúde, confiar apenas em interfaces eletrônicas pode acentuar exclusões, deixando de fora justamente os pacientes que mais precisam de informação qualificada. Por isso, o digital pode ser um aliado poderoso na formação e obtenção do consentimento, mas jamais substitui a mediação humana que deve estar no centro da relação médico-paciente. O segundo prisma de análise, no entanto, projeta o maior desafio dos próximos tempos: o digital como próprio objeto do consentimento, especialmente quando algoritmos e sistemas de inteligência artificial passam a influenciar diagnósticos e condutas clínicas. Ou seja, trata-se de refletir sobre a necessidade de informar ao paciente que a tomada de decisão médica não resulta apenas do julgamento humano, mas foi construída, em maior ou menor grau, com o apoio de sistemas algorítmicos. Já não basta, portanto, o consentimento sobre os riscos, benefícios e alternativas tradicionais. Na era da inteligência artificial, é indispensável revelar que a recomendação médica foi construída, e em que medida, por um algoritmo. Glenn Cohen (2020), professor da Harvard Law School, sustenta que a validade do consentimento se torna questionável quando o paciente não sabe que a sugestão do médico foi orientada por algoritmos. O autor apresenta o seguinte exemplo: imagine um paciente com câncer de próstata que, após ouvir sobre os riscos e benefícios de uma cirurgia, aceita realizá-la. Se não lhe foi dito que a indicação do procedimento surgiu da análise de um sistema de inteligência artificial, Cohen entende haver vício no consentimento do paciente, que não foi informado sobre as influências algorítmicas na tomada de decisão médica.  Para reforçar esse ponto, Glenn Cohen (2020) recorre a precedentes da jurisprudência norte-americana sobre outros temas, mas que podem ser aplicados por analogia. Ele lembra, por exemplo, os casos de ghost surgery, quando um paciente consente com a cirurgia a ser realizada por determinado médico, mas outro acaba assumindo o bisturi. A justiça americana entende que o consentimento não foi válido, porque houve omissão de uma informação essencial. Outro exemplo oferecido pelo autor vem dos casos sobre qualificação profissional. Em Johnson v. Kokemoor, o tribunal responsabilizou um cirurgião por não revelar sua inexperiência em um tipo específico de operação, considerando que a falta de informação comprometeu a autonomia do paciente. Se ocultar a inexperiência do profissional médico já tem o condão, para a jurisprudência americana, de invalidar o consentimento, seria válido aquele fornecido sem conhecimento de que a decisão clínica foi influenciada por uma inteligência artificial cujos critérios nem sempre são transparentes? Há ainda os conflitos de interesse não revelados, como no caso Moore v. Regents of California, em que o médico ocultou que pretendia lucrar com células extraídas do paciente, e a Suprema Corte da California reconheceu a violação do dever de informar (Cohen, 2020). Assim, se interesses econômicos ocultos são suficientes para macular o consentimento do paciente, não seria igualmente grave deixar de informar a ele que determinada ferramenta de inteligência artificial está sendo usada por razões de custos, conveniência ou pesquisa, e não apenas por critérios clínicos? Esses exemplos demonstram que, embora ainda não haja norma expressa sobre o emprego da inteligência artificial na medicina, a lógica do entendimento dos tribunais converge para uma mesma conclusão: ocultar elementos decisivos da prática clínica pode invalidar o consentimento, de maneira que, a depender da ótica com que se analise a questão, a omissão sobre o papel dos algoritmos em um determinado caso pode não ser um mero detalhe, mas configurar verdadeira quebra do dever de informação. Esses dilemas se tornam ainda mais críticos quando lembramos que a inteligência artificial carrega inúmeros riscos já identificados pela doutrina. Além da opacidade da chamada caixa-preta dos algoritmos, também é preocupante a questão dos vieses algorítmicos. Diferentemente do erro técnico ocasional, os vieses decorrem da própria forma como os sistemas são treinados, por exemplo com dados incompletos, insuficientes, geograficamente deslocados ou carregados de preconceitos que acabam sendo replicados e amplificados pelo sistema. Isso significa que a decisão clínica orientada por inteligência artificial pode ser não apenas opaca, mas também estruturalmente tendenciosa. Pesquisas já apontaram, por exemplo, algoritmos de triagem que subestimam a gravidade de pacientes negros em relação a pacientes brancos, ou sistemas que interpretam sintomas femininos com menor acurácia por terem sido treinados majoritariamente com dados de homens (Bortolini, 2024). Nessas situações, ocultar do paciente que a indicação terapêutica foi moldada por uma inteligência artificial não apenas retira informação essencial, mas também o priva da possibilidade de avaliar se aceita correr os riscos de uma decisão enviesada.  Assim, a omissão quanto ao uso de algoritmos pode colocar em xeque a validade do consentimento informado. O CC, em seu art. 15, consagra a necessidade de consentimento expresso para intervenções médicas, e o Código de Ética Médica exige que o paciente seja informado sobre diagnóstico, riscos, benefícios e alternativas de tratamento. Se uma decisão é orientada por inteligência artificial, esse dado se torna parte integrante da informação necessária para que a escolha seja livre e consciente. Ocultar tal elemento significa oferecer um quadro incompleto, o que fragiliza a autonomia do paciente e pode gerar responsabilidade para o médico. O consentimento não é uma mera autorização, mas integra o direito fundamental à autodeterminação do paciente, conferindo legitimidade ao ato médico. Mais do que formalidade, ele se apoia em princípios como veracidade, confidencialidade, fidelidade e transparência, que funcionam como cláusulas gerais da relação médico-paciente (Schaefer, 2012). Na era digital, deve-se questionar se o paciente deve saber não apenas o que lhe será feito, mas também como a decisão médica foi construída, inclusive se contou com a participação ou foi majoritariamente influenciada por um algoritmo.  O futuro da saúde digital, portanto, não será marcado apenas por termos eletrônicos ou novas plataformas de coleta de consentimento. O verdadeiro ponto de inflexão será garantir transparência sobre o papel da inteligência artificial e de outras tecnologias no processo decisório médico. ________________ 1 BORTOLINI, Vanessa Schmidt; GARCIA, Alexandre de Souza; FALEIROS JUNIOR, José Luiz de Moura. Legal Design como instrumento para redução da assimetria informacional na relação médico-paciente. In: Tecnologias disruptivas, direito e proteção de dados, 2023, Franca - SP. GIOLO JÚNIOR, Cildo; GOMES, Fávio Cantizani; OLIVEIRA, Maria Cláudia Santana de (Org.). Anais do I Congresso Internacional de Direito, Políticas Públicas, Tecnologia e Internet [recurso eletrônico]. Franca: Faculdade de Direito de Franca, 2023. v. 9. p. 96-103. 2 BORTOLINI, Vanessa Schmidt. Inteligência artificial na medicina: uma proposta de regulação ética. 1. ed. Curitiba: Editora Consultor Editorial, 2024. 3 COHEN, I. Glenn. Informed Consent and Medical Artificial Intelligence: What to Tell the Patient?. The Georgetown Law Journal, v. 108, p. 1425-1467, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 1 ago. 2025. 4 SCHAEFER, Fernanda. A nova concepção do consentimento esclarecido. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Ano 1 (2012), nº 10.
Atualmente, no contexto da Quarta Revolução Industrial, vivenciamos uma nova onda de transformações estruturais impulsionadas por tecnologias emergentes como a inteligência artificial, a robótica e o big data. Esses avanços não apenas ampliam as fronteiras da Medicina contemporânea, mas também impõem complexos desafios éticos, jurídicos e sociais, exigindo a reformulação de marcos regulatórios e a criação de políticas públicas que equilibrem inovação tecnológica com a preservação de direitos fundamentais. Nesse cenário, diversas empresas têm investido no desenvolvimento de tecnologias e algoritmos voltados à coleta e análise de dados relacionados à saúde dos indivíduos - como sinais vitais, frequência cardíaca, temperatura corporal, estado emocional, capacidade cognitiva e padrões de atividade física. Um exemplo concreto refere-se aos pacientes com diabetes, que enfrentam o desafio cotidiano de controlar seus níveis de glicose no sangue. Por meio de soluções digitais inteligentes, é possível monitorar continuamente a glicemia, permitindo que sistemas baseados em inteligência artificial processem essas informações e forneçam, em tempo real, subsídios para decisões clínicas mais precisas e personalizadas.1 A Medicina 4.0 inaugura um novo paradigma denominado "saúde inteligente", caracterizado pela transição de um modelo assistencial tradicional para uma abordagem centrada na prevenção, predição, personalização. Nesse novo cenário, o cuidado em saúde afasta-se do tratamento meramente reativo e passa a priorizar estratégias de antecipação diagnóstica, baseadas em informações genéticas e dados clínicos individualizados. Trata-se de um deslocamento que não apenas redefine os métodos de intervenção médica, mas também aprofunda o vínculo entre médicos e pacientes, tornando-o mais contínuo, colaborativo e mediado por tecnologias digitais de ponta.2 Essa transformação só se tornou possível a partir da convergência entre o uso massivo de dados em saúde e a aplicação de sistemas de inteligência artificial. A digitalização dos prontuários clínicos, armazenados em plataformas em nuvem, permite a formação de bancos de dados extensos e integrados. Simultaneamente, a interação cotidiana entre pacientes e dispositivos inteligentes - fenômeno conhecido como Internet das Coisas no contexto médico - contribui para a produção constante de informações biomédicas, que são processadas em tempo real. Nesse modelo, o paciente deixa de ser apenas receptor passivo dos cuidados e assume um papel protagonista na geração de dados e na construção de condutas clínicas, ao passo que instituições hospitalares tradicionais passam por um processo de reinvenção, ajustando-se a uma lógica mais tecnológica e centrada na individualidade.3 No âmbito da proteção de dados pessoais, o consentimento e a autodeterminação ocupam posição central, sendo amplamente reconhecido como um dos pilares fundamentais do tratamento legítimo de informações pessoais. Ainda que a intensidade da proteção jurídica atribuída a cada categoria de dados não dependa exclusivamente da vontade do titular, é o consentimento que legitima, em regra, a coleta e o tratamento desses dados. A legislação pode, excepcionalmente, prever hipóteses em que esse requisito é relativizado ou afastado, mas a vinculação entre o consentimento do titular e a licitude do processamento de dados permanece, de modo geral, como um elemento essencial e incontornável.4 A concepção de autodeterminação informacional como paradigma constitucional visa assegurar aos indivíduos o controle sobre suas informações pessoais, especialmente diante da crescente digitalização da vida e do uso intensivo de tecnologias informáticas. Esse modelo teórico encontra respaldo na jurisprudência alemã, em especial na histórica decisão do Tribunal Constitucional Federal que consagrou, como direito fundamental, a autodeterminação informacional, marcando um divisor de águas na proteção jurídica da privacidade frente aos avanços tecnológicos.5 Curiosamente, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (RGPD) não menciona explicitamente os termos "privacidade" ou "vida privada". Ainda assim, embora próximos, os conceitos de privacidade e proteção de dados não são sinônimos. Eles se entrelaçam e se complementam, sendo a proteção de dados uma ferramenta normativa essencial para garantir o exercício efetivo da privacidade, sobretudo em sua dimensão informacional. A privacidade, nesse aspecto, pode ser compreendida como a condição na qual os dados de um indivíduo permanecem inacessíveis - um estado de resguardo que engloba direitos fundamentais como a intimidade, a reclusão, a personalidade e o direito de ser deixado em paz.6 Já a proteção de dados configura-se como um regime jurídico autônomo, voltado à tutela dos direitos, liberdades e interesses dos titulares cujas informações pessoais são objeto de coleta, armazenamento, processamento, disseminação ou exclusão. Seu propósito não se limita à preservação da privacidade, mas também busca assegurar a equidade nos processos de tratamento de dados e, em certa medida, justiça nos efeitos produzidos por esse tratamento. Assim, embora seus objetivos ultrapassem os contornos tradicionais da privacidade, a proteção de dados desempenha um papel decisivo para a sua efetivação no contexto contemporâneo.7 Para Alexandre de Sousa Pinheiro as exceções à proibição do tratamento de dados pessoais constituem-se estruturalmente como causas de exclusão de ilicitude, no sentido em que os tratamentos de dados que seria ilícito cede perante a superioridade de um interesse proporcionalmente mais relevante que justifica assim o seu tratamento.8 Em vigor desde setembro de 2020, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) estabelece que o tratamento de dados sensíveis, como os relativos à saúde, depende, via de regra, do consentimento expresso, livre, informado e específico do titular (arts. 5º, XIII e 11, I). Caso haja alteração na finalidade originalmente autorizada, o controlador deve comunicar previamente o titular, que poderá revogar o consentimento, conforme previsto no art. 9º, § 2º. A lei reforça, em diversos dispositivos, a exigência de finalidade determinada para todo tratamento de dados pessoais.9 Além disso, a LGPD consagra os princípios da boa-fé e da transparência (art. 6º, VI), que orientam a conduta ética no tratamento de informações, especialmente no contexto da saúde. Ainda que não haja exigência legal de consentimento para o tratamento de dados sensíveis por profissionais de saúde durante procedimentos clínicos, espera-se que essa atividade seja pautada pela confiança e clareza. Assim, à luz da boa-fé objetiva, o dever de informar pode ser atendido mediante a inclusão, no termo de consentimento livre e esclarecido, de disposições específicas sobre o uso de dados pessoais em ambientes digitais de saúde.10 Os dados sensíveis demandam um nível elevado de proteção, a fim de prevenir vazamentos, usos indevidos, exploração comercial ou práticas discriminatórias e ilícitas contra seus titulares. Contudo, a vedação absoluta ao seu tratamento seria impraticável, uma vez que, em determinadas situações, esse processamento é não apenas legítimo, mas indispensável. Além disso, organizações com fins políticos, religiosos ou filosóficos teriam sua própria funcionalidade comprometida caso fossem impedidas de coletar e tratar esse tipo de dado, essencial à sua atuação institucional.11 Relatório recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que, embora a inteligência artificial represente avanços relevantes no campo da saúde, sua aplicação deve ser acompanhada de rigorosas reflexões éticas e regulamentares. A IA tem sido utilizada como ferramenta de apoio ao diagnóstico e à tomada de decisões clínicas, com especial destaque em áreas como Radiologia, Dermatologia, Patologia e sequenciamento genético voltado à imunoterapia. No entanto, a OMS aponta que ainda são escassas as validações clínicas prospectivas capazes de comprovar, de forma robusta, a eficácia desses sistemas em ambientes reais. Entre as preocupações levantadas, estão a variabilidade da performance algorítmica conforme o contexto geográfico e cultural, bem como o risco do chamado viés de automação - situação em que os profissionais de saúde, ao confiar excessivamente nos sistemas de IA, podem reduzir sua atuação crítica e desconsiderar as especificidades individuais dos pacientes.12 A ausência de transparência nos processos decisórios dos sistemas de inteligência artificial - frequentemente denominado problema da caixa-preta (black box problem) - representa um dos principais entraves à consolidação da confiança nessa tecnologia. Em contextos mais objetivos, como a rotulagem automatizada de imagens, essa opacidade pode ser minimizada, já que os resultados podem ser diretamente validados pelo usuário. No entanto, no campo da saúde, a simples aferição quantitativa do desempenho algorítmico não é suficiente: é imprescindível compreender os fundamentos lógicos das decisões sugeridas. Para que profissionais de saúde confiem em recomendações algorítmicas - como a prescrição de medicamentos ou a identificação de riscos específicos -, é essencial que se possa rastrear e interpretar os fenótipos e variáveis utilizados no processo preditivo. A explicabilidade do sistema, portanto, torna-se um elemento-chave na construção da confiabilidade clínica e na segurança das condutas médicas assistidas por IA.13 A opacidade nos processos decisórios da inteligência artificial revela-se especialmente crítica na área da saúde, onde as escolhas envolvem, muitas vezes, consequências de vida ou morte. Esse desafio torna-se ainda mais sensível quando a IA é empregada não apenas para auxiliar na triagem de pacientes em situações emergenciais, mas também para emitir diagnósticos clínicos diretos. Nesses casos, o profissional de saúde pode se ver diante de um impasse ético e técnico: confiar em sua própria avaliação, construída com base em experiência e intuição médica, ou seguir a orientação divergente apresentada por um sistema algorítmico. Tal dilema reforça a urgência de promover transparência, responsabilização e segurança no uso de tecnologias baseadas em inteligência artificial no setor médico.14 Segundo André Gonçalo Dias Pereira, a Medicina contemporânea vem sendo profundamente transformada pela convergência entre as ciências da computação e a economia digital. Tecnologias como inteligência artificial, prontuários eletrônicos, medicamentos personalizados, cirurgia robótica e big data aplicado à pesquisa genética estão moldando práticas clínicas mais precisas e individualizadas. No plano coletivo, a IA pode contribuir para a sustentabilidade dos sistemas públicos de saúde; no plano individual, fortalece a Medicina personalizada ao prever enfermidades e otimizar terapias. Esse movimento sinaliza a consolidação do modelo dos quatro "Ps" da nova medicina: preventiva, preditiva, personalizada e proativa. Apesar dos avanços, persistem obstáculos técnicos e humanos, como a carência de feedback tátil em procedimentos automatizados - essencial para avaliar tecidos com precisão - e a ausência de empatia nas máquinas, o que dificulta a humanização do cuidado e o vínculo com o paciente.15 A atribuição de responsabilidade civil em casos envolvendo sistemas de inteligência artificial tem gerado intensos debates na doutrina internacional. Autores como Samir Chopra e Laurence White defendem a possibilidade de reconhecimento de personalidade jurídica para agentes inteligentes dotados de elevada autonomia,16 enquanto Ugo Pagallo adota uma perspectiva tradicionalista, imputando a responsabilidade às pessoas que supervisionam ou operam tais sistemas.17 Em Portugal,  Paulo Mota Pinto observa que o ordenamento jurídico atribui personalidade jurídica apenas a seres humanos e pessoas coletivas, compreendendo-a como a aptidão para ser titular de relações jurídicas.18 No entanto, o surgimento de tecnologias autônomas desafia esse modelo, suscitando propostas de adaptação normativa para lidar com condutas não humanas e redefinir as fronteiras da responsabilidade. Diante dessa lacuna normativa, algumas correntes propõem analogias com a constituição de pessoas coletivas como alternativa para acomodar juridicamente os agentes artificiais. A responsabilidade civil, que tradicionalmente pressupõe dano, nexo causal e imputabilidade, passa a enfrentar novos contornos quando aplicada a sistemas de IA que operam com base em algoritmos de autoaprendizagem e decisões independentes. O desafio, portanto, está em conciliar inovação tecnológica com segurança jurídica, garantindo tanto o fomento ao desenvolvimento quanto a tutela efetiva dos direitos fundamentais em caso de danos. Por outro lado, na União Europeia, o artigo 27.º do Regulamento (UE) 2024/1689, o AI Act, ao impor a realização de avaliações de impacto sobre os direitos fundamentais previamente à implementação de sistemas de IA de alto risco, constitui um relevante mecanismo de prevenção de danos e de mitigação dos riscos associados à utilização de tais tecnologias. Essa lógica aproxima-se da matriz da responsabilidade civil pelo risco, amplamente discutida na doutrina civilista, em que a assunção de determinadas atividades potencialmente perigosas gera, para quem delas beneficia ou as controla, um dever acrescido de tutela de interesses alheios. Assim, mais do que um mero cumprimento formal, a avaliação de impacto configura-se como instrumento que densifica o dever de cuidado, funcionando como critério de imputação objetiva na eventualidade de danos decorrentes do uso da IA, nos termos do modelo de alocação de riscos que vem ganhando relevo na responsabilidade extracontratual moderna. Ao incluir, no seu âmbito, entidades públicas e privadas que prestem serviços essenciais, o Regulamento revela uma clara orientação personalística, em que a salvaguarda dos direitos fundamentais prevalece sobre a mera eficiência tecnológica, projetando, no domínio da IA, a função preventiva e redistributiva da responsabilidade civil.19 No Brasil, o PL 2338/23, foi aprovado pelo Senado Federal, apresentou no Art. 13 estabelece que todo sistema de inteligência artificial deve, previamente à sua colocação no mercado ou utilização, ser submetido a uma avaliação preliminar de risco pelo fornecedor, com registro e documentação para fins de responsabilização. Esta avaliação abrange, inclusive, sistemas de propósito geral, devendo considerar suas finalidades ou aplicações. A autoridade competente pode reclassificar o sistema e determinar a realização de avaliação de impacto algorítmico, especialmente quando identificado como de alto risco, hipótese em que se tornam obrigatórias medidas adicionais de governança, sem prejuízo da aplicação de sanções em caso de avaliações fraudulentas ou incompletas.20 Porém o mesmo projeto está sob apreciação da Câmara dos Deputados e não houve avanço até a publicação desse texto. Outro ponto crucial na discussão diz respeito à qualidade e à confiabilidade dos dados utilizados e gerados por esses sistemas. Mafalda Miranda Barbosa identifica dois tipos principais de dificuldade: a corrupção dos dados de entrada, cuja origem pode ser incerta e não atribuível diretamente a usuários, distribuidores ou fabricantes; e a produção de dados potencialmente imprecisos por sistemas autônomos, resultado de processos de autoaprendizagem.21 Essas limitações comprometem a previsibilidade e a rastreabilidade das decisões algorítmicas, tornando ainda mais complexa a atribuição de responsabilidade civil e exigindo novos parâmetros legais e técnicos para garantir transparência, justiça e reparação adequada. A incorporação da inteligência artificial na saúde representa um avanço inegável, mas exige reflexão jurídica contínua e cuidadosa. A complexidade técnica desses sistemas, associada à sensibilidade dos dados e à dimensão humana dos cuidados médicos, impõe desafios que ultrapassam o campo tecnológico e alcançam princípios fundamentais do Direito. A transparência algorítmica, a proteção de dados pessoais e a responsabilidade civil diante de danos causados por decisões automatizadas devem caminhar lado a lado com a inovação. É imperativo que o Direito não apenas acompanhe essa transformação, mas também atue como força modeladora, assegurando que os benefícios da IA em saúde sejam amplamente distribuídos e que seus riscos sejam eticamente controlados e juridicamente reparáveis. __________ 1 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência Artificial nas Decisões Clínicas e a Responsabilidade Civil Médica por Eventos Adversos no Contexto dos Hospitais Virtuais. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; NETTO, Felipe Braga; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. Página 1081. 2 Idem. 3 Idem. 4 MIRADA, Jorge; MEDEIROS, Ruy. Constituição Portuguesa Anotada. Volume I, 2ª ed., Revista - Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017. Página 572. 5 Idem. Página 568. 6 DOVE, Edward S. The EU General Data Protection Regulation: Implications for International Scientific Research in the Digital Era: Currents in Contemporary Bioethics. Journal of Law, Medicine and Ethics, 2018. Página 1014. 7 Idem. 8 PINHEIRO, Alexandre Sousa (Coord.); COELHO, Cristina Pimenta; DUARTE, Tatiana; GONÇALVES, Carlos Jorge; GONÇALVES, Catarina Pina. Comentários ao Regulamento Geral de Proteção de Dados. Coimbra: Almedina, 2018. Página 238. 9 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência Artificial nas Decisões Clínicas e a Responsabilidade Civil Médica por Eventos Adversos no Contexto dos Hospitais Virtuais, cit., Página 1102 e 1103. 10 Idem. 11 TEFFÉ, C. S. DE; VIOLA, M. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais. civilistica.com, v. 9, n. 1, p. 1-38, 9 maio 2020. Páginas 37 e 38. 12 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Ethics and governance of artificial intelligence for health: large multi-modal models. WHO guidance. World Health Organization, 2024. 13 MIOTTO, Riccardo et al. Deep learning for healthcare: review, opportunities and challenges. Briefings in bioinformatics, v. 19, n. 6, p. 1236-1246, 2018. 14 NOGAROLI, Rafaella; SILVA, Rodrigo da Guia. Inteligência artificial na análise diagnóstica: benefícios, riscos e responsabilidade do médico. Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. Thomson Reuters Brazil, São Paulo, p. 69-91, 2020. 15 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Inteligência Artificial, Saúde e Direito: considerações jurídicas em torno da medicina de conforto e da medicina transparente. Julgar, n. 45, p. 235-262, 2021. 16 CHOPRA, Samir; WHITE, Laurence F. A legal theory for autonomous artificial agents. University of Michigan Press, 2011. 17 PAGALLO, Ugo. The laws of robots: Crimes, contracts, and torts. Springer Science & Business Media, 2013. 18 DA MOTA PINTO, Carlos Alberto; MONTEIRO, António Pinto; DA MOTA PINTO, Paulo Cardoso Correia. Teoria geral do direito civil. Coimbra editora, 2005. 19 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, que cria regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial e que altera os Regulamentos (CE) n.º 300/2008, (UE) n.º 167/2013, (UE) n.º 168/2013, (UE) 2018/858, (UE) 2018/1139 e (UE) 2019/2144 e as Diretivas 2014/90/UE, (UE) 2016/797 e (UE) 2020/1828 (Regulamento da Inteligência Artificial) (Texto relevante para efeitos do EEE). Jornal Oficial da União Europeia: JO L, PE/24/2024/REV/1, 12 jul. 2024. Disponível aqui. 20 BRASIL. PL 2.338, de 2023. Dispõe sobre o uso da inteligência artificial no Brasil e estabelece princípios, direitos e deveres para seu desenvolvimento e aplicação. Disponível aqui. 21 BARBOSA, Mafalda Miranda. Do nexo de causalidade ao nexo de imputação: Contributo para a compreensão da natureza binária e personalística do requisito causal ao nível da Responsabilidade Civil Extracontratual, Principia, 2013.
A gestação de substituição, como o próprio nome sugere, é um fenômeno reprodutivo caracterizado pela "procriação para outrem"1. Com os avanços da Medicina Reprodutiva e o desenvolvimento das técnicas de reprodução humana assistida (RHA), como a conhecida fertilização in vitro (FIV), esses arranjos tornaram-se consideravelmente mais complexos, dada a multiplicidade de possíveis participantes no processo reprodutivo. Costumo citar, por seu valor ilustrativo, o caso Buzzanca v. Buzzanca2, julgado nos EUA: a aplicação da FIV permitiu um cenário em que o embrião foi formado a partir de gametas de doadores, fertilizado em laboratório e implantado em uma gestante de substituição, que daria à luz a uma criança destinada a beneficiar terceiros. Se a reprodução humana costuma ser vista como um projeto íntimo, restrito ao casal, aqui ela se distribui entre diferentes indivíduos, tornando-se um processo técnico, fragmentado e compartilhado. É justamente nesta dissociação entre material genético, gestação e intenção parental que emergem os desafios na determinação da filiação. O título paradoxal proposto pelo jurista português Guilherme de Oliveira, em 1992 - "Mãe há só uma (duas)!"3 - parece provocativo, mas ainda é pouco ambicioso. Talvez pudéssemos dizer "Mãe há só três"4: a mulher que forneceu o material genético, a que gestou a criança e a beneficiária do procedimento. No caso da paternidade, o alcance do brocardo pater semper incertus est é ainda mais ampliado: pode-se considerar o próprio marido da gestante de substituição, com base na presunção legal de que o pai é o marido da mãe (caso se adote a ideia de que a maternidade decorre necessariamente do parto), o doador de esperma e o beneficiário do procedimento. Afinal, quem é, de fato, pai e mãe na gestação de substituição? Na atualidade, embora não exista regulamentação legal específica no Brasil, a gestação de substituição tem sido admitida com fundamento no direito ao livre planejamento familiar, ex vi art. 226, § 7º, da Constituição Federal, regulamentado pela lei 9.263/1996 (conhecida como Lei do Planejamento Familiar), cujo art. 9º assegura o acesso a métodos de concepção cientificamente aceitos5. Complementarmente, a resolução nº 2.320/2022, do Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelece diretrizes para a prática médica no âmbito das técnicas de RHA, incluindo a gestação de substituição, e, embora não possua força de lei, essa orientação tem, na prática, determinado a forma como esses procedimentos são realizados no país6. No campo registral, diante da necessidade de afastamento da presunção de maternidade decorrente do parto7, o Provimento nº 149/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), prevê que o nome da mulher que deu à luz não constará no registro de nascimento, conforme indicado na declaração de nascido vivo, sendo necessária, ainda, a assinatura de um termo de compromisso pela gestante de substituição para esclarecer a filiação (art. 513, § 1º). Assim, apenas os responsáveis pelo projeto parental constarão no registro, mesmo que o material genético provenha de terceiros8. Observe que, até aqui, o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo na ausência de regulamentação legal específica, tem privilegiado o critério volitivo na definição do vínculo jurídico de filiação na gestação substitutiva, em detrimento dos critérios exclusivamente gestacional ou genético. Ou seja, na gestação de substituição, o parto deixa de ser o marco definidor da maternidade9 e, embora a gestante e os demais envolvidos desempenhem papéis fundamentais para viabilizar o nascimento, é a intenção inicial dos pais pretendidos que fundamenta e dá sentido a todo o processo10. Esse entendimento, aliás, reflete o conteúdo normativo do art. 1.597, inciso V, do atual Código Civil, que presume a paternidade dos filhos "havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido". Trata-se de uma exceção ao princípio do biologismo11, fundamentado na vontade dos intervenientes na constituição do estatuto parental e inerentes responsabilidades. Aliás, se analisada com a devida atenção, é precisamente na gestação de substituição que a mulher beneficiária pode ser equiparada ao pai que não contribuiu com seu material genético no processo heterólogo: ambos se revelam progenitores sociais12. Já no contexto do Projeto de revisão e atualização do Código Civil - atualmente tratado no âmbito do PL 4/25 -, percebe-se, igualmente, a valorização do elemento volitivo, atribuindo-se a parentalidade em favor dos beneficiários. Isso se reflete na previsão de que "[a] cessão temporária de útero deve ser formalizada em documento escrito, público ou particular, firmado antes do início dos procedimentos médicos de implantação, no qual deverá constar, obrigatoriamente, a quem se atribuirá o vínculo de filiação" (art. 1.629-O), bem como na determinação de que "[o] registro de nascimento da criança nascida em gestação de substituição será levado a efeito em nome dos autores do projeto parental, assim reconhecidos pelo oficial do Registro Civil" (art. 1.629-P). Pode-se afirmar, assim, que o Projeto do CC atribui a condição de pais, no contexto da gestação de substituição, aos beneficiários - os autores do projeto parental. Ainda que o elemento volitivo possa, eventualmente, entrelaçar-se com o vínculo genético, nos casos em que haja contribuição genética de um ou de ambos os beneficiários, o texto não exige a utilização dos gametas dos respectivos beneficiários. Ademais, a definição prévia em favor dos beneficiários, configura um critério legal que derroga a regra geral de estabelecimento da filiação prevista no Código Civil, afastando, nesse contexto específico, a atribuição da maternidade à mulher que deu à luz. Ainda sobre a gestante de substituição, alguns doutrinadores têm manifestado preocupação com a ausência, no Projeto do CC, de um dispositivo que afaste expressamente a possibilidade de arrependimento por parte desta, caso manifeste desejo de permanecer com a criança após o nascimento. Nesse sentido, tem-se sugerido a inclusão de um parágrafo único ao art. 1.629-L - que atualmente dispõe, em seu caput, que "[a] gestação por substituição é permitida para casos em que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica". A proposta doutrinária prevê que esse parágrafo único contenha a seguinte redação: "Não é reconhecido à gestante o direito de arrependimento após o nascimento da criança que foi gerada por esta técnica"13. Embora se compartilhe do entendimento de que não se deve reconhecer à gestante de substituição uma espécie de "direito ao arrependimento" (assunto desenvolvido na obra sobre gestação de substituição14), e até mesmo se entenda as preocupações daqueles autores, a necessidade de um dispositivo como esse me parece desnecessária, pois trata-se de afirmar o óbvio. Se o próprio legislador, ao disciplinar a gestação de substituição, excepciona a regra geral de filiação para atribuí-la aos beneficiários, é logicamente incompatível que a gestante possa, após o parto, reivindicar a condição de mãe em termos jurídicos. Caso se recuse a entregar a criança após o parto, a resposta já se encontra prevista no ordenamento jurídico: a gestante de substituição estaria sujeita aos mesmos crimes aplicáveis a qualquer pessoa que retire os filhos de seus pais legais, como sonegação de estado de filiação e subtração de incapaz, nos termos dos arts. 243 e 249, do Código Penal15. De outro lado, relativamente à intervenção dos doadores de gametas no processo reprodutivo, o art. 1.629-K, § 2º, do Projeto, estabelece expressamente que "[n]enhum vínculo de filiação será estabelecido entre o concebido com material genético doado e o respectivo doador". Por fim, no que se refere ao marido da gestante, o Projeto do CC não reproduz a exigência prevista no item VII/3/f), da resolução n.º 2.320/2022, do CFM, que exige a "aprovação do(a) cônjuge ou companheiro(a), apresentada por escrito, se a cedente temporária do útero for casada ou viver em união estável". Embora sem força de lei, tal exigência busca, forçando muito a nota, "afastar" a presunção de que o pai é aquele que o casamento indica (art. 1.597, do CC). No entanto, à luz do próprio Projeto do CC, essa exigência não se sustenta, pois não há qualquer incerteza jurídica quanto à definição da filiação: pai e mãe, na gestação de substituição, são apenas os beneficiários. E só. __________ 1 CORTE-REAL, Carlos Pamplona. Os efeitos familiares e sucessórios da procriação medicamente assistida (P.M.A.). ASCENSÃO, José de Oliveira (coord.). In: Estudos de Direito da Bioética. Coimbra: Almedina, 2005, p. 93-112, p. 104. 2 Buzzanca v. Buzzanca, 72 Cal. Rptr. 2d 280 (1998). 3 OLIVEIRA, Guilherme de. Mãe há só uma (duas)! Contrato de gestação. Coimbra: Coimbra Editora. 4 Como provocou ASCENSÃO, José de Oliveira. Procriação Assistida e Direito. In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez. Coimbra: Almedina, 1998, p. 645-676, vol. 1, p. 667. 5 SCHETTINI, Beatriz. Vácuo legal em matéria de reprodução humana assistida. MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). In: Direitos Reprodutivos e Planejamento Familiar. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 17-35, p. 22. 6 RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Patrimonialidade na gestação de substituição. MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). In: Direitos Reprodutivos e Planejamento Familiar. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 283-305, p. 283 7 ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Compêndio biojurídico sobre reprodução humana assistida. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, pp. 221-222. 8 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de família contemporâneo. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023, p. 499. 9 RAPOSO, Vera Lúcia. De mãe para mãe: Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 60. 10 HILL, John Lawrence. What does it mean to be a 'parent'? The claims of biology as the basis for parental rights. New York University Law Review, n.º 66, mai. 1991, p. 353-420, p. 415. 11 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003, p. 882. 12 SÁ, Mafalda de. O estabelecimento da filiação na gestação de substituição: à procura de um critério. Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, ano 15, n.º 30, 2018, p. 67-89, p. 74. 13 Nomeadamente VALADARES, Amanda de Oliveira; FONSECA, Gabriel Carvalho. A gestante pode mudar de ideia? A (im) possibilidade de reconhecer o arrependimento da gestante de substituição no anteprojeto de reforma do código civil brasileiro. OLIVEIRA, Lucas Costa de; GUIMARÃES, Luíza Resende (orgs.). In: Anais do X Congresso Mineiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Editora Expert. 2024, p. 527-549, p. 543. 14 DE BONE, Leonardo Castro. Gestação de substituição: do fenômeno reprodutivo aos problemas do contrato. Londrina: Thoth, 2025, pp. 135-141. 15 MELO, Diogo Leonardo Machado de. Uma lei federal para reprodução assistida no Brasil? Consultor Jurídico, nov. 2022, n.p.
No Brasil, apesar da crescente judicialização da assistência obstétrica e da consolidação do debate público sobre práticas abusivas durante a assistência ao parto, a violência obstétrica ainda não possui definição legal expressa. Projetos de lei seguem em tramitação sem previsão de aprovação definitiva, e a análise dos casos concretos permanece sustentada por normas constitucionais, civis, penais e éticas, aplicadas de forma fragmentada. O resultado é um cenário de insegurança jurídica, no qual mulheres, profissionais de saúde e operadores do direito se veem diante de lacunas normativas e decisões marcadas por subjetividade. Em Portugal, a positivação legal da violência obstétrica ocorreu em março de 2025, com a promulgação da lei 33/25, que passou a definir o termo e a disciplinar condutas e garantias durante a gravidez, parto e puerpério. No entanto, à época da elaboração do presente estudo, ainda não havia legislação específica sobre o tema em Portugal, sendo o assunto tratado por meio da interpretação conjunta de normas constitucionais, civis, penais e deontológicas. Foi justamente nesse contexto, em que ambos os países careciam de lei específica, que desenvolvemos, sob orientação do professor doutor André Gonçalo Dias Pereira, o trabalho de conclusão do curso de pós-graduação em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, intitulado "Violência Obstétrica: intersecções necessárias entre a autonomia da mulher, responsabilidade médica e direitos do nascituro a partir da legislação brasileira e portuguesa". Neste artigo, apresentamos uma síntese crítica da pesquisa, com enfoque nas interações entre a autodeterminação da gestante, os deveres jurídicos e éticos dos profissionais de saúde, e os direitos do nascituro, analisados sob o prisma do direito comparado. Com base em legislação, doutrina e princípios bioéticos, propomos uma leitura integrada das tensões envolvidas no cenário obstétrico, de modo a contribuir para a consolidação de uma atuação jurídica e clínica mais humanizada, baseada em evidência, técnica e justa - especialmente no Brasil, onde a ausência de uma tipificação legal exige dos operadores do direito uma compreensão sistêmica e sensível da matéria, ultrapassando o conhecimento jurídico. Uma mesma conduta, múltiplas responsabilidades: Esferas civil, penal e ética na prática obstétrica O termo "violência obstétrica" abrange um conjunto de condutas abusivas, desrespeitosas ou negligentes praticadas contra a mulher durante o pré-natal, o parto ou o puerpério, com potencial de violar sua integridade física, emocional e sua autonomia. A OMS - Organização Mundial da Saúde define a violência como "qualquer ação que tenha o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra o outro ou contra um grupo, que resulte ou possa resultar em qualquer dano psicológico, deficiência, lesão ou morte." No contexto da assistência obstétrica, a OMS reconheceu, em 2014, que "muitas mulheres sofrem tratamento desrespeitoso e abusivo durante o parto em instalações de saúde em todo o mundo. Esse tratamento não só viola os direitos das mulheres a cuidados respeitosos, mas também pode ameaçar seus direitos à vida, à saúde, à integridade corporal e à liberdade de discriminação." Embora atinja mulheres independentemente de raça, credo, idade ou condição socioeconômica, a violência obstétrica revela-se como uma expressão particular de violência de gênero, ainda pouco visibilizada e insuficientemente enfrentada por legislações específicas. Importante ressaltar que, na análise de casos envolvendo violência obstétrica, exige-se a consideração de uma tríade fundamental: a mulher grávida, os profissionais de saúde envolvidos e o nascituro. É necessário observar o contexto social e os valores de dignidade da gestante, respeitando sua autonomia durante o parto. Os profissionais, por sua vez, devem seguir normas éticas e legais que regulam sua conduta, e qualquer agente que atue no ambiente obstétrico pode ser potencial autor de violência. Já o nascituro, ainda não nascido, possui direitos juridicamente tutelados, devendo sua proteção ser levada em conta em todas as decisões. Na prática obstétrica, determinadas condutas médicas podem ultrapassar o campo da mera tecnicidade e gerar implicações jurídicas profundas. Quando ocorrem abusos, omissões, procedimentos não consentidos ou atitudes desrespeitosas no cenário do parto, é possível que o mesmo fato seja analisado sob diversas lentes normativas. Uma única conduta médica pode dar ensejo à responsabilização civil, penal e ética-administrativa, conforme a natureza do dano causado, a existência de culpa e os deveres profissionais violados. Quando falamos em violência obstétrica, é preciso reconhecer que, para além da sua carga simbólica e social, ela é juridicamente compreendida como um fato gerador de dano, passível de reparação. Na esfera civil, o foco será a reparação do dano, ainda que exclusivamente moral, sofrido pela parturiente ou pelo nascituro, com base na conduta negligente, imprudente ou imperita do profissional. A responsabilização se dá por violação ao dever de cuidado e ao princípio da dignidade da pessoa humana, podendo envolver indenizações significativas, especialmente quando houver sequelas físicas, traumas psicológicos ou violação da autonomia reprodutiva da mulher. O CC, tanto brasileiro quanto português, oferece suporte normativo para essa responsabilização com base nos artigos que tratam de atos ilícitos e do dever de indenizar. Na esfera penal, a conduta médica pode ser enquadrada como crime sempre que exceder os limites da atuação legalmente permitida e causar lesão à integridade física, psíquica ou à vida da paciente. A depender da gravidade dos fatos, o profissional poderá responder, por exemplo, por lesão corporal, constrangimento ilegal, omissão de socorro ou, em situações extremas, por homicídio culposo. Cabe destacar que a responsabilização penal exige demonstração de dolo ou culpa grave, e está sujeita ao devido processo legal, com todas as garantias constitucionais. Por fim, na esfera ética-administrativa, o médico pode ser responsabilizado por violar preceitos do Código de Ética Médica, o que poderá resultar em advertência, suspensão ou até cassação do exercício profissional. Nessas hipóteses, a análise se concentra na conduta em face dos deveres profissionais, como o respeito à dignidade da paciente, o fornecimento de informações claras e o cumprimento do consentimento informado. Mesmo sem a configuração de crime ou de dano patrimonial relevante, a atuação do Conselho Profissional poderá reconhecer a falha ética, reforçando a natureza complexa da responsabilidade médica em suas diversas esferas no contexto da violência obstétrica. Partindo-se para uma análise verticalizada das esferas de responsabilidade, como afirmado anteriormente, no Brasil, a responsabilização do médico segue a regra geral da responsabilidade subjetiva, com fundamento nos arts. 186 e 927 do CC. É necessário, portanto, comprovar a ocorrência de conduta culposa (por negligência, imprudência ou imperícia), dano e nexo causal. Em se tratando de prestação de serviços por hospitais ou planos de saúde, poderá haver ainda responsabilidade solidária, inclusive com base no CDC. Em sede de parto, são exemplos de condutas que podem gerar responsabilidade civil: a realização de procedimentos sem consentimento informado (como episiotomias, cesáreas ou manobras dolorosas), práticas desnecessárias e não baseadas em evidências - como uma cesárea sem real indicação clínica, a omissão injustificada de analgesia e cesárea, a recusa ao acompanhante legalmente garantido ou ainda o uso de expressões ofensivas que afetem a dignidade da parturiente. Mesmo quando não há lesão física identificável, o dano moral é plenamente reparável, conforme já reconhecido por diversos tribunais brasileiros. A jurisprudência vem evoluindo no sentido de reconhecer a singularidade da vivência obstétrica e os impactos que práticas desrespeitosas podem gerar. Em Portugal, embora o CC também fundamente a responsabilidade civil médica na lógica subjetiva, o sistema jurídico apresenta nuances próprias. Os arts. 483.º e 562.º consagram que quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, está obrigado a reparar os danos decorrentes da sua conduta. No contexto da assistência ao parto, os danos reparáveis podem decorrer tanto de intervenções desnecessárias quanto da omissão de cuidados ou do desrespeito à vontade expressa da gestante. A jurisprudência portuguesa, tende a reconhecer a relevância do dano psíquico, especialmente quando há quebra da confiança entre médico e paciente ou afronta à autodeterminação reprodutiva. Vale destacar que, à época da redação deste trabalho, Portugal ainda não havia aprovado uma lei específica sobre violência obstétrica. No entanto, como demonstrado, os fundamentos legais já existentes permitiam responsabilizar condutas abusivas com base na violação de direitos fundamentais como a integridade física e moral, o respeito à dignidade da mulher e a necessidade de consentimento esclarecido. Com a entrada em vigor da lei 33/25, que será debatida oportunamente, esses entendimentos ganham densidade normativa, mas não representam uma ruptura: apenas reforçam um caminho, o entendimento jurídico já adotado por decisões e pela doutrina. Tanto no Brasil quanto em Portugal, a responsabilização civil na seara obstétrica exige uma análise contextualizada do caso concreto, levando em conta não apenas a técnica médica, mas também os direitos da mulher como sujeito ativo da experiência de parto e não como um objeto a ser esvaziado. Trata-se de uma responsabilidade que transcende o dano físico, adentrando o campo da dignidade humana e da integridade relacional entre médico, paciente e nascituro. O médico, ao atuar de forma desatenta, autoritária ou desprovida de empatia, incorre não só em erro técnico, mas em violação contratual qualificada, com repercussões civilmente indenizáveis. Já a responsabilização penal do médico por atos praticados durante o parto é menos frequente que a civil, mas não menos relevante. A violência obstétrica, quando ultrapassa certos limites, pode se encaixar em tipos penais, conforme já mencionado - especialmente se envolver lesões, constrangimentos, ofensas verbais ou omissão de socorro. A proteção penal se dirige tanto à gestante quanto ao nascituro, refletindo a relevância da tutela penal em momentos de elevada vulnerabilidade física e emocional. No Brasil, os dispositivos aplicáveis são diversos. A depender da conduta, o médico pode responder, por exemplo, por lesão corporal (art. 129 do CP), ao realizar procedimentos invasivos desnecessários ou não consentidos; no crime de constrangimento ilegal (art. 146), se obrigar a paciente, mediante intimidação, a submeter-se a práticas contra sua vontade; no crime de injúria (art. 140), ao proferir xingamentos ou comentários depreciativos durante o parto; e, em situações extremas, no crime de homicídio culposo (art. 121, §3º), quando sua negligência resultar na morte do bebê ou da parturiente. A omissão de socorro (art. 135) também é frequentemente invocada em contextos em que o profissional, mesmo presente, deixa de agir diante de risco evidente. Em Portugal, o CP também contempla a possibilidade de responsabilização criminal do médico. O art. 148.º prevê punição para quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outrem, inclusive no contexto da assistência médica. Já o art. 150.º estabelece que intervenções realizadas em desacordo com as leges artis, ou seja, fora dos padrões técnicos reconhecidos, podem configurar crime, sobretudo se gerarem perigo à vida ou à integridade da mulher ou do nascituro. O art. 156.º criminaliza a realização de tratamentos sem consentimento, exceto em situações de risco iminente, e o art. 157.º exige que o paciente esteja adequadamente esclarecido quanto à natureza e consequências da intervenção, sob pena de invalidar o consentimento. Ressalta-se que, em ambas as jurisdições, a responsabilização penal exige a comprovação de dolo ou culpa grave. No entanto, o exercício da medicina obstétrica, por sua complexidade e impacto emocional, exige do profissional mais do que técnica: exige sensibilidade, respeito e prudência. A ausência dessas qualidades pode ser juridicamente interpretada como descaso, desprezo à integridade da paciente ou negligência com a vida intrauterina, o que atrai a aplicação de sanções penais. Por isso, mais do que temer a responsabilização criminal, o médico deve compreendê-la como um alerta para os limites éticos e legais da sua prática. A humanização do parto não é apenas uma diretriz política, mas uma exigência jurídica. Violá-la, mesmo sob o pretexto da experiência clínica ou da rotina hospitalar, pode implicar não apenas indenizações, mas privação de liberdade, sanções restritivas de direitos ou até a destruição da carreira profissional. O direito penal, neste contexto, atua como a instância de resposta mais severa do ordenamento e, justamente por isso, deve ser tratado com seriedade e responsabilidade desde a formação médica. Para além das esferas civil e penal, como dito anteriormente, o médico obstetra está submetido a um terceiro eixo de responsabilização: a ética-profissional ou deontológica, fiscalizada pelos Conselhos de Medicina no Brasil e pela Ordem dos Médicos em Portugal. Trata-se de uma instância de análise que, embora não envolva diretamente reparação pecuniária ou sanção penal, possui impacto profundo sobre a legitimidade, a reputação e a continuidade do próprio exercício profissional. No Brasil, o CEM - Código de Ética Médica é o principal instrumento normativo que orienta a conduta esperada do profissional. A responsabilidade médica, como destaca o art. 1º do CEM, é sempre pessoal e fundamentada na presença de culpa, por imperícia, imprudência ou negligência. A violência obstétrica, mesmo sem tipificação própria no CEM, pode ser enquadrada em diversos dispositivos que exigem do médico respeito à dignidade, autonomia, intimidade e integridade da paciente. A realização de procedimentos sem consentimento (art. 22), o desrespeito à decisão da paciente (art. 31), a falta de esclarecimento adequado (art. 34) ou o uso de linguagem desrespeitosa (art. 23) são faltas éticas puníveis com advertência, suspensão ou cassação do registro profissional. Em Portugal, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos cumpre papel equivalente. O médico é obrigado a garantir o consentimento informado, o respeito pelas crenças e autonomia da gestante, bem como a comunicação empática, adequada e clara. O art. 19.º prevê o dever de esclarecimento, o art. 20.º trata do consentimento livre e informado, e o art. 25.º reforça o dever de informar com prudência, dignidade e humanidade. A omissão desses deveres, mesmo que não configure crime ou gere dano material imediato, é suficiente para ensejar a abertura de processo disciplinar, com sanções que incluem advertência, censura, suspensão ou mesmo expulsão da Ordem. Importante destacar que, diferentemente da esfera penal ou civil, a responsabilização ética não exige demonstração de nexo causal com dano físico, bastando a violação de um dever profissional ou o descumprimento das boas práticas de cuidado. Assim, mesmo um comentário desnecessário, uma atitude autoritária ou uma conduta tecnicamente correta, mas eticamente reprovável, pode ser sancionada. A perspectiva ética, portanto, antecipa o dano jurídico, atuando como instrumento de prevenção e regulação moral da prática médica. Essa dimensão é particularmente sensível na violência obstétrica, pois os princípios da medicina são centrados na pessoa. O respeito à mulher em trabalho de parto exige mais do que a ausência de erro técnico: há necessidade de escuta, acolhimento e compromisso com uma assistência baseada em evidências e em humanidade. A ética médica, nesse contexto, não é apenas normativa, ela é estrutural. A lei portuguesa 33/25: Marco normativo para a proteção da gestante e a prevenção da violência obstétrica A promulgação da lei 33/25, de 31 de março, representou um marco inédito no ordenamento jurídico português ao reconhecer expressamente a existência e gravidade da violência obstétrica. Pela primeira vez, o legislador tipificou juridicamente a prática como forma de violência institucional e de gênero, estabelecendo diretrizes objetivas para sua prevenção, monitoramento e responsabilização. A nova lei alterou a lei 15/14, consolidando a proteção na gravidez, no parto e no puerpério, além de reforçar o direito à autodeterminação sexual e reprodutiva da mulher. O art. 2.º da lei 33/25 define violência obstétrica como "a ação física e verbal exercida pelos profissionais de saúde sobre o corpo e os procedimentos na área reprodutiva das mulheres ou de outras pessoas gestantes, que se expressa num tratamento desumanizado, num abuso da medicalização ou na patologização dos processos naturais". Essa definição, reforça a proteção da gestante como sujeito autônomo de direitos, sem desconsiderar o papel do profissional ou os limites técnicos da atuação médica. Além disso, a lei criou mecanismos operacionais relevantes, como a Comissão Multidisciplinar para os Direitos na Gravidez e no Parto, que é responsável por promover campanhas educativas e de sensibilização para diminuição de atos de violência no parto e promoção da humanização. Estabeleceu obrigações documentais, como o registro justificado de qualquer desvio do plano de parto, a afixação obrigatória de cartazes informativos nos hospitais e a proibição de episiotomias de rotina sem indicação técnica fundamentada. A norma prevê, ainda, medidas educacionais e formativas. Assim, não apenas tipifica uma conduta, mas impulsiona uma mudança cultural e ética no atendimento obstétrico. Entretanto, a entrada em vigor da lei 33/25 não encerrou o debate. Projetos de lei que visam à sua revogação foram rapidamente apresentados no Parlamento, revelando resistências institucionais à regulação da prática obstétrica, evidenciando que a consolidação de um modelo de parto respeitoso e centrado na mulher depende não apenas de leis, mas da persistência na construção de consensos éticos e sociais duradouros, que para além da lei, faz-se necessária uma verdadeira mudança cultural. Reflexões finais - a necessidade de tutela integrada dos direitos em caso de colisão A violência obstétrica não se limita à agressão física, mas abrange condutas sutis e simbólicas que podem comprometer profundamente a dignidade da parturiente e a segurança do neonato. A responsabilização do profissional deve considerar o equilíbrio delicado entre a autonomia da mulher, os deveres de diligência médica e os direitos do nascituro. A ausência de lei específica no Brasil não impede o reconhecimento jurídico da violência obstétrica, desde que os princípios constitucionais, civis e éticos sejam adequadamente interpretados. Já em Portugal, a entrada em vigor da lei 33/25 reforça o compromisso com a humanização do parto, embora sua efetividade dependa de sua consolidação normativa e cultural. A atuação médica no parto carrega um dos encargos mais delicados e simbólicos da profissão: o de assistir à transição entre vida intrauterina e extrauterina, zelando simultaneamente por duas existências ou por vezes mais. O profissional não é inimigo da autonomia da mulher, tampouco mero executor da sua vontade, mas um agente técnico, ético e jurídico responsável por garantir a melhor prática possível, com base na medicina baseada em evidências, no diálogo empático e no respeito às escolhas informadas. Ao mesmo tempo, não se pode desconsiderar que o nascituro, embora ainda não tenha personalidade jurídica plena, possui proteção legal desde a concepção e demanda atenção especial diante de riscos concretos. Por isso, a atuação obstétrica deve buscar constantemente o equilíbrio entre três eixos fundamentais: a vontade da mulher gestante, a responsabilidade técnica e legal do profissional de saúde e os direitos do nascituro. Quando um desses pilares é ignorado, rompe-se o vínculo de confiança que sustenta uma assistência humanizada e juridicamente segura. O objetivo das normas é transformar a cultura do cuidado, e não apenas punir. O médico obstetra do século XXI deve ser tecnicamente preparado, legalmente consciente, humanamente disponível e empático. A escuta, o diálogo e o respeito à individualidade da mulher, são elementos centrais de uma assistência ética, segura e digna. _______ ALMEIDA, Maria Oliveira de. Violência obstétrica: nulla poena sine lege? Lisboa, 2022. - Dissertação de Mestrado em Direito, Faculdade de Direito da Universidade Lusíada. DANTAS, Eduardo. Direito Médico. 5 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. FERRAZ, Inês Isabel Ribeiro. A Raiz de Mandrágora: A Violência Obstétrica Enquanto Questão de Responsabilidade Civil Médica e Consentimento Informado. Coimbra, 2024. Dissertação. KFOURI Neto, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 11 ed. Ver, atual. e ampl. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021. SIMÕES, Vânia Alexandra dos Santos, Violência Obstétrica, Direitos das Mulheres e Tutela Jurídica. Lisboa, 2023. Tese de Doutoramento
A autonomia da paciente, especialmente no contexto obstétrico, constitui expressão concreta de sua dignidade e dos direitos fundamentais à liberdade, à saúde, à autodeterminação e aos direitos sexuais e reprodutivos, consagrados na Constituição Federal de 1988, em dispositivos infraconstitucionais e em diversas resoluções do CFM - Conselho Federal de Medicina. No campo da saúde, o exercício dessa autonomia se concretiza por meio de deveres atribuídos ao médico, sobretudo o dever de informação, que pressupõe esclarecimentos precisos, em linguagem acessível e compatível com o nível de compreensão do assistido, permitindo-lhe consentir ou recusar, de forma livre e consciente, os procedimentos propostos. O Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/18) reforça aludido dever em diversos dispositivos (arts. 22, 24, 31, 32 e 34), sendo complementado pela resolução CFM 2.232/19, que dispõe expressamente no art. 1º: "a recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão." Contudo, é importante destacar que a autonomia da paciente, embora garantida pela legislação e reafirmada pela resolução CFM 2.232/19, não possui caráter absoluto, especialmente em contextos de risco iminente de morte. Além disso, as diretivas expressas pela gestante devem ser analisadas à luz da autonomia técnica do médico, igualmente respaldada por fundamentos legais e deontológicos. Essa relação (entre os limites da vontade da paciente e a atuação profissional adequada) apresenta desafios recorrentes na prática obstétrica, inclusive quando a parturiente apresenta um plano individual de parto com escolhas que podem ser incompatíveis com a segurança assistencial ou com as melhores evidências científicas disponíveis. O PIP - plano individual de parto é um documento que registra previamente os desejos da gestante em relação ao trabalho de parto, ao parto e ao pós-parto imediato. É uma diretiva antecipada de vontade, em que a mulher expressa preferências sobre procedimentos, intervenções e condutas que afetarão diretamente seu corpo e sua experiência de parto. Representa um instrumento de proteção à integridade física e psíquica da mulher, funcionando como barreira contra condutas de apropriação ou desrespeito ao seu corpo. Embora não seja condição para a realização do parto, o PIP é um direito da gestante, expressamente reconhecido por diretrizes do Ministério da Saúde1, recomendação do CFM2 e por algumas legislações estaduais3. Cabe ao médico garantir que a paciente seja esclarecida sobre esse direito, em respeito aos princípios elementares da bioética. Ainda assim, sua aplicação na prática exige cautela, pois envolve decisões clínicas que impactam diretamente a saúde materno-fetal, impondo-se, em razão disso, equilíbrio ético, técnico e jurídico, sem respostas absolutas ou soluções padronizadas. Plano de parto: elaboração conjunta, balizas técnico-jurídicas e busca de consenso por meio do diálogo Conquanto o PIP tenha sido concebido para salvaguardar a autonomia, preferências e protagonismo da gestante, é recomendável que sua elaboração conte com a participação técnica do profissional. A efetividade do documento depende de construção colaborativa, pautada na medicina baseada em evidências e nos limites legais da atuação médica. Compete ao obstetra orientar a paciente de forma clara, realista e juridicamente adequada, esclarecendo riscos, benefícios e inviabilidades clínicas ou normativas de determinadas escolhas. Por exemplo, caso a gestante manifeste o desejo de submeter-se a um parto domiciliar, compete ao médico esclarecer, de forma respeitosa, que o CFM, apesar de não ter editado resolução com caráter proibitivo, orienta que o parto ocorra em ambiente hospitalar, por ser mais seguro para a mãe e o bebê (recomendação CFM 1/12), em razão de riscos de eventos imprevisíveis, como distócias, sofrimento fetal e necessidade de intervenções emergenciais. A depender da circunscrição do médico, todavia, há resoluções em vigor que vedam a participação médica em partos fora do ambiente hospitalar, como é o caso das resoluções CREMESP 111/2004  e CRM-SC 193/19. O plano de parto deve ser, via de regra, abraçado pela equipe responsável pela assistência. Quando o documento é apresentado apenas no dia do parto, tendo sido elaborado sem a participação do médico plantonista, cabe a ele receber o documento, avaliá-lo e, sempre que possível, seguir suas diretrizes, sem prejuízo de dialogar com a paciente sobre seu conteúdo, à luz das condições clínicas apresentadas, das possibilidades técnicas da unidade de saúde e das evidências científicas disponíveis. É recomendável conciliar os desejos da paciente e a conduta assistencial adequada, propondo alternativas tecnicamente viáveis. A título de exemplo, diante da recusa de uma cesariana indicada, pode-se propor uma tentativa de parto instrumental com fórceps, se houver viabilidade clínica. Essa abordagem está em conformidade com o art. 2º, parágrafo único, da resolução CFM 2.232/19, que prevê: "o médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível." O parecer CFM 5/24 também reforça essa diretriz ao tratar do plano individual de parto, orientando que o profissional ofereça opções seguras diante de impasses. Impasse entre a vontade da paciente e a conduta médica: Deveres do obstetra em contextos críticos Se a vontade da gestante representar risco grave à sua saúde ou à do feto, sem consenso possível, o médico deve seguir as diretrizes abaixo: Em caso de risco iminente de morte, a intervenção médica, a princípio, se impõe como dever legal e ético, mesmo sem consentimento prévio, conforme o art. 11 da resolução CFM 2.232/19 e o art. 146, §3º, I, do Código Penal. A modo  exemplificativo, diante de um quadro de eclâmpsia com convulsões e instabilidade hemodinâmica, é lícito (e obrigatório) propor a antecipação do parto por cesariana, ainda que a paciente tenha registrado preferência pelo parto vaginal em seu plano de parto. Se a paciente estiver lúcida e em condições de compreender, o diálogo deve ser priorizado, esclarecendo-se os riscos envolvidos e a necessidade da conduta proposta. Nos casos em que não há tempo hábil para o consentimento ou a paciente se encontra inconsciente, o médico deverá realizar intervenção médica imediata, desde que tecnicamente fundamentada, proporcional e registrada no prontuário, para salvaguarda da vida da mãe e/ou do feto. Cumpre dizer que está em trâmite a ação civil pública 5021263-50.2019.4.03.6100 (2ª Vara Cível Federal de São Paulo). Na referida ação, foi inicialmente concedida tutela de urgência para suspender a eficácia do § 2º do art. 5º da resolução CFM 2.232/20094 (que previa a possibilidade de a recusa terapêutica da gestante ser considerada abuso de direito em relação ao feto) bem como suspender parcialmente os arts. 6º e 10º da mesma norma. O juízo afastou a prerrogativa conferida ao médico de interpretar livremente o conceito de "abuso de direito" por parte da gestante em relação ao feto, com o objetivo de coibir condutas médicas autoritárias. Ainda assim, reconheceu-se que o risco efetivo à vida ou à saúde da gestante e/ou do feto deverá ser considerado fundamento legítimo para restringir a escolha da paciente. Convém destacar que a sentença revogou a referida liminar, mas seus efeitos foram restabelecidos por decisão monocrática proferida pelo desembargador Mairan Maia, do TRF da 3ª Região, ao apreciar pedido de atribuição de efeito suspensivo à apelação interposta pelo Ministério Público Federal. O mérito do recurso, até a presente data (30/6/25), permanece pendente de julgamento. Na ausência de risco iminente de morte, ou seja, fora do contexto de uma emergência obstétrica, a escolha da paciente não deve ser acolhida quando colidir com a autonomia técnica do médico. Um exemplo é a insistência da gestante em se submeter ao parto normal mesmo diante de herpes genital ativa no momento do parto, prática contraindicada pela literatura médica. Nessas circunstâncias, o médico deve observar os requisitos previstos no art. 12, parágrafo único, da Resolução CFM 2.232/19, em consonância com o Parecer CFM 2/24: i) Documentar minuciosamente a conduta indicada, os riscos da recusa e a contraindicação clínica da intervenção pretendida pela paciente; ii) Formalizar a recusa da paciente por escrito, em vídeo ou áudio, com declaração de ciência dos riscos e assinatura de duas testemunhas, anexando ao prontuário; iii) Comunicar a direção técnica da instituição para avaliar a substituição do profissional. Na ausência de outro médico disponível, o obstetra não poderá se afastar, mas também não está obrigado a executar uma intervenção contraindicada, devendo adotar postura expectante e formalizar a recusa da paciente ao tratamento indicado, nos mesmos moldes descritos acima. Objeção de consciência: quando recusar é legítimo, e quando não é permitido Nas situações em que a conduta solicitada pela paciente, ainda que lícita e prevista na literatura médica, conflita com valores morais, íntimos ou religiosos do profissional, configurando objeção de consciência, ele poderá se abster de realizá-la, nos termos dos arts. 7º e 8º da Resolução CFM 2.232/19. É o caso, por exemplo, de um obstetra que se nega a realizar laqueadura tubária durante cesariana ou praticar aborto terapêutico, por motivos de foro íntimo. Em tais contextos, o objetor deve: i)  Manifestar sua objeção à paciente, com urbanidade e clareza, colocando-se à disposição para fornecer as informações necessárias à continuidade da assistência por outro profissional; ii) Registrar no prontuário a sua objeção, sem juízo de valor sobre a decisão da paciente; iii) Comunicar formalmente à direção técnica da instituição, para que seja providenciada a substituição imediata por outro médico não objetor. Em caso de urgência, risco de morte ou ausência de outro obstetra, o médico tem o dever de atuar, independentemente de objeções pessoais. Planos de parto e judicialização: Entre a escolha da parturiente e a responsabilidade médica O Judiciário tem reconhecido a legitimidade dos planos de parto. Em recente julgado, o TJ/RS confirmou a condenação de hospital por impedir, sem justificativa válida, a presença do pai na sala de parto, desrespeitando o plano previamente apresentado e gerando indenização por dano moral.5 Por outro lado, o cumprimento do PIP pode ser relativizado diante de intercorrências. Foi o que entendeu o juízo da 2ª Vara Cível de Sorocaba/SP, ao julgar improcedente pedido de indenização por suposto desrespeito ao plano de parto.6 A autora alegava ter sido vítima de "violência obstétrica" porque não houve contato pele a pele na primeira hora de vida da bebê, o clampeamento do cordão umbilical foi precoce e porque a doula não pôde acompanhá-la no centro cirúrgico. Contudo, o perito esclareceu que houve laceração perineal de 3º grau com rompimento de esfíncter anal, o que exigiu correção cirúrgica urgente e inviabilizou a presença do bebê e da doula na sala operatória. Além disso, o clampeamento precoce foi indicado diante da presença de circular cervical justa no bebê, medida necessária para evitar hipóxia. O juízo concluiu que as condutas adotadas pela equipe médica estavam alinhadas à boa prática obstétrica e respaldadas por evidências científicas. Assim, o caso ilustra que o disposto no plano de parto pode ceder frente a situações de risco real para mãe e/ou bebê. Notas finais: O parto como território de escuta, ciência e confiança Com o fortalecimento da autonomia da gestante, o plano individual de parto passou a exigir do obstetra uma atuação ainda mais consciente, humana e respaldada. A construção de uma assistência segura depende da compatibilização entre os limites da ciência médica e os desejos expressos pela paciente. Diante de recusas terapêuticas ou exigências inexequíveis, cabe ao médico  orientar com paciência, registrar adequadamente e manejar a situação com escuta qualificada, em conformidade com as normas éticas e legais. O plano de parto, embora valioso, não é absoluto. Pode, inclusive, não ser acolhido diante de riscos concretos à saúde ou à vida. Ainda assim, não se admitem condutas médicas arbitrárias, como submeter a gestante, à força, a procedimentos que rejeita, o que violaria sua dignidade. Nessas situações, o diálogo continua sendo o recurso mais eficaz para conduzir decisões em cenários limítrofes. Enfim, este artigo buscou oferecer algumas balizas jurídicas à prática obstétrica, sem pretensão de respostas definitivas, até porque nem as resoluções do CFM, tampouco decisões como a proferida na ação civil pública 5021263-50.2019.4.03.6100, solucionam plenamente os impasses do parto. Em todos os casos, o bom senso, uma conversa franca e a precisão técnica devem conduzir as ações médicas. Contar com suporte jurídico especializado é medida estratégica para reduzir riscos e judicializações. _________ 1 BRASIL. Ministério da Saúde; Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. 51?p. Disponível aqui. Acesso em: 27/6/25.   2 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Parecer CFM nº?5/2024. [Parecer sobre Plano Individual de Parto]. Brasília: CFM, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 jun. 2025. 3 SÃO PAULO (Estado). Lei nº 17.431, de 14 de outubro de 2021. Dispõe sobre o direito ao plano de parto e pós-parto imediato no âmbito do Estado de São Paulo. Diário Oficial do Estado de São Paulo, Poder Executivo, São Paulo, 15 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em 27/6/25 4 Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientese objeção de consciência na relação médico-paciente 5 TJRS. Recurso Inominado n. 5010431-62.2018.8.21.0019, 2ª Turma Recursal da Fazenda Pública, Rel. Daniel Henrique Dummer, j. 19 jun. 2024, publ. 2 jul. 2024. 6 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça. 3ª Vara Cível de Sorocaba. Processo n. 1031702-86.2020.8.26.0602. Ação de indenização por danos morais. Sentença da Juíza Alessandra Lopes Santana de Mello. Sorocaba, SP, 20 out. 2023. _________ CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução CFM nº 2.232/ 2019.  Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Parecer CFM nº 5/2024.  Disponível aqui. Acesso em: 8/6/25. BRASIL. Justiça Federal. São Paulo. 2ª Vara Cível Federal. Ação Civil Pública nº 5021263-50.2019.4.03.6100. Ministério Público Federal x Conselho Federal de Medicina. Classe: Ação Civil Pública Cível. São Paulo, em tramitação. Acesso em 30/6/25.
O portador de doença rara, enquanto usuário do SUS, é titular de direitos expressamente garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), notadamente o direito universal e igualitário ao acesso à saúde (art. 196, CRFB/1988). Essa condição, por si só, deveria assegurar o atendimento integral de suas necessidades clínicas pela rede pública, nos moldes dos princípios da integralidade, equidade e universalidade que regem o SUS (art. 7, I, II e IV da lei 8.080/1990). Na prática, contudo, os pacientes acometidos por enfermidades de baixa prevalência enfrentam um cenário de desassistência e invisibilidade. Faltam protocolos clínicos específicos, há escassez de medicamentos incorporados e, não raramente, a omissão estatal perpetua a exclusão desses indivíduos do cuidado público efetivo. Ao contrário do que ocorre com doenças mais prevalentes, muitas delas contempladas por diretrizes terapêuticas padronizadas, o indivíduo com doença rara frequentemente encontra obstáculos regulatórios, científicos e logísticos que dificultam ou inviabilizam o acesso ao tratamento adequado. Reconhecendo essas especificidades clínicas e os desafios assistenciais próprios das doenças raras, o Ministério da Saúde instituiu, por meio da portaria GM/MS 199/14 (atualmente incorporada à portaria de consolidação 2/17, em seu anexo XXXVIII), a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Para os fins dessa política pública (art. 3º do anexo XXXVIII da portaria de consolidação 2/17): "considera-se doença rara aquela que afeta até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 a cada 2.000 habitantes.". Trata-se, portanto, de um grupo populacional estatisticamente reduzido, o que impacta diretamente na priorização e no desenvolvimento de terapias específicas. Mais delicados ainda são os casos de doenças ultrarraras, cuja prevalência é igual ou inferior a 1 caso para cada 50 mil habitantes, conforme previsto no art. 2º da resolução 563/17 do Conselho Nacional de Saúde. Essa baixa prevalência, aliada à complexidade clínica, contribui para a ausência de protocolos e a não incorporação de medicamentos ao SUS. Por essa razão, frequentemente o acesso ao tratamento é negado, restando ao paciente buscar o Judiciário para garantir o fármaco prescrito. Nesse contexto, reconhecendo as peculiaridades que envolvem os portadores de doenças raras e ultrarraras, o STF, ao julgar o RE 657.718/MG (Tema 500 da repercussão geral), estabeleceu critérios específicos para a concessão judicial de medicamentos sem registro sanitário na Anvisa. A tese firmada ao estabelecer critérios excepcionais para a concessão judicial de medicamentos sem registro na Anvisa, em seu item 3, "I", excepcionou expressamente os casos de doenças raras e ultrarraras, afastando a exigência de pedido de registro no Brasil, reconhecendo a inviabilidade regulatória em razão da baixa prevalência e do desinteresse comercial. Neste sentido, o voto vista do ministro Alexandre de Moraes, proferido no julgamento do Tema 500 (RE 657.718/MG), no qual reconhece expressamente a excepcionalidade das doenças raras (p. 15): Então, há essa problemática da dificuldade de análise dos medicamentos órfãos até por parte da Anvisa, uma vez que não pedido o registro, também ela não tem obrigatoriedade de analisar. São aqueles medicamentos destinados a doenças que atingem até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas a cada dois mil indivíduos, nos termos do art. 3º da portaria 199, de 1914, que definiu, no Brasil, com parâmetros mundiais, obviamente, o que é doença rara e semi rara. É crucial, obviamente, que, nesses casos, haja um procedimento de análise para verificação da disponibilidade desses medicamentos. Na mesma linha, o ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto vista (p. 21), reforça a necessidade de flexibilização excepcional para medicamentos órfãos, nos seguintes termos: A única exceção em relação a esse requisito seria o caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras, para os quais não houve solicitação de registro, em razão da falta de viabilidade econômica. Nesses casos, a parte deverá demonstrar que (i) a doença é rara conforme os critérios da RDC - Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa 205/17 (enfermidade que atinge até 65 pessoas em cada 100 mil) e (ii) não há protocolo clínico específico do Ministério da Saúde para o tratamento da doença. Inclusive, a súmula vinculante 60 (SV 60), resultado da sistematização do Tema 1.234, ao tratar em sua diretriz II sobre a "definição de medicamentos não incorporados", recepciona expressamente o entendimento fixado no Tema 500 do STF, determinando sua aplicação aos casos de fármacos não incorporados em razão da ausência de registro sanitário na Anvisa (item 2.1.1 da SV 60). Quanto aos fármacos com registro na Anvisa, mas ainda não incorporados ao SUS, seja por ausência de solicitação, mora na análise pela Conitec e/ou inexistência de portaria específica do Ministério da Saúde, impõe-se especial cautela interpretativa, a fim de que não se estabeleçam limitações injustificadas ao acesso de pacientes com doenças raras aos tratamentos prescritos. Nesse cenário, a SV 60, em sua Diretriz IV, trata da "Análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamentos pelo SUS", enquanto a súmula vinculante 61 (SV 61), decorrente do Tema 6, estabelece critérios cumulativos para a concessão excepcional de medicamentos não incorporados, desde que possuam registro sanitário na Anvisa. Dentre as condições, destaca-se, por sua rigidez, a imposição ao demandante de demonstrar, mediante evidências científicas de alto nível, a segurança e a eficácia do fármaco, conforme a Medicina Baseada em Evidências, bem como a ausência de substituto terapêutico na rede pública para a condição clínica (itens 4.3 e 4.4 da SV 60 e item 2, "d" da SV 61). Isso porque a exigência de evidências de alto nível, quando aplicada a pacientes com doenças raras e ultrarraras, pode inviabilizar o acesso ao tratamento, resultando em completa desassistência clínica, limitada, quando muito, a cuidados paliativos. Para fins de compreensão quanto à qualificação das evidências científicas - especialmente no que se refere ao denominado alto nível - destaca-se, como referência metodológica o sistema GRADE - Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation, mencionada nas diretrizes metodológicas disponibilizadas pela própria Conitec em seu sítio oficial.1 O sistema GRADE, classifica a qualidade da evidência científica, especialmente no tocante à segurança e eficácia na utilização de um fármaco, em quatro níveis: muito baixo, baixo, moderado e alto, conforme (Brasil, 2014, p. 19): No sistema GRADE, a avaliação da qualidade da evidência é realizada para cada desfecho analisando para uma dada tecnologia, utilizando o conjunto disponível de evidência. No GRADE, a qualidade da evidência é classificada em quatro níveis: alto, moderado, baixo, muito baixo, [...]. Essa graduação representa diferentes níveis de confiabilidade, variando desde evidências menos estruturadas até estudos metodologicamente robustos, sendo o grau de qualidade determinado pelas características técnicas, metodológicas e resultados de cada estudo. No sistema GRADE, o que justifica a progressão do nível de evidência não é apenas a constatação de eficácia em casos pontuais, mas sim a reprodutibilidade sistemática de resultados, com análise estatística robusta e metodologia científica rigorosa (BRASIL, 2014, p. 23). Portanto, não há como se alcançar o patamar de "alto nível" com base em dados isolados ou experiências clínicas individuais. A exigência por ensaios randomizados de larga escala reflete justamente essa necessidade de uniformidade, controle de variáveis e validação estatística dos resultados obtidos. Isto é, o "alto nível" de evidência, pressupõe a existência de ensaios clínicos randomizados,2 revisões sistemáticas3 ou meta-análises4 que atestam a consistência dos resultados. Em contrapartida, o "nível muito baixo" corresponde a construções empíricas5 e observacionais,6 baseadas na experiência clínica do profissional médico para sustentar a indicação de determinado fármaco. Trata-se de critério técnico justificável em cenários de ampla base populacional, mas inaplicável a doenças raras e ultrarraras, cuja baixa prevalência inviabiliza estudos amplos e atualizados. Exigir, nesses casos, evidências de alto nível como condição para concessão do tratamento equivale a negar, na prática, o próprio direito à saúde, impondo ao paciente um ônus probatório desproporcional. Tal exigência compromete a efetividade da tutela jurisdicional e enfraquece a proteção constitucional garantida pelos arts. 6º e 196 da CRFB/1988. Diante disso, a interpretação sistemática, assegura a coerência do ordenamento jurídico e preserva a integridade dos preceitos constitucionais, como o direito à saúde (art. 196, da CRFB/1988), o acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB/1988) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/1988). Conforme leciona Barroso (2003, p. 136): A interpretação sistemática é fruto da ideia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas. Conforme expressamente consignado no ponto 4 da ementa do RE 566.471/RN (Tema 6 do STF): "a análise conjunta do presente Tema 6 e do Tema 1.234 é, assim, fundamental para evitar soluções divergentes sobre matérias correlatas". Sob essa ótica, a SV 61 deve ser interpretada em conjunto com a SV 60, que incorpora expressamente o Tema 500 do STF, o qual admite a flexibilização probatória para medicamentos destinados ao tratamento de doenças raras. Não se pode admitir, portanto, que as súmulas vinculantes 60 e 61 sejam interpretadas de forma isolada, a ponto de estabelecer um ônus probatório intransponível que, na prática, inviabiliza o acesso à saúde, especialmente para pacientes acometidos por doenças de baixa prevalência (raras e ultrarraras). Esse resultado interpretativo comprometeria não apenas a efetividade da jurisdição constitucional, como também anularia, por via oblíqua, os comandos da própria Constituição Federal. Deste modo, é imperioso reconhecer que, nos casos de doenças raras e ultrarraras, mesmo quando se trate de medicamentos com registro sanitário vigente na Anvisa, a carga probatória exigida não pode ser superior àquela delineada para medicamentos sem registro, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade e tão logo da vedação do excesso (art. 5º, § 2º da CRFB/1988). Noutras palavras, de modo lógico e coerente, não se justifica exigir grau de prova mais rígido em favor de pacientes que buscam medicamentos registrados, ainda que não incorporados ao SUS, do que se exige nos casos excepcionais de ausência de registro na Anvisa, quando se está diante de fármaco essencial ao tratamento de condição clínica rara. Portanto, a aplicação cega e descontextualizada da exigência de Medicina Baseada em Evidências, em seu alto nível, sem considerar os limites epistêmicos das doenças raras e ultrarraras, converte-se em injustiça manifesta, pois torna inócuo o direito ao tratamento e, consequentemente, o próprio direito à vida. Diante disto, é dever do Poder Judiciário, na condição de garantidor dos direitos fundamentais, aplicar os critérios técnicos de forma compatível com os princípios constitucionais, ajustando a exigência probatória à realidade epidemiológica da enfermidade e à viabilidade concreta de produção científica. A interpretação sistemática das súmulas vinculantes 60 e 61, em consonância com o Tema 500 do STF, convergem nesse sentido. _________ 1 Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/avaliacao-de-tecnologias-em-saude/diretrizes-metodologicas. Acesso em: 7 jun. 2025. 2 Ensaios clínicos randomizados são estudos que alocam os participantes de forma aleatória entre grupos de controle e experimental, com o objetivo de comparar efeitos terapêuticos de maneira imparcial. A randomização busca equilibrar características entre os grupos e a ocultação da alocação evita viés de seleção, garantindo maior validade aos resultados do estudo - Disponível aqui. Acesso em: 19/6/25. 3 A Revisão Sistemática (Brasil, 2012, p.13): é um sumário de evidências provenientes de estudos primários conduzidos para responder uma questão específica de pesquisa. Utiliza um processo de revisão de literatura abrangente, imparcial e reprodutível, que localiza, avalia e sintetiza o conjunto de evidências dos estudos científicos para obter uma visão geral e confiável da estimativa do efeito da intervenção. 4 A meta-análise (Brasil, 2012, p. 13): é uma análise estatística que combina os resultados de dois ou mais estudos independentes, gerando uma única estimativa de efeito. A metanálise estima com mais poder e precisão o "verdadeiro" tamanho do efeito da intervenção, muitas vezes não demonstrado em estudos únicos, com metodologia inadequada e tamanho de amostra insuficiente. 5 As construções empíricas se referem ao conhecimento clínico baseado na prática médica cotidiana, sustentado por observações individuais, experiência profissional e relatos de caso, sem método científico rigoroso. São classificadas como estudos observacionais descritivos e, conforme diretriz do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014, p. 20): "opiniões de especialista não é caracterizada formalmente como evidência, devendo buscar preferencialmente outras fontes de informação, como por exemplo estudos observacionais não comparados (série e relatos de casos)". 6 Os estudos observacionais analíticos apresentam delineamento metodológico estruturado, com análise comparativa entre grupos. Destacam-se: (i) o estudo de coorte, que acompanha indivíduos expostos e não expostos ao longo do tempo a determinada condição; e (ii) o estudo caso-controle, que compara indivíduos com e sem determinada condição. ____________ BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. Ed. São Paulo: S araiva, 2003. BRASIL. Conselho Nacional de Saúde (CNS).  Resolução n. 563 de 10 de novembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 4/6/25. BRASIL. Ministério da Saúde (MS).  Portaria de Consolidação n. 2 de 28 de setembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 27/9/24. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes metodológicas: sistema GRADE - manual de graduação da qualidade da evidência e força de recomendação para tomada de decisão em saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes metodológicas: elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados. Brasília: Ministério da Saúde, 2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27/9/24. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 61.  A concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 24/12/24.
Recentemente, a Câmara dos Deputados da França aprovou projeto de lei que autoriza a prática da morte assistida, também denominado suicídio assistido, procedimento no qual um terceiro auxilia uma pessoa que deseja pôr fim à própria vida, geralmente fornecendo os meios ou orientações para que ela mesma realize o ato.1 Além disso, o projeto contempla a legalização da eutanásia ativa, que ocorre quando um profissional da saúde, geralmente um médico, administra diretamente uma substância letal ao paciente, com o objetivo de abreviar seu sofrimento diante de uma condição médica grave e irreversível.2 A proposta ainda precisa passar pelo crivo do Senado francês, onde possivelmente sofrerá alterações3. De todo modo, a iniciativa reacendeu debates intensos na sociedade francesa e internacional sobre os limites éticos, jurídicos e religiosos da intervenção médica no fim da vida, pois questões como o direito à vida, à autodeterminação do paciente, o papel do médico e os limites da dignidade humana são centrais nessa discussão. No cenário brasileiro, por exemplo, as práticas da eutanásia e suicídio assistido continuam sendo criminalizadas, o que torna oportuno revisitar o seu enquadramento jurídico à luz do CP, bem como apresentar o PL 236/124, que versa sobre a temática. Neste sentido, de acordo com o art. 121 do CP, aquele que mata alguém incorre em pena de reclusão de seis a vinte anos. No entanto, em seu parágrafo primeiro há um caso de diminuição de pena, que pode incidir nos casos em que o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, podendo, assim, o juiz reduzir a pena de um sexto a um terço. Desse modo, no que diz respeito à eutanásia, seja ativa ou passiva5, tipificada no art. 121, § 1º, do CP, como homicídio simples-privilegiado, ou seja, quando um indivíduo, como um médico, tira a vida de outro, neste caso, de um paciente, porém, somente o faz em razão de relevante valor moral, como um ato de compaixão. Esta opção legislativa é explicada no item 39, da Exposição de Motivos da Parte Especial do CP: Ao lado do homicídio com pena especialmente agravada, cuida o projeto do homicídio com pena especialmente atenuada, isto é, o homicídio praticado por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Por motivo de relevante valor social ou moral, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso de homicídio eutanásico), a indignação de um traidor da pátria, etc (Brasil, 1940). Destarte, de acordo com o item 39 da Exposição de Motivos do CP, o homicídio pode ter a pena atenuada quando realizado sob situações que, embora tipifiquem um crime, são motivados por razões que encontram apoio moral ou ético, como no caso do homicídio eutanásico, no qual o ato ocorre movido pela compaixão diante do sofrimento extremo e irremediável da vítima, uma situação em que o objetivo é aliviar a dor e o sofrimento. Verifica-se, pois, que o legislador optou por dar um tratamento mais brando nestas hipóteses, o que é benéfico para aquele que auxilia alguém a interromper a própria vida em razão de sofrimento. Neste sentido, observa-se que no atual estágio do ordenamento jurídico brasileiro a chamada eutanásia configura crime de homicídio. O máximo que pode ocorrer em casos que tais e' o reconhecimento de uma redução de pena devido a` configuração do chamado homicídio privilegiado.6 A natureza jurídica do homicídio eutanásico, portanto, diz respeito a uma causa de diminuição de pena a ser aplicada em havendo a condenação do agente. Ademais, em termos processuais, como o Ministério Público poderá oferecer denúncia em razão da prática de crime doloso contra a vida - intenção e vontade de eliminar vida humana alheia - a competência é do Tribunal do Júri, que apreciará eventual privilégio frente ao ato, nos termos do art. 483, IV, do CPP. No que diz respeito ao suicídio assistido, a tipificação penal seria diversa. Ambos os crimes estão presentes na Parte Especial do CP, no Título I, relativo aos crimes contra as pessoas, mais especificamente no Capítulo I, dos crimes contra a vida, de modo que a morte assistida se aloca no art. 122, do CP, que estabelece como crime persuadir ou encorajar alguém a cometer suicídio ou automutilação, ou prestar qualquer tipo de auxílio material para tal fim, de modo que a conduta é punível com reclusão que varia de 6 meses a 2 anos. Ademais, o art. 122 do CP define que se a tentativa de suicídio resultar em lesão corporal grave ou gravíssima, sem a ocorrência de morte do indivíduo, a pena é aumentada para reclusão de 1 a 3 anos, e se o suicídio resultar, de fato, em morte, a pena é de 2 a 6 anos de reclusão. Ressalta-se, ainda, que existem agravantes que duplicam a pena, como o motivo torpe, egoísta, ou quando a vítima é menor de idade ou possui capacidade de resistência diminuída, além de casos em que a conduta é realizada por meios virtuais ou em tempo real. Observa-se, neste caso, que não há qualquer causa de diminuição da pena. Desse modo, caso um profissional da saúde cometa algum desses delitos, no momento da aplicação da pena devem ser observados os princípios constitucionais e penais da individualização da pena, da proporcionalidade e da culpabilidade, a fim de garantir uma resposta estatal adequada à gravidade do fato e à condição subjetiva do agente. Não menos importante, insta salientar que no Brasil, o PL 236/12, também conhecido como "Novo CP", de autoria do senador José Sarney, que está em tramitação no Congresso Nacional, propõe a criação de um tipo penal próprio para a eutanásia, que foi apresentado no art. 122 do novo códex e considera a prática um crime autônomo, de modo que não está mais vinculada a um crime principal (homicídio simples) para existir. Neste sentido, ainda há presença da pena, definida em reclusão de dois a quatro anos ao agente que realiza, de modo a demonstrar que a proposta do possível novo dispositivo legal visa preservar a vida do indivíduo, mesmo que este tenha solicitado pela abreviação, de forma que, o bem jurídico fundamental - a própria vida - não pode ser cessado de maneira artificial, ainda que se trate de uma enfermidade irreversível que provoca sofrimento ao indivíduo. Demais disso, o parágrafo primeiro do art. 122 apresentado determina ainda a possibilidade de extinção da punibilidade com o perdão judicial, conforme art. 107, IX, do CP vigente, a ser apreciado a depender das circunstâncias do caso concreto pelo magistrado responsável pelo julgamento do caso. Ou seja, seria possível que o juiz não aplicasse a pena estabelecida, caso fossem reconhecidos graus de parentesco entre a vítima e o indivíduo que praticou ou se o agente possuísse vínculos afetivos, como no caso de um médico que trata um paciente à longa data, de modo a relativizar a aplicabilidade da imputação do crime de eutanásia. Contudo, ainda que o "Novo CP" tenha inovado ao tipificar a eutanásia, deixou diversas lacunas abertas. Inicialmente, tem-se que mesmo colocando a eutanásia como figura autônoma e sendo proposto um marco penal menor, não há, de fato, diferença para o que já é estabelecido no atual ordenamento jurídico, uma vez que existe a causa de diminuição da pena - privilegiadora - do homicídio simples. Ademais, observa-se que a redação permite que familiares realizem a prática sem que sejam responsabilizados, porém, em nada muda ao médico, pois a análise será subjetiva. Ora, como medir os laços de afeição do médico com a vítima? Será pelo tempo que ele a acompanha/assiste? Será pela afeição que desenvolveu em um curto tempo em decorrência de ser um indivíduo sensível? Será pelo estado de saúde e consequente sentimento de pena? Não há especificação. Neste mesmo sentido, a "permissão" para que parentes realizem a prática também se mostra inviável, uma vez que na eutanásia, é imprescindível que seja a realização do ato pelo profissional da saúde qualificado. Isso porque, os médicos e enfermeiros, por exemplo, são, de fato, capacitados para realizar a eutanásia, se for uma eutanásia ativa, por exemplo, são eles quem possuem o conhecimento para injetar um medicamento corretamente no paciente, ou no caso da eutanásia passiva, seriam os responsáveis por saber qual conduta deveria ser realizada no paciente e deixar de realizá-la. Permitir que familiares possam realizar a eutanásia e, mais ainda, que não sejam punidos por isso, gera uma possibilidade de margem de erro na prática eutanásica. E se o familiar aplicar a medicação errada e, em vez de causar a morte do paciente, trazer sequelas piores que as existentes? E se o enfermo não morrer? Existirá diferenciação entre um familiar que irá praticar a eutanásia por compaixão daquele que irá realizar para que possa ter acesso a herança do enfermo, por exemplo? Poderá ser realizada a eutanásia em qualquer local? Inúmeras são as possibilidades de erro, tanto técnicos, quanto morais. Neste sentido, deveria o referido projeto ter possibilitado a execução somente aos profissionais da saúde, ou, ao menos, deveriam estes figurar entre aqueles cuja pena pode ser afastada de acordo com o caso concreto. Trata-se, portanto, de uma norma penal em branco, uma vez que, se aprovada, seria necessário realizar complementação ao conteúdo apresentado, pois permanece omissiva em pontos essenciais, conforme apresentado. Destarte, diante de todo o apresentado, conclui-se que a eutanásia e o suicídio assistido são temas complexos que envolvem aspectos jurídicos, éticos, médicos e sociais. Assim, ainda que o PL 236/12 tente avançar no tratamento normativo da eutanásia ao propor sua tipificação autônoma e prever hipóteses de perdão judicial, sua redação carece de maior precisão e segurança, especialmente quanto à definição de quem pode praticar o ato e sob quais condições. _______ 1 MASSON, Cleber. Direito Penal - Parte Especial (arts. 121 a 212). 17ª ed. São Paulo: Método, 2018. p. 96. 2 FERRAZ, Octavio Luiz Motta. Eutanásia e homicídio - matar e deixar morrer: uma distinção válida? Revista de Direito sanitário. São Paulo, v. 2, nº 2, julho 2001, p.101. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Explica-se: a eutanásia ativa consiste em uma ação comissiva do agente, na qual o médico, por exemplo, irá, de fato, realizar uma conduta que acarretará a morte do paciente, como aplicar uma injeção letal. A eutanásia passiva, por sua vez, consiste em uma ação omissiva, momento em que o agente deixará de realizar uma ação, isto é, por meio de uma conduta negativa, de um não fazer, quando deveria, irá provocar a morte antecipada do paciente, como a interrupção de um tratamento que ainda possui potencial de benefício para o paciente. 6 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito penal: parte especial I: arts. 121 a 212. São Paulo: Saraiva, 2012.
1. Introdução Desde o final de 2024, a ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, passou a comunicar, por meio de sua presidência, em diversas ocasiões, a intenção em promover ações regulatórias visando i) a regulação dos cartões de desconto em saúde e ii) a regulação do chamado plano de saúde ambulatorial, com intuito de "resolver o problema dos planos individuais" que deixaram de ser comercializados pelas empresas do setor de saúde suplementar. As motivações anunciadas pela ANS consistiam em dois principais pilares: i) a existência de uma decisão judicial prolatada pelo STJ, determinando à ANS que regulasse os cartões de desconto1, e ii) um ferrenho debate travado entre as operadoras de planos de saúde e o Congresso Nacional no que se refere aos reajustes dos planos individuais, da dificuldade de acesso a estes, da judicialização e das coberturas obrigatórias, o que estaria trazendo prejuízos ao setor2 e inviabilizando a comercialização de planos individuais3. Não obstante tenha a própria ANS recorrido da decisão prolatada pelo STJ, em 23 de outubro de 2024, a Agência publicou a Tomada Pública de Subsídios 5 (TPS 5/24), que tinha por objeto receber propostas  para a reformulação das regras dos planos ambulatoriais, a fim de incentivar a venda de planos com cobertura para realização de consultas e exames de forma segura para o consumidor. Sob críticas de parcela dos participantes da TPS 5, a ANS publicou, em fevereiro de 2025, o sandbox regulatório voltado ao plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames. Na sequência, deu início a audiências públicas para medir a aceitação do projeto, objetivando, ao fim, a aprovação da minuta de edital contida no referido processo4. O presente artigo tem por objeto fazer uma avaliação crítica do processo de sandbox regulatório proposto pela ANS, com uma ótica diferente daquela já exposta pelo IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, na ACP 5006090-73.2025.4.03.6100, que tem por objeto a suspensão do sandbox regulatório da ANS, pelo MPF - Ministério Público Federal, conforme se verá a seguir e também pelos agentes que contribuíram na TPS 5, embora parte daquelas visões se aliem com a que será aqui exposta. 2. Visão geral do sandbox regulatório Como o próprio nome denota, em uma tradução livre, o sandbox é um ambiente que remonta ao experimentalismo, como uma caixa de areia em que uma criança é livre para brincar em segurança. Segundo Thiago Guimarães de Barros Cobra, o propósito destes ambientes é permitir a experimentação livre e criativa, com a supervisão de responsáveis técnicos e regulatórios, mitigando os riscos e consequências de uma implantação imediata em um ambiente real amplo5. A LC 182 de 2021 (Marco Legal das Startups e Empreendedorismo Inovador) conceituou, expressamente, o sandbox no ordenamento jurídico brasileiro em seu art. 2º, inciso II, como um "conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado". A mesma lei autorizou expressamente às entidades da administração pública nacional a utilizarem esta abordagem regulatória, em seu art. 11. Valendo-se de tal autorização legal a ANS propôs a TPS 5 e o processo 33910.020858/2024-62, contendo o sandbox para o Plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, conforme descrito a seguir. 3. Motivações do sandbox regulatório da ANS Em dezembro de 2022, em momento ainda anterior a qualquer ato normativo próprio, a ANS sofrera ordem judicial nos autos do agravo em recurso especial 2.183.704 (AREsp 2183704), em decisão monocrática proferida pelo relator ministro Herman Benjamin, que determinou a necessidade de regulação e fiscalização da ANS sobre os cartões de desconto, sob o fundamento de que estes se assemelhariam a planos de saúde na medida em que ofertam "rede credenciada ou referenciada" a seus clientes6. Embora a própria ANS tenha recorrido da referida decisão e, até o momento, não tenha havido o efetivo trânsito em julgado do processo no qual a decisão fora prolatada, a ANS publicou em seu website, em 23 de outubro de 2024, notícia de que publicara a Tomada de Subsídios 5, voltada para receber propostas sobre as regras para a reformulação das regras dos planos ambulatoriais, a fim de incentivar a venda de planos com cobertura para realização de consultas e exames de forma segura para o consumidor. A referida TPS foi decidida como décimo terceiro item, extra pauta, na 612ª Reunião da Diretoria Colegiada da ANS, constando na ata a informação expressa de que dispensaria análise de impacto regulatório. Ato contínuo, a Agência editou norma visando a constituição de regras para a constituição e funcionamento de ambiente regulatório na Agência, a resolução 621 de 13 de dezembro de 2024, contendo, em seu artigo primeiro, regras de constituição e funcionamento de sandboxes para testar novos serviços, produtos ou tecnologias no setor de saúde suplementar; o artigo segundo, por sua vez, dispôs sobre as finalidades dos sandboxes, quais sejam, o incentivo à inovação, o desenvolvimento de novos produtos, serviços ou tecnologias, a diminuição de custos e o aprimoramento do arcabouço regulatório; e o artigo terceiro dispôs sobre os requisitos para o estabelecimento de sandboxes pela Agência, quais sejam, a aderência às finalidades estabelecidas pela norma, a necessidade de suspensão de normas para teste de um produto ou serviço, o potencial de aprendizado regulatório e a necessidade de um ambiente regulado. Posteriormente, após coletadas as manifestações da sociedade civil pela TPS 5, a ANS, baseado no que foi antes exposto, veio a propor o sandbox para o plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, pelo diretor Alexandre Fioranelli, em audiência pública realizada em fevereiro de 2025. A Agência apresentou como problema a ser resolvido pelo sandbox a dificuldade de acesso a planos de saúde por pessoas naturais, e as consequências a serem combatidas a sobrecarga do SUS - Sistema Único de Saúde, a expansão do mercado de cartões de desconto, o incremento de contratação de planos coletivos com poucas vidas e a demanda reprimida. De modo sintético, o produto a ser testado via sandbox, o plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, conforme a própria apresentação, consistiria em um novo tipo de plano de saúde: mais simples e mais acessível focado em exames e com cobertura total para consultas em todas especialidades médicas, sem acesso a pronto socorro, internação e terapias. Até o momento de escrita deste artigo, a ANS ainda não havia publicado o edital definitivo para início do processo de seleção de incumbentes para participação no ambiente experimental de sandbox regulatório. No entanto, algumas críticas, inclusive por meio de ações judiciais que visam interromper o processo, já existem neste momento, sendo objeto deste estudo uma nova avaliação crítica sobre o tema, conforme exposto adiante. 4. Avaliação crítica do sandbox regulatório para um plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames Uma síntese das críticas externas ao sandbox regulatório posto pela ANS para a regulação de um "plano de saúde ambulatorial" pode ser encontrada nos autos do processo de 5006090-73.2025.4.03.6100, ação civil pública proposta pelo IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor em face da ANS, tanto na manifestação inicial do IDEC quanto na peça de requerimento de ingresso como amicus curiae apresentada pela ABCS - Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Saúde e Benefícios7. Em suma, essas consistem em críticas relativas 1) à ausência de competência conferida à ANS para criar qualquer novo tipo de plano de saúde, nos termos da lei 9.961/00, que cria a Agência e nos termos da lei 9.656/1994, que dispõe sobre o mercado de saúde suplementar (planos de saúde); 2) ao fato de que no AREsp 2183704, citado como motivação pela ANS para a instituição do sandbox, esta não foi ordenada ou autorizada a criar qualquer novo produto, mas tão somente a tratar da regulação dos cartões de desconto, bem como ao fato de que tal processo ainda encontra-se pendente de julgamento dos recursos interpostos pelas partes nele envolvidas, inclusive pela própria ANS8; e 3) à ausência de AIR - Análise de Impacto Regulatório, bem como de outros requisitos fundamentais para a implementação adequada de um sandbox regulatório, como exposto tanto na manifestação do IDEC9 quanto em Nota Técnica do MPF10, publicada paralelamente à propositura da ACP pelo IDEC. Passando a uma crítica interna, observa-se que ao longo de todo este estudo, as menções ao tema sandbox, tanto na sua conceituação doutrinária quanto, inclusive, na sua conceituação por expresso dispositivo legal, estão atreladas a um ambiente inovador tecnológico. A definição legal, por exemplo, como exposto acima, está no Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador. No entanto, o sandbox regulatório da ANS não se relaciona a novas tecnologias, tampouco a um mercado realmente novo. Fato é que o mercado de cartões de desconto existe, no mínimo, desde os anos 197011 e a discussão sobre os planos de saúde ambulatoriais existe, ao menos, desde os anos 2000. Esta dissonância não é meramente casual. Como também já exposto pelo IDEC , o sandbox regulatório proposto pela ANS não só é carente de um aspecto inovador, como também se mostra como um instrumento eleito pela Agência com o objetivo de colocar em pauta a discussão sobre o plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, a despeito da questão da competência exposta no tópico anterior. Neste sentido, além dos vícios externos, o sandbox da ANS parece conter vícios internos, tanto quanto ao seu caráter inovador, como antes exposto  pelo IDEC e pela ABCS extensivamente na ACP, mas também quanto às suas motivações. Com efeito, embora a ANS fundamente o sandbox com base na decisão do STJ, como exposto, esta não determinou à ANS que criasse planos de saúde ambulatoriais. Ademais, quanto à fundamentação de que falta de acesso aos planos individuais por pessoas naturais, fato é que o produto proposto pela Agência, plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames, não consiste num elemento que contenha qualquer aspecto tecnológico, inovador, que promova a competição ou reduza barreira de entrada (requisitos dos incisos I, II, e V da resolução 621/24); tampouco requer, comprovadamente, ante à ausência de AIR, a suspensão de normas ou um ambiente de testes (incisos II e III do art. 3º da resolução 621/24). Em verdade, a própria apresentação realizada pela ANS a título de exposição de motivos do sandbox regulatório demonstra que este é um produto muito similar aos já existentes e consolidados cartões de descontos. Por outro lado, a medida vem sendo defendida amplamente pelos agentes do mercado de plano de saúde suplementar, as operadoras de planos de saúde e suas entidades representantes, como alternativa aos cartões de desconto12. A própria ANS, em diversas manifestações de seu diretor presidente (prévias à instituição do sandbox), como exposto pelo IDEC na ACP, mostra que a intenção era abrir o mercado de cartões de desconto às operadoras de planos de saúde. A apresentação realizada pelo diretor Alexandre Fioranelli deixou isso claro quando colocou lado a lado os efeitos da medida sobre a população: A imagem, criada pela própria ANS, expõe seu objetivo: permitir que as operadoras de planos de saúde "absorvam" uma parte de um mercado hoje absorvido pelos cartões de desconto, de cerca de 10 milhões de pessoas. O sandbox regulatório para o Plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames parece ser, neste sentido, uma estranha iniciativa regulatória na qual, de forma peculiar, tende-se não a corrigir, mas a criar uma falha de mercado. Essa tendência também foi apontada por relevantes especialistas do setor14. Com efeito, ao passo em que a medida não apresenta justificativa plausível quanto às suas próprias motivações (decisão do STJ, inovação, tecnologia, necessidade de suspensão de normas ou ambiente de testes), esta também não apresenta solução a qualquer das falhas de mercado comuns ao mercado de saúde, como o risco moral15, as externalidades, barreiras de entrada ou a assimetria informacional16. Neste sentido, também diante da própria fundamentação teórica sobre o instituto, o sandbox da ANS se mostra incoerente com suas próprias motivações. Isto porque não apresenta qualquer efetivo instrumento de proteção ao interesse público por meio da regulação, mas tão somente a intenção de abertura de um novo mercado aos agentes já regulados pela ANS. Tal iniciativa se mostra contrária, inclusive, a entendimentos pretéritos da própria ANS, quando esta definiu que cartões de desconto não são planos de saúde17 e do CADE, quando julgou sobre a validade de tais serviços e diferenciação destes para com os planos de saúde18. Ainda que se admitisse a necessidade de regulação dos cartões de desconto por quaisquer falhas de mercado atribuíveis a estes: seja a de assimetria informacional, risco moral, barreiras de entrada, ou quaisquer outras, observa-se que este tema não foi objeto da motivação apresentada pela ANS para a sua proposta regulatória. No entanto, a incoerência existente se dá pelo fato de que a ANS apresentou como motivação supostas falhas no mercado de planos de saúdes (especialmente os individuais), e como solução apresentou um sandbox regulatório que visa a abertura de mercado diverso (o de cartões de descontos) justamente a esses planos de saúde, sem especificar como tal fator traria melhoria de assistência, acesso, ou qualquer outro valor importante para a saúde suplementar, além de uma expansão do mercado das operadoras dos planos de saúde. Neste sentido, a crítica interna ao sandbox regulatório da ANS, a partir de suas motivações e com base na Teoria da Regulação, demonstra que a iniciativa, neste momento, não tem o condão de promover a defesa de vulneráveis, a redução de riscos ou externalidades, ou o incentivo à concorrência, mas, em verdade, favorece agentes que já dominam, hoje, o setor, gerando falha de mercado. 5. Conclusão O presente estudo teve por objetivo apresentar crítica interna à proposta de sandbox regulatório da ANS para a criação de um "plano de saúde ambulatorial". Conforme se observou, as iniciativas regulatórias estatais têm por objetivo a proteção dos indivíduos, especialmente os vulneráveis, em face dos agentes econômicos. Neste sentido, o sandbox é uma abordagem regulatória flexível e colaborativa, pela qual o ente regulador busca, por meio da suspensão de regras num ambiente controlado, em colaboração com os agentes econômicos, experimentar os impactos de inovações tecnológicas, novos produtos ou serviços, e também os impactos da regulação sobre tais inovações, a fim de otimizar e aumentar a precisão do processo regulatório. Embora a ANS tenha previsto, em suas motivações, que o sandbox por ela proposto objetivaria tais fins, a criação do plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames é passível de críticas externas e internas. A análise das motivações expostas pela ANS, da resolução 621/24, publicada pela própria Agência com o objetivo de suportar o seu processo regulatório experimental, e o cotejo destas com a proposta final de sandbox, demonstra que há uma incoerência em termos de motivação. Esta incoerência, neste estudo chamada "crítica interna", consiste no fato de que o sandbox da ANS não se refere a nenhum fenômeno de fato inovador e, além disso, contém no seu bojo a proposta de abertura de mercado às operadoras de planos de saúde, beneficiando tais agentes para um mercado hoje já consolidado e não regulado, porém, sem enfrentar qualquer das falhas de mercado apontadas pela própria Agência nas justificativas de sua proposta, tampouco quaisquer das possíveis falhas no mercado que se pretende absorver: o de cartões de desconto. Portanto, o sandbox proposto parece ser uma estranha iniciativa regulatória na qual tende-se não a corrigir, mas a criar falhas de mercado. Diante disso, é necessário que se faça um debate mais profundo, intenso, transparente, sólido e atualizado quanto à realidade do mercado e, sobretudo, voltado para o real interesse dos consumidores dos serviços de saúde no Brasil, objetivando, assim, propostas regulatórias que de fato atendam às necessidades dos cidadãos e não do setor econômico. _______ 1 BRASIL. STJ. AResp nº 2183704. Relator Min. Herman Benjamin. Decisão Monocrática. DJe 22/12/2022. 2 PIRES, Breno. STF é acionado para obrigar Arthur Lira a abrir CPI dos Planos de Saúde. 09 ago. 2024. In Piauí. Disponível aqui. 3 SCOFIELD, Laura. Cancelamentos, reajustes e CPI: como operadoras influenciam Lei dos Planos no Congresso. In Agência Pública. 08 ago. 2024. Disponível aqui. 4 BRASIL. Agência Nacional de Saúde. Edital nº: 2/2024/DIPRO. Participação em Ambiente Regulatório Experimental. Disponível aqui. 5 COBRA, Thiago Guimarães de Barros. Sandbox Regulatório: Regulação experimental das finanças à saúde. Editora Dialética. São Paulo. 2024 p. 65. 6 BRASIL. STJ. AResp nº 2183704. Relator Min. Herman Benjamin. Decisão Monocrática. DJe 22/12/2022. 7 BRASIL. Justiça Federal da 3ª Região. Processo nº 5006090-73.2025.4.03.6100. Ação Civil Pública em trâmite na 19ª Vara Federal de São Paulo. 8 BRASIL. STJ. AResp nº 2183704. Relator Min. Herman Benjamin. Decisão Monocrática. DJe 22/12/2022. 9 BRASIL. Justiça Federal da 3ª Região. Processo nº 5006090-73.2025.4.03.6100. Ação Civil Pública em trâmite na 19ª Vara Federal de São Paulo. 10 BRASIL. Ministério Público Federal. Nota Técnica nº 3/2025/CS-SAÚDE/3ªCCR. 11 Vide manifestação da ABCS em: BRASIL. Justiça Federal da 3ª Região. Processo nº 5006090-73.2025.4.03.6100. Ação Civil Pública em trâmite na 19ª vara Federal de São Paulo. 12 NIERO, Jamille. ANS quer testar novo modelo de plano de saúde: solução ou armadilha ao consumidor? In.. INFOMONEY. 13 mar. 2025. Disponível aqui. 13 BRASIL. Justiça Federal da 3ª Região. Processo nº 5006090-73.2025.4.03.6100. Ação Civil Pública em trâmite na 19ª Vara Federal de São Paulo. 14 FRAGA, Armínio. CHAPCHAP, Paulo. FARIAS, Rebeca et. al. Planos 'simplificados' impactam saúde pública. In. ESTADÃO. 23 abr. 2025. Disponível aqui. 15 Aqui, o risco moral é compreendido como o risco comportamental de que o agente de um sistema de saúde modifique o seu comportamento de acordo com o modelo do sistema. Da perspectiva do usuário, o risco moral pode consistir na modificação de comportamento no cuidado com a própria saúde, adotando padrões maléficos a si mesmo. Na perspectiva do provedor de serviços ou cobertura, pode consistir na indução de demanda pelo provedor de serviços de saúde, para aumentar sua própria lucratividade. Vide: CASTRO, Janice Dornellas de. Regulação em saúde: análise de conceitos fundamentais. Disponível em: "Sociologias, ano 4, n. 7, jan./jun. 2002, p. 122-135" 16 Idem. 17 BRASIL. Agência Nacional de Saúde. Cartilha da ANS aponta características de cartões pré-pagos e cartões de desconto. Disponível aqui. 18 BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08700.005969/2018-29, Relª. Conselheira Lenisa Rodrigues Prado, 05.06.2020.
A judicialização da saúde no Brasil, embora consolidada como fenômeno social e jurídico, encontra-se em plena transformação. Historicamente, no setor público, as demandas judiciais concentravam-se no fornecimento de medicamentos ou tratamentos não padronizados pelo SUS, ganhando robustez com os julgamentos do Tema 6 e do Tema 1234 de repercussão geral no STF. Tais precedentes buscaram estabelecer critérios objetivos para o deferimento de pleitos envolvendo o direito à saúde, em especial quando se trata de fármacos de alto custo. Na saúde suplementar, por sua vez, a judicialização sempre orbitou em torno da extensão das coberturas contratadas, com especial atenção à (in)definição do caráter taxativo ou exemplificativo do rol da ANS. Por muito tempo, a questão central era: há ou não obrigação de custeio? Essa dualidade entre os setores, no entanto, começa a se dissolver à medida que os litígios deixam de se restringir ao acesso e passam a enfrentar questões mais técnicas, estruturais e sistêmicas. Hoje, tanto o Poder Judiciário quanto os órgãos reguladores passam a exigir racionalidade e coerência técnico-científica nas condutas clínicas. A medicina baseada em evidências, anteriormente vista como uma diretriz de boas práticas, assume agora o papel de critério jurídico decisório. Em 2024, o NatJus - Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário registrou mais de 98.631 notas técnicas, um aumento de 40% em comparação com o ano anterior. O NatJus já contabiliza mais de 286 mil notas técnicas registradas no total, sendo 138.057 produzidas pelo NatJus Nacional e 148.351 pelos núcleos estaduais e do Distrito Federal. O NatJus também emite pareceres, mas a quantidade de pareceres não é mencionada especificamente nos resultados da pesquisa1. Medicina baseada em evidência é uma abordagem que busca otimizar a prática médica, utilizando a melhor evidência disponível para tomar decisões sobre o cuidado com o paciente. Em vez de confiar apenas na experiência pessoal ou em práticas tradicionais, a MBE busca integrar a pesquisa científica com a experiência clínica e as preferências do paciente.  O NatJus é um órgão vinculado aos tribunais que fornece pareceres técnicos, com base na medicina baseada em evidências, para auxiliar juízes em decisões envolvendo demandas de saúde - tanto no SUS quanto na saúde suplementar. As Cortes, por sua vez, começam a ponderar com mais rigor o nexo entre a conduta médica, os protocolos clínicos e os pleitos dos pacientes. Esse novo paradigma levanta uma série de reflexões: o que é, afinal, uma evidência robusta? Como equilibrar o conhecimento científico com a escuta qualificada do paciente? Como decidir entre o custo-efetividade de uma conduta e o impacto individual de sua negativa? Não por acaso, o sistema de saúde suplementar registra sinais de tensão. Em 2024, noticiou-se que o número de ações judiciais no setor ultrapassou 300 mil dobrando em relação aos últimos três anos2. O saldo de depósitos judiciais por parte das operadoras chegou a R$ 2,67 bilhões3. O envelhecimento acelerado da população, com expectativa de 70 milhões de idosos em 2050, e a desaceleração do crescimento populacional prevista para 2041, divulgados pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e ONU - Organização das Nações Unidas, impõem um novo desafio: menos contribuintes jovens para financiar os custos crescentes da longevidade. A ANS tem repensado profundamente seu modelo regulatório, especialmente no que diz respeito à fiscalização do setor de saúde suplementar e à definição de critérios técnicos para incorporação de procedimentos. Diante desse novo desenho, surgem possibilidades relevantes para mitigar conflitos: a inclusão de novos hospitais na rede credenciada, o aperfeiçoamento dos mecanismos de reembolso, maior implementação da telessaúde e o uso crescente da inteligência artificial na coordenação do cuidado. Essas medidas, se bem implementadas, podem representar alternativas eficazes à judicialização - ou ao menos, instrumentos de racionalização do conflito. A judicialização, nesse cenário, é tanto consequência quanto causa: pode ser uma tragédia para a sustentabilidade do sistema ou um remédio para forçar avanços regulatórios. A depender da resposta institucional - e da atuação técnica dos operadores do Direito -, seguirá suprindo lacunas ou se transformará em agente de coerência e aperfeiçoamento. O profissional jurídico da saúde precisa, portanto, evoluir. Conhecer os fundamentos da medicina baseada em evidências, entender o funcionamento regulatório da ANS, compreender os fluxos operacionais dos hospitais e operadoras, e acompanhar os debates bioéticos contemporâneos deixou de ser um diferencial - tornou-se uma exigência. A judicialização da saúde não é um fenômeno que será contido por decisões judiciais pontuais. É um processo em curso, que exige respostas estruturais. O Judiciário continuará a atuar enquanto o sistema falhar em antecipar e resolver os conflitos. A escolha está posta: evoluímos juntos - ou seguimos judicializando o desequilíbrio. _______ 1 REDE NATJUS. Rede NATJUS registra mais de 286 mil Notas Técnicas e se prepara para nova fase com o e-NATJUS 4.0. Disponível aqui. 2 BP MONEY. Número de ações contra planos de saúde cresce. Disponível aqui. 3 ISTOÉ DINHEIRO. Judicialização do setor de saúde chega ao limite no Brasil. Disponível aqui.
1. Aspectos gerais Iatrogenia deriva do grego antigo, que significa iatros (médico ou curandeiro) e genes (originado de ou gerado por), correspondendo a algo gerado ou causado por médico. Nessa linha, iatrogenia é o resultado de todos os eventos adversos, não desejados, mas previsíveis de ocorrência em matéria de saúde humana. Na sua clássica definição, a iatrogenia se circunscreve aos eventos adversos decorrentes de erro médico. Entretanto, iatrogenia é todas as reações orgânicas a um tratamento médico-hospitalar, ainda que adversos e não desejados, além do erro médico. Segundo Armond (2016, p.109), Um EA, ou iatrogenia, caracteriza um dano ou lesão não intencional causado por um cuidado prestado a um usuário do sistema de saúde, oriundo ou não de uma falha do profissional envolvido. O evento pode ocasionar incapacidade ou disfunção, seja temporária ou permanente, ou até a morte. É importante entender que o EA não está relacionado à evolução natural da doença de base do paciente. A exceção das hipóteses relacionadas ao erro médico, a iatrogenia pressupõe a prática do ato médico por profissional regularmente habilitado no contexto de uma relação de cuidado com a saúde humana. São eventos indesejáveis, mas na sua grande maioria não são considerados raros ou inovadores no universo da ciência médica. Assim sendo, a iatrogenia se refere a todas as reações adversas produzidas pelo corpo humano após a realização de um procedimento médico, terapia ou pela administração de medicamento durante o tratamento da saúde humana. É comum que os casos de iatrogenia não estejam incluídos nas hipóteses de responsabilidade civil por se entender que o evento danoso está dissociado da conduta principal, rompendo-se o nexo de causalidade. Não haveria dano a ser indenizado diante da ausência de relação causal entre conduta e dano. Entende-se que a iatrogenia, na modalidade distinta do erro médico, seria o infortúnio que se amoldaria às hipóteses de caso fortuito ou força maior. Nesse caso, não incidiria qualquer responsabilidade jurídica-penal ou civil. Sob essa perspectiva credita-se razoável apresentar os eventos adversos como hipóteses excludentes de responsabilidade jurídica. Indaga-se: a iatrogenia sempre estaria imune às responsabilidades civil e penal no direito brasileiro? 2. Prevenção nos eventos adversos Em qualquer conduta profissional a prevenção dos danos não é medida coadjuvante ou facultativa. Com maior rigor, é exigível a prevenção de danos nas condutas profissionais que giram em torno dos maiores bens jurídicos: a vida e saúde humana. Nessa quadra, antes de serem analisadas as múltiplas causas adversas a um tratamento de saúde - iatrogenia - há de serem analisadas as condutas preventivas exigíveis do profissional da saúde, ou a cargo da administração hospitalar, antes da ocorrência do evento propriamente dito. A título exemplificativo, citem-se os testes de alergia imprescindíveis antes de serem ministrados medicamentos potencialmente capazes de produzir danos indesejáveis, a exemplo da anestesia, do contraste com iodo e da utilização de penicilina. Além dessas hipóteses, citem-se também as transfusões de sangue, cujos procedimentos preparatórios de compatibilidade prévia devem ser observados, a exemplo das cautelas relacionadas à compatibilidade sanguínea, conservação e permanente acompanhamento da equipe médica. No Brasil, as condutas preventivas consistentes nos testes de alergia, como medidas antecedentes à realização de exames ou à administração de medicamentos, não ocorrem com frequência nos hospitais públicos e privados, transferindo-se a responsabilidade da autodeclaração do paciente como prova inequívoca à exclusão de qualquer responsabilidade médica e hospitalar pelo evento adverso. 3. Responsabilidade civil - prevenção, comissão e omissão A responsabilidade civil no Brasil incide, na grande maioria dos casos, nas formas omissiva ou comissiva. Assim, as condutas profissionais exigidas, na forma positiva (comissão) ou na forma negativa (omissão) são passíveis de produzirem danos, configurando a responsabilidade civil se comprovado o nexo causal entre a conduta e o dano. O Código Civil não previu, expressamente, a modalidade preventiva para a caracterização de responsabilidade civil. No Anteprojeto para revisão e atualização do Código Civil - lei 10.406, de 10/1/2002 -, no entanto, há previsão expressa da modalidade preventiva como forma de se impor responsabilidade civil, segundo art. 927, parágrafo 3º - verbis: "Sem prejuízo do previsto na legislação especial, a tutela preventiva do ilícito é destinada a inibir a prática, a reiteração, a continuação ou o agravamento de uma ação ou omissão contrária ao direito, independentemente da concorrência do dano, ou da existência de culpa ou dolo. Verificado o ilícito, pode ainda o interessado pleitear a remoção de suas consequências e a indenização pelos danos causados." No Código Civil em vigor, art. 927 - "Aquele que por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.", não contemplando, nem afastando, expressamente, a responsabilidade civil preventiva. Apesar do quadro normativo suso citado, em matéria de tratamento da saúde vige a teoria da perda de uma chance momento em que todas as condutas profissionais se inserem, como regra, nas obrigações de meio em que o resultado é sopesado diante de todo atuar dos profissionais de saúde. Em sendo assim, ainda que não exista previsão expressa da responsabilidade preventiva no Código Civil em vigor, a teoria da perda de uma chance se aplica em todas as questões relacionadas aos cuidados com a saúde humana, motivo pelo qual as condutas preventivas, ainda que acessórias, são cogentes e passíveis de responsabilidade civil autônoma. 4. Standards - padrões de condutas recomendadas e adotados internacionalmente Nos múltiplos procedimentos médico-hospitalares existem evidências e são colacionados standards recomendados, em grande parte, pela OMS - Organização Mundial da Saúde. Os testes cutâneos - prick test ou skin prick test - são recomendados e não são invasivos, uma vez que pequenas quantidades de alérgenos são aplicadas na pele do paciente para, após certo período de tempo, serem observadas reação urticária ou inchaço no local da aplicação; os testes intradérmicos; os testes de patch, que correspondem aos testes de contato; os testes de raspagem; os testes de exposição oral, além dos testes de provocação, quando o paciente é exposto a quantidade pequena, e supervisionada, do alérgeno. Os testes realizados de forma prévia à constatação de possíveis alergias não excluem à realização de exames laboratoriais, principalmente o exame de sangue que tem o condão de constatar alergia à substância ou medicamento inerente ao tratamento principal. Os testes, ou exames prévios, ao procedimento-base são considerados imprescindíveis porque implementam maior segurança ao paciente, protagonista da relação médico-paciente. 5. O vácuo normativo brasileiro na iatrogenia Não há previsão normativa expressa para os casos de iatrogenia e os danos provenientes à sua configuração no direito brasileiro. A adversidade do evento, ou sua ocorrência em grau de menor intensidade pode ser previsível, se realizados todos os standards exigíveis e esperados dos profissionais de saúde. Cabe a administração hospitalar prover dos recursos necessários à realização de testes prévios, sob pena de ser configurada a responsabilidade civil solidária. A forma preventiva nas condutas relacionadas à saúde humana é de crucial importância, podendo configurar omissão, ainda que não se refira ao fato principal, para a tipificação de condutas culposas, já que o tipo culposo é aberto para que sejam provadas a negligência, imperícia ou imprudência na conduta esperada para o dever de cuidado. 6. Os litígios judiciais e a jurisprudência em torno da Iatrogenia A iatrogenia na modalidade de erro médico é factivelmente mais frequente no cômputo dos litígios judiciais brasileiros quando comparada a iatrogenia aplicável às demais hipóteses. A iatrogenia dissociada dos erros médicos, caracterizada por eventos adversos, previsíveis e indesejados, deve ser analisada de forma pormenorizada e por etapas, já que se trata de evento complexo. Dessa forma, a fase que antecede à ocorrência do evento imprevisto pode estar associada a comportamento reprovável, nas modalidades dolosa ou culposa, na adoção de conduta prévia à realização do ato principal. Em sendo assim, a iatrogenia pode ser passível de responsabilidade civil em todas as suas formas, se produzido resultado danoso, já que se não presente o erro médico, pode ser configurada a ausência de medidas preventivas à realização do exame, tratamento ou administração do medicamento prescrito no tratamento da saúde humana. Na temática relacionada às alergias, apesar da praxe médica indicar o que o histórico do paciente - anamnese - se apresente suficiente à indicação, ou não indicação de alergias, a autodeclaração do paciente não deve ostentar o tratamento jurídico hoje aplicado, uma vez que os processos alérgicos são absolutamente mutantes e involuntários. Assim, por mais que o paciente indique quando e como foi portador de alergias, a conduta do profissional da saúde deve ser a de proceder, de forma prévia, aos múltiplos testes alérgenos. A autodeclaração, portanto, não tem o condão de excluir a responsabilidade civil por culpa exclusiva da vítima, já que se trata de tema relacionado à ciência impassível de ser por ele exigível. A regra deve ser, portanto, a realização de testes de alergia antes da realização do exame de ressonância magnética, no caso de contrastes com iodo, assim como na administração de medicamentos e vacinas que possuam efeito alérgico cientificamente comprovado. Embora não se trate de circunstância comum, é possível que o paciente se recuse a realizar os testes prévios para constatar alergias antes da realização de exames ou administração de medicamentos e vacinas. Nesse caso, sempre será facultado ao profissional da saúde a interrupção por objeção de consciência, indicando-se outro profissional para dar continuidade ao procedimento médico. Quanto à recusa do paciente ao cuidado adicional no tratamento de sua saúde, tratando-se de paciente maior e cognitivamente capaz, entende-se que a assunção do risco não possa ser obstáculo à realização do exame, administração do medicamento ou vacina. Trata-se de entendimento analógico ao já emanado pelo STF, com repercussão geral, na admissão prévia das cirurgias sem transfusão de sangue aos pacientes da religião testemunha de Jeová. Ad argumentatum, até se pondera até que ponto o fato principal de fato aconteceria se tomadas as medidas preventivas necessárias à prática do ato: o choque anafilático aconteceria se os testes de alergia àquela espécie de anestesia fossem realizados? O óbito aconteceria se realizado o teste de alergia ao uso do contraste com iodo para a realização do exame com ressonância magnética? O choque hemolítico transfusional aconteceria na transfusão de sangue se realizados, preventivamente, os testes alérgenos antes da inserção do sangue humano à pessoa transfundida? 7. Considerações finais A iatrogenia não pode se apresentar como um salvo conduto para condutas temerárias que produzem riscos e danos à saúde humana. Ainda que o evento adverso à saúde do paciente seja indesejado, é previsível na maioria das evidências clínicas. As condutas preventivas não seguem à mesma natureza do fato principal e a ausência das cautelas preventivas são aptas a gerar dano autônomo. O tratamento da saúde humana está afeto à ciência universal, motivo pelo qual as melhores técnicas e standarts comportamentais devem ser observados em território brasileiro, sob pena de configuração da responsabilidade jurídica, penal e civil, como forma de alinhar as condutas dos profissionais da saúde e da administração hospitalar.     Os alegados altos custos hospitalares inerentes à prevenção de eventos adversos para a realização de testes de alergia, ou testes para identificar o antibiótico mais eficaz, não se constitui em argumento plausível pela natureza do bem tutelado - vida e saúde humanas -, assim como por todas as consequências advindas com o agravamento da saúde do paciente e novas hospitalizações, além do impacto previdenciário decorrente dos óbitos. Não são aceitáveis as taxas alarmantes de mortes por iatrogenia, em qualquer de suas modalidades, no momento em que se discutem as inúmeras funcionalidades da inteligência artificial e na implementação de medidas preventivas a danos, aptos a salvarem milhares de vidas humanas. São também inaceitáveis os obituários lacônicos no registro dos eventos adversos em matéria de saúde dificultando o ajuizamento das ações de responsabilidade jurídica. Expressões lacônicas a exemplo de "falência múltipla de órgãos" ou "complicações cirúrgicas" em muitos casos oculta, em verdade, casos de iatrogenia, ora por erro médico, ora por ausência de testes prévios, autônomos e necessários ao procedimento principal com foco na segurança do paciente. A edição do Estatuto do Paciente, lei nacional que deve prever direitos, deveres e prerrogativas do paciente, é urgente no Brasil. Os dissídios em matéria de saúde se multiplicam em franco abalo social à relação médico-paciente. Maiores garantias em prol do paciente, parte vulnerável nos contratos de saúde humana, principalmente no que tange aos riscos da iatrogenia, e as formas possíveis de evitar sua ocorrência devem ser implementados. A transparência de dados e sistema rígido de controle com a utilização dos mecanismos digitais é urgente para a melhoria da prestação de saúde, pública e privada, em território brasileiro como forma de que sejam reduzidos os casos de iatrogenia. _____________ ALBUQUERQUE, Aline. Direitos humanos dos pacientes. Curitiba. Ed. Juruá. 2016. ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e suas Consequências. 5ª Ed. São Paulo: Ed.Saraiva. 1980. ANDRÉ, Victor Conte (coord). Responsabilidade Médica. Curitiba: Ed. Juruá. 2020. ARMOND, Guilherme. Segurança do Paciente. Rio de Janeiro: Ed. DOC Content.2016. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Ed. Malheiros.15ª edição 2014. DALCOMO, Margareth. Tempo para não esquecer. Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo. 2021. 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Habitualmente, um indivíduo poderá ser responsabilizado criminalmente quando faz algo que o Direito pediu para não fazer. Contudo, em algumas situações, o Direito irá contrariar essa lógica e exigir que faça algo, ou seja, que não se abstenha, que não permaneça inerte. Nesses casos, então, esse indivíduo poderá ser responsabilizado se e quando deixar de fazer algo que é reivindicado e esperado pelo Direito. Alguns desses crimes omissivos se perfazem com a simples abstenção do sujeito1. Assim, o resultado danoso, mesmo quando existente, será indiferente para a consumação delitiva. Contudo, à vista da decisão que será aqui estudada, interessará particularmente os crimes omissivos que, por sua vez, vão impor ao indivíduo não apenas um dever de agir, mas, ainda, um agir para evitar um resultado concreto2. Essa necessidade de se evitar um resultado decorre da relação especial de proteção que existe entre determinadas pessoas e bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico. Mesmo assim, é salutar compreendermos que se busca(rá) nessas ocasiões uma causalidade jurídica, isto é, uma causalidade não fáctica. Isso porque o indivíduo que se omite responderá não por ter causado exata e diretamente o resultado, mas por não ter evitado sua ocorrência quando deveria (e poderia) tê-lo feito. O não impedimento do resultado, portanto, equivale a dar-lhe causa3. É o próprio Código Penal, aliás, que estabelece quais são as pessoas que não podem se omitir. Nesse sentido, a alínea "a" do §2º do seu art. 13 dispõe expressamente que o dever de agir incumbirá a quem tiver por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância. Trata essa hipótese, então, justamente da relação entre médico e paciente ou, melhor, da obrigação de cuidado, proteção e vigilância que é, sabidamente, assumida por médicos e por outros profissionais da saúde em relação aos seus pacientes. Por isso, em suma, espera-se que estes indivíduos - médicos, enfermeiros, biomédicos, dentistas, etc. - garantam que nenhum resultado lesivo ocorra em desfavor daqueles que estejam sob seus cuidados, até porque, se esses não obstruírem eventuais processos causais que estejam se desenrolando diante deles, será considerado como se o tivessem causado4. Haverá, daí, responsabilização criminal legítima. Dito isso, é dizer que, em meados de 2018, o TJ/PR foi instado a decidir se um médico deveria ser considerado responsável pela condução de um parto normal que acabou ocasionando à vítima paralisia cerebral tetraplégica secundária, decorrente de anóxia neonatal grave e, então, condenado pela prática do crime de lesão corporal gravíssima por omissão5. Nesta ocasião, o Ministério Público sustentou que a parturiente deveria ter sido submetida a uma cesárea por não ter apresentado dilatação pélvica ou do colo uterino. Essa questão, contudo, foi afastada pelo Tribunal, que entendeu que a realização da cesariana não se mostrou uma medida necessária. Logo, não se mostrou um dever do médico. Ainda assim, o debate ganhou outros contornos relevantes. Foi constatado também que o parto transcorreu normalmente até a fase expulsiva, mas que, a partir daí, a expulsão do feto acabou sendo interrompida por conta de uma intercorrência denominada distócia de ombro6, o que, naturalmente, gerou um novo dever de agir (de cuidado) para o profissional em razão deste (também) novo processo causal. Assim, em vista dessa emergência obstétrica, o médico, com suporte de sua equipe, realizou manobras de McRoberts e de Rubin, que foram surtir efeito somente após decorrido algum tempo. Aliás, constou textualmente na decisão que foi exatamente nesse intervalo que o feto acabou entrando em situação de sofrimento fetal por anóxia com aspiração de líquido amniótico. Além disso, o parecer técnico do setor médico do CAOP de saúde pública do MPPR, que, inclusive, apoiou o entendimento definitivo do colegiado, registrou que "a falta de material adequado aumentou o tempo de expulsão do feto, piorando o quadro de hipoxemia da criança", que "não havia pediatra de plantão ou tratamento especializado" e, também, que "medidas de precaução, como presença de neonatologista e anestesiologista e controle rigoroso do bem estar fetal, não foram observadas ou sequer existiam no hospital". Desta maneira, o TJ/PR decidiu que o médico i) agiu de acordo com o que tinha em mãos para realizar o parto da vítima, seguindo as orientações do Ministério da Saúde ao priorizar o parto vaginal, lançou mão de todos os procedimentos médicos a seu alcance para que o ofendido viesse à luz com saúde perfeita e, quando verificada imprevisível intercorrência, empregou igualmente todas as técnicas disponíveis" e, assim, que ii) se mostrou ausente o nexo de causalidade entre a conduta do médico - que se revelou acertada e conforme à técnica médica usual - e o resultado lesivo. Por fim, sinalizou também que iii) o fato de que restaram ao recém-nascido sequelas graves decorreu de infortúnio que resultou em prolongamento do parto, não sendo este decorrente de omissão ou de negligência do réu". A absolvição do médico, convém já adiantar, mostrou-se uma medida acertada. Isso porque, à vista das circunstâncias tidas por comprovadas, parece evidente o não preenchimento de um pressuposto indispensável deste crime omissivo. Afinal, a omissão somente será penalmente relevante quando o omitente devia e, ainda, podia agir para evitar o resultado. Em outras palavras, neste caso concreto, exigiu-se do médico, sem dúvida, um dever de agir (justificado pela relação médico-paciente), mas, também, um dever de agir vinculado e dependente de um poder agir (justificado pela necessária avaliação da possibilidade física de agir). Assim, é dizer que a precária estrutura hospitalar, reconhecida no acórdão, impossibilitou física e definitivamente que o médico adotasse qualquer medida que pudesse, naquele momento emergencial, evitar um resultado danoso - que, de fato, ocorreu. Em outros termos, é dizer que o médico deveria, sim, ter agido para evitar o resultado, já que representava a garantia do e para o paciente de que este resultado não aconteceria, mas, por outro lado, não tinha condições materiais para evitá-lo. Por aqui se percebe, então, o porquê este médico não poderia ser responsabilizado criminalmente. O acórdão, contudo, ofereceu outros elementos para análise quando sinalizou que inexistiu nexo de causalidade entre a conduta deste médico e o resultado e que este decorreu, na verdade, de uma fatalidade. Assim, apesar de o TJ/PR ter fundamentado desta maneira, parece relevante assentar que este nexo se mostrou presente, posto que, por ser esperada uma causalidade jurídica (isto é, não fáctica, como já dito), esta se materializou ao tempo que o médico não conseguiu impedir o resultado lesivo. Se o médico tem e tinha a obrigação de evitar um dano ao seu paciente, e não o fez porque os recursos por ele utilizados se mostraram inadequados e/ou insuficientes, a impossibilidade física de recorrer aos meios eficazes o afasta tão somente de um dos pressupostos do crime (o poder agir), mas não do nexo de causalidade. Até porque, consta no acórdão, foi justamente o não uso de, por exemplo, fórceps ou de vácuo extrator que acabou prolongando o parto e colocando o feto em situação de sofrimento fetal. Existiu, então, salvo melhor juízo, um nexo de causalidade entre o deixar de adotar medidas eficazes e o resultado. Por outro lado, inexistiu qualquer possibilidade de o médico agir de forma diferente, ou seja, de utilizar os recursos adequados e, então, alterar o resultado do processo causal que se desenvolvia. Inclusive, por ter feito tudo o que poderia fazer, isto é, por ter recorrido ao que se mostrava disponível, não seria possível sequer falar em negligência médica (no caso, o crime de lesão em sua modalidade culposa). Por último, convém promover um brevíssimo diálogo entre a questão da imprevisibilidade no ambiente médico-hospitalar, também tratada no acórdão, e a responsabilidade penal do médico. Este enfrentamento derradeiro se mostra bastante pertinente porque, ainda que a importação de conceitos de outros ramos do Direito possa se mostrar uma ferramenta proveitosa, sua aplicação em processos criminais não pode deixar de lado o que já foi e o que vem sendo construído pela dogmática e prática penal. Desta maneira, essa concepção, que é natural do Direito Civil, precisa passar aqui por uma nova filtragem, especialmente por tratar de situações de isenção de responsabilidade. Essa abordagem, em síntese, defende que: Estará o médico isento de ser responsabilizado por aquele tipo de insucesso que, no transcorrer de sua atuação, não pode ser previsto ou que, mesmo previsto, foi inevitável. Todavia, para as intercorrências previstas deve ele utilizar-se de todos os meios específicos sugeridos pelos compêndios médicos, para evitar ou atenuar os efeitos deletérios, caso aquela intercorrência, que já era prevista, venha a se concretizar7. Assim, faz-se necessário tratar da evitabilidade do resultado, também pressuposto do crime omissivo, que se preocupa em considerar a possibilidade real de a ação do indivíduo, quando praticada, dar conta de impedir o resultado. Em alguns casos, a conduta devida, mesmo se e quando realizada, não tem a força para impedir o resultado danoso, isto é, este aconteceria de qualquer maneira. Nesta hipótese, então, o indivíduo não pode responder criminalmente, justamente porque o resultado se mostrou inevitável. Daqui é possível inferir e concluir i) que a imprevisibilidade de um evento potencialmente lesivo não excluirá a responsabilidade penal de um médico por omissão. Aliás, dado o avanço da Medicina, é plausível argumentar que são e serão cada vez mais previsíveis as intercorrências hospitalares. De todo modo, cabe também sublinhar que raridade não se confunde com previsibilidade. Então, eventual intercorrência não afastará o dever do profissional da saúde de agir e evitar o resultado danoso. Contudo, as circunstâncias singulares do caso podem, aí sim, impedir o sujeito de obstá-lo, o que, como visto, trará repercussões penais e, ainda, ii) que o uso dos meios sugeridos pela lex artis se mostrará relevante tão somente para afastar a responsabilidade do médico por eventual negligência, isto é, para afastá-lo de algum crime culposo. Isso porque, se o resultado for inevitável, não haverá como constatar a imprescindível relação de não impedimento entre médico e resultado, restando descabida uma condenação por omissão. Seguimos buscando o refinamento teórico da responsabilidade penal do médico e de outros profissionais da saúde que, como visto, tem recebido muitos holofotes recentemente. Pretende-se, com isso, lançar luz aos problemas que têm decorrido da criminalização crescente das condutas de profissionais da saúde que, ainda, não conseguiu ser acompanhada e amparada por uma teoria propriamente penal. Por fim, apenas a título de reflexão, "evitar um resultado" e "fazer o possível, dadas as circunstâncias" são condutas (e fins) notada e essencialmente distintas. Os profissionais da saúde servem ao paciente e devem servir a contento. Suas obrigações passam por aí. Assim, eventual resultado lesivo, como o que aconteceu no caso em questão, precisa poder ser justificado excepcionalmente. Desta maneira, o cenário narrado no acórdão, de absoluta e preocupante escassez estrutural do hospital, apesar de justificar a absolvição do acusado, deixou em destaque a responsabilidade de todos aqueles que fazem parte dessa relação de cuidado - hospitais, todos os profissionais que trabalham na saúde e, ainda, o Estado. Todos estes precisam de segurança para trabalhar, e essa parece perpassar pela necessidade primeira de se compreender e fixar a obrigação de cada um. _______ 1 São os chamados crimes omissivos próprios, como, por exemplo, a omissão de socorro (artigo 135, Código Penal) e a apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A, Código Penal). 2 Aqui não há tipos específicos e gera-se uma tipicidade por extensão. Exemplo: um policial acompanha a prática de um roubo, deixando de interferir na atividade criminosa, propositadamente, porque a vítima é seu inimigo. Responderá por roubo, na modalidade comissiva por omissão (NUCCI, Guilherme. Manual de Direito Penal. 16 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020, p. 290. 3 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 450. 4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 324. 5 TJPR - 1ª Câmara Criminal - 0000159-97.2015.8.16.0097 - Ivaiporã - Rel.: Des. Antonio Loyola Vieira - J. 22.11.2018. 6 A distócia de ombro de uma emergência obstétrica em que a cabeça sai parcialmente por conta da impactação do diâmetro biacromial fetal entre o púbis e o promontório sacral maternos. 7 GIOSTRI, Hildegard. Erro Médico à Luz da Jurisprudência Comentada. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2004, p. 68-69.
Um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro é o da igualdade, previsto ainda no preâmbulo da CF/1988, e positivado no art. 5º, caput, como direito fundamental. Nota-se, com isso, o claro intuito do legislador constituinte de dispor, sobremaneira, acerca do tratamento igualitário dos cidadãos, a não ser que existam razões justificáveis constitucionalmente para o tratamento desigual1. Exemplo de um tratamento jurídico diferenciado previsto pelo próprio texto constitucional em seus arts. 170, inciso IX, e 179, é o regime tributário do Simples Nacional, regulado, na sequência, por lei complementar própria (LC 123/2006). Trata-se, em síntese, de "[...] regime especial de tributação unificada opcional, diferenciada e favorecida, para pequenas atividades empresariais"2 Regime que surgiu com a finalidade de resguardar a atuação das micro e pequenas empresas no mercado de forma competitiva, sobretudo considerando seu relevante papel na sociedade, geradoras de empregos e fomentadoras da economia. Por essa razão, entende-se como justificada, de forma razoável e proporcional3, a diferenciação estabelecida entre as empresas. Sistematicamente, tal legislação fixa alíquotas diferentes a depender da atividade desempenhada pelo contribuinte, bem como da receita bruta auferida em 12 meses, organizadas em cinco anexos. No que diz respeito às clínicas médicas, são empresas enquadradas, originariamente, no anexo III da LC 123/2006 (Art. 18, § 5º-B, inciso XIX4), o qual estabelece como alíquota inicial 6%. No entanto, a depender do critério contábil denominado "fator R", o qual considera se as empresas têm ou não folha de salários e, caso tenha, se a relação entre tal folha e sua receita bruta é inferior a 28%, podem ser obrigadas a declarar e recolher seus tributos pelo anexo V, o qual conta com uma alíquota inicial de 15,50%, em razão da exceção prevista no art. 18, § 5º-M, inciso I, da LC 123/2006:  Art. 18. Omissis. § 5o-M. "Quando a relação entre a folha de salários e a receita bruta da microempresa ou da empresa de pequeno porte for inferior a 28% (vinte e oito por cento), serão tributadas na forma do anexo V desta Lei Complementar as atividades previstas: I - nos incisos XVI, XVIII, XIX, XX e XXI do § 5o-B deste artigo; [...]". Nota-se, portanto, que o legislador estabeleceu um critério de discriminação, o "fator R", para apenas alguns serviços originariamente tributados pelo anexo III, conforme o art. 18, § 5º-B da referida lei, quais sejam, os de fisioterapia (inciso XVI), arquitetura e urbanismo (inciso XVIII), medicina, inclusive laboratorial, e enfermagem (inciso XIX), odontologia e prótese dentária (inciso XX) e psicologia, psicanálise, terapia ocupacional, acupuntura, podologia, fonoaudiologia, clínicas de nutrição e de vacinação e bancos de leite (inciso XXI). Ou seja, da simples leitura do referido artigo e seus incisos, depreende-se que vários outros serviços não foram submetidos a tal critério diferenciador, como, por exemplo, os de agência de viagem e turismo (inciso III) ou, ainda, de corretagem de seguros (inciso XVII). Assim, a partir dessa diferenciação, optou a legislação por aumentar a carga tributária de determinadas prestadoras de serviços, onerando umas mais do que outras, sem qualquer justificativa razoável ou proporcional para tanto. Nesse sentido, não se pode olvidar que a adoção de um discrímen em um sistema como o brasileiro, o qual eleva o princípio da isonomia como máximo da ordem jurídica, só é permitido se houver justificativa racional para essa escolha, bem como se tal critério for compatível com o texto constitucional. É como ensina, aliás, o constitucionalista Celso Antônio Bandeira de MELLO5:  [...] tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, inconcreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles. In casu, percebe-se que não há quaisquer fundamentos que justifiquem o aumento da carga tributária a partir da incidência de um critério de discriminação, o qual, não é demais ressaltar, leva em conta tão somente se a empresa tem ou não folha de salários. E isto apenas para alguns dos serviços originariamente sujeitos à tributação do anexo III do Simples Nacional, o qual, destaca-se, prevê uma alíquota menor - dentre eles, os prestados por clínicas médicas, sobretudo aquelas menores, que não contam, muitas vezes, com expressivo número de funcionários. Nesse sentido, a despeito de ser louvável o intuito do legislador de valer-se do parâmetro da folha de pagamento para instituir o "fator R", de modo a beneficiar com uma carga tributária menor as pequenas empresas que tem mais funcionários, não se pode perder de vista que há diversos outros instrumentos legais para promoção do pleno emprego. O Simples Nacional, no entanto, ao menos não diretamente, não é um deles. Isto porque a finalidade constitucional desse tratamento jurídico-tributário diferenciado consiste no incentivo da atividade dos micros e pequenos empresários, diminuindo seus custos para que possam desenvolver-se no mercado. Agora, condicionar a carga tributária de alguns contribuintes beneficiários desse regime a um critério contábil que não corresponde, ao menos diretamente, a sua finalidade, deflagra, a nosso ver, uma ilegalidade. Isto porque, à tal diferenciação, falta a "[...] correlação lógica entre fator de discrímen e a desequiparação procedida"6. Trata-se, portanto, de tratamento desvantajoso às clínicas médicas, as quais, em que pese sejam legalmente enquadradas no anexo III do Simples Nacional, estão sujeitas a um ônus fiscal bem maior em razão de critério contábil de diferenciação incompatível com a ordem constitucional. Afinal, de acordo com as lições de Robert ALEXY, havendo um conflito entre princípios - o da igualdade e o da legalidade -, aplica-se a lei do sopesamento, da qual conclui-se que, in casu, considerando o papel da isonomia no ordenamento jurídico brasileiro, deverá prevalecer7. E, uma vez identificada tal inconstitucionalidade, cabe ao aplicador do direito questioná-la perante o Judiciário, de modo a fazer valer a máxima da igualdade, garantindo, assim, a paridade e competitividade entre os empresários beneficiários do regime tributário Simples Nacional. Referências ALEXY, Robert. Teoria geral dos direitos fundamentais. Tradução de: Virgílio Afonso da Silva. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2011  ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3.ed. São Paulo, Malheiros, 2015. MARINS, James; BERTOLDI, Marcelo M. Simples Nacional: estatuto da microempresa e da empresa de pequeno porte comentado: LC 123, de 14.12.2006; LC 127, de 14.08.2007. São Paulo: RT, 2007. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2009. ______________ 1 "A Constituição, ao estabelecer que os contribuintes devem ser tratados igualmente, a não ser que existam razões para tratá-los diferentemente, instituiu o dever de justificativa do tratamento desigual, não do igual, razão pela qual não são os contribuintes que devem apresentar razões de extrema importância para serem tratados da mesma forma, mas é o ente estatal que deve aduzi-las para tratá-los de forma diferente". Humberto Ávila, Teoria da igualdade tributária, p. 204. 2 James Marins; Marcelo M Bertoldi, Simples Nacional, p. 68. 3 "Proporcional é a medida cuja utilização provoque mais efeitos positivos do que negativos à promoção dos princípios constitucionais. [...] ao ter que restringi-la, o ente estatal está obrigado a escolher aquele meio que promova, na sua inteireza, mais a ordem constitucional do que a restrinja". Humberto Àvila, Teoria da igualdade tributária, p. 168. 4 Art. 18. Omissis. § 5º-B "Sem prejuízo do disposto no § 1º do art. 17 desta Lei Complementar, serão tributadas na forma do Anexo III desta Lei Complementar as seguintes atividades de prestação de serviços: [...] XIX - medicina, inclusive laboratorial, e enfermagem; 5 Celso Antônio Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 21-22. 6 Celso Antônio Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 37. 7 "Segundo a lei do sopesamento, a medida permitida de não-satisfação ou de afetação de um princípio depende do grau de importância da satisfação do outro". Robert Alexy, Teoria geral dos direitos fundamentais, p. 167.
No Brasil, muitos cancelamentos de contratos de planos de saúde ocorrem de forma ilegal ou em desacordo com normativas editadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS. Por isso, mesmo em casos de cancelamento por atraso de 60 (sessenta) dias ou mais, no pagamento das mensalidades, é possível reativar o contrato de plano de saúde cancelado pela via judicial. No tópico a seguir, serão apresentadas as regras sobre cancelamento de plano de saúde aplicadas aos planos individuais/familiares.  Regras aplicáveis aos planos de saúde individuais/familiares A lei 9.656/1998, que regulamenta os planos privados de assistência à saúde, estabelece apenas duas hipóteses de cancelamento do contrato de plano de saúde para os planos contratados individualmente (diretamente pela pessoa física/beneficiário com a operadora de saúde). 1. Fraude: conforme art. 13 da lei 9.656/1998, é proibida a suspensão ou cancelamento unilateral do contrato, salvo por fraude (qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com a intenção de prejudicar ou enganar outrem, ou de não cumprir determinado dever) [...]; 2. Inadimplência: não-pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência; indicar o artigo.  A primeira hipótese de cancelamento mencionada na Lei 9.656/1998, a exemplo de empréstimo de carteirinha e fracionamento de recibo, são atos que dão direito à operadora de cancelar o contrato. A segunda hipótese que permite o cancelamento do contrato de plano de saúde é a inadimplência, ou seja, a ausência de pagamento da mensalidade. Situação também frequente, muitas vezes motivada por crises econômicas que o país enfrenta, dificuldades financeiras particulares ou até mesmo esquecimento por parte do beneficiário do plano de saúde. A regra de cancelamento por inadimplência mencionada no parágrafo anterior, sofreu alterações por meio da edição da resolução normativa 593, de 19 de dezembro de 2023 (editada pela Agência Nacional de Saúde), que entrou em vigor em 1º de fevereiro de 2025, a qual estabeleceu regras sobre a notificação por inadimplência e nova regra sobre a quantidade de dias de atraso que permite o cancelamento do contrato. A nova resolução estabelece em seu artigo art. 4º, § 3º que para que haja a exclusão do beneficiário ou a rescisão unilateral do contrato por inadimplência, deve haver, no mínimo, duas mensalidades não pagas, consecutivas ou não. Apesar dessa alteração, permanece a exigência de notificação prévia até o quinquagésimo dia de atraso, apenas com ampliação dos meios de notificação:  I - correio eletrônico (e-mail) com certificado digital ou com confirmação de leitura; II - mensagem de texto para telefones celulares via SMS ou via aplicativo de mensagens com criptografia de ponta a ponta; III - ligação telefônica gravada, de forma pessoal ou pelo sistema URA (unidade de resposta audível), com confirmação de dados pelo interlocutor; IV - carta, com aviso de recebimento (AR) dos correios, não sendo necessária a assinatura da pessoa natural a ser notificada; ou preposto da operadora, com comprovante de recebimento assinado pela pessoa natural a ser notificada. A notificação realizada por SMS ou aplicativo de mensagens para celulares prevista no inciso II do caput, somente será válida se o destinatário responder a notificação confirmando a sua ciência.  Esses novos meios de comunicação são mais adequados, seguros e estão em sintonia com o que estabelece o Código de Defesa do Consumidor a respeito do dever de informação e direitos básicos do consumidor, previstos no art. 6º da lei 8.078 de 1990, isso porque estabelecem a exigência de confirmação de recebimento da notificação por parte do consumidor beneficiário do plano de saúde. A nova norma ainda estabelece, em seu artigo 15, que durante a internação de qualquer beneficiário, é proibida, por qualquer motivo, a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato da pessoa natural contratante por iniciativa da operadora ou a exclusão do beneficiário que paga a mensalidade do plano coletivo diretamente à operadora.  Do aviso especial obrigatório antes ao cancelamento do plano de saúde As operadoras de planos de saúde costumam encaminhar notificação prévia antes do cancelamento do contrato de plano de saúde por inadimplência, até o quinquagésimo dia de atraso. Regra que parece ser respeitada por todas as operadoras, salvo algumas exceções. Apesar disso, pode-se perceber, na prática, que muitas operadoras de planos de saúde permitem vários atrasos no pagamento das mensalidades, alguns deles superando os 60 dias previstos na lei, e não cancelam o contrato, mesmo possuindo esse direito, fato que cria no consumidor a expectativa de que seu plano não será cancelado caso venha a cometer novos atrasos no pagamento da mensalidade. A seguir, apresenta-se um exemplo para elucidar a hipótese. Imagine que Aparecida contratou um plano de saúde em dezembro de 2019. Após 4 (quatro) meses de vigência do plano de saúde, a pandemia de Covid-19 atingiu o Brasil e instalou-se uma grande crise econômica. Em razão desse fato, bem como diante de dificuldades financeiras, Maria começou a atrasar o pagamento das mensalidades. Entre maio e junho de 2020 ela permaneceu em atraso por 60 dias e pagou as atrasadas com 65 dias de atraso, mas seu plano de saúde não foi cancelado. Em outubro de 2020 ela pagou a mensalidade de agosto já com 70 dias de atraso, mas seu plano não foi cancelado. No mesmo ano ela cometeu mais um atraso semelhante a esses mencionados e, em 2021, ela também cometeu vários atrasos superiores a 60 dias, mas seu plano não foi cancelado. Porém, em março de 2022 ela pagou a mensalidade de janeiro de 2022 com 62 dias de atraso e seu plano de saúde foi cancelado, após aviso prévio. Indignada com a situação, ela notificou a operadora de saúde, mas seu plano não foi reativado. Então, ela demandou perante a Justiça e conseguiu uma decisão judicial liminar que determinou à operadora de saúde que reativasse o contrato cancelado por falta de pagamento. Apesar dos vários atrasos da consumidora, a atitude da operadora de saúde, de permiti-los e não cancelar o contrato, criou a expectativa de que ela poderia cometer novos atrasos, os quais não implicariam cancelamento do contrato. A mesma expectativa ocorreria nos casos de atrasos de 2 (duas) mensalidades, conforme a nova regra de cancelamento prevista na resolução normativa 593, de 19 de dezembro de 2023. O cancelamento realizado pela operadora de plano de saúde enquadra-se em um comportamento não aceito pela doutrina e pela jurisprudência, que o princípio do "venire contra factum proprium", que proíbe comportamento contraditório, inesperado, que causa surpresa na outra parte. Venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e realizados em períodos diferentes. O primeiro - factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo.1 O que se espera evitar com a proibição do venire contra factum proprium é que a parte da relação jurídica contratual adote mais de um padrão de conduta, segundo as vantagens que cada situação possa lhe oferecer.2 No exemplo citado, ao permitir que a consumidora cometesse atrasos no pagamento da mensalidade por mais de uma vez, inclusive, atingindo mais de 60 (sessenta) dias de inadimplência e não cancelar o contrato (factum proprium), o que se esperava da operadora era que continuasse a adotar esse padrão de conduta. De acordo com Guilherme Martins, "a omissão, mesmo que inicialmente lícita, também é capaz de gerar na parte contrária a legítima expectativa de que este não agir persistiria".3 Por isso, a segunda atitude da operadora (segundo comportamento), qual seja, cancelar o contrato após envio do mesmo aviso padrão, é considerada contraditória em relação às anteriores (as atitudes de não cancelar o contrato em atraso, mesmo tendo esse direito). Esses comportamentos de permitir atrasos, não cancelar o contrato e receber novas mensalidades após esses atrasos, é incompatível com a vontade de cancelar o contrato de plano de saúde. Em razão disso, é indispensável o envio de um "aviso especial de cancelamento de plano de saúde", a ser encaminhado ao beneficiário inadimplente, esclarecendo que os atrasos de 60 dias (ou atrasos de duas mensalidades, conforme nova regra da resolução 593/23), até então permitidos, não mais serão tolerados. Trata-se de um aviso complementar. O aviso padrão, encaminhado sempre até o quinquagésimo dia de inadimplência, conforme previsto na lei 9.656/1998, perde a sua finalidade quando, após o envio e recebimento, a operadora de saúde não cancela o contrato. A permissão de atrasos por parte da operadora e a ausência de cancelamento, mesmo após envio da notificação padrão, implica a necessidade de um aviso especial de cancelamento de plano de saúde, para que o beneficiário não seja surpreendido com o cancelamento do contrato. Esse aviso especial demonstra boa-fé objetiva e lealdade contratual, exigíveis tanto da operadora de plano de saúde quanto do beneficiário do plano de saúde pois, se uma das partes decide "mudar a regra do jogo" no meio da partida, é esperado que, pelo menos, a outra parte seja comunicada antecipadamente. Se esse aviso especial não for enviado, nascem o dever do plano de saúde e o direito do consumidor de reativação do contrato de plano de saúde cancelado por inadimplência. E, caso não seja reativado, é plenamente justificável e legítima a concessão de uma decisão judicial liminar ou uma sentença de mérito determinando a reativação do contrato. __________ 1 ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 186. 2 PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade civil pré-contratual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 85 3 MARTINS, Guilherme Magalhães, A supressio e suas implicações. In: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 32, out./dez., 2009, p. 151.
Partindo do pressuposto dos 388 anos de escravização, para imprimir considerações a respeito dos direitos inerentes à população negra no Brasil, é necessário considerar como o racismo está implícito e, por vezes, escancarado, nas relações sociais. Como bem pontuado por Nascimento, "sem o escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido" (2016, p. 59)1.  Para Moreira, ponderando que a construção da nossa sociedade é racista, é essencial a compreensão com base no direito antidiscriminatório (2020)2, o qual traz como princípio "[...] a necessidade de eliminação de práticas sociais que produzam desvantagens para as pessoas" (2017, p. 197)3.  Ainda de acordo com Moreira,  [...] o ponto central desse preceito está na sua importância na proteção de grupos sociais. Ele estabelece uma correlação direta entre desvantagem social e o pertencimento a grupos minoritários, o que o leva a afirmar que a existência social como membro de certas comunidades tem prioridade sobre a existência social como indivíduo na análise da igualdade. (2017, p. 197) Diante de um sistema historicamente excludente, em que a branquitude esteve associada a privilégios e a negritude à marginalização, o Brasil passou a aperfeiçoar os instrumentos de verificação da autodeclaração racial, como forma de garantir que os benefícios das ações afirmativas alcancem, de fato, os sujeitos a quem se destinam. As políticas de ações afirmativas visam, sem resquícios de dúvidas, reduzir as desigualdades historicamente consolidadas no país, e se apresentam como resultado da luta do movimento negro brasileiro. Por outro lado, os mecanismos de efetivação dessas políticas, principalmente no que se refere ao critério racial adotado para acesso às ações afirmativas, vêm se tornando fator desencadeador para profundas discussões. Antes mesmo de promulgada a lei de cotas (lei 12.711/12)4, as universidades brasileiras já adotavam a formação de bancas para heteroidentificar candidatos cotistas raciais (Silva et al., 2020)5. No entanto, entre os anos de 2003 e 2012, poucas instituições estruturaram comissões de forma sistemática. Na maioria dos casos, essas bancas eram constituídas de maneira pontual e reativa, especialmente em resposta ao aumento de denúncias de fraudes em autodeclarações raciais, situação que se tornava mais evidente no curso de Medicina. A intensificação da fiscalização e da responsabilização por fraudes nas políticas de cotas raciais revela a crescente atenção institucional e judicial dedicada aos desafios da heteroidentificação. Cada vez mais, os procedimentos adotados para validar a autodeclaração racial têm sido questionados, tanto na esfera administrativa quanto no âmbito do Judiciário, sobretudo diante de decisões baseadas em avaliações subjetivas e marcadas pela ausência de critérios claros e justificativas consistentes. A recorrência de situações envolvendo a exclusão de candidatos autodeclarados pardos para acesso ao curso de Medicina de Universidades Públicas ilustram as tensões provocadas pela subjetividade nos procedimentos de heteroidentificação, seja pela suposta ausência de traços fenotípicos compatíveis com o grupo racial beneficiado, seja pela falta de elementos objetivos ou por possíveis violações ao devido processo legal. No contexto das decisões judiciais envolvendo a validação fenotípica em processos seletivos para o curso de Medicina, ganhou ampla repercussão a condenação6, em dezembro de 2024, de um médico recém-formado pela UFAL - Universidade Federal de Alagoas, reconhecido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região como fraudador do sistema de cotas raciais destinadas a candidatos negros.  A 5ª turma ampliada da Corte determinou o pagamento de indenização por danos morais coletivos, reformando a sentença da 2ª vara da Justiça Federal em Alagoas, que havia negado os pedidos do Ministério Público Federal. O recurso, interposto em setembro de 2022, foi integralmente acolhido, com o reconhecimento de que o egresso utilizou indevidamente a autodeclaração racial, em desacordo com os critérios fenotípicos e a finalidade reparadora das ações afirmativas, comprometendo a efetividade da política pública de inclusão.  Merece ênfase o seguinte trecho extraído do acórdão:  [...]  A autodeclaração como critério para o ingresso no sistema de cotas deve ser pautada pela boa-fé, sendo válida a sua revisão quando existirem indícios de fraude.  A análise fenotípica do apelado, realizada através de imagens registradas em audiência e fotos extraídas de documentos de identificação, revelou ausência evidente de características físicas que o enquadrem como pardo ou negro, configurando fraude ao sistema de cotas raciais.  A má-fé na autodeclaração prejudica a eficácia das ações afirmativas, comprometendo ajustiça social e violando a igualdade material, além de lesionar direitos coletivos protegidos.  A fraude ao sistema de cotas gera dano moral coletivo, considerando o impacto negativo sobre a confiança no sistema e os valores de inclusão social que fundamentam a política pública.  O uso indevido da vaga reservada implica ressarcimento dos custos do curso, correspondentes ao valor médio de mensalidades em instituições privadas equivalentes, devidamente corrigidos. Embora o julgamento represente um precedente significativo no tratamento judicial de casos envolvendo possíveis fraudes em políticas afirmativas, é importante destacar que a decisão ainda não transitou em julgado, permanecendo passível de interposição de recurso.  Em outra situação, um estudante aprovado no curso de USP - Medicina da Universidade de São Paulo pelo sistema de cotas raciais foi impedido de efetivar a matrícula após ser considerado inapto pela banca avaliadora. O caso foi judicializado7 e o Poder Judiciário, ao reconhecer que a análise foi feita de forma virtual e que a referida modalidade poderia comprometer a adequada verificação fenotípica, determinou a nulidade do ato administrativo de exclusão, garantindo, assim, a matrícula do estudante, conforme destaque:  [...] A análise realizada pela banca de heteroidentificação deve ser objetiva, voltada apenas a aferir se o candidato possui as características fenotípicas que permitam que a sociedade lhe enxergue como negro, v.g., nariz negroide (dorso baixo e curto, com as narinas abertas e achatadas dando um aspecto de base nasal mais alargada), cabelo crespo e pele escura, e por isso deve assegurar ao candidato que essa averiguação seja realizada na melhor condição possível. E, análise virtual das características físicas do candidato pode se mostrar precária por não garantir efetivamente essas condições, já que, conforme visto, pode sofrer influências externas que causam deturpações na tomada de decisão dos membros da banca. [...] Pode-se concluir, portanto, com razoável probabilidade, que o autor foi prejudicado pelas condições externas na ocasião de sua avaliação, que foi realizada de forma virtual, levando a banca de heteroidentificação a entendimento diverso daquele que seria adotado caso a avaliação fosse realizada de forma presencial. Os casos aqui elencados, noticiados nacionalmente8, sinalizam um enfrentamento mais rigoroso aos procedimentos de heteroidentificação nas ações afirmativas, sobretudo no curso de Medicina, evidenciando a urgência de diretrizes claras, transparentes e garantidoras de direitos fundamentais, especialmente nos chamados "casos-limite", em que se insere grande parte da população parda brasileira. A autodeclaração, embora seja um importante instrumento de reconhecimento identitário e de reparação histórica, não pode ser compreendida de forma absoluta ou desvinculada da realidade social e fenotípica do indivíduo, contudo, ao mesmo tempo, a sua presunção de veracidade não pode, apenas por critérios subjetivos do avaliador, ser rechaçada.  Todo julgamento é conduzido por pessoas inevitavelmente atravessadas por experiências, percepções e valores pessoais. Desse modo, é no plano prático que os maiores desafios se materializam.  A ausência de critérios objetivos uniformes entre as comissões de heteroidentificação, a desconsideração de marcadores interseccionais (como gênero, classe e regionalidade) e a escassez de transparência nos processos decisórios frequentemente comprometem a finalidade do procedimento, que é assegurar justiça e isonomia.  No julgamento ADPF 1869, reafirmado no julgamento da ADC 4110, o STF, ao apreciar a constitucionalidade do procedimento de heteroidentificação, reconheceu que a autodeclaração do candidato não possui veracidade absoluta, contudo, deve ser o critério primário para o enquadramento racial, sendo a heteroidentificação um mecanismo subsidiário e apenas utilizado para evitar fraudes.  Destaca-se, nesse ponto, o voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso: [...] 68. É por isso que, ainda que seja necessária a associação da autodeclaração a mecanismos de heteroidentificação, para fins de concorrência pelas vagas reservadas nos termos da Lei nº. 12.990/2014, é preciso ter alguns cuidados. Em primeiro lugar, o mecanismo escolhido para controlar fraudes deve sempre ser idealizado e implementado de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana dos candidatos. Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e a ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial. Com notável clareza, o STF firma o entendimento de que a garantia de validade do procedimento de heteroidentificação está profundamente ligada ao respeito ao contraditório, à ampla defesa e à dignidade da pessoa humana, elucidando que, em casos de dúvida quanto à identificação fenotípica, deve prevalecer a presunção de veracidade da autodeclaração do candidato, o que se aplica, também, à chamada "zona de incerteza" (ou "zona cinzenta"). Desse modo, ainda que as comissões de heteroidentificação racial estejam respaldadas na legalidade e constitucionalidade, e que o STF tenha delimitado parâmetros protetivos à dignidade do candidato, a latente subjetividade presente na própria estrutura do procedimento gera desconforto e inquietação, revelando importantes fragilidades, em especial quando não são observadas as garantias mínimas do devido processo legal.  A discussão aqui posta se correlaciona com o questionamento de Kabengele Munanga (2019, p. 104)11, que aponta: "quem é o negro que na sociedade brasileira tida como mestiça poderia ser beneficiado pelas cotas?". A indagação aponta reflexões quanto a construção das identidades negras no Brasil, principalmente no que se refere à pessoa autodeclarada negra da cor parda.  Miranda, Souza & Almeida (2020)12 e Bacelar (2021)13 discorrem que o "limbo racial" costumeiramente vinculado ao pardo se torna fato gerador para identificações raciais e, consequentemente, para o modo como o procedimento de heteroidentificar acontece, se conectando ao conceito de "zona cinzenta".  Para Osório, as principais controvérsias surgem quando os avaliados possuem traços que não se enquadram claramente nos padrões fenotípicos historicamente associados à negritude, gerando interpretações divergentes entre os membros das comissões. É como se estivessem "na fronteira entre dois grupos" (2013, p. 92)14. Nesses casos, a distinção entre quem deve ou não acessar políticas afirmativas baseadas em cor e fenótipo torna-se especialmente delicada, exigindo cautela redobrada por parte das comissões de heteroidentificação. Embora os pardos sejam contabilizados como parte da população negra, nos moldes do IBGE15 e do Estatuto da Igualdade Racial16, são frequentemente submetidos a interpretações divergentes no momento da heteroidentificação. Essa instabilidade na percepção do pertencimento racial pode resultar na exclusão de candidatos que, embora se autodeclarem negros, não correspondem à imagem fenotípica idealizada pelas comissões, o que compromete não apenas a legitimidade do procedimento, mas também a própria finalidade das ações afirmativas: promover inclusão e não gerar novas formas de exclusão.  A disparidade entre os métodos adotados pelas instituições quanto à padronização dos elementos fenotípicos observados e à formalização das decisões, resulta em julgamentos marcados por subjetividade exacerbada e, por vezes, contaminados por estereótipos ou vieses raciais. A depender da comissão e da região do país, uma mesma pessoa pode ser considerada apta ou inapta a ocupar uma vaga destinada a candidatos negros, o que demonstra a instabilidade e a inconsistência do sistema.  O procedimento de heteroidentificar deve verificar, com base em critérios fenotípicos, se há justificativa para o enquadramento nas políticas de cotas raciais. Nesse contexto, Rios pontua:  Reconhecer ao fenótipo papel decisivo decorre da constatação de que, no racismo e na atribuição de identidades étnico-raciais, organiza-se uma taxinomia de indivíduos e de grupos humanos a partir da ideia de raça, fenômeno cultural que se utiliza de diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal, conforme o contexto histórico, demográfico e social, [...] associação esta que se valeu, ao longo da história, de vários marcadores, desde a cor, até outras características antropofísicas e psíquicas. (2018, p. 236-237)17 Diante desse cenário, o reconhecimento da legalidade do procedimento de heteroidentificação não pode afastar a necessidade de que ele seja exercido com base em diretrizes técnicas, públicas e objetivas, em conformidade com os princípios do contraditório, da ampla defesa e da dignidade da pessoa humana, sob pena de transformar a heteroidentificação em instrumento de negação do direito ao pertencimento racial e, portanto, de reprodução das mesmas lógicas de exclusão que as políticas afirmativas buscam combater. A efetividade do devido processo legal, nesses casos, não é apenas uma formalidade processual, mas um imperativo ético e jurídico para que o combate ao racismo institucional se dê de forma legítima e eficaz, uma vez que o objetivo não é invalidar a autopercepção identitária do indivíduo. Assim, trata-se de garantir que a política reparatória não se transforme, contraditoriamente, em novo instrumento de desigualdade ou gerador de judicialização, especialmente em um dos cursos mais concorridos do país. Conclui-se, portanto, que o aprimoramento dos procedimentos de heteroidentificação exige mais do que legalidade formal: impõe o compromisso ético com a justiça racial. As comissões precisam operar com responsabilidade técnica, consciência histórica e sensibilidade social, assegurando que a política de reserva de vagas para candidatos cotistas cumpra o seu papel de reparação e promoção da equidade, sem se tornar mais uma instância reprodutora de exclusões ou inseguranças jurídicas. ___________ 1 NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016. 2 MOREIRA, A. J. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020. v. 1. 3 MOREIRA, A. J. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito/Justificando, 2017. 4 BRASIL. Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: L12711 (planalto.gov.br). Acesso em: 20 mar. 2025. 5 SILVA, Ana Claudia; CIRQUEIRA, Diogo; RIOS, Flavia & ALVES, Ana Luiza. 2020. Ações afirmativas e formas de acesso no ensino superior público: o caso das comissões de heteroidentificação. Novos estudos CEBRAP, v. 39 n. 2:329-347. 6 Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo nº. 0803282-58.2021.4.05.8000. Apelante: Ministério Público Federal. Apelado: Pedro Fellipe Pereira da Silva Rocha. Relator: Des. Federal Francisco Alves dos Santos Júnior. Julgamento em 12 dez. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 7 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº. 1000706-09.2024.8.26.0136. Requerente: Alison dos Santos Rodrigues. Requerida: Universidade de São Paulo - USP. Juiz: Danilo Martini de Moraes Ponciano de Paula. Sentença proferida em 20 nov. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 8 G1. Médico recém-formado na UFAL é condenado a pagar indenização por fraude a cotas raciais. 10 dez. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 9 ESTADÃO. Médico recém-formado terá que ressarcir Universidade Federal de Alagoas por fraude em cotas raciais. 12 dez. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 10 CNN BRASIL. Juiz dá nova decisão em caso de aluno pardo barrado em Medicina na USP. 27 fev. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 mar. 2025. 11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 186 - DF. Requerente: Partido Socialismo e Liberdade - PSOL. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DJ 26 abr. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 18 mar. 2025. 12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 41 - DF. Requerente: Presidente da República. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, DJ 14 jun. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 18 mar. 2025. 13 MUNANGA, Kabengele. 2019. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica. 14 MIRANDA, Ana Paula; SOUZA, Rolf & ALMEIDA, Rosiane. 2020. Eu escrevo o quê, professor(a)?: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas". Revista de Antropologia, v. 63, n.,3: e178854. 15 BACELAR, Gabriela. 2021. (Contra)mestiçagem negra: pele clara, anticolorismo e comissões de heteroidentificação racial. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia. 16 OSÓRIO, R. G. A classificação de cor ou raça do IBGE revisitada. In: PETRUCCELLI, J. L.; SABOIA, A. L. (org.). Características étnico-raciais: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. p. 82-98. 17 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Distribuição da população por cor ou raça. Censo Demográfico 2022. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2025. 18 BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: L12288 (planalto.gov.br). Acesso em: 20 mar. 2025. 19 RIOS, R. R. Pretos e pardos nas ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação. In: DIAS, G. R. M.; TAVARES JUNIOR, P. R. F. (org.). Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018. p. 215-249. Disponível aqui. Acesso em: 17 mar. 2025.
A súmula vinculante 60, publicada pelo STF em setembro de 2024, representa um marco importante na organização do fluxo administrativo e judicial relativo ao fornecimento de medicamentos no SUS - Sistema Único de Saúde. Baseada em acordos interfederativos homologados pela Corte, essa súmula vinculante visa organizar e uniformizar o fluxo administrativo e judicial relacionado ao fornecimento de medicamentos pelos entes federativos. No total foram 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo STF, em governança judicial colaborativa, no Tema 1.234 com sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243), resultado de uma audiência realizada em 16/5/24, que contou com a participação dos entes federativos (União, Estados membros, municípios e Distrito Federal). Esses acordos abrangem seis pontos principais, que servem como diretrizes para a gestão dos pedidos e da judicialização da saúde:  I - competência; II - definição de medicamentos não incorporados; III - custeio; IV - análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamento pelo SUS: V - plataforma nacional; VI - medicamentos incorporados.  No contexto deste artigo, destaca-se a diretriz VI que aborda os medicamentos incorporados  e estabelece, de forma objetiva, as responsabilidades e os procedimentos necessários à sua disponibilização. Conforme disposto no item 6 e no subitem 6.1 da súmula vinculante 60: 6) Em relação aos medicamentos incorporados, conforme conceituação estabelecida no âmbito da Comissão Especial e constante do Anexo I, os Entes concordam em seguir o fluxo administrativo e judicial detalhado no Anexo I, inclusive em relação à competência judicial para apreciação das demandas e forma de ressarcimento entre os Entes, quando devido; 6.1) A(o) magistrada(o) deverá determinar o fornecimento em face de qual ente público deve prestá-lo (União, estado, Distrito Federal ou Município), nas hipóteses previstas no próprio fluxo acordado pelos Entes Federativos, anexados ao presente acórdão". A súmula vinculante, vincula tanto a Administração Pública quanto o Poder Judiciário, que devem aplicá-la integralmente. O descumprimento de suas disposições pode acarretar a nulidade do ato judicial, passível de correção por meio de reclamação constitucional, conforme disposto no art. 103-A, caput e §3º, da CF/88.  O Anexo I, mencionado no acordo interfederativo e disposto no acórdão do RE 1.366.243 (Tema 1.234 - STF), tornou-se de observância obrigatória por força de súmula vinculante. Esse anexo consolida as disposições específicas sobre o fornecimento de medicamentos no SUS - Sistema Único de Saúde, extraídas da portaria de consolidação 2, de 28/9/17, do Ministério da Saúde, referentes à competência, ao custeio e à distribuição de fármacos organizados em diferentes grupos, e estabelece o fluxo administrativo e judicial que deve ser rigorosamente observado por todos os entes federativos no processo de aquisição de medicamentos incorporados. Os grupos que compõem esse fluxo padronizado são assim organizados: Cada grupo estabelece a responsabilidade dos entes federativos pelo fornecimento e financiamento dos medicamentos incorporados.  Esses medicamentos podem estar incluídos no CEAF - Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, no CBAF - Componente Básico da Assistência Farmacêutica ou no CESAF - Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica. O CEAF engloba medicamentos de alto custo e complexidade, o CBAF é voltado para medicamentos essenciais da atenção básica, e o CESAF é direcionado a medicamentos estratégicos de saúde pública. Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
O dia 26 de setembro de 2024 representa um marco temporal significativo para as tutelas judiciais relacionadas à entrega de medicamentos pela rede pública. Nessa data, o Tema 1.234, recentemente sumulado em 20 de setembro de 2024, e o Tema 6, sumulado em 26 de setembro de 2024, deram origem às súmulas vinculantes 60 e 61, respectivamente, consolidando importantes diretrizes para a análise e concessão de fármacos não incorporados, e incorporados, ao SUS. Como súmulas vinculantes, a observância de seus enunciados é obrigatória, tanto para Administração Pública quanto para o Poder Judiciário, que devem aplicá-las de forma integral. O descumprimento poderá resultar na nulidade do ato judicial, passível de correção por meio de Reclamação Constitucional, nos termos do art. 103-A, caput e §3º, da CF/88. Neste ponto, as súmulas vinculantes 60 e 61 trouxeram mudanças substanciais na judicialização da saúde, conferindo força presuntiva de validade às decisões da CONITEC - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Regulamentada pela lei 12.401/11, a CONITEC tem a responsabilidade de assessorar o Ministério da Saúde na análise e deliberação sobre a incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias no âmbito do SUS, com base em critérios técnico-científicos e econômico-financeiros. Quando a CONITEC delibera sobre determinada tecnologia, ela emite um relatório de recomendação, que pode ser favorável ou não à sua incorporação. A decisão final de incorporação é formalizada por meio de portaria do Ministério da Saúde, que tem a prerrogativa de acatar ou não a recomendação da CONITEC. É a existência dessa portaria que torna obrigatória a oferta da tecnologia no SUS - Sistema Único de Saúde, para a condição clínica específica do paciente, conforme estabelecido nos PCDT - Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas. Esse entendimento é reforçado no voto conjunto do Tema 6, conforme destacado à página 13: Afinal, se o medicamento foi incluído nas listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, não há mais que se discutir o seu custo, uma vez que essa variável é considerada pelas instâncias técnicas da Conitec e do Ministério da Saúde no momento da incorporação. Por outro lado, nos casos de não incorporação, embora a decisão tenha caráter técnico e se presuma válida, ela pode ser judicialmente questionada. No entanto, tal questionamento exige uma contestação específica, abordando os critérios e fundamentos utilizados pela CONITEC que motivaram a negativa. Nesses casos, é necessário demonstrar que a decisão administrativa contraria as diretrizes constitucionais, a legalidade ou a política pública de saúde, em observância ao disposto nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90 e no decreto 7.646/11. Além dessas hipóteses, o ato da CONITEC também pode ser objeto de controle judicial quando houver ausência de fundamentação técnica adequada, insuficiência na motivação da decisão ou inconsistências na análise das evidências científicas que embasaram a recomendação. A análise jurisdicional, conforme o item 4.2 da súmula vinculante 60, deve observar não apenas a legalidade dos atos administrativos, mas também a teoria dos motivos determinantes. Essa teoria estabelece que a validade do ato administrativo está vinculada à regularidade dos fundamentos que o sustentam. Como destacado pelo ministro Dias Toffoli no voto do RE 786540/DF, "por força da teoria dos motivos determinantes, a validade do ato administrativo fica vinculada à regularidade do fundamento aventado" (Tema 763, pág. 29). Adicionalmente, o descumprimento dos prazos legais para deliberação, previstos no art. 19-R da lei 8.080/90, bem como a inobservância do devido processo administrativo, especialmente em relação à transparência e à participação social, configuram hipóteses que autorizam a revisão judicial. Essas possibilidades de controle visam assegurar que as decisões administrativas estejam em conformidade não apenas com a legalidade formal, mas também com os princípios constitucionais que regem a administração pública e garantem a efetividade do direito à saúde. No exercício do controle de legalidade, conforme delineado no item 4.1 da súmula vinculante 60, o Poder Judiciário não pode substituir a discricionariedade técnica do administrador público. Sua atuação deve se limitar a verificar se o ato administrativo está em conformidade com os parâmetros constitucionais e legais, sem adentrar no mérito administrativo. Há, contudo, os casos em que o fármaco ou tecnologia ainda não foi avaliado pela CONITEC. Nestas situações, a ausência de análise não pode, por si só, inviabilizar a concessão judicial do tratamento, cabendo ao requerente demonstrar, com base em evidências científicas de alto nível, a imprescindibilidade clínica, a eficácia comprovada e a ausência de substitutos terapêuticos disponíveis no SUS (itens 4.3 e 4.4 da súmula vinculante 60). Nos casos em que o medicamento não foi avaliado pela CONITEC ou não está incorporado às listas de dispensação do SUS, a súmula vinculante 61 se torna imperativa ao estabelecer seis pressupostos cumulativos que devem ser observados para a excepcional concessão judicial do tratamento. O ônus probatório é do autor da ação, que deve demonstrar, de forma fundamentada, os seguintes requisitos: Negativa administrativa: Apresentação de prova da negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa, conforme previsto no item 4 do Tema 1.234 (súmula vinculante 60), que exige a análise prévia do ato de indeferimento do fármaco; Legalidade da negativa: Contestação da ilegalidade do ato de não incorporação pela CONITEC, evidenciando a ausência de pedido de avaliação, ou demonstrando a mora injustificada na análise, conforme os prazos e critérios previstos nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90 e no decreto 7.646/11; Ausência de substitutos terapêuticos: Demonstração da impossibilidade de substituição por outro medicamento disponibilizado nas listas do SUS ou nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas existentes; Medicina baseada em evidências: A comprovação da eficácia, segurança e efetividade do medicamento deve ser embasada em evidências científicas de alto nível, como ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas ou meta-análises. Nesse sentido, a consulta ao NATJUS ou a entes com expertise técnica pelo Juízo representa uma medida relevante para conferir a necessária robustez científica à decisão judicial, alinhando-a com a medicina baseada em evidências (item 3, "b" da súmula vinculante 61); Imprescindibilidade clínica: Laudo médico detalhado e fundamentado, emitido por profissional responsável pelo tratamento, comprovando a imprescindibilidade clínica do fármaco e descrevendo de forma clara os tratamentos já realizados e sua ineficácia; Incapacidade financeira: Prova da incapacidade financeira do paciente para arcar com o custo do medicamento, considerando sua realidade socioeconômica e a ausência de alternativas viáveis. Portanto, na ausência de avaliação pela CONITEC, a análise judicial deve ser rigorosa e pautada na comprovação robusta e fundamentada desses pressupostos. Por sua vez, a decisão judicial, sob pena de nulidade nos termos do item 3 da súmula vinculante 61, deve obrigatoriamente: a) analisar o ato administrativo comissivo ou omissivo da CONITEC ou a negativa administrativa, à luz do caso concreto e da legislação aplicável; b) aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento, mediante consulta prévia ao NATJUS ou a entes com expertise técnica, vedada a fundamentação exclusiva em documentos do autor; e, c) oficiar os órgãos competentes para avaliar a possibilidade de incorporação do medicamento no SUS. No que concerne à análise do ato administrativo comissivo ou omissivo da CONITEC, ou da negativa administrativa, o Poder Judiciário deve observar os limites de sua atuação, conforme delineado na súmula vinculante 60 item 4.1. A função do magistrado, nesse contexto, não é substituir a discricionariedade técnica do administrador público, mas verificar se o ato administrativo específico está em conformidade com as diretrizes Constitucionais, a legislação de regência e as políticas públicas estabelecidas para o SUS. Nos casos em que a CONITEC não realizou a avaliação de determinado medicamento, a análise judicial deve se restringir a uma avaliação superficial, evitando adentrar nos pormenores técnicos do caso específico, uma vez que a ausência de avaliação prévia pela administração impede uma deliberação mais aprofundada. Nesses casos, é cabível também considerar a omissão no cumprimento dos prazos estabelecidos nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/90, que regulamentam o processo de avaliação e incorporação de tecnologias em saúde. A falta de apreciação pela CONITEC não pode, por si só, inviabilizar a concessão judicial do tratamento, especialmente quando demonstrada a imprescindibilidade clínica do fármaco, a inexistência de alternativas terapêuticas disponíveis no SUS e a eficácia comprovada do medicamento, com fundamento na medicina baseada em evidências. Por outro lado, quando há uma decisão administrativa explícita de não recomendação de incorporação, o Judiciário deve realizar uma análise mais detalhada, considerando que a negativa envolve uma deliberação fundamentada sobre a eficácia e a segurança do tratamento. No que tange ao item 3, "b" da súmula vinculante 61, a decisão judicial que aprecia pedidos de concessão de medicamentos não incorporados ao SUS deve, sob pena de nulidade, aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento com base em consulta prévia ao NATJUS, sempre que disponível na respectiva jurisdição, ou a entes ou profissionais com expertise técnica na área da saúde. Esse entendimento é reforçado no voto conjunto do Tema 6 (p. 17), que determina: Desse modo, para examinar a licitude do ato administrativo comissivo ou omissivo da Conitec e aferir a presença dos demais requisitos, o magistrado deverá observar um requisito procedimental: a instauração de um diálogo institucional com o NATJUS ou entes com expertise técnica na área (como a própria Conitec ou profissionais do SUS). É esse diálogo que assegurará uma análise técnica à luz da medicina baseada em evidências, conferindo ao magistrado maior segurança quanto aos diversos aspectos envolvidos na demanda, como a fundamentação para a não incorporação do âmbito do SUS, a existência ou não de substituto terapêutico e a existência de prova científica de eficácia do fármaco. Ainda que o autor apresente documentos técnicos, como laudos, relatórios ou prescrições médicas, tais elementos não devem ser utilizados como fundamento exclusivo para a decisão judicial. A consulta a pareceres técnicos especializados é uma etapa essencial para garantir que a decisão esteja embasada em critérios científicos consistentes, alinhados com a medicina baseada em evidências, promovendo maior segurança e legitimidade ao processo decisório. Nesse contexto, a utilização do NATJUS ou de órgãos técnicos especializados se torna essencial, pois confere à decisão judicial a robustez científica necessária para evitar decisões baseadas exclusivamente em documentos unilaterais apresentados pelo autor. A análise técnica imparcial garante que sejam observados os parâmetros da Medicina Baseada em Evidências, proporcionando maior equilíbrio e segurança ao processo. Dessa forma, o diálogo institucional com órgãos de apoio técnico assegura que a decisão judicial esteja alinhada às diretrizes constitucionais e às políticas públicas de saúde, promovendo um julgamento mais justo e equitativo. Isso evita que a complexidade dos casos de saúde amplie desigualdades e assegura que os direitos fundamentais sejam resguardados com o devido embasamento técnico e jurídico. Em relação ao item 3, "c" da súmula vinculante 61, torna-se imprescindível que, nos casos excepcionais de concessão de medicamento não incorporado ao SUS, o juízo promova o envio de ofício "aos órgãos competentes para avaliarem a possibilidade de sua incorporação". Essa medida é justificada especialmente nos casos em que não houve análise prévia pela CONITEC, cabendo ao Judiciário atuar como fomentador de políticas públicas e corroborar com a eficiência e aperfeiçoamento do sistema de saúde. Conforme o art. 19-R da lei 8.080/90, o processo de incorporação deve ser concluído no prazo máximo de 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias, caso as circunstâncias exijam. Dessa forma, a ausência de pedido ou a demora injustificada na análise pela CONITEC deve ser observada pelo Juízo como elemento relevante a ser acentuado na decisão. Esse procedimento visa assegurar que a judicialização não apenas solucione o caso concreto, mas também contribua para a construção de soluções sistêmicas no âmbito da saúde pública. Como destacado no voto conjunto do Tema 6 (p. 19), essa prática é necessária para evitar decisões fragmentadas, garantindo que as demandas judiciais provoquem uma avaliação técnica formal. Nesse sentido: Por fim, na hipótese excepcional de concessão de medicamento não incorporado, a tese prevê a necessidade de intimação dos órgãos competentes para que avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS. Por exemplo, no caso de não haver pedido de incorporação, o magistrado deverá oficiar o Ministério da Saúde para que avalie a possibilidade de instruir pedido de análise pela Conitec, de modo que em demandas futuras haja uma análise técnica sobre aquele medicamento. Já no caso de mora na apreciação de pedido existente, será possível oficiar diretamente a Conitec para que conclua a análise. A partir desse procedimento será possível fazer com que a judicialização efetivamente contribua para o aperfeiçoamento do sistema de saúde, para a garantia da isonomia e da universalidade no atendimento à população e mesmo para a desjudicialização da assistência farmacêutica. Além disso, o ofício aos órgãos competentes também se mostra relevante nos casos em que há mora na apreciação de pedidos já existentes. Nessa hipótese, oficiar diretamente a CONITEC ou o Ministério da Saúde fomenta a celeridade na emissão de pareceres técnicos, promovendo maior eficiência na deliberação sobre a incorporação de medicamentos e garantindo uma resposta mais ágil e uniforme à sociedade. Portanto, a expedição do ofício cumpre duplo papel: suprir a omissão administrativa nos casos sem avaliação prévia e fomentar a celeridade na análise de pedidos pendentes, alinhando a atuação do Judiciário à promoção de políticas públicas eficazes e equânimes. Tal prática evita a perpetuação de decisões isoladas e favorece o fortalecimento do sistema público de saúde, garantindo maior isonomia e universalidade no atendimento à população. Assim, tanto nos casos em que houve a não recomendação de incorporação de um medicamento pela CONITEC quanto naqueles em que o Ministério da Saúde emitiu portaria formal de não incorporação, ou ainda nos casos de omissão na avaliação pela CONITEC, a análise judicial do caso concreto é indispensável. O juízo deve, com rigor, verificar se estão presentes os critérios e pressupostos estabelecidos pelas súmulas vinculantes 60 e 61, assegurando que a decisão judicial esteja fundamentada em evidências científicas consistentes, complementadas por subsídios técnicos do NATJUS, quando disponível, ou de outros entes com expertise na área da saúde (conforme itens 4.3 e 4.4 da súmula vinculante 60 e item 2 da súmula vinculante 61). A observância desses procedimentos não apenas assegura a legitimidade técnica das decisões judiciais, mas também contribui para a promoção de políticas públicas de saúde mais eficazes e equânimes. Desse modo, evita-se a fragmentação de decisões e se fortalece o SUS, assegurando os princípios de universalidade, equidade e eficiência no acesso ao direito fundamental à saúde. _____________ 1 BRASIL. STF. Súmula vinculante 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos três acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo STF, em governança judicial colaborativa, no Tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: STF, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. 2 BRASIL. STF. Súmula vinculante 61. A concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471). Brasília, DF: STF, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 24 dez. 2024. 3 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 1366243 - Tema 1.234. Disponível aqui. Acesso em: 2 out. 2024. 4 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 566471 - Tema 6. Disponível aqui. Acesso em: 24 dez. 2024. 5 BRASIL. STF. Recurso Extraordinário 786540 - Tema 763. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024.
A título de benefício para determinados contribuintes1, a legislação tributária prevê um regime simplificado de apuração do IRPJ - Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas e da CSLL - Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, a partir de suas receitas, qual seja, o do lucro presumido, o qual dispõe de uma alíquota fixa a ser considerada para o cálculo dos referidos tributos. Especificamente, a lei 9.249/95, ao disciplinar a matéria, estabeleceu, como regra, o percentual de 32% sobre a receita bruta auferida às prestadoras de serviços em geral. Contudo, tendo em conta o papel também extrafiscal da atuação estatal, o legislador previu tratamento diferenciado às pessoas jurídicas prestadoras de serviços hospitalares - e, depois da alteração legislativa dada pela lei 11.727/08, igualmente estendeu tal tratamento também aos serviços equiparados, como de auxílio diagnóstico e patologia clínica -, os quais, então, sujeitam-se ao percentual reduzido de 8% para apuração da base de cálculo do IRPJ, e de 12% para a CSLL. In verbis: Art. 15. A base de cálculo do imposto, em cada mês, será determinada mediante a aplicação do percentual de 8% sobre a receita bruta auferida mensalmente, observado o disposto no art. 12 do decreto-lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977, deduzida das devoluções, vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos, sem prejuízo do disposto nos arts. 30, 32, 34 e 35 da lei 8.981, de 20 de janeiro de 1995.§ 1º Nas seguintes atividades, o percentual de que trata este art. será de: [...]III - 32%, para as atividades de:a) prestação de serviços em geral, exceto a de serviços hospitalares e de auxílio diagnóstico e terapia, patologia clínica, imagenologia, anatomia patológica e citopatologia, medicina nuclear e análises e patologias clínicas, desde que a prestadora destes serviços seja organizada sob a forma de sociedade empresária e atenda às normas da Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária; [...] (g.n.) Art. 20. A base de cálculo da CSLL devida pelas pessoas jurídicas que efetuarem o pagamento mensal ou trimestral a que se referem os arts. 2º, 25 e 27 da lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996, corresponderá aos seguintes percentuais aplicados sobre a receita bruta definida pelo art. 12 do decreto-lei 1.598, de 26 de dezembro de 1977, auferida no período, deduzida das devoluções, das vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos:I - 32% para a receita bruta decorrente das atividades previstas no inciso III do § 1º do art. 15 desta lei; [...]III - 12% para as demais receitas brutas. (g.n.) Da leitura dos referidos dispositivos, nota-se que, para além da natureza dos serviços prestados, há de se atender outros dois critérios, quais sejam, o da organização da empresa como sociedade empresária e, ainda, o atendimento às normas sanitárias da agência reguladora. Assim, seria possível concluir que, uma vez supridos tais requisitos, não haveria óbice para a redução tributária. Entretanto, a expressão "serviços hospitalares" causou dúvida na prática forense, sobretudo diante da Instrução Normativa da RFB 1.234/122 e do Ato Declaratório Interpretativo da RFB 19/073, os quais restringem o conceito de serviços hospitalares àqueles desenvolvidos estritamente em hospitais. Nesse sentido, tornou-se questão controversa levada aos tribunais se se trataria de um rol taxativo ou se o legislador a dispôs, propositadamente, de forma abrangente. Diante de tal repercussão, portanto, é que a matéria foi julgada sob o rito dos recursos repetitivos pelo STJ (REsp 1.116.399/BA), consolidando o Tema 217: Para fins do pagamento dos tributos com as alíquotas reduzidas, a expressão 'serviços hospitalares', constante do art. 15, § 1º, inciso III, da lei 9.249/95, deve ser interpretada de forma objetiva (ou seja, sob a perspectiva da atividade realizada pelo contribuinte), devendo ser considerados serviços hospitalares 'aqueles que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde', de sorte que, 'em regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento hospitalar, excluindo-se as simples consultas médicas, atividade que não se identifica com as prestadas no âmbito hospitalar, mas nos consultórios médicos'. (g.n.) Portanto, a partir de tal entendimento, as divergências interpretativas foram dirimidas, restando cristalino que, para fazer jus ao benefício da alíquota reduzida, os serviços prestados devem ser de natureza hospitalar ou equiparada, assim definidos aqueles destinados à promoção da saúde, um direito constitucional, sendo irrelevante, outrossim, se prestados necessariamente em hospital. Desse modo, coadunando legislação e jurisprudência, tem-se, definitivamente, os seguintes requisitos: (i) a natureza do serviço deve ser hospitalar ou equiparada, devendo ser destinado à promoção da saúde, sendo irrelevante as características do contribuinte; (ii) o serviço será considerado hospitalar ou equiparado independentemente do local onde foi prestado; (iii) o contribuinte deve estar organizado, em termos societários, como sociedade empresária e; (iv) o contribuinte deve estar de acordo com as normas sanitárias da Anvisa. Ainda, consolidou-se que meras consultas médicas não devem ser consideradas equiparadas. Portanto, quaisquer outras exigências por parte da autoridade coatora que tenham o fito de restringir tal benesse de tributação reduzida, deverão ser consideradas inconstitucionais, haja vista a violação ao princípio constitucional da legalidade tributária (art. 150, I, do Código Tributário Nacional). A partir de tal entendimento, é possível, então, que clínicas médicas, independentemente de sua especialidade, sujeitas ao regime de tributação do lucro presumido, pleiteiem a redução da carga tributária do IRPJ e da CSLL sobre as receitas auferidas em razão de realização de serviços de natureza hospitalar - ou equiparados -, tais como procedimentos cirúrgicos e exames de diagnósticos clínicos, bem como restituam (ou compensem) os valores recolhidos a maior de forma indevida. 1 "A princípio, todas as empresas podem optar pelo lucro presumido. As empresas obrigadas ao lucro real, e logicamente proibidas de utilizar o lucro presumido, são aquelas enquadradas nos seguintes casos: a. cuja receita total, no ano-calendário anterior, seja superior a R$ 78 milhões ou proporcional ao número de meses do período, quando inferior a 12 meses; b. instituições financeiras e equiparadas, inclusive empresas de seguros privados, capitalização, factoring e entidades de previdência privada aberta; c. que tiverem lucros, rendimentos ou ganhos de capital oriundos do exterior; d. que, autorizadas pela legislação tributária, usufruam benefícios fiscais relativos à isenção ou redução de imposto; ou e. que no decorrer do ano-calendário tenham efetuado pagamento mensal pelo regime de estimativa, inclusive mediante balanço ou balancete de suspensão ou redução". PÊGAS, Paulo Henrique Pêgas, Manual de contabilidade tributária, p. 324. 2 Art. 30. "Para os fins previstos nesta Instrução Normativa, são considerados serviços hospitalares aqueles que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde, prestados pelos estabelecimentos assistenciais de saúde que desenvolvem as atividades previstas nas atribuições 1 a 4 da Resolução RDC 50, de 21 de fevereiro de 2002, da Anvisa. Parágrafo único. São também considerados serviços hospitalares, para fins desta Instrução Normativa, aqueles efetuados pelas pessoas jurídicas: I - prestadoras de serviços pré-hospitalares, na área de urgência, realizados por meio de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) móvel instalada em ambulâncias de suporte avançado (Tipo "D") ou em aeronave de suporte médico (Tipo "E"); e II - prestadoras de serviços de emergências médicas, realizados por meio de UTI móvel, instalada em ambulâncias classificadas nos Tipos "A", "B", "C" e "F", que possuam médicos e equipamentos que possibilitem oferecer ao paciente suporte avançado de vida". 3 Art. único. "Para efeito de enquadramento no conceito de serviços hospitalares, a que se refere o art. 15, § 1º, inciso III, alínea "a", da lei 9.249, de 26 de dezembro de 1995, os estabelecimentos assistenciais de saúde devem dispor de estrutura material e de pessoal destinada a atender a internação de pacientes, garantir atendimento básico de diagnóstico e tratamento, com equipe clínica organizada e com prova de admissão e assistência permanente prestada por médicos, possuir serviços de enfermagem e atendimento terapêutico direto ao paciente, durante 24 horas, com disponibilidade de serviços de laboratório e radiologia, serviços de cirurgia e/ou parto, bem como registros médicos organizados para a rápida observação e acompanhamento dos casos".
De um tempo para cá o avanço do Direito Penal sobre a saúde tem se mostrado cada vez mais notório, especialmente sobre áreas que, antes, quando dialogadas com o Direito, tratavam tão somente - ou majoritariamente - da responsabilidade civil e/ou ética dos seus profissionais. Assim, em meados de dezembro de 2024, uma decisão do STJ trouxe mais um capítulo à (já não tão curta e recente) história de construção, consolidação e expansão de um Direito Penal médico. Desta vez, em sede do HC 971.681-GO, o min. Herman Benjamin foi instado a decidir sobre a prisão preventiva de uma biomédica que foi presa em flagrante em Goiânia/GO, após morte de sua paciente (por parada cardíaca) em uma clínica de procedimentos estéticos. Em razão desse fato, em um momento sabidamente embrionário do procedimento penal, foram vislumbrados três crimes distintos: exercício ilegal da Medicina (art. 282, CP), execução de serviço de alto grau de periculosidade (art. 65, CDC) e, ainda, venda ou manutenção em depósito para venda matéria-prima ou mercadoria em condições impróprias ao consumo (art. 7º, IX, lei 8.137/90). O pedido liminar defensivo que, em suma, pretendeu a revogação da prisão cautelar, ainda que mediante a aplicação de cautelares alternativas ou a substituição por prisão domiciliar, foi rejeitado. O ministro registrou que a matéria levantada não havia sido examinada pelo Tribunal de origem, fato este que o levou a entender que a intervenção da Corte nesta ocasião restaria inviabilizada. Contudo, à vista da possibilidade da súmula 691 do STF ser superada em casos de flagrante ilegalidade ou de teratologia da decisão impugnada, com a concessão da ordem de ofício, parece razoável sinalizar, desde já, que o ministro também não observou qualquer problema na decisão impugnada. Desta maneira, ganharam destaque a prisão em flagrante de uma biomédica, a conversão dessa prisão em preventiva e, principalmente, a manutenção desta prisão mesmo após questionada por defesa técnica. Foi exatamente essa tríade, inclusive, que ganhou as manchetes dos mais diversos canais de comunicação e redes sociais. Apesar disso, outro assunto merece(ria) idêntica (ou até maior) visibilidade, que é a reprodução de interpretações tecnicamente apressadas de importantes institutos e conceitos penais - leituras essas que costumavam ser vistas, até então, quando réus pertenciam a um outro núcleo do Direito Penal, isto é, quando tratávamos de réus presos por crimes patrimoniais comuns, tráfico de drogas, etc. Esse fenômeno, aliás, ao fim e ao cabo, parece logo confirmar e reforçar o avanço do Direito Penal sobre a atuação de profissionais da saúde, isto é, médicos, biomédicos, enfermeiros, etc. O conceito nuclear que integrou a decisão do min. Herman Benjamin e que merece um enfrentamento vertical é o de prisão preventiva. Essa prisão, que é essencialmente uma medida de cautela, busca garantir o desenvolvimento normal do processo e, consequentemente, a eficaz aplicação do poder de atribuir pena1. Daqui já é possível perceber que essa prisão em absolutamente nada se confunde com a prisão que decorre de uma sentença condenatória e, também, que os seus requisitos e fundamentos serão distintos dos necessários à concessão de, por exemplo, medidas cautelares reais (do fumus boni iuris e do periculum in mora), regidas, bem se sabe, por vasta e rica doutrina civilista. Assim, o que se exige para o decreto de uma medida cautelar como a prisão preventiva, guiada, agora, por uma doutrina penal e processual penal, é a demonstração do fumus commissi delicti e, muito, do periculum libertatis. Importa(rá), então, a probabilidade da ocorrência de um delito (não mais de um direito) e, ainda, uma situação de perigo concreto criada pela conduta do imputado. Aqui, o risco que deriva do atraso inerente ao tempo que pode transcorrer até uma sentença definitiva passa a ser irrelevante e cede espaço para o risco de frustração da função punitiva (por fuga do acusado), de graves prejuízos ao processo (pela ausência do acusado) ou para qualquer outro risco ao normal desenvolvimento do processo. Em síntese, o perigo não brota mais do lapso temporal entre provimento cautelar e o definitivo, mas, sim, da situação (potencial, concreta e objetiva) de liberdade do sujeito passivo2. O CPP, aliás, acompanha essa sistemática. O seu art. 312 estabelece expressamente que a prisão preventiva só poderá ser aplicada "como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado". Neste exato sentido, decisões recentes do STJ têm reforçado a instrumentalidade desta medida cautelar e, ainda, a necessidade de o tomador de decisão demonstrar concretamente o periculum libertatis3. É neste enredo que o princípio da provisionalidade, que rege a aplicação da prisão preventiva, ganha destaque. Ao tempo que se nota que a prisão preventiva é situacional, ou seja, tutela uma situação fática, esse princípio passa a indicar que, desaparecido o suporte fático legitimador da medida cautelar, a segregação precisa cessar imediatamente. Além disso, essa provisionalidade recebe contornos ainda mais relevantes da redação do art. 282, § 6º, do CPP, que estabelece que "a prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar". Esses artigos transmitem aos magistrados uma mensagem simples: a prisão preventiva pressupõe o esgotamento das possibilidades de substituição por medidas cautelares diversas. Dito de outro modo, o decreto dessa cautelar mais gravosa deverá suceder obrigatoriamente a análise do preenchimento dos seus requisitos e, depois, da insuficiência das medidas cautelares mais brandas. E não resta dúvida de que a inviabilidade dessas medidas alternativas não é e não pode ser presumida. Muito pelo contrário. Se for este o caso, deverá o(a) tomador(a) de decisão explicar textualmente porque as considerou insuficientes. Assim, superado esse mergulho na teoria das prisões cautelares, é preciso destacar que a prisão preventiva do caso concreto foi decretada para impedir que a biomédica continuasse fazendo procedimentos estéticos. Sendo essa uma alegação que, sim, pode(ria) eventualmente justificar uma medida cautelar - até mesmo a prisão -, faltaria verificar ainda se outras alternativas não dariam conta desse objetivo. Bastaria verificar, antes do decreto da prisão, se o comparecimento periódico em juízo, a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, a proibição de contato com determinadas pessoas, a proibição de ausentar-se da Comarca, o recolhimento domiciliar no período noturno, a suspensão do exercício de natureza econômica ou financeira e/ou a monitoração eletrônica não impediriam que a biomédica permanecesse atuando. A resposta parece se mostrar afirmativa, apesar de o magistrado singular, o Tribunal de Justiça e STJ terem entendido que a restrição de liberdade seria o único meio idôneo para este fim. Apesar desse entendimento, é preciso argumentar que a prisão, neste caso, não se apresenta como a única maneira de se fazer cessar a prática de novas infrações penais - e daqui já se nota que o seu decreto e sua manutenção se mostraram equivocados. Isso pode ser compreendido a partir do bom senso (às vezes é importante recorrer a ele), mas, principalmente, a partir do que estabelece o art. 282 do CPP e, também, do alcance das medidas cautelares alternativas previstas no art. 319 deste mesmo diploma legal. Se, então, os incisos do art. 282 dispõem que o magistrado, ao aplicar qualquer medida cautelar, inclusive a prisão preventiva, deverá levar em consideração a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado, deve(ria) ter considerado que as penas (de detenção) dos delitos imputados à biomédica eram substancialmente baixas - o que reflete objetivamente na avaliação da gravidade do crime supostamente praticado e, naturalmente, da proporcionalidade e necessidade da medida definitiva a ser tomada - e, claro, que os supostos delitos foram cometidos em um local conhecido e bem delimitado no espaço e por uma pessoa que, muito provavelmente, indicaria um local onde pode(ria) ser encontrada. Por aqui logo se percebe, portanto, que a possibilidade real de encontrar a biomédica e de controlar as suas atividades indica fortemente que a sua prisão se mostra não só desnecessária como, também, ilegal e inconstitucional. Do mesmo modo, se o parágrafo 6º deste art. 282 estabelece que este mesmo magistrado deve ainda checar a utilidade das medidas cautelares mais leves, deve(ria), então, ter, pelo menos, explicado o porquê a proibição de acesso à clínica e a estabelecimentos similares, a proibição de contato com todo e qualquer paciente, a suspensão de sua atividade econômica e a monitoração eletrônica não serviriam para fazer cessar a reiteração criminosa - se esse for, de fato, o caso. Nada disso parece ter acontecido. Neste caso, aliás, a clínica de procedimentos estéticos foi interditada e isso aconteceu pronta e justamente para evitar que a biomédica continuasse atuando. Vê-se, pois, por este ângulo, um esvaziamento da serventia da preventiva e, quem sabe, até mesmo das demais medidas cautelares, que, como prevê o CPP, não precisam ser obrigatoriamente adotadas (art. 321, CPP). Apenas a título argumentativo, ainda que a clínica não tivesse sido interditada, parece que as demais medidas cautelares alternativas também teriam o condão de interromper as atividades desta profissional. Ocorre que é conhecida a dificuldade de se executar e fiscalizar o cumprimento dessas outras medidas - fato esse que torna o decreto da prisão preventiva uma medida mais conveniente. Contudo, a superação dessa dificuldade é ônus do Estado e a biomédica - assim como todo e qualquer profissional da saúde - não poderia estar pagando por isso. Portanto, é relevante assentar que as cautelares diversas da prisão poderiam - logo, deveriam - ter sido aplicadas neste caso (como visto, poderia até ter sido discutido o cabimento da liberdade provisória sem qualquer cautelar) e, assim, a prisão da biomédica se mostrou abusiva. Desta maneira, nota-se não só o avanço do Direito Penal sobre a área médica, mas, especialmente, o avanço do bem conhecido Direito Penal simbólico sobre a atuação de muitos profissionais da saúde, que, sabidamente, vem minando todo e qualquer garantia do cidadão. 1 MARTINEZ, Sara Aragoneses et al. Derecho Procesal Penal.  2 ed. Madrid, Editorial Centro de Estudios Ramon Areces, 1996, p. 387. 2 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 357. 3 Habeas Corpus 945.542, ministro Sebastião Reis Júnior, DJe de 4/11/24.
A Medicina contemporânea, impulsionada pela Era Digital, enfrenta o desafio da crescente influência das redes sociais na percepção dos pacientes sobre os procedimentos estéticos. A cirurgia plástica, em especial, tornou-se um dos principais alvos desse fenômeno, com publicidades que frequentemente induzem a superexpectativas. Diante desse cenário, estas breves reflexões têm o intuito de demonstrar que o dever de informação do cirurgião plástico assume um caráter qualificado, tanto em relação ao processo de consentimento esclarecido, quanto no marketing médico, sob pena de ser responsabilizado pela violação ao dever de informação ou, ainda, converter a natureza jurídica obrigacional em uma obrigação de resultado. O dever de informação na cirurgia plástica: um padrão qualificado A cirurgia plástica estética, diferentemente de procedimentos médicos terapêuticos, possui caráter eletivo e visa à melhoria da aparência do paciente, sem necessariamente envolver um risco iminente à saúde. Contudo, toda intervenção cirúrgica envolve variáveis biológicas e fatores alheios ao controle do profissional, de modo que a obtenção de um resultado específico não pode ser garantida. Por isso, defende-se o posicionamento de que a obrigação do cirurgião plástico, mesmo em procedimentos estritamente estéticos, deve ser classificada como de meios, e não de resultado.1 A distinção tradicional entre cirurgias estéticas e reparadoras, além de artificial, desconsidera que a Medicina opera em um campo de incertezas, tornando inadequado impor ao cirurgião um compromisso absoluto com o sucesso do procedimento. Essa abordagem encontra respaldo na doutrina e jurisprudência de países como Espanha e Portugal, nos quais se reconhece que o dever do médico é empregar a técnica correta e agir com diligência, sem a presunção automática de responsabilidade pelo insucesso da cirurgia estética. A maior parte das controvérsias jurídicas envolvendo cirurgia plástica surge da falha de uma comunicação eficiente sobre os riscos inerentes e peculiaridades de cada procedimento, o que pode gerar expectativas irreais no paciente. Esse aspecto transforma o dever de informação em um pilar central no contexto dessa especialidade médica, exigindo que o profissional esclareça não apenas os riscos tradicionais do procedimento, mas também suas limitações, tempo de recuperação, possibilidade de insatisfação e necessidade de retoques. Complicações como contratura capsular em mamoplastias com prótese, abertura de pontos em cirurgias mamárias, fibroses e necroses em lipoaspirações, assimetrias em cirurgias faciais e dificuldades no fechamento palpebral após blefaroplastias são apenas alguns exemplos de intercorrências que devem ser devidamente informadas. Além disso, procedimentos como preenchimento glúteo e lipoescultura apresentam riscos específicos que demandam cautela redobrada, especialmente em relação à procedência dos materiais utilizados. Ainda, vale destacar que o corpo humano reage de forma individualizada, podendo apresentar respostas imprevisíveis, mesmo quando o profissional emprega a técnica adequada, os melhores recursos disponíveis e atua com perícia. Alterações biológicas inesperadas, hipersensibilidades e variações na cicatrização podem impactar o resultado, tornando impossível garantir um desfecho idêntico para todos os pacientes. Além disso, o êxito da cirurgia plástica depende significativamente dos cuidados pós-operatórios adotados pelo próprio paciente, um fator que foge, em grande parte, ao controle do médico. Diante disso, reforça-se a necessidade de um consentimento esclarecido abrangente e detalhado, assegurando que o paciente compreenda as possíveis complicações e que o profissional atue com transparência e diligência.  Afinal, sendo a cirurgia plástica um ato médico como qualquer outro, sua obrigação deve ser de meios, cabendo, portanto, ao cirurgião demonstrar que forneceu todas as informações, esclareceu adequadamente, e prestou o devido acompanhamento, afastando-se qualquer culpa por eventos adversos intrínsecos ao procedimento. Em Portugal, André Dias Pereira também defende que, para as intervenções médico-cirúrgicas não terapêuticas, há um dever de informação qualificado, mais rigoroso, tornando-se um elemento fundamental para equilibrar a relação entre médico e paciente, garantindo que este esteja plenamente ciente dos riscos inerentes ao procedimento e das limitações quanto à previsibilidade dos resultados. Este entendimento segue o critério da necessidade do tratamento para avaliação do conteúdo do dever de informação; isto é, quanto menos necessário for o tratamento, mais rigorosa deve ser a informação. Destaca o doutrinador que o critério da necessidade de tratamento é "codeterminante do quantum de informação a prestar, sendo aliás, este aspecto e não o da natureza jurídica da obrigação (de meios ou de resultado) que verdadeiramente distingue a cirurgia estética pura das intervenções terapêuticas".2 Imagine-se o caso de uma mulher negra e fumante que procura um cirurgião plástico para realizar uma mamoplastia redutora. Durante a consulta, o médico explicou o procedimento de forma genérica, mas não abordou riscos específicos relacionados à cicatrização e às variações anatômicas individuais. A paciente, predisposta a desenvolver queloides devido à sua etnia e ao hábito de fumar, que compromete a vascularização dos tecidos, não foi informada sobre o aumento do risco de cicatrizes hipertróficas e necrose do complexo aréolo-mamilar. No pós-operatório, ela desenvolveu cicatrizes espessas e necrose parcial, necessitando de procedimentos reparadores. Se este litígio fosse julgado, poderia o médico ser responsabilizado por violação ao dever de informação. Quando a obrigação de meios se transforma em obrigação de resultado André Dias Pereira explica que, entre os juristas portugueses, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro sustentam que a obrigação do médico pode ser considerada de resultado quando ele garante um tratamento totalmente seguro e sem sequelas, especialmente em cirurgias estéticas, ao apresentar fotografias apenas de casos bem sucedidos sem esclarecer suas limitações. Além disso, essa obrigação pode surgir quando o profissional promete um desfecho específico, como ocorre em cirurgias estéticas com projeções geométricas detalhadas (croquis).3-4 Um aspecto relevante a ser considerado no cenário do dever de informação qualificado em cirurgia plástica é que, se mal utilizadas algumas ferramentas - croquis, fotografias e simulações digitais -, o paciente pode ser induzido a acreditar que o resultado será idêntico ao projetado. Se o profissional não esclarece que esses materiais são apenas ilustrações aproximadas, pode-se argumentar que houve não apenas violação ao dever de informação, mas transformação da obrigação médica de meios para obrigação de resultado, levando à presunção de culpa caso não atinja a expectativa gerada. Vale destacar que, no ordenamento jurídico brasileiro, a boa-fé é um princípio fundamental na relação contratual entre médico e paciente, especialmente em cirurgias plásticas, onde as expectativas do paciente são frequentemente elevadas pela natureza eletiva e estética do procedimento. A boa-fé objetiva impõe deveres de transparência, lealdade e cooperação ao profissional de saúde, garantindo que o paciente tome sua decisão de forma plenamente informada e sem ser induzido a erro. Nesse contexto, o uso de croquis, fotografias e simulações digitais deve ser conduzido com responsabilidade, evitando criar a falsa impressão de um resultado garantido, sob pena de violação da boa-fé contratual. Assim, quando o profissional promete um resultado específico ou se utiliza dos recursos supracitados (croquis, fotografias e simulações digitais) de forma imprópria - omitindo os riscos e variações individuais -, há um desvio do caráter original da obrigação médica, que deveria ser de meios, transformando-a em uma obrigação de resultado. Nesse caso, eventual insucesso da cirurgia poderia levar à presunção de culpa do cirurgião, uma vez que o paciente confiou na promessa de um desfecho idealizado. No contexto jurídico espanhol, vislumbra-se que ocorreu há duas décadas uma evolução jurisprudencial significativa no que se refere à tradicional concepção dicotômica sobre a natureza da obrigação médica. Explica Julio César Galán Cortés que, desde 2005, o Tribunal Supremo na Espanha (STS758/2005), tem o entendimento consolidado no sentido de que, as obrigações do médico na denominada medicina voluntária ou satisfativa - aí incluídos os procedimentos estritamente estéticos ou a cirurgia reparadora - são considerados como obrigações de meios, com uma exigência rigorosa no que se refere à informação sobre seus riscos, alternativas e inconvenientes. Apenas nos casos em que houver um asseguramento do resultado por parte do médico ou quando a publicidade o indicar ou sugerir, essa obrigação poderá ser qualificada como de resultado.5 Galán Cortés destaca que o cirurgião estético não deve ser colocado em condição inferior à do cirurgião geral, pois o fator aleatório e a resposta individual de cada paciente tornam conceitualmente inadequada a classificação de sua obrigação como uma obrigação de resultado. Contudo, explica que, isso não exclui a possibilidade de, em determinadas situações, sua obrigação possa assumir essa natureza, especialmente quando há uma informação parcial, tendenciosa ou incompleta, induzindo o paciente a acreditar que o procedimento é simples, isento de riscos e que o resultado é praticamente garantido. Além disso, o autor espanhol observa que, frequentemente, essa percepção equivocada é amplificada pela própria publicidade promocional, que, ao ser elaborada com o único intuito de atrair clientes, direciona intencionalmente o público para essa falsa expectativa. Por esse motivo, nesse tipo de cirurgia, a transparência e a clareza das informações prestadas ao paciente devem ser priorizadas. O fator determinante para a responsabilização, em grande parte dos casos julgados por tribunais espanhóis, especialmente nas duas últimas décadas, reside na qualidade e abrangência da informação prestada ao paciente, destacando-se o dever qualificado de esclarecimento sobre os riscos, as limitações da técnica e a possibilidade de variações individuais nos resultados. Assim, em litígios envolvendo cirurgia plástica, a transparência na relação médico-paciente assume um papel central na delimitação da responsabilidade profissional. Em linhas gerais, sustenta-se que, na cirurgia plástica, a obrigação pode ser transformada e qualificada como de resultado quando: i) há promessas explícitas de um resultado específico, seja verbalmente, seja por meio de simulações irreais; ou ii) a publicidade induz o paciente a acreditar que o sucesso do procedimento é garantido. O papel da publicidade digital na criação de superexpectativas Atualmente, em redes sociais, são frequentes as publicações com "antes e depois" impressionantes, promessas de transformação e o uso de simulações digitais sem ressalvas suficientes em postagens, criando um ambiente em que o paciente, muitas vezes, acredita estar adquirindo um produto garantido, e não se submetendo a um procedimento médico sujeito a variações biológicas. As redes sociais desempenham um papel crucial na formação da decisão do paciente, mas, quando utilizadas de forma irresponsável, tornam-se um fator de risco para desalinhamento de expectativas. Entre os principais elementos que contribuem para essa distorção, destacam-se: i) uso exclusivo de casos bem-sucedidos - omitindo resultados medianos ou insatisfatórios; ii) legendas que sugerem garantia de resultado - expressões como "seios perfeitos garantidos" ou "abdômen dos sonhos em uma única cirurgia" criam uma percepção errônea sobre o procedimento; iii) influência de digital influencers - a recomendação por figuras públicas pode reforçar a crença na previsibilidade do resultado, sem consideração pelos fatores individuais. Além desses aspectos, a própria dinâmica das redes sociais favorece a disseminação de uma imagem idealizada da cirurgia plástica, muitas vezes descolada da realidade clínica. Os filtros, retoques digitais e até o ângulo das fotos contribuem para uma percepção distorcida, dificultando que o paciente compreenda as limitações reais da intervenção. O impacto dessa exposição pode ser significativo, levando a uma busca cada vez mais intensa por cirurgias baseadas em padrões irreais. Esse fenômeno, conhecido como "Snapchat Dysmorphia"6, reforça a necessidade de um dever de informação ainda mais rigoroso por parte do profissional de saúde. A criação de superexpectativas pode levar não apenas à insatisfação do paciente, mas também à presunção de culpa do profissional, pois, como já dito, a natureza jurídica da sua obrigação passa a ser de meios. Quando a publicidade digital utilizada pelo cirurgião não esclarece devidamente as limitações do procedimento e, mais do que isso, gera a expectativa de determinado resultado, sua obrigação pode ser interpretada como de resultado, transferindo para ele o ônus da frustração do paciente. Vale consignar que, em âmbito ético, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamenta a publicidade médica por meio do Código de Ética Médica e outras Resoluções do CFM, estabelecendo diretrizes para evitar a mercantilização da Medicina e a criação de expectativas irreais nos pacientes. A recente Resolução CFM nº 2.336/2023 permitiu a divulgação de imagens de "antes e depois" em redes sociais, para fins estritamente pedagógicos, além de possuir restrições importantes, como a proibição de edição digital das imagens, a necessidade de autorização expressa do paciente e a exigência de informações sobre variações individuais e possíveis limitações dos resultados. A omissão desses aspectos pode ser interpretada como prática antiética e resultar em sanções disciplinares. Além disso, de acordo com o Manual de Publicidade Médica da Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos do Conselho Federal de Medicina (Codame-CFM), a apresentação do "antes e depois" deve ter, obrigatoriamente, quatro etapas: i) quando sinais e sintomas apontam para procurar um médico; ii) fotos ou vídeos de pacientes antes do tratamento, utilizando ao menos quatro diferentes pacientes; iii) fotos ou vídeos de pacientes após a intervenção médica, mostrando possíveis resultados alcançados, utilizando imagens de ao menos quatro diferentes pacientes. Quando possível, deve ser apresentada a evolução para diferentes biotipos e faixas etárias; iv) descrição de possíveis resultados insatisfatórios e complicações, que podem ser demonstrados através de ilustrações, fotografias ou texto. Assim, cabe ao médico agir com boa-fé, transparência e responsabilidade, utilizando suas plataformas digitais para também educar o paciente sobre riscos, variações anatômicas e limitações da cirurgia, garantindo que o consentimento esclarecido seja um processo real e não apenas um requisito formal. A publicidade médica digital deve ser pautada na informação ética e científica, evitando qualquer forma de promessa de resultado ou indução ao erro, para preservar não apenas a confiança na relação médico-paciente, mas também a integridade da profissão médica. Diretrizes para uma publicidade ética e transparente nas redes sociais A publicidade médica, especialmente no campo da cirurgia plástica, deve ser conduzida de maneira transparente e responsável, evitando a criação de superexpectativas nos pacientes. Para garantir que a divulgação de informações sobre procedimentos estéticos respeite princípios éticos e legais, recomenda-se a adoção das seguintes diretrizes: (i) Evitar promessas de resultados garantidos: a linguagem utilizada em ambiente digital deve ser objetiva e não deve induzir o paciente a acreditar que um determinado procedimento resultará necessariamente em um desfecho específico. Expressões como "seios perfeitos garantidos" ou "abdômen dos sonhos em uma única cirurgia" devem ser evitadas. (ii) Divulgar informações realistas sobre riscos e limitações: todo procedimento cirúrgico possui riscos e variações de resultados conforme fatores biológicos individuais. Dessa forma, as redes sociais devem ser utilizadas também para esclarecer o público sobre as possíveis complicações e a necessidade de retoques. (iii) Uso adequado de imagens de "antes e depois": conforme a Resolução CFM nº 2.336/2023, a publicação de imagens comparativas só é permitida para fins estritamente educativos, sem qualquer manipulação digital. Ademais, deve ser explicitado na descrição da postagem que os resultados podem variar conforme as características individuais de cada paciente. Ademais, é essencial considerar as quatro etapas do uso de imagem conforme o Manual de Publicidade da Codame-CFM. (iv) Simulações digitais com ressalvas: o uso de ferramentas tecnológicas para projeção de resultados deve ser acompanhado de esclarecimentos sobre sua natureza ilustrativa. Na publicidade digital deve ser inserida a informação de que as simulações não garantem um resultado exato, mas apenas uma referência aproximada. (v) Uso consciente da influência digital: médicos que possuem grande alcance nas redes sociais devem ter ainda mais cautela com a informação divulgada, reconhecendo a responsabilidade sobre a formação de opinião dos pacientes. O conteúdo compartilhado deve ser sempre embasado cientificamente e não pode ser direcionado apenas para fins promocionais desmedidos. (vi) Evitar sensacionalismo e expressões apelativas: o marketing digital deve ser pautado na seriedade e no compromisso ético com a saúde do paciente. Publicações que explorem medos, inseguranças ou promessas de "vida transformada" podem ser consideradas antiéticas e ilícitas. A adoção dessas diretrizes contribui para um ambiente de publicidade médica mais transparente, protegendo não apenas os direitos dos pacientes, mas também a credibilidade da própria classe médica. O cirurgião plástico, ao utilizar as redes sociais e outros meios de divulgação digital, deve ter a consciência de que a informação e a publicidade adequadas são essenciais para preservar a integridade da relação médico-paciente. Notas conclusivas O avanço da publicidade digital impõe à cirurgia plástica a necessidade de redefinir seus padrões de transparência, ética e comunicação, resgatando a essência da Medicina como um compromisso com a verdade e o cuidado. O dever de informação qualificado não se encerra na assinatura do termo de consentimento, mas permeia toda a jornada do paciente, desde o primeiro contato com a publicidade médica até o acompanhamento pós-operatório. Em um mundo onde imagens editadas e discursos persuasivos moldam percepções, a palavra do médico deve ser um farol de clareza e responsabilidade, guiando escolhas conscientes e protegendo a autonomia do paciente. A crescente judicialização da insatisfação estética revela: sempre que a publicidade médica se sobrepõe à ética, a obrigação de meios se transfigurará em obrigação de resultado, ampliando o risco de responsabilização do profissional. Para evitar esse cenário, a conduta médica deve ser alicerçada na boa-fé, na informação rigorosa e na transparência irrestrita, assegurando que a expectativa do paciente seja construída sobre bases reais, e não sobre promessas ilusórias. Nesse contexto, o papel do advogado torna-se essencial. A assessoria jurídica adequada não apenas resguarda o profissional contra litígios desnecessários, mas também fortalece a integridade da prática médica, orientando estratégias publicitárias dentro dos limites éticos e legais. O diálogo entre a Medicina e o Direito, quando bem conduzido, não representa uma limitação, mas sim uma ferramenta de segurança e credibilidade, garantindo que o exercício profissional permaneça alinhado à sua verdadeira missão: promover bem-estar com responsabilidade e respeito à dignidade do paciente. 1 Nesse sentido, destacam-se: i) KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 51 ss; ii) DANTAS, Eduardo. Direito médico. 8. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024, p. 199-232. 2 PEREIRA, André Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 397-400. 3 PEREIRA, André Dias. Direitos dos pacientes e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015, p. 717-719. 4 Em trabalho anterior, já defendíamos que "ao publicizar os resultados pretéritos, o profissional pode atrair uma obrigação de resultado, pois incute no paciente que aquele resultado individual e subjetivo pode ser replicado em terceiros" (MASCARENHAS, Igor; NOGAROLI, Rafaella. Ser visto para ser lembrado: a publicidade médica em redes sociais como desencadeadora de responsabilidade civil. Migalhas de Responsabilidade Civil, 24/2/22. Disponível aqui. 5 CORTÉS, Julio César Galán. Responsabilidad civil médica. 9. ed, Navarra: Civitas, 2024, p. 236-237; 245-248. 6 O conceito de "Snapchat Dysmorphia" surgiu em 2018, cunhado por dermatologistas e cirurgiões plásticos para descrever um fenômeno no qual pacientes buscam procedimentos estéticos para se parecerem com suas versões filtradas e editadas em aplicativos como Snapchat, Instagram e TikTok. Os filtros e editores de imagem oferecem transformações instantâneas que alteram traços faciais, deixando a pele mais lisa, o nariz mais fino, os olhos maiores, a mandíbula mais definida e os lábios mais volumosos. Esse novo "padrão" digital cria uma dissonância entre a autoimagem real e a idealizada, levando algumas pessoas a desenvolverem insatisfação extrema com sua aparência.
A chegada do fim de 2024 traz consigo uma reflexão: O que fizemos do Direito Médico neste ano? Como alguém que começou na área em 2011 como estagiário no CRMPB, tenho visto uma nova fase do Direito Médico e não considero que essa nova fase seja qualitativamente produtiva. No início, tínhamos como mentores os livros-manuais de Miguel Kfouri Neto, Genival Veloso, Eduardo Dantas/Marcos Coltri, Heloísa Helena Barboza e livros da área de autores como Fernanda Schaefer, Luciana Dadalto, Maria Fátima Freire de Sá/Bruno Naves. Na atualidade, surgem especialistas de todos os cantos e formas. Em tempos de vidas aceleradas, os profissionais recém egressos no mercado buscam "fast-formation" com "fast-mentores" com pouca ou nenhuma experiência comprovada. Acontece que os "antigos" mestres são ainda necessários e atuais. A grande verdade é que o Direito Médico não é a mina de ouro. Não será através do Direito Médico que o profissional dará uma virada de 180º na sua vida e passará a cobrar honorários de seis dígitos de forma repentina. Não que os honorários de seis dígitos não sejam possíveis, mas sua construção não é uma corrida de 100 metros rasos, mas uma longa e sofrida prova de IronMan. A grande realidade é que o perfil exigido do profissional contemporâneo requer base normativa, técnica médica e jurídica muito grande e verticalizada. O tão sonhado oceano azul, na verdade, é um mar tormentoso, inquieto e que sobrepuja os aventureiros. Se, no passado, o Direito Médico era encarado pelo grande público como um subproduto das grandes áreas como Penal e Civil, hoje é um campo de atuação própria, digno de constar expressamente nas "tabelas mínimas de honorários" das seccionais da OAB, como já acontece nos Estados de Rondônia, Sergipe e Pernambuco. Ocorre que mesmo dentro dessa nova área, novas subáreas têm surgido. Atualmente temos empresarial médico, civil médico, penal médico, tributário médico, administrativo médico, processo sancionador ético médico. O atual campo de expertise no Direito Médico exige, da mesma forma que a medicina, um maior aprofundamento e densidade téorico-prática. Se o CFM e os CRMs valorizam o RQE - Registro de Qualificação de Especialista e os próprios médicos, ainda que não formalmente especialistas, tendem a verticalizar sua atuação em razão do volume do conhecimento médico, de igual forma, os juristas precisam verticalizar conhecimento. Alguns tribunais, a exemplo do TJ/PR, possuem câmaras próprias destinadas à discussão da responsabilidade civil, por exemplo, razão pela qual essa prática facilita o debate jurídico, pois desembargadores e integrantes do MP terão uma maior relação com a matéria tratada. Para os profissionais da advocacia, o aprofundamento teórico-prático se releva ainda mais fundamental em razão das inúmeras particularidades do Direito Médico para o campo correlato mais amplo. Ocorre que no campo da docência e da advocacia, temos vivido um "efeito Dunning-Kruger" constante, ou seja, pessoas com um viés cognitivo que superestimam suas proprias habilidades de atuação. Profissionais sem nenhum preparo passam a escrever, atuar e defender interesses dos clientes sem perceber o vazio cognitivo que os ocupa.    O cliente, por outro lado, vive um mar de assimetria informacional. Primeiro por desconhecer as particularidades do mundo jurídico e, em um segundo momento, por não conseguir fazer uma escolha racional de um bom profissional, posto que há flagrante seleção adversa - fenômeno tratado na economia em que um dos agentes, em razão da insuficiência e má percepção das informações, acaba tomando decisões erradas. Como bem destaca Warren Buffet, "são necessários 20 anos para construir uma reputação e apenas 5 minutos para destruí-la". Logo, contratar o profissional errado pode gerar cenários catastróficos. Precisamos questionar: Como é possível explicar a discussão sobre obrigação de meio e resultado médica, resultado adverso, iatrogenia, princípio da confiança, erro honesto, responsabilidade objetiva mitigada, negligência informacional e tantos outros conceitos próprios do Direito Médico sem que haja uma preparação técnico-teórica adequada? A maior complexidade médico-jurídica exige que os caminhos inicialmente desbravados por aqueles citados no início do texto sejam percorridos e avançados, pois a medicina está em contínua evolução.1 Se, no passado, o médico podia se dar ao "luxo" de não informar o paciente e exercer uma Medicina paternalista, essa realidade não mais subsiste. Se no passado era possível verificar condenações em valores módicos, hoje as condenações por erro médico podem ultrapassar, com facilidade, os sete dígitos. Observa-se que no ano de 2024 vimos uma possível mudança de entendimento do STJ sobre responsabilidade das unidades hospitalares por atos de médicos não subordinados e também por responsabilidade dentro da equipe. Paralelamente, houve um avanço na definição dos critérios de responsabilidade em caso de negligência informacional para procedimentos eletivos. Nesse cenário, o Poder Judiciário precisa trazer segurança jurídica e balizar: Os parâmetros exigidos para consentimento; O que seria imperícia, imprudência e negligência; Critérios de responsabilidade e solidariedade entre equipe; Consolidar os parâmetros de responsabilidade das unidades por atos de profissionais não prepostos; Definir o critério de responsabilidade hospitalar para casos de infecção hospitalar; Definir o critério de responsabilização hospitalar para casos de erro em decorrência de exame laboratorial/diagnóstico. Ocorre que todas essas discussões precisam ser conduzidas não por um modelo fast, mas por um modelo técnico e sério que considere todos os impactos e desafios que circundam o ato médico. Faço votos de que não sejamos conquistados pelo canto da sereia e que seja possível fazer um debate qualificado. Paralelamente, considerando que todos somos potenciais pacientes e seremos impactados pelas decisões judiciais relativas aos critérios apontados, que o STJ promova uma abordagem democrática com a inclusão de amicus curiae para qualificação do debate. 1 DENSEN, Peter. Challenges and opportunities facing medical education. Transactions of the American Clinical and Climatological Association, v. 122, p. 48, 2011.
No julgamento do RE - Recurso Extraordinário 566471/RN1, que resultou no Tema 6, ligado à judicialização da saúde, o STF ampliou os critérios para o fornecimento judicial de medicamentos não incorporados ao SUS, independentemente do custo, com repercussão geral. Até então, os juízes se orientavam pelos critérios cumulativos firmados no Tema 1063 do STJ. No sistema de precedentes brasileiro, o Tema 6 do STF causará grande impacto nos processos em andamento e futuros, pois o CPC exige que os tribunais mantenham a jurisprudência estável e coerente, e que os juízes e os tribunais, por sua vez, observem os precedentes (art. 927 do CPC). Neste contexto, a técnica da superação (overruling) é essencial para a observância dos precedentes, e o Tema 6 do STF representa uma mudança significativa em relação ao Tema 106 do STJ, quanto à obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos não incorporados pelo SUS. Os arts. 926 e 927 do CPC reforçam a necessidade de uniformidade e estabilidade na jurisprudência, vinculando todos os juízes e tribunais às teses definidas pelos tribunais de vértice, sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do art. 489, § 1º, incisos V e VI, e art. 927, inc. III, § 1º, ambos do CPC. A doutrina aponta que o sistema de precedentes do CPC brasileiro difere dos países de common law3. No common law, os julgamentos são proferidos no âmbito de stare decisis, aplicando raciocínios idênticos a casos semelhantes4 5. Nos países anglo-americanos, o precedente é a razão necessária e suficiente para um resultado jurídico, mesmo que a potencialidade de generalidade ou replicabilidade seja pequena ou nula6. No Brasil, a vinculação dos juízes às teses fixadas pelos tribunais superiores, está ligada, essencialmente, ao viés gerencialista, que busca solucionar a crescente judicialização em diversos assuntos.  O julgamento do RE - Recurso Extraordinário 566471/RN, que estabeleceu o Tema 6 do STF, busca uniformizar a interpretação de questões constitucionais relevantes, definindo parâmetros para o deferimento judicial de medicamentos não incorporados ao SUS. Como mencionado, o overruling permite ajustar ou substituir os precedentes, conforme novas leis, mudanças sociais ou econômicas, ou novos entendimentos.  Um exemplo clássico de overruling é o caso Brow v. Board of Education (1954), que revogou o precedente estabelecido em Plessy v. Ferguson (1896) nos EUA7. No Brasil, o julgamento do HC 82.959-SP pelo STF8 mudou o entendimento sobre a progressão de regime para condenados por crimes hediondos. O art. 927, §4º do CPC prevê a revisão de precedentes para preservar a segurança jurídica, a proteção da confiança e a isonomia.   Na doutrina, a superação é necessária para adaptar o direito às mudanças9, corrigir erros passados10, ou atualizar os precedentes às demandas da sociedade11. A doutrina reconhece que tanto o Tribunal que criou o precedente12 quanto o Tribunal de hierarquia superior pode superá-lo13. Portanto, a superação de precedentes vinculantes é vital para a flexibilidade e evolução do sistema jurídico brasileiro, permitindo ajustes nos julgamentos, em face da crescente judicialização da saúde. Entre 2021 e 2022, houve o aumento de 19% de processos sobre saúde14, com o crescimento de 198% na primeira instância em nove anos, enquanto os processos gerais caíram 6%. Na segunda instância, os processos de saúde subiram 85%, enquanto os gerais reduziram 32%. Em 30/4/24, 62% dos processos de saúde envolviam entes públicos, enquanto 38% as empresas de saúde suplementar15. No TJ/SP, em 2023, foram distribuídos 121.203 novos processos, um aumento de 23% em relação ao ano anterior16. Os assuntos mais judicializados entre 2020 e 2022 incluíram fornecimento de medicamentos, tratamento médico-hospitalar, reajuste contratual e leitos hospitalares. Desde a criação do e-NATJUS em 2018, os dez medicamentos mais solicitados foram: Tetraidrocanabinol+canabidiol; Dupilumabe; Canabidiol; Esilato de nintedanibe; Rivaroxabana; Pembrolizumabe; Aripiprazol; Dapagliflozina; Cloridrato de duloxetina; Insulina glargina.  Embora o Tema 106 do STJ tenha contribuído para maior clareza e uniformidade às decisões judiciais, o volume de ações judiciais de saúde não foi reduzido substancialmente.  A judicialização da saúde é um dos maiores problemas do Poder Judicial, segundo o presidente do STF17, cujo Tema 6 procura definir se o Estado é obrigado a fornecer um medicamento não listado pelo SUS para pacientes sem condições de pagar.   Assim, para avaliar se Tema 106 do STJ foi superado pelo Tema 6 do STF, aplicando o overruling, é preciso entender as diferenças entre os dois Temas e como a superação de precedentes funciona.  O Tema 106 do STJ exige três requisitos cumulativos: (a) comprovação médica da necessidade do medicamento e ineficácia dos fármacos fornecidos pelo SUS; (b) comprovação da incapacidade financeira da pessoa de arcar com o custo do medicamento; (c) registro na Anvisa. O Tema 6 do STF, por sua vez, estabelece os seguintes parâmetros cumulativos: (a) negativa administrativa de fornecimento do medicamento (item 4 do Tema 1.234); (b) ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec; (c) impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS; (d) comprovação científica da eficácia e segurança do fármaco, respaldada por evidências científicas de alto nível; (e) imprescindibilidade clínica do tratamento; (f) comprovação da incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento. Em termos comparativos, os requisitos do Tema 6 do STF são mais rigorosos e complexos, pois incluem, por exemplo, a negativa administrativa e a comprovação científica de alto nível, o que não era explicitamente requerido no Tema 106 do STJ. A única semelhança entre os temas é exigência de comprovação da incapacidade financeira do paciente. Com base nas diferenças e na técnica do overruling, podemos inferir que o Tema 6 do STF, não apenas complementa, mas também amplia significativamente os requisitos estabelecidos pelo Tema 106 do STJ, estabelecendo um novo padrão mais rigoroso e detalhado para a concessão de medicamentos fora da lista do SUS. Considerando os dados extraídos do Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde do CNJ, e do relatório da saúde, publicado em 2019, podemos antever alguns possíveis impactos significativos do Tema 6 do STF, tanto nas demandas em andamento, como nos futuros casos futuros: 1) a inclusão de requisitos como a negativa administrativa e a comprovação científica de alto nível tornarão o processo judicial mais complexo e exigente, dificultando o acesso de pacientes sem recursos ou conhecimento jurídico insuficiente; 2) a complexidade destas ações poderá criar desigualdades no acesso à saúde, favorecendo os grandes litigantes habituais18, neste caso, os entes públicos federativos; 3) pacientes, com menos recursos, estarão excluídos dos juizados especiais à luz dos arts. 3º e 35 da lei 9.099/95, caso seja indispensável a produção pericial de grande complexidade, além do impeditivo do valor da causa (art. 3º, inc. I da lei 9.099/95 e art. 2º da lei 12.153/09), caso observado o limite do tratamento anual, previsto no Tema 1234 do STF. Os novos requisitos do Tema 6 do STF podem contribuir para a sustentabilidade financeira do SUS, ajudando a controlar melhor a alocação de recursos e evitando que as decisões judiciais desestabilizem a gestão financeira do SUS, ao beneficiar uma minoria em alocações de tratamento de alto custo.  Entretanto, a necessidade de atender a esses parâmetros mais rigorosos pode aumentar o tempo de tramitação das ações judiciais, exigindo maior análise e fundamentação dos juízes, tais como o exame das recomendações da Conitec e da comprovação científica do fármaco, respaldado por evidências científicas de alto nível, como ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise. Antes, as decisões concessivas de medicamentos se baseavam, principalmente, em relatórios médicos ou prescrições. Em São Paulo, apenas 72 das mais de 80 mil decisões fazem referência à Conitec19. O Tema 6 do STF estabelece a deferência do Poder Judiciário às recomendações da Conitec, não podendo ser rediscutida em ações individuais, o que pressionar por políticas de saúde mais bem estruturadas e transparentes, reduzindo a necessidade de judicialização. Em resumo, os novos parâmetros do Tema 6 são muito mais rigorosos e detalhados, tornando a concessão judicial de medicamentos não incorporados às listas do SUS uma medida excepcional20. _________ 1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informação à sociedade. RE 566.471 (Tema 6). Critérios para fornecimento de medicamentos fora da lista oficial do SUS. Brasília, DF:  Supremo Tribunal Federal. Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024. 2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Precedentes Qualificados. Brasília, DF:  Superior Tribunal de Justiça. Disponível aqui. Acesso em 8.8.2024. 3 MITIDIERO, Daniel Francisco. Op. Cit., 2017. 4 MANCUSO, Rodolgo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014. 5 ARENHART, Sérgio Cruz; PEREIRA, Paula Pessoa. Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode confundir precedentes com as técnicas do CPC para solução da litigância de massa? São Paulo, Revista dos Tribunais, 2019. 6 ARENHART, Sérgio Cruz; PEREIRA, Op. Cit., 2019. 7 USA. U.S. Supreme Court. Brown v. Board of Education of  Topeka, 343, U.S. 294 (1955). Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024. 8 BRASIL. STF. HC 82.959-SP. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, 23/02/2006. Disponível aqui. Acesso em 20.10.2024. 9 DIDIER JR, Fredie et al. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015. 10 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 11-95, 2012. 11 ARENHART, Sérgio Cruz et al, Op. Cit., 2019. 12 MACEDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015. 13 CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2016. 14 BRASIL. APM. Infográfico apresenta panoramas da Judicialização da Saúde e da Medicina no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 8.8.2024. 15 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números. Painel Sistema e-NATJUS, Núcleo Técnico do Poder Judiciário. Brasília, DF:  CNJ. Disponível aqui. Acesso em 30.4.2024. 16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Op. cit., 30.4.2024.  17 BRASIL. STF celebra conclusão de julgamento sobre fornecimento de medicamentos de alto custo. Brasília, DF:  CNJ. Disponível aqui. Acesso em 19.10.2024. 18 GALANTER, Marc. Por que" quem tem" sai na frente: especulações sobre os limites da transformação no direito. São Paulo, FGV Direito, 2018. 19 Cf. BRASIL, CNJ. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas, e propostas de solução. Disponível aqui. 20 Para acessar o texto do artigo completo do autor: Disponível aqui.